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segunda-feira, 18 de julho de 2022

Lee Morgan - "Lee-Way" (1961)

 

"Todos ficavam espantados: tinha um garoto que tocava como um veterano e tinha grandes ideias. Ninguém restava dúvida 
de que ele seria uma estrela." 
Charli Persip, baterista da orquestra de Dizzie Gillespie

Mais de uma vez já falamos aqui sobre a trágica morte de Lee Morgan, dada a narrativa novelesca que envolve o crime (foi alvejado pela própria esposa, Helen) como, principalmente, pela prematuridade da perda deste grande talento da história do jazz. Contudo, não há o que lamentar. Nos pouco menos de 34 anos que viveu e dos 15 em que produziu, desde seu surgimento através da orquestra de Dizzie Gillespie e da banda Art Blakey, na segunda metade dos anos 50, até sua partida, que completa 50 anos em 2022, o trompetista edificou uma das mais notáveis obras da discografia jazz moderna. Com o aval e a qualidade técnica do selo Blue Note, Morgan deu a largada na carreira solo em 1956 e só parou no fatídico 19 de fevereiro de 1971. 

Embalado, ele começava os anos 60, seus mais produtivos, com mais de 10 discos entre próprios e em participações protagonistas. Tanto que, no primeiro ano daquela década, não tardou a vir primeira obra-prima: “Lee-Way”, gravado em 1960 e lançado um ano depois. Acompanhado de um supertime que contava com Jackie McLean, no sax alto; Bobby Timmons, ao piano; Paul Chambers, baixo; e o professor Blakey na bateria, Morgan explora todas as vertentes que o influenciaram e compunham o cenário do jazz da época. Hard bop, cool, modal e be-bop e até uma passadinha pela vanguarda: tudo com absoluta fluidez e, às vezes, simultaneamente. É o que se vê na brilhante faixa de abertura, "These Are Soulful Days". Obra de um front man maduro, apesar dos apenas 22 de idade à época, seu arranjo não apenas se constitui desses vários estilos como, principalmente, é possível vê-los hibridizando-se naturalmente. O ouvinte começa escutando um blues elegante, suingado, mas sem perceber, dentro do próprio riff, já está submerso num clima melancólico de cool jazz, quase sensual. Repete-se o chorus e, ao invés de seguir na mesma linha, o compasso cai para um ritmo marchado, dando uma pitada de avant-garde.

E quem começa solando? Morgan? Não: Chambers. Craque do baixo, o homem que já havia entrado para os anais do jazz ao tocar em “Kind of Blue”, de Miles Davis, um ano antes, desfila um estiloso solo. O qual, aliás, grosso modo ele não termina, visto que mantém seu suingue por debaixo do improviso seguinte. De Morgan agora? Não: de Timmons. Mais um lindo solo carregado de alma blueser aproveitando as escalas de Lá e Si. Quem pensa que agora será a vez do band leader, está enganado. Parceiro generoso, Morgan concede a McLean o espaço para uma contribuição carregada de sentimento para, finalmente, entrar em campo. Que improviso com desenvoltura e graça!

"These...” mostra que Morgam sempre soube muito bem abrir um disco, pegando pelo ouvido quem escuta já de pronto. O que se veria em “The Sidewinder” e “Serach for the New Land”, iniciadas com suas memoráveis faixas-título, ou em “The Gigolo”, com outra célebre, “Yes I Can, No You Can't”. Depois, em tese, o trajeto é mais facilitado, certo? Não é esta a escolha do “caminho de Lee”. Em clima de trilha de filme policial, "The Lion and the Wolff" tem no piano um martelado em notas graves extremamente soul e na bateria sincopada de Blakey a base para outro tema excepcional de “Lee-Way”. Morgan, se se conteve na abertura para dar evidência a seus companheiros de banda, aqui é ele quem domina, solando com avidez por 2 min 30’. Mas todos têm espaço. E quando se diz “todos”, é o grupo inteiro, mesmo. Depois de TImmons, Chambers ensaia seu solo e passa a bola para o mestre Blakey dar um show com as baquetas em seu estilo de tocar carregado de africanidade. Mais um hard-bop exemplar.

Mais longo número do disco, com pouco mais de 12 min, a animada "Midtown Blues" traz novamente o blues, literalmente, para o centro das atenções. Outro riff contagiante, outro show de interpretações, outra mostra de sinergia de toda a banda. De autoria de McLean, é Morgan, no entanto, quem dá o sopro inicial em um improviso que joga luz sobre os velhos mestres do Mississipi. O saxofonista é quem entra em seguida com a autoridade de criador que conhece os atalhos. Com justiça, aliás, McLean é o que mais se demora performando, preenchendo quase 5 min da música, que traduz em sons a dinâmica agitada da região central nova-iorquina. Timmons também não deixa por menos ao piano, entregando notas ligeiras e agudas. Fica a Chambers a incumbência de fazer a última parte antes do chorus finalizar com a energia lá em cima.

