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segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Miles Davis - "In a Silent Way" (1969)



"Miles chegou prar mim e disse, 'toque como se você não soubesse como tocar guitarra' (...) Comecei a dedilhar a melodia e quando olhei, Miles estava adorando (...) Fiquei abismado, porque tocávamos apenas uma nota, sol, e ele transformou isso em algo especial."
John McLaughlin, guitarrista




Curiosamente exatamente na chamada fase elétrica da carreira de Miles Davis, o meste nos apresentava um disco 'silencioso'.
"In a Silent Way" de 1969, apesar de inegavelmente apresentar mais elementos rock, um incremento de guitarras e órgãos elétricos, é um disco de uma sutileza e leveza quase inexplicáveis. Um álbum cujos vazios são quase tão importantes quanto os cheios. Onde a sugestão de uma nota, de um acorde, compõe a música de uma maneira quase tão fundamental quanto o próprio instrumento.
Com o estilo e sofisticação característicos de sua obra, Miles nos conduz numa incrível viagem no vácuo acompanhada pelo som de uma magnífica banda cheia de improvisações e de seu trumpete inigualável. Basicamente com apenas duas canções que se repetem sob variações ao longo do disco, o mestre hipnotiza-nos com suas improvisações improváveis, com sua nota fora de hora, com seu trumpete tocado no nada da música ou com a música esperando por uma nota que simplesmente não aparece, mas está lá.
Só mesmo um grande gênio como Miles Davis para nos proporcionar um disco de rock com música límpida, calma e... silenciosa, e “In a Silent Way”, uma daquelas obras únicas e inigualávies na história da música, consegue isso.
Silêncio! Ouçam...
Shhhh!!!!
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FAIXAS:
1. "Shhh/Peaceful" (Miles Davis) – 18:16
 "Shhh" – 6:14
"Peaceful" – 5:42
"Shhh" – 6:20

2. "In a Silent Way/It's About That Time" (Joe Zawinul, Miles Davis) – 19:52
"In a Silent Way" (Joe Zawinul) – 4:11
"It's About That Time" (Miles Davis) – 11:27
"In a Silent Way" (Joe Zawinul) – 4:14

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Ouça:
Miles Davis In A Silent Way


Cly Reis

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Miles Davis - "Kind of Blue" (1959)

"Quem é tocado por essa música [de Kind of Blue] muda para sempre. E se torna melhor do que é."
 Herbie Hancock



Fui convidado pelo autor deste blog a escrever a resenha sobre “Kind of Blue”, de Miles Davis, de 1959, simplesmente o disco de jazz de maior sucesso e vendagem de todos os tempos, tendo ultrapassado tranquilamente, mais de meio século depois de seu lançamento, a marca de 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. Volume este que continuará crescendo certamente, tendo em vista que diariamente exemplares de “Kind of Blue” são adquiridos por novos e antigos fãs. Eu mesmo sou mais um dentre esta multidão de admiradores.
 Então, diante de tal missão, perguntei-me: o que dizer deste fenômeno, uma obra que perdura a tanto tempo e da qual, principalmente, gosto tanto? Como dimensionar sua evidente inspiração a toda uma geração de artistas? Ou, ainda, explicar de que forma a gama de aspectos musicais e não musicais que “Kind of Blue” abarca, trazendo de vez para a música moderna as influências de culturas folclóricas, como os sons orientais, africanas ou hispânicos, e misturando tudo isso ao groove latino, à música erudita e a tradição negra americana? Como jornalista, uma das regras básicas da minha profissão é a de manter imparcialidade sobre o que se está analisando. O que fazer, então, quando se está na posição de crítico e amante ao mesmo tempo?
 A solução que achei foi a de me entregar à genialidade deste disco, perceptível a cada faixa, a cada solo, a cada fraseado de trompete, a cada base de piano, a cada vibração de corda do baixo, a cada ataque do saxofone. “Kind of Blue” já impressiona de cara pela “cozinha”. O quinteto formado por Miles tinha nada mais nada menos que o baixo seguro de Paul Chambers, a bateria swingada e elegante de Jimmy Cobb, o sax alto cheio de sentimento e alma gospel de Cannonball Adderley, o piano “branco” e mezzo-erudito de Bill Evans, o trompete genial e inteligentemente comedido do próprio Miles e o sax tenor do talentosíssimo John Coltrane, que, talvez, comporte todos esses elementos e mais um pouco. Trata-se da melhor banda de Miles, comparada somente a seu supertime de 1969, que contava com feras como Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter. O fato é que os quatro músicos que acompanharam Miles em “Kind of Blue” tornaram-se ou se solidificaram depois do álbum como alguns dos grandes nomes da história do jazz (incluindo aí Red Garland, que tocou piano em uma das faixas), mas principalmente Coltrane, que revolucionou o estilo, disco a disco, até a sua morte, em 1967.
 Mas e o disco? Bem, “Kind of Blue” começa com a célebre “So What”, um blues cadenciado e cheio de swing onde aparece pela primeira vez na história da música um negócio que Miles Davis vinha desenvolvendo (parte conscientemente e outra não) há mais ou menos uma década: o jazz modal. Embora se trate de uma invenção técnica, facilmente distinguida por músicos, para leigos como eu também não é difícil de reconhecer. Ou, pelo menos, “sentir” a diferença. O jazz modal – diferentemente da loucura criativa do be-bop, que aproveitava todas as escalas musicais ao extremo, ou do free-jazz, livre em concepção, como o título sugere – propunha uma, digamos, “simplificação programada” do jazz. Assim, as melodias eram compostas em escalas (por módulos = modal), o que gera uma base em que há poucas mudanças de notas mas, ao mesmo tempo, dá uma vasta liberdade aos solistas, que não precisam improvisar somente dentro do tradicional tempo 1-2-3-4. Um pequeno detalhe, mas uma verdadeira revolução que influenciou todo o jazz, soul, pop e rock que viria a seguir – isso, para ficar só nas contribuições à música, sem falar do cinema, artes plásticas, cênicas, etc.
 “So What”, com sua memorável abertura do diálogo entre baixo e piano, é, assim, um marco do jazz modal, formato que Miles e seu quinteto empregaram em todas as cinco faixas do álbum. E “So What” guarda ainda uma outra curiosidade. Nela, a visão pop do caleidoscópico Miles se evidencia: ouvindo com atenção, dá para perceber que sua base de sopros no chorus é idêntica a de “Cold Sweat” (veja o vídeo), de James Brown (a quem o jazzista admirava), considerado o primeiro funk da história. Porém, exceto por um detalhe: as notas estão na ordem inversa.
 O disco segue com outro jazz “blueseado”: “Freddie Freeloader”, tema que contém o talvez mais impressionante solo já tocado por Coltrane. Depois do número elegante de Miles, Trane entra literalmente rachando com toda emoção e potência, vazando o som do seu sax para todos os microfones do estúdio e obrigando o operador da mesa a reduzir o volume manualmente na hora. O que seria uma falha na gravação para um artista comum, fazendo com que se repetisse a sessão, por causa da sensibilidade de Miles ficou assim mesmo e assim se eternizou.
 A lindíssima balada “Blue in Green” vem na sequência, uma provável parceria de Miles com o Evans onde o pianista conduz a melodia. Bem, “melodia” não é bem o termo certo. Criada sob a linha modal de notas cool que variam em poucas escalas, e com claras influências eruditas emanadas do piano quase clássico de Evans, “Blue in Green” não tem uma melodia propriamente dita. Não fica evidente um acorde básico ou um riff. Mesmo assim, sua aura é tão palpável que quem a escuta jamais se esquece de como ela é.
 Outra pérola inesquecível de “Kind of Blue” é a hipnótica e sensual “All Blues”, na qual se veem nuanças hispânicas, afro e da vanguarda erudita. Nela, o piano mantém constantemente um trinado que parece com marimbas espanholas tremulando, enquanto os sopros executam o chorus lentamente, em longos e lânguidos riffs fraseados que definem a base do tema. Para matar a pau, o Miles inicia uma segunda frase melódica com um longa nota, que se estende, parecendo dar asas à canção. Ajudado pelo som de escovinhas raspando no tarol, o famoso som repetido do piano gera uma sensação mágica de circularidade, muito bem traduzida para o audiovisual pelas lentes de Spike Lee, no filme "Mais e Melhores Blues" de 1990.
 A obra-prima finaliza com outra de ares ibéricos: “Flamenco Sketches”, tão rica e densa musical e conceitualmente que serviu de inspiração não para mais uma música, mas para um disco inteiro de Miles Davis chamado “Sketches of Spain”, de 1960. É mole ou quer mais?

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 Antes e depois de “Kind of Blue”, Miles Davis revolucionou a música moderna uma porção de vezes. Por isso, vale destacar pelo menos duas obras que se incluem nesta lista e que foram importantes na formação do jazz modal que desembocaria em “Kind of Blue”: “Walkin’” e “The Birth of the Cool”, ambos de 1954.