Se a elegância sempre foi uma marca de Morgan, já o era assim nesta fase inicial de carreira, a se ver por "Nakatini Suite". O riff talvez engane, pois o desenrolar da música revela um ritmo intenso, exigindo habilidade e ligeireza dos músicos. Depois de Morgan e Timmons, é Blakey novamente quem “apavora” em inebriantes rolos na caixa, surdo e tom-tom tomados de técnica e habilidade, em que dá para perceber sua desenvoltura no chimbal e a forma como segura a baqueta, movimentada pelo pulso e não pelo bíceps como fazem clássicos bateristas igual a ele.

Neste ano em que se completam cinco décadas sem o enfant terrible do jazz, nada melhor do que, ao invés de lembrar de sua morte, fazer o raciocínio contrário: lembrar da aurora de Lee Morgan. “Lee-Way” é para muitos a mais bem-acabada de suas obras do começo da carreira e, quiçá, de toda a marcante discografia do músico. O álbum que deu o caminho que ele seguiria marcando com seus passos firmes e intrépidos enquanto esteve sobre o planeta blue.

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FAIXAS:
1. "These Are Soulful Days" (Calvin Massey) - 9:25
2. "The Lion and the Wolff" (Morgan) - 9:40
3. "Midtown Blues" (McLean) - 12:09
4. "Nakatini Suite" (Massey) - 8:09

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

John Coltrane - “Blue Train” (1957)

 


"Coltrane pode ter feito álbuns mais importantes, mas nenhum foi tão eficaz quanto este". 
Colin Larkin, criador e editor da Encyclopedia of Popular Music, no livro“All Time Top 1000 Albums”

“Aquela gravação de ‘Blue Train’ era mesmo diferente... dava para ver, havia algo de espiritual”.
Curtis Fuller 

Quando se fala em bandas no jazz, John Coltrane é conhecido pelo quarteto mágico que formou entre 1961 e 1965 ao lado de Elvin Jones, na bateria, Red Garland, piano, e Jimmy Garrison, baixo. Porém, é verdade também que Coltrane nunca deixou de experimentar outros formatos de banda menos enxutos. Compôs, por exemplo, em 1961, para o disco “Olé”, um septeto e para o free jazz avant-garde “Ascension”, de 1965, nada menos que um decateto. A versatilidade para aplicar seu gênio musical, fosse rodeado de menos ou de mais músicos, está, aliás, desde que se tornou um band leader no final dos anos 50. “Blue Train”, seu primeiro e único disco pela cultuada Blue Note e menos de quatro meses depois de sua estreia como líder em outro selo clássico, a Prestige, é fruto da sessão de gravação a 15 de setembro de 1957 com cinco parceiros em estúdio. 

Porém, não se trata apenas de uma mera reunião para mais um mero disco, nem muito menos Trane estava acompanhado de quaisquer músicos. O trompete, sim senhores, estava a cargo do enfant terrible Lee Morgan, então com apenas 19 anos, mas já considerado em toda a Costa Leste norte-americana como um fenômeno do jazz. Além de Morgan, estavam com ele naquele dia no Van Gelder Studios, em New Jersey, só craques: o trombonista Curtis Fuller, maior do seu instrumento à época e sucessor de J.J. Johnson; o já tarimbado pianista Kenny Drew, da escola de Charlie Parker e Johnny Griffin; o jovem baixista Paul Chambers, presença constante a toda turma do be-bop; e o disputado baterista Philly Joe Jones – estes dois últimos, aliás, ex-colegas de Coltrane do famoso primeiro quinteto de Miles Davis. O resultado é um dos maiores clássicos da história do gênero e um dos mais célebres da exitosa, mas curta carreira do artista.

Com uma das aberturas mais emblemáticas da discografia jazz, aquele chorus dos metais marcados pelos dois acordes de piano, a faixa-título é daquelas desbundes provadores de que ali estava pronto, lapidado, já no primeiro projeto solo, o maior nome do jazz: John Coltrane. Como compositor, arranjador e, principalmente, pelo sofisticado e intrincado modo de tocar. Algo único e inédito até então, haja vista que, experimentado nas bandas de Dizzy Gillespie e Earl Bostic, no quinteto de Miles Davis e ex-aluno de Thelonious Monk, Trane unia num só soprar o blues, o spiritual, o be-bop e a vanguarda. Em “Blue Train”, embora um trabalho inicial, já fica notória a forma de tocar de Coltrane num movimento em direção ao que se tornaria seu estilo característico: solos harmônicos e linhas arpejadas em que o tempo muitas vezes está fora ou acima do compasso, estabelecendo sutis conexões com a melodia.