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 Como todo grande disco, um “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, ou “Exile on Main Street”, dos Rolling Stones, “Kind of Blue” carrega lendas. Uma delas – e que se constatou ser verdade quase 40 anos depois – é a de que a gravação impressa em milhões de exemplares e que se popularizou no mundo todo por décadas estava milésimos de segundo mais lenta que o normal, pois se tratava da cópia extraída de uma master com um leve defeito. Hoje, é possível adquirir a versão corrigida, mas muitos veem nesta falha um toque divino, mantendo-se fiéis ao registro “original”.

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O livro sobre a história da obra-máxima
de Davis
O autógrafo do mestre Hermeto
no livro do 'parceiro' Miles
 Para finalizar, dia desses encontrei no Aeroporto de Porto Alegre o compositor e multi-instrumentista brasileiro Hermeto Pascoal. Pedi-lhe um autógrafo no primeiro papel que vi, meu livro, o que ele prontamente atendeu. Para não lhe dar a impressão de que gastaria tinta em qualquer papel, eu, na minha ignorância, comentei que estava lhe dando para assinar uma obra que abordava o tema música: era “Kind of Blue: A História da Obra-prima de Miles Davis”, do jornalista americano Ashley Kahn. Afinal, jazz e Hermeto Pascoal é quase a mesma coisa, né? O “albino Hermeto” (que de fato não enxerga muito bem, como disse Caetano Veloso), comentou-me, então, com toda simplicidade que conhecera Miles Davis no final dos anos 60, e que tocara junto com ele. (!) Não só: que justo o para mim tão mitológico Miles havia gravado duas canções dele, Hermeto, em um disco que ele não lembrava ao certo o título e de quando datava (vejam só!). Enfim, estupefato pelo desapego do genial Hermeto busquei no Google e encontrei o tal disco: chama-se “Live Evil”, de 1967, considerado por alguns como um álbum “demoníaco”. Quem quiser conhecer, benza-se antes de ouvir. Cruz-credo!

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Ouça:
Miles Davis Kind Of Blue



por Daniel Rodrigues





Daniel Rodrigues é jornalista formado pela PUC/RS, curioso e pesquisador de música, é aberto a todos os estilos demonstrando, contudo, especial interesse e conhecimento pelo jazz. Também, por incrível que possa parecer, direciona grande parte de suas atenções ao punk-rock, suas origens e vertentes, estilo sobre o qual inclusive baseou o tema de sua tese de diplomação relacionando-o com a evolução da moda.
Daniel além de tudo isso é meu irmão e foi integrante comigo da banda 'punk-putaria-core', HímenElástico.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Miles Davis - "A Tribute to Jack Johnson" (1971)


"I'm Jack Johnson - heavyweight champion of the world!
I'm black!
They never let me forget it.
I'm black all right;
I'll never let them forget it."
Jack Johnson,
Campeão Mundial Peso-Pesado de 1908 a 1915



Antes tarde do que nunca!!!
Felizmente, fuçando, por curiosidade, vim a conhecer o ótimo “A Tribute to Jack Johnson” de Miles Davis. Em princípio me interessou por saber que tratava-se do início das incursões de Miles Davis no rock e em uma aposta em experimentações mais livres. Concebido para um documentário sobre a lenda do boxe, o primeiro negro a sagrar-se campeão mundial dos pesados, o álbum compõe-se de duas suítes longas; a primeira “Right Off” é mais pesada, mais forte, swingada com idas e vindas, subidas e descidas, numa “marcha” sonora que sutilmente remete o ouvinte a toda a poética de uma luta de boxe, como a um bailado de pernas, jabs curtos, uma sucessão de golpes precisos ou um belo upper. Possui uma linha de baixo mais agressiva e imponente que, ao que consta, traz trechos de “Sing a Single Song” do Sly and the Family Stone, só para se ter uma idéia da sonoridade pretendida e alcançada com o álbum.
“Yesternow” a outra faixa que completa a obra começa um pouco mais leve, mais arrastada, e vai se desenvolvendo assim por um bom tempo até apresentar alguns saltos e arroubos de improviso mais fortes e impetuosos, esta tendo por sua vez sua linha de base inspirada (ou mesmo, tirada) de "Say It Loud - I'm Black and I'm Proud", de James Brown.
Miles pontua as composições com aquele trumpete singular. INVARIAVELMENTE GENIAL. Solando, não solando, deixando vazios e preenchendo-os, sugerindo a próxima nota ao ouvinte e muitas vezes, provocativamente, não dando-as, deixando só para a imaginação, para o que poderia ter sido.
Em “A Tribute to Jack Johnson” Miles Davis acaba concebendo com maestria um trilha para um filme sobre boxe conjugando exatamente dois elementos antagônicos que fazem deste esporte, mesmo violento e brutal, tão mágico e belo a ponto de ser conhecido como “A Nobre Arte”: É um disco que tem sobretudo FORÇA e a SENSIBILIDADE.
Como se diria no boxe , é uma obra que tem pegada. Tem “punch”.
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FAIXAS:
1."Right Off" – 26:53
2."Yesternow" – 25:34

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Ouça:
Miles Davis A Tribute to Jack Johnson


Cly Reis

sábado, 24 de setembro de 2011

Exposição 'Queremos Miles!' - CCBB- Rio de Janeiro (18/09/2011)











capa de "Tutu",  álbum da
popularização definitivada obra de Miles
Aproveitando bem minha estada no Rio, pude conferir no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB RJ), em companhia de meu irmão e editor deste blog, a ótima exposição “Queremos Miles”, sobre a vida e obra do músico de jazz norte-americano Miles Davis (1926-1991). A mostra, que vai somente até 28 de setembro, recupera (quase) toda a biografia do talvez maior gênio do jazz mundial em todos os tempos, um verdadeiro escultor de sons e revolucionário da música do século XX ao lado de alguns outros poucos como Stockhausen, Tom JobimStravinsky Beatles.
Miles ainda menino
Organizada pela Cité de la Musique de Paris, a exposição – cujo título em português, embora a tradução literal, perde em significado, uma vez que o original, “We Want Miles”, faz menção também ao nome de um disco de Miles Davis –, resgata de forma cronológica a biografia deste influente artista que, disco após disco, antecipava e inventava novas tendências, novos estilos, revolucionando a arte moderna e influenciado gerações. O recorte pega desde o seu nascimento, na sulista de St. Louis, trazendo fotos dele quando pequeno com sua família, até o período final de sua carreira, demarcado por sua última obra-prima dentre as várias que produziu em quase 50 anos de vida artística: o álbum “Tutu”, de 1986, marco da criação do hoje popularizado jazz lounge. Da fase inicial, estão o encontro com Charlie Parker e Dizzie Gillespie, o “nascimento do cool”, em 1948, e os admiráveis títulos pelo selo Prestige nos anos 50, para o qual gravou seis obras-primas com o quinteto que incluía nomes como John Coltrane, Red Garland e Sonny Rollins.
Os instrumentos da banda dos anos 70
Multimeios, a abrangente mostra contém um rico acervo de aproximadamente 300 itens entre fotografias raras, capas de LP's, vídeos de apresentações em TV e shows, roupas e vários instrumentos utilizados por ele e por suas célebres bandas, além de partituras, documentos de registro de gravações em estúdio, quadros (belíssimos!) pintados pelo próprio Miles e até o manuscrito original do texto do pianista Bill Evans da contracapa do clássico álbum “Kind of Blue”, de 1959, o disco de jazz mais vendido da história e considerado por muitos insuperável no gênero. E, claro, muita música! Em cada canto, em cada ilha que se entrava pode-se escutar algumas das maravilhas de Miles. Às vezes, nem percebia que me apressava em ver determinada coisa, atraído pelo som de uma “All Blues”, “Pharaoh's Dance” ou “Nuit sur les Champs-Élysées“.
Painel com o estilo Miles dos anos 80
A personalidade camaleônica de Miles Davis, que nunca teve medo de mudar e progredir ao longo dos anos fica evidente, principalmente no aspecto visual: os finíssimos trajes bem cortados que vestia nos anos 40 e 50, transformariam-se, nos 60 e 70, na estética psicodélica da juventude. Igualmente, a bem elaborada curadoria de Vincent Bessières soube destacar muito bem os pontos impostantes da obra de Miles, como a fascinante trilha sonora do filme “Ascensor para o Cadafalso”, de 1957, a parceria com o pianista e maestro Gil Evans, que gerou os históricos “Miles Ahead” e “Porgy and Bess” (1957 e 59, respectivamente), ou as salas especiais dos discos clássicos: "Kind of Blue", sobre o qual comentei aqui neste blog tempo atrás; “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, ambos de 1969 e marcos do jazz fusion; "A Tribute to Jack Johnson" (1971), a memorável trilha para o documentário sobre o boxeador a quem Miles tanto admirava; e “On the Corner”, de 1972, quando Miles introduziu de vez o som do funk que vinha dos guetos americanos em sua música.
A única falha, por assim dizer, é a não inclusão do seu último disco, o póstumo “Doo-Bop”, de 1991. Sei que os puristas torcem a cara para este trabalho por sua mistura de hip-hop com jazz, o que aparentemente motivou a organização da mostra a não referi-lo – evidenciando a menor importância a que geralmente lhe atribuem. Eu, particularmente, gosto bastante deste disco não só por sua qualidade musical como por sua importância dentro da música pop diante do que se faria a partir de então no mundo do entretenimento. Quando os norte-americanos do Us3 surgiram com aquele seu jazz-rap em 1993, embora tenha gostado da banda, não segui o estardalhaço em torno do grupo como sendo algo revolucionário justamente por já ter escutado tudo aquilo em “Doo-Bop”. A justificativa dos críticos é a de que os produtores que finalizaram “Doo-Bop” o teriam feito sem a qualidade que Miles imprimiria se estivesse vivo. Sinceramente, acredito que, se o músico tivesse morrido depois da feitura do álbum, o conteúdo seria praticamente o mesmo e muitos dos detratores certamente o louvariam hoje (talvez até mais do que o disco merecesse). Preconceito ou não, falta de critério ou não, o fato é que, até por seu caráter póstumo, considero este momento importante na biografia do artista, por isso a falta dentro da exposição. Mas, entre tantos acertos que “Queremos Miles” traz, isso é o de menos. Mais fácil eu pegar meu “Doo-Bop” e me deliciar sozinho em casa.