Mas quem não fica para trás são Morgan e Fuller. Convidados de honra para dividirem os sopros com o anfitrião, eles se esmeram em suas participações sempre inspiradas. Caso de “Blue Train”, mas também da gostosa “Moment's Notice”, quando dividem o chorus com Coltrane. Fuller com seu jeito colorido de tocar um instrumento de registro grave. Já Morgan exibe seu virtuosismo possante de viradas criativas, agudos surpreendentes e encadeamentos improváveis. Chambers tira das cordas do baixo através do tanger do arco sons mágicos num solo luminoso. Já o blues ligeiro “Locomotion”, como o nome indica, tem na bateria de Joe Jones o impulso inicial para improvisações de alta habilidade de Coltrane, Morgan e Fuller. Mais uma vez, funciona com perfeição a trinca, com o devido destaque para cada um. Porém, não são somente eles que se sobressaem. Drew é pura elegância, enquanto Jones repete o destaque da abertura num curto, mas marcante improviso.

Diminuindo o ritmo com elegância, a romântica “I'm Old Fashioned”, originalmente da trilha sonora do musical de Fred Astaire “Bonita como Nunca”, de 1942, capta a atmosfera de que Coltrane muito se valeu junto a Miles Davis em suas inseparáveis baladas. Porém, também antecipa o tipo de releitura de standarts do cinema norte-americano que faria a partir de então, culminando na obra-prima “My Favourite Things”, de “A Noviça Rebelde”, o qual versaria em seu álbum homônimo em 1960. A pronúncia lânguida do sax na abertura, articulada com leves salpicos nas teclas, são de arrebatar. Escovinhas na caixa e no prato, um baixo vadio por detrás e um piano machucado dão aquele ar de fim de noite de nightclub

Para terminar, outro clássico, das preferidas dos amantes do jazz e de Coltrane: “Lazy Bird”, brincadeira com a progressão harmônica de “Lady Bird”, do pianista e então recente parceiro Tadd Dameron. A impressionante performance do líder pela metade da faixa quase não deixa perceber que quem a abre com o riff e executa a primeira sessão de improviso não é ele e, sim, Lee Morgan. A inteligência musical de Coltrane é tamanha que, longe de qualquer vaidade, ele percebe que cabia ao trompete esta função dentro do arranjo do tema. E olha que se trata do número de encerramento e para o qual podia, com todas as razões, puxar para si o protagonismo. Mas o que se escuta é, a bem dizer, uma música do repertório de Morgan. Na sequência, Fuller, Coltrane, Drew, Chambers e Jones cada um entra para seu momento, fechando, novamente, com a irreverência vigorosa de Morgan. 

Não por coincidência, "Blue Train" foi um dos trabalhos preferidos pelo próprio Coltrane, que continuaria a promover maravilhas fosse com duos, trios, quartetos, sextetos, octetos... Sua escalada sonora e espiritual ainda revelaria muitos momentos singulares para o desenvolvimento do jazz moderno até seu apogeu criativo naquela que pode ser considerada a trilogia máxima: "Crescent", "A Love Supreme" e "Ascencion". Porém, nada disso seria construído não fossem os trilhos abertos por este "trem azul", a linha de partida para o estilo hipnótico e exultante que o músico seguiria até sua prematura estação final, em 1966. Quase uma metáfora para um artista que passou pelo planeta "blue" na velocidade de um trem, iluminando por onde passava e emanando os sons que simbolizam o supremo.

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FAIXAS:
1. "Blue Train" - 10:43
2. "Moment's Notice" - 9:10
3. "Locomotion" - 7:14
4. "I'm Old Fashioned" (Johnny Mercer, Jerome Kern) - 7:58
3. "Lazy Bird" - 7:00
Todas as composições de autoria de John Coltrane, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Meus 10 melhores baixistas de todos os tempos

Não é a primeira vez – nem deve ser a última – que, abismado com alguma lista de supostos “melhores” publicada na imprensa, eu venha aqui por meio do Clyblog manifestar a minha contrariedade. E preferências. O modo de fazê-lo é, no entanto, não apenas criticando, mas montando a minha própria lista em relação àquele mesmo tema. Desta vez, o alvo é uma listagem publicada pela famosa revista de música britânica New Musical Express, que elencou os 40 maiores baixistas de todos os tempos (?!).

De novo, minha ressalva é pelos critérios. Como respeitar uma seleção que não inclui, pelo menos entre os 40, nomes fundamentais do instrumento para o desenvolvimento da música pop como Geddy Lee, do Rush, ou Steve Harris, do Iron Maiden? “Ah, Simon Gallup (The Cure) e Matt Freeman (Rancid) não são ‘dinossauros’ virtuosos”. Mas Krist Novoselic (Nirvana) nem Colin Greenwood (Radiohead) o são – e estão entre os votados. E mais: está lá – por merecimento, diga-se – o jazzista Charles Mingus. Ok, mas, se vai entrar na seara do jazz, da qual diversos músicos são de altíssima qualidade, técnica e influência, como não abarcar os óbvios nomes de Ron Carter, Paul Chambers, Jimmy Garrison, Stanley Clarke, Marcus Mïller e Dave Holland? Ou ainda: em 40, nenhum brasileiro? Nem Dadi, Bi Ribeiro ou Arthur Maia? Num mundo globalizado e conectado como o de hoje, foi-se o tempo em que músicos como eles eram meros desconhecidos de um país de música desimportante para o cenário mundial.