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Queremos Miles
Até 28 de Setembro
Local: Térreo e 1º andar | CCBB RJ
Horário: Terça a domingo, das 9h às 21h


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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Cannonball Adderley - “Somethin’ Else” (1958)



“Eu praticamente já podia ouvi-lo [a Cannonball Adderley] na minha banda desde a primeira vez que o escutei”. 
Miles Davis


“Ouvindo Miles – que é mais um grande solista do que um grande trompetista –, de repente todos os fundamentos deixam de ter significado para mim, por ele ser tão brilhante de outra forma”. 
Cannonball Adderley

Uma revolução geralmente é precedida de algum marco precursor. Com obras-primas da arte musical isso também acontece. Na história do jazz, uma das principais revoluções ocorridas, a do jazz modal, promovida por Miles Davis em “Kind of Blue”, de 1959, talvez soe tão original que a faça parecer ter partido do zero. Porém, resultado da própria evolução do trabalho de seu autor – ainda mais quando se pensa na tetralogia da Prestige e, principalmente, em dois dos discos que o antecederam, “Ascenseur pour l'Échafaud” e “'Round About Midnight” –, é de se supor que tenha recebido também algum outro exemplo anterior. E, de fato, se há um álbum responsável por abrir caminhos em estética e conceito para o mais célebre disco do jazz da história, este é “Somethin’ Else”, do saxofonista Cannonball Adderley.

Realizado pelo selo Blue Note um ano antes de Adderley compor o sexteto de Miles na gravação de “Kind...”, “Somethin’...” conta, não por coincidência, com o próprio trompetista na formação. Adderley pede que a gravadora Columbia o ceda e concebe, assim, uma formação de banda rara e lendária, que tinha ainda o mestre Art Blakey, na bateria; Sam Jones, no contrabaixo; e Hank Jones, no piano. Todavia, o feito fazia-se sui generis, principalmente, porque Miles não se colocava como coadjuvante desde as clássicas gravações com o mito Charlie Parker, nos anos 40. Experiente e de espírito líder, Miles, então, naturalmente assume um papel mais do que de sideman, e, sim, o de quase um “guia espiritual”. Autor da faixa-título e responsável por ajudar a escolher o repertório, ele coprotagoniza ainda praticamente todos os solos.

Em “Somethin’...” estão algumas das maiores preciosidades dos estilos cool e hard bop, além de antecipar com clareza a elaboração harmônica do jazz modal, aperfeiçoada por Miles em “Kind...”. A estonteante versão de "Autumn Leaves" é o melhor exemplo disso. Perfeita sintonia dos sopros no chorus; bateria de Blakey criativa e variante; insinuante contrabaixo de Sam Jones; e o piano de Hank vivo e sonoro. É ele quem lança os acordes iniciais da canção. Isso, só para começar, pois a música avança mais um pouco e a primeira sessão de improvisos traz um dos mais inspirados solos de Miles de toda sua carreira. Que capricho! Assertivo e poético como um Louis Armstrong. O band leader Adderley, entretanto, não sucumbe, e emenda sua primeira participação com o lirismo que lhe é característico num extenso solo da mais alta sensibilidade. A bola volta para Miles, que retoma o toque pronunciado e cool. Mas não para finalizar, contudo. Hank também solta pérolas sobre as teclas, num solo de profunda elegância, que antecede um final falso. Parece que a faixa se encaminha para a conclusão, quando, sobre a base do chorus, Hank e Miles tornam a improvisar, criando aquele efeito do jazz modal de solos sobre uma base modulada. Um prenúncio do que Miles desenvolveria junto a outro pianista, Bill Evans, um ano dali. Tudo isso faz de "Autumn Leaves" um número histórico.

Outro standart do cancioneiro norte-americano, a clássica "Love for Sale", de Porter, também ganha feições muito próprias nas mãos da banda. A começar pelo piano, que novamente dá a largada, mas, aqui, diferentemente do arrojo da primeira, lírico e romântico. A banda entra e Blakey é quem determina a virada para um jazz bem blues marcado nas vassourinhas na caixa e intercalado por alegres incursões do piano. Miles, mais uma vez o centro, sustenta todos os lances de chorus, fazendo as pontes e “knees” previstos no arranjo. Porém, agora é de Adderley que saem os improvisos. Vigoroso, rico, blues. Hard bop na essência.

A faixa-título, um blues suingado, denota a preferência de seu autor, Miles, que, não por acaso, comanda-a do início ao fim. Primeiro, no solo, inteligente em sua economia, mas altamente significativo naquilo que expressa. Somente por volta de quase 3 minutos que Adderley aparece. E para fazer bonito com seu sax exuberante, clara tradição que liga Parker, Louis Jordan e Benny Carter. Interessante notar a sintonia do grupo: ali por 4 minutos, percebendo a intensidade do approach do saxofonista, Blakey acelera o ritmo, para logo desfazê-lo e voltar ao compasso de antes, tudo desenhado pelo baixo escalonado de Sam. A segunda metade de “Somethin’...” traz um bate-bola entre Miles e Adderley, no mínimo, memorável.

Noutra abertamente bluesy, "One for Daddy-O”, esta, mais sensual, evidencia-se de largada o viçoso jazz de Adderley. Impressionantes modulações be bop são extraídas do saxofone. Miles responde, fazendo aquilo que sabe com maestria: solar. Adderley, admirado com a expressividade do colega e mestre, disse certa vez sobre Miles: “Um solo reflete a maneira como ele pensa a composição, e o solo passa a ser a coisa principal”. Hank também dá sua contribuição antes de Adderley e Miles improvisarem novamente. Ao final, ouve-se Miles perguntando ao produtor Alfred Lion: "Era isso que você queria, Alfred?". Só podia ser.

A balada "Dancing in the Dark" traz um clima ainda mais sensual: escovinhas arrastando na caixa, solo comovido do sax, piano marcando delicadamente o compasso e o baixo quase desmaiando. A única em que apenas Adderley protagoniza é justamente a que, acertadamente, fecha o disco. Assim, independente de “Somethin’...” ter a cara de um disco dele ou de Miles, o fato é que se trata de um dos mais brilhantes da história do jazz, reconhecido pela uDiscoverMusic como o melhor álbum de todos os tempos da Blue Note, um dos 30 essenciais do jazz dos anos 50 pela JazzWise Magazine e um dos 15 recomendados pelo site AllAboutJazz em toda discografia jazz. Não é para menos, uma vez que a aura e a sofisticação que arrebatariam o mundo da música em “Kind...” já estavam lançadas aqui por Cannonball, que, com um tiro de canhão, fez o arremesso no ponto certo. Depois, foi só rolar a bola pra dentro.

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O relançamento em CD inclui a faixa bônus "Bangoon" ou "Allison's Uncle", este último, o título original dado pelo fato de a sessão de gravação ter sido feita logo após a esposa do irmão de Adderley (Nat) ter dado à luz à sua filha, Allison.