Como dizem por aí: “se não sabe brincar, não desce pro play”! Parece, sinceramente, que a tão consagrada NME não tem gente suficientemente entendedora daquilo que está tratando. As lacunas, sejam pelos critérios tortos, desconhecimento ou até preconceito, comprometem as escolhas largamente. Além disso, a ordem de preferências é bastante questionável. Parece terem optado por contemplarem baixistas de todos os estilos e subgêneros dentro daquilo que se considera música pop e deram “com os burros n’água”. Claro que há acertos, mas muito mais pela obviedade (seriam também loucos de não porem Jaco Pastorius, John Paul Jones, Kim Deal ou John Entwistle), fora que há aberrações como Flea aparecer numa ridícula 22ª posição - a Rolling Stone, em 2011, havia escolhido o baixista do Red Hot Chili Peppers como 2º melhor...

Pois, então, minimamente tentando “corrigir” o que li, monto aqui a minha lista de 10 preferidos do contrabaixo. Toda classificação deste tipo, inclusive a minha, é cabível de julgamento, sei. Porém, ao menos tento, com o conhecimento e gosto que tenho, desfazer algumas injustiças a quem ficou inexplicavelmente mal colocado ou, pior, nem incluso foi. E faço-o com algumas regrinhas: 1) sem ordem de preferência; 2) lançando breves justificativas e; 3) ao final de cada, citando três faixas em que é possível ouvir bons exemplos do estilo, performance e técnica de cada um dos escolhidos.

1 - Peter Hook
Um dos mal colocados da lista da NME, Peter Hook é certamente o baixista da sua geração que melhor desenvolveu sua técnica, tornando-se quase que o principal “riffeiro” do New Order. Entretanto, seu estilo próprio e qualidade já se notam desde o 1º disco da Joy Division. Baixo inteligente, potente e de muita personalidade.

Ouvir: “She’s Lost Control” (Joy Division); "Leave Me Alone" (New Order); “Regret” (New Order)



2 - Ron Carter
Qualquer um que pense em elencar os melhores contrabaixistas de todos os tempos, jamais pode deixar de mencionar o mestre do baixo acústico, cujo toque inconfundível tem inequívoca presença para a história do jazz, da MPB e da música pop moderna. O homem simplesmente tocou no segundo quinteto clássico de Miles Davis, participou da gravação de “Speak No Evil”, do Wayne Shorter, e tocou nos discos “Wave” e “Urubu” de Tom Jobim, pra ficar em três exemplos. Aos 80 anos, Ron Carter é uma lenda vida.

Ouvir: “Blues Farm” (Ron Carter); “O Boto” (com Tom Jobim); “Oliloqui Valley” (com Herbie Hancock)


3 - Flea
O cara parece de outro mundo. Compõe linhas de baixo complexas e não apenas sustenta tal e qual durante os show como o faz improvisando e pulando enlouquecidamente. Vendo Flea no palco, seja na mítica banda punk Fear, no Chili Peppers ou em participações como as com Jane’s Addiction e Porno for Pyros, parece fácil tocar baixo. Como diziam Beavis & Butthead: “Flea detona!”

Faixas: “Sir Psycho Sexy” (Red Hot Chili Peppers); “Pets” (Porno for Pyros); “Ugly as You” (Fear)


4 - Jaco Pastorius
Dos acertos da lista da revista. Afinal, como deixar de fora a maior referência do baixo do jazz contemporâneo? O instrumentista e compositor, presente em gravações clássicas como “Bright Size Life”, de Pat Metheny, e “Hejira”, de Joni Mitchell, equilibra estilo, timbre peculiar e rara habilidade. Como seria diferente vindo de alguém que se diz influenciado (nessa ordem) por James Brown, Beatles, Miles Davis e Stravinsky?

Ouvir: “Birdland” (com Weather Report); “The Chicken” (Jaco Pastorius); “Vampira” (com Pat Metheny)


5 - Geddy Lee
Quando o negócio é power trio, fica difícil desbancar qualquer um dos três no seu instrumento. Caso de Geddy Lee, do Rush. Mas acreditem: ele não está na lista da NME! Pois é: alguém que cria e executa linhas de baixo altamente criativas, de estilo repleto de contrapontos (e ainda toca teclado com o pé ao mesmo tempo), não poderia deixar de ser citado jamais. Pelo menos aqui, não deixou.