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FAIXAS
1. "Autumn Leaves" (Joseph Kosma/Johnny Mercer/Jacques Prévert) – 11:01
2. "Love for Sale" (Cole Porter) – 7:06
3. "Somethin' Else" (Miles Davis) – 8:15
4. "One for Daddy-O" (Nat Adderley/Samuel Jones) – 8:26
5. "Dancing in the Dark" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) – 4:07
6. "Bangoon" ("Alison's Uncle") (Hank Jones) – 5:05*
*Presente na edição em CD

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 12 de março de 2015

John McLaughlin & The One Truth Band - “Electric Dreams” (1979)



John McLaughlin,
este é único, é um matador.”
Miles Davis



Pessoal que acompanha meus textos andava reclamando que eu só falava de discos de música pop e deixava o jazz – em tese, minha especialidade – de lado. Hoje, resolvi resgatar um disco dos meus 19 tenros anos. Mas, pra começar, uma historinha. A década de 70 no jazz foi pródiga em manifestações das mais variadas. O selo ECM surgiu e floresceu, o jazz alemão se desenvolveu e o fusion tomou conta das paradas e das mentes do novo público que veio do rock querendo algo mais do que três acordes. A culpa toda é de Miles Davis que, em 1969, lançou os discos "In a Silent Way" e o seminal “Bitches Brew”. Em suas bandas, circulavam nomes que iriam montar seus próprios trabalhos durante a década. Entre eles, Chick Corea, com seu “Return to Forever”, Joe Zawinul e Wayne Shorter, com o Weather Report, e o guitarrista inglês John McLaughlin com a Mahavishnu Orchestra. À exceção de Zawinul, que fez dos teclados e do som elétrico a base de seus trabalhos, todos os outros mesclaram as sonoridades acústicas com as elétricas em suas criações.

No final dos anos 70, McLaughlin montou mais um de seus grupos, a One Truth Band, trazendo o violinista L.Shankar da Índia, o percussionista brasileiro Alyrio Lima e mais os americanos Stu Goldberg nos teclados, Fernando Saunders no baixo elétrico e Tony Smith na bateria. Com esta turma, gravou o disco “Electric Dreams”, com o qual excursionou pelo mundo e, por incrível que pareça aos mais jovens, esteve em Porto Alegre, no Gigantinho, dividindo o palco com Egberto Gismonti & Academia de Danças. Nesta ocasião, eu estava mergulhado totalmente no fusion e não perdi a oportunidade de ver este espetáculo. Além de mim, cinco mil testemunhas adoraram o que viram. Numa nota pessoal, em 2010, estive em Bremen, na Alemanha, para ver um festival de jazz, a convite do Instituto Goethe, e a abertura era feita por McLaughlin e seu grupo. No final, fui conversar com ele no backstage e o guitarrista acabou me confessando que foi “o pior som que jamais teve em um palco”. Que currículo, hein? Mas o que interessa é o disco “Electric Dreams”, de John McLaughlin & The One Truth Band.

A viagem inicia com “Guardian Angel”, praticamente uma vinheta de McLaughin no violão, Goldberg ao piano e Shankar no violino. Tão breve que dá vontade de ouvir novamente. Depois, vem “Miles Davis”, a homenagem de McLaughlin ao trompetista que havia lhe dado de presente uma das músicas de “Bitches Brew”. Uma faixa balançada com os teclados de Goldberg, a bateria de Smith e a percussão de Alyrio fazendo o pano de fundo para os arroubos virtuosísticos de Saunders e da guitarra de McLaughlin. Depois de uma improvisação coletiva ao estilo dos discos elétricos de MD, a música vira uma funkeira no clima dos trabalhos posteriores do trompetista. Isso que estávamos em 1979. McLaughlin já esteve prevendo o que viria na volta de Miles aos gramados.

“Electric Dreams, Electric Sighs” começa com a guitarra improvisando sob uma cama de teclados. O clima de balada se instala com o tema da canção, sob o qual Shankar faz seu solo, o tecladista usa o Fender Rhodes para as harmonias e o mini-moog para o solo e o guitarrista larga seu instrumento e faz uma tentativa no banjo, muito bem sucedida, aliás. Pena que ele não seguiu em frente com seus experimentos “banjísticos”. Depois, ele retoma a guitarra para encerrar a música.

A faixa que fecha o lado 1 do LP é a preferida da casa: “Desire and the Conforter”, que inicia com o triângulo de Alyrio junto ao Rhodes de Goldberg, aos quais se juntam os pratos de Smith e o solo de baixo elétrico fretless de Saunders. Aos quase dois minutos, a música dá uma guinada e a guitarra de McLaughlin e o violino de Shankar introduzem uma batida funkeada que dá segmento a um rodízio de solos do mini-moog de Goldberg, da guitarra do líder e do violino de Shankar. E quando todo mundo achava que a composição terminaria aí, uma levada jazzística de Smith surge quase do nada para carregar mais um solo de Mac com Alyrio pontuando com seus caxixis, chocalhos, guiros e outros bichos mais. Até a funkeira recomeçar para o final da música no qual o percussionista brasileiro vai regulando dizendo: “segura, rapaziada, segura, não deixa cair...”.

O Lado 2 abre com “Love and Understanding”, uma viagem mística de McLaughlin com o violão fazendo uma base para um lindo solo de violino. Aos poucos, os teclados tomam conta, juntamente com a guitarra. E aí, a surpresa: o baterista Tony Smith começa a cantar: “Love and Understanding / Understanding love”, seguido pelo baixista Saunders entoando: “Love is hard to stand it... You can hear the secret sound / to be found / so let’s see, let’s see, let’s see..”. Pura doideira cósmica, recheada com solos em uníssono de McLaughlin e Shankar. Até o clima místico voltar. E Smith e Saunders continuarem cantando que “o amor é compreensão”. Nem todo mundo concorda...

“Singing Earth” é mais uma vinheta, agora a cargo dos teclados de Goldberg. Quando prestamos a atenção, ela terminou. Mas a pauleira jazz-rock vem com força total com “The Dark Prince”, faixa que poderia estar nos dois primeiros discos da Mahavishnu Orchestra, “The Inner Mounting Flame” ou “Birds of Fire”, sem dúvida alguma. Depois da apresentação do tema, os solos tomam conta, com McLaughlin mostrando aquelas notas rapidíssimas, bem ao seu estilo. Na sequência, Stu Goldberg faz um solo de Fender Rhodes e depois de mini-moog. Quebradeira fusion pra ninguém botar defeito.

Pra fechar o disco, uma balada com andamento de valsa chamada “The Unknown Dissident”, que começa com os policiais do governo circulando e procurando o dissidente desconhecido. Logo, McLaughlin mostra a melodia na guitarra, seguido pelo convidado David Sanborn no sax alto, que passa a solar. Quando o guitarrista voltar a tocar, faz uma variação do tema principal. Assim como Sanborn, que reaparece dividindo o espaço dos solos com o líder. No final, os dois apresentam o tema. E os efeitos especiais retornam com uma porta sendo aberta, o dissidente sendo levado pelos guardas, ouvindo-se os passos até o tiro final.

Qualquer um que vier contestar, dizendo que este não é dos melhores discos de John McLaughlin, vou devolver a contestação. Esse é um dos meus discos favoritos, ponto final. Ninguém tem de gostar. Só eu. E eu gosto muito. Você também pode gostar.

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Uma nota da época: Alyrio, entendiado no quarto de hotel, foi dar um passeio no centro de Porto Alegre. Ao chegar na atual Esquina Democrática, deparou-se com a loja Scarpini, “o joalheiro da metrópole”, como dizia a propaganda. Não teve dúvidas: entrou e pediu para ver os diamantes. Os atendentes ficaram cabreiros e botaram o olho no rapaz. Este não pensou duas vezes e engoliu um dos diamantes. Vigiado, Alyrio foi denunciado e a polícia foi chamada para resolver o caso. Que teve sua solução na delegacia com um laxante... Para quem não acredita, a saudosa Folha da Tarde publicou esta história inclusive com foto do malfadado percussionista.
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FAIXAS:
1. Guardian Angels – 0:51
2. Miles Davis – 4:54
3. Electric Dreams, Electric Sighs – 6:57
4. Desire and the Comforter – 7:34
5. Love and Understanding – 6:36
6. Singing Earth (Stu Goldberg) – 0:37
7. The Dark Prince – 5:15
8. The Unknown Dissident – 6:16
Todas as composições de McLaughlin, exceto indicada

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OUÇA O DISCO:





sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ahmad Jamal Trio - "The Awakening" (1970)



Acima, a capa original de 1970 e
abaixo a capa de edições posteriores.



“Ele me impressionou com
seu conceito de espaço,
sua leveza de toque,
seu comedimento.”

Miles Davis,

sobre sua primeira audição de Ahmad Jamal, em 1953




Eu era um jovem da era pré-Google, sem dinheiro para comprar livros caros (neste caso, seriam dos caros) e sem muita orientação do que procurar para conhecer mais sobre um estilo de música que sempre me encantava quando ouvia: o jazz. Já conhecia "Kind of Blue" do Miles Davis alguma coisa de Wynton Marsalis e amava desde criança as trilhas do seriado Snoopy, que descobri serem de um tal de Vince Guaraldi vendo os créditos do desenho. Fora isso, mais nada. Assim, em minhas idas ao Centro de Porto Alegre para vasculhar e comprar discos (mais vasculhar do que comprar), entrava nas lojas e percorria com os dedos e os olhos a prateleira de vinis que dizia