Ouvir: “La Villa Strangiato”; “Xanadu”, “Spirit Of The Radio


6 - Les Claypool
Outro dos gigantes do instrumento que não tiveram sua devida relevância na lista da NME (29º apenas). Principal compositor de sua banda, o Primus (outro power trio), Claypool, além disso, é um verdadeiro virtuose, que faz seu baixo soar das formas mais improváveis. Tapping, slap, dedilhado, com arco: pode mandar, que ele manja. Domínio total do instrumento.

Ouvir: “My Name is Mud”; “Tommy The Cat”; “Mr. Krinkle


7 - Simon Gallup
Se Peter Hook aperfeiçoou o baixo da geração pós-punk, colocando-o à frente muitas vezes da sempre priorizada guitarra no conceito harmônico do Joy Division e do New Order, o baixista do The Cure não fica para trás. Dono de estilo muito próprio, seu baixo é uma das assinaturas do grupo. Se a banda de Robert Smith é uma das bandas mais emblemáticas dos anos 80/90 e responsável por vários dos hits que estão no imaginário da música pop, muito se deve às quatro cordas grossas de Gallup.

Ouvir: “Play for Today”; “Fascination Street”; “A Forest


8 - Mark Sandman
Talvez a maior injustiça cometida pela NME – pra não dizer amnésia. Se fosse apenas pela mente compositiva e pelo belo canto, já seria suficiente para Sandman ser lembrado. Mas, além disso, o líder da Morphine, morto em 1999, era um virtuose do baixo capaz de inventar melodias com a elegância do jazz e a pegada o rock. Fora o fato de que seu baixo soava a seu modo, com a afinação totalmente fora do convencional, que ele fazia parecer como se todos os baixos sempre fossem daquele jeito: geniais.

Ouvir: “Buena”; “I'm Free Now”; “Honey White



9 - Bernard Edwards
A Chic tinha na guitarra do genial Nile Rodgers e no vocal feminino e no coro de altíssima afinação uma de suas três principais assinaturas. A terceira era o baixo de Bernard Edwards. O toque suingado e vivo de Edwards é um patrimônio da música norte-americana, fazendo com que a soul disco cheia de estilo e harmonia da banda influenciasse diretamente a sonoridade da música pop dos anos 80 e 90.

Ouvir: "Good Times" (Chic); “Everybody Dance“ (Chic); “Saturday” (com Norma Jean)"



10 - Bootsy Collins
Quando se pensa num contrabaixista tocando com habilidade e alegria, a imagem que vem é a de Bootsy Collins. Ex-integrante das míticas bandas Parliament-Funkadelic e da The J.B.’s, de James Brown, Bootsy é um dos principais responsáveis por estabelecer o modo de tocar baixo na black music. Quem não se lembra dele no videoclipe de “Groove is in the Heart” do Deee-Lite? A NME não lembrou...

Ouvir: “P-Funk (Wants to Get Funked Up)” (com Parliament); “Uncle Jam” (com Funkadelic); “More Peas” (com James Brown & The J.B.'s)



por Daniel Rodrigues
com a colaboração de
Marcelo Bender da Silva
e Ricardo Bolsoni

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Kenny Dorham - "Quiet Kenny" (1959)

 

“Foi no trompete que Kenny expressou seus sentimentos e emoções mais profundos e, como 'Quiet Kenny' demonstra de forma conclusiva, suas ideias e sua capacidade de trazê-las à vida o colocam entre os melhores."
Dan Morgenstein, do texto da reedição especial de Quiet Kenny de 2005

Os orientais são os que mais celebram o silêncio dentro da música. Aquilo que chamam de "ma" (algo como “intervalo”, “tempo”, “espaço”) pode ser interpretado e captado de diversas formas, seja filosófica, prática ou formalmente. Advinda da filosofia dualista do yin e yang, a ideia de “silêncio” trazida do Oriente se incutiu também em músicos do Ocidente, aqueles cujos ouvidos e sentimentos souberam compreender essa sabedoria milenar originária da própria natureza. Kenny Dorham foi um desses perspicazes aprendizes. Como um mestre taoísta, ele transpôs para seu trompete a sabedoria do silêncio oriental através de uma das formas mais sublimes que os sentidos humanos podem captar: a quietude. Não por coincidência, seu melhor disco chama-se “Quiet Kenny”, uma definição sintética, didática e até profética de si mesmo.

Dorham, formado nas big-bands de be-bop dos anos 50 de Lionel Hampton, Billy Eckstine, Dizzy Gillespie e Mercer Ellington, além do quinteto de Charlie Parker e a primeira formação da Jazz Massangers de Art Blakey, curiosamente não é tão celebrado quanto alguns de seus colegas de instrumento como Miles Davis, Lee Morgan e Chet Baker. Os motivos podem ser vários para ser considerado, como disse o crítico e escritor Gary Giddins, “sinônimo de subestimado”. Uma suspeita pode-se levantar: “Quiet...”, um trabalho tão definidor de sua verve e sua primeira incursão no selo Prestige, saiu justo no mesmo ano do acachapante “Kind of Blue”, de Miles, que, além de ser o álbum de jazz mais vendido da história e revolucionário por "inventar" um subgênero, o jazz modal, marcou justamente a saída de Miles do selo Prestige para a abastada gravadora Columbia. “Quiet...”, com a sombra ainda de outras obras daquele ano, como “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman, e “Time Out”, de Dave Brubeck, igualmente marcantes para o jazz, pareceu, como o título sugere, aquietar-se.

No entanto, passados os anos e o impacto midiático de seus concorrentes, “Quiet...” mostra-se tão fresco e brilhante quanto merecia ter sido recebido à época de seu lançamento. O estilo depurado de Dorham, tanto de compor e versar quanto de, principalmente, tocar, estão cristalinos no disco. Acompanhado de Tommy Flanagan, ao piano, Paul Chambers, no baixo, e Art Taylor, bateria, Dorham desfila estilo e classe sem, contudo, perder o diálogo com seu ouvinte ao exercitar uma pronúncia clara e sem rodeios do trompete. Essa proposta fica bem evidente em "Blue Friday" e "Blue Spring Shuffle", em que preserva a linguagem pop do blues ao lhe captar a essência e sem complexá-la desnecessariamente. Simplicidade. Até os ouvidos menos rebuscados conseguem sorvê-las saborosamente.

Antes disso, porém Dorham mostra que também sabia ousar, provando que apenas os desatentos o subestimavam. "Lotus Blossom", que abre o álbum, é um dos mais originais e engenhosos temas do jazz daquele final de anos 50, quiçá de toda a história do hard-bop. Intensa, lírica, dissonante, desconcertante. De andamento que ondula, surpreende por seu riff inteligente, mas também pela variação de ritmos e encadeamentos, bastante a cargo, aliás, das baquetas de Taylor. "Lotus...”, aberta referência ao Oriente, tem condensado, em menos de 5 min, tudo isso: solos incríveis de Dorham, Flanagan e de Taylor, subidas e descidas, be-bop, blues e música indiana.

Se a serenidade está mais escondida numa faixa tão vívida quanto a de abertura, nada melhor do que aplicá-la num clima de balada. É o que Dorham sabiamente faz na versão de "My Ideal", em que conta com uma rica dobradinha com o piano de Flanagan e a condução consciente de Taylor, só nas escovinhas e pratos, e de Chambers, acostumado com estas ocasiões sonoras visto que recentemente saído do quinteto que acompanhou anos Miles em seus clássicos discos pela Prestige, tais “Steamin’” e “Cookin’”. Tratamento delicado e semelhante o band leader traz para outra adaptação: "Alone Together". O trompete, que atinge notas altas de pura emoção romântica, é transparente, sem exaltação, um exemplo de como utilizar as pausas e ataques de forma sutil e fluida. Nota-se a mesma limpidez do conjunto sonoro – muito ajudada pela captação sempre perfeita do engenheiro de som Rudy Van Gelder – nos “quiet blues” "I Had the Craziest Dream" e "Old Folks". Em ambas, contracenando com Dorham, o piano de Flanagan prioriza as teclas pretas, agudas e faceiras, enquanto o baixo e a bateria mantêm a base ideal para o desenvolvimento harmônico. 

Kenny Dorham é fatalmente menos lembrado que outros trompetistas contemporâneos a ele. O temperamento reservado que manteve até sua morte sem alardes, aos 72 anos, após anos de doença renal, provavelmente explique o descompasso entre reconhecimento e qualidade artística. Esse ofuscamento pode ter sido também pela genialidade ou pela personalidade explosiva de Miles? Pelo carisma ou a intempestividade midiática de Lee Morgan? Pelo charme ou a face polêmica de Chet Baker? Probabilidades. Há de se supor, quem sabe, que a diferença de prestígio recaia sobre o estilo, quiçá mais identificável nestes outros. De fato, diversamente destes, Dorham não vai nem pela economia estruturada de Miles, nem pelo virtuosismo jovem de Morgan e nem pela expressividade cool de Chet, mas, sim, pela simplicidade. Esse era seu campo e onde atuava com desenvoltura. 

Não se sabem ao certo os motivos, porém nada disso impediu que Dorham, a seu modo, demarcasse o seu lugar entre os grandes do jazz norte-americano. Tranquilo, discreto e quieto como classificou a si próprio, Dorham não promoveu uma revolução do nível do free jazz, da avant-garde, do modal ou cool jazz, mas sim, uma (quase) silenciosa. A sua própria revolução: interna e consciente. Como um sensei do jazz.

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FAIXAS:

1. "Lotus Blossom" [also known as "Asiatic Raes"] (Kenny Dorham) - 4:39
2. "My Ideal" (Richard A. Whiting/Newell Chase) - 5:06
3. "Blue Friday" (Dorham) - 8:46
4. "Alone Together" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) - 3:11
5. "Blue Spring Shuffle" (Dorham) - 7:38
6. "I Had the Craziest Dream" (Harry Warren/Mack Gordon) - 4:40
7. "Old Folks" (Dedette Lee Hill/Willard Robison) - 5:11
8. "Mack the Knife" (Bertolt Brecht/Kurt Weill) - 3:02 (faixa bônus da reedição em CD)

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Miles Davis - "Kind of Blue" (1959)

"Quem é tocado por essa música [de Kind of Blue] muda para sempre. E se torna melhor do que é."
 Herbie Hancock



Fui convidado pelo autor deste blog a escrever a resenha sobre “Kind of Blue”, de Miles Davis, de 1959, simplesmente o disco de jazz de maior sucesso e vendagem de todos os tempos, tendo ultrapassado tranquilamente, mais de meio século depois de seu lançamento, a marca de 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. Volume este que continuará crescendo certamente, tendo em vista que diariamente exemplares de “Kind of Blue” são adquiridos por novos e antigos fãs. Eu mesmo sou mais um dentre esta multidão de admiradores.
 Então, diante de tal missão, perguntei-me: o que dizer deste fenômeno, uma obra que perdura a tanto tempo e da qual, principalmente, gosto tanto? Como dimensionar sua evidente inspiração a toda uma geração de artistas? Ou, ainda, explicar de que forma a gama de aspectos musicais e não musicais que “Kind of Blue” abarca, trazendo de vez para a música moderna as influências de culturas folclóricas, como os sons orientais, africanas ou hispânicos, e misturando tudo isso ao groove latino, à música erudita e a tradição negra americana? Como jornalista, uma das regras básicas da minha profissão é a de manter imparcialidade sobre o que se está analisando. O que fazer, então, quando se está na posição de crítico e amante ao mesmo tempo?
 A solução que achei foi a de me entregar à genialidade deste disco, perceptível a cada faixa, a cada solo, a cada fraseado de trompete, a cada base de piano, a cada vibração de corda do baixo, a cada ataque do saxofone. “Kind of Blue” já impressiona de cara pela “cozinha”. O quinteto formado por Miles tinha nada mais nada menos que o baixo seguro de Paul Chambers, a bateria swingada e elegante de Jimmy Cobb, o sax alto cheio de sentimento e alma gospel de Cannonball Adderley, o piano “branco” e mezzo-erudito de Bill Evans, o trompete genial e inteligentemente comedido do próprio Miles e o sax tenor do talentosíssimo John Coltrane, que, talvez, comporte todos esses elementos e mais um pouco. Trata-se da melhor banda de Miles, comparada somente a seu supertime de 1969, que contava com feras como Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter. O fato é que os quatro músicos que acompanharam Miles em “Kind of Blue” tornaram-se ou se solidificaram depois do álbum como alguns dos grandes nomes da história do jazz (incluindo aí Red Garland, que tocou piano em uma das faixas), mas principalmente Coltrane, que revolucionou o estilo, disco a disco, até a sua morte, em 1967.
 Mas e o disco? Bem, “Kind of Blue” começa com a célebre “So What”, um blues cadenciado e cheio de swing onde aparece pela primeira vez na história da música um negócio que Miles Davis vinha desenvolvendo (parte conscientemente e outra não) há mais ou menos uma década: o jazz modal. Embora se trate de uma invenção técnica, facilmente distinguida por músicos, para leigos como eu também não é difícil de reconhecer. Ou, pelo menos, “sentir” a diferença. O jazz modal – diferentemente da loucura criativa do be-bop, que aproveitava todas as escalas musicais ao extremo, ou do free-jazz, livre em concepção, como o título sugere – propunha uma, digamos, “simplificação programada” do jazz. Assim, as melodias eram compostas em escalas (por módulos = modal), o que gera uma base em que há poucas mudanças de notas mas, ao mesmo tempo, dá uma vasta liberdade aos solistas, que não precisam improvisar somente dentro do tradicional tempo 1-2-3-4. Um pequeno detalhe, mas uma verdadeira revolução que influenciou todo o jazz, soul, pop e rock que viria a seguir – isso, para ficar só nas contribuições à música, sem falar do cinema, artes plásticas, cênicas, etc.
 “So What”, com sua memorável abertura do diálogo entre baixo e piano, é, assim, um marco do jazz modal, formato que Miles e seu quinteto empregaram em todas as cinco faixas do álbum. E “So What” guarda ainda uma outra curiosidade. Nela, a visão pop do caleidoscópico Miles se evidencia: ouvindo com atenção, dá para perceber que sua base de sopros no chorus é idêntica a de “Cold Sweat” (veja o vídeo), de James Brown (a quem o jazzista admirava), considerado o primeiro funk da história. Porém, exceto por um detalhe: as notas estão na ordem inversa.
 O disco segue com outro jazz “blueseado”: “Freddie Freeloader”, tema que contém o talvez mais impressionante solo já tocado por Coltrane. Depois do número elegante de Miles, Trane entra literalmente rachando com toda emoção e potência, vazando o som do seu sax para todos os microfones do estúdio e obrigando o operador da mesa a reduzir o volume manualmente na hora. O que seria uma falha na gravação para um artista comum, fazendo com que se repetisse a sessão, por causa da sensibilidade de Miles ficou assim mesmo e assim se eternizou.
 A lindíssima balada “Blue in Green” vem na sequência, uma provável parceria de Miles com o Evans onde o pianista conduz a melodia. Bem, “melodia” não é bem o termo certo. Criada sob a linha modal de notas cool que variam em poucas escalas, e com claras influências eruditas emanadas do piano quase clássico de Evans, “Blue in Green” não tem uma melodia propriamente dita. Não fica evidente um acorde básico ou um riff. Mesmo assim, sua aura é tão palpável que quem a escuta jamais se esquece de como ela é.
 Outra pérola inesquecível de “Kind of Blue” é a hipnótica e sensual “All Blues”, na qual se veem nuanças hispânicas, afro e da vanguarda erudita. Nela, o piano mantém constantemente um trinado que parece com marimbas espanholas tremulando, enquanto os sopros executam o chorus lentamente, em longos e lânguidos riffs fraseados que definem a base do tema. Para matar a pau, o Miles inicia uma segunda frase melódica com um longa nota, que se estende, parecendo dar asas à canção. Ajudado pelo som de escovinhas raspando no tarol, o famoso som repetido do piano gera uma sensação mágica de circularidade, muito bem traduzida para o audiovisual pelas lentes de Spike Lee, no filme "Mais e Melhores Blues" de 1990.
 A obra-prima finaliza com outra de ares ibéricos: “Flamenco Sketches”, tão rica e densa musical e conceitualmente que serviu de inspiração não para mais uma música, mas para um disco inteiro de Miles Davis chamado “Sketches of Spain”, de 1960. É mole ou quer mais?

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 Antes e depois de “Kind of Blue”, Miles Davis revolucionou a música moderna uma porção de vezes. Por isso, vale destacar pelo menos duas obras que se incluem nesta lista e que foram importantes na formação do jazz modal que desembocaria em “Kind of Blue”: “Walkin’” e “The Birth of the Cool”, ambos de 1954.

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 Como todo grande disco, um “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, ou “Exile on Main Street”, dos Rolling Stones, “Kind of Blue” carrega lendas. Uma delas – e que se constatou ser verdade quase 40 anos depois – é a de que a gravação impressa em milhões de exemplares e que se popularizou no mundo todo por décadas estava milésimos de segundo mais lenta que o normal, pois se tratava da cópia extraída de uma master com um leve defeito. Hoje, é possível adquirir a versão corrigida, mas muitos veem nesta falha um toque divino, mantendo-se fiéis ao registro “original”.

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O livro sobre a história da obra-máxima
de Davis
O autógrafo do mestre Hermeto
no livro do 'parceiro' Miles
 Para finalizar, dia desses encontrei no Aeroporto de Porto Alegre o compositor e multi-instrumentista brasileiro Hermeto Pascoal. Pedi-lhe um autógrafo no primeiro papel que vi, meu livro, o que ele prontamente atendeu. Para não lhe dar a impressão de que gastaria tinta em qualquer papel, eu, na minha ignorância, comentei que estava lhe dando para assinar uma obra que abordava o tema música: era “Kind of Blue: A História da Obra-prima de Miles Davis”, do jornalista americano Ashley Kahn. Afinal, jazz e Hermeto Pascoal é quase a mesma coisa, né? O “albino Hermeto” (que de fato não enxerga muito bem, como disse Caetano Veloso), comentou-me, então, com toda simplicidade que conhecera Miles Davis no final dos anos 60, e que tocara junto com ele. (!) Não só: que justo o para mim tão mitológico Miles havia gravado duas canções dele, Hermeto, em um disco que ele não lembrava ao certo o título e de quando datava (vejam só!). Enfim, estupefato pelo desapego do genial Hermeto busquei no Google e encontrei o tal disco: chama-se “Live Evil”, de 1967, considerado por alguns como um álbum “demoníaco”. Quem quiser conhecer, benza-se antes de ouvir. Cruz-credo!

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Ouça:
Miles Davis Kind Of Blue



por Daniel Rodrigues





Daniel Rodrigues é jornalista formado pela PUC/RS, curioso e pesquisador de música, é aberto a todos os estilos demonstrando, contudo, especial interesse e conhecimento pelo jazz. Também, por incrível que possa parecer, direciona grande parte de suas atenções ao punk-rock, suas origens e vertentes, estilo sobre o qual inclusive baseou o tema de sua tese de diplomação relacionando-o com a evolução da moda.
Daniel além de tudo isso é meu irmão e foi integrante comigo da banda 'punk-putaria-core', HímenElástico.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

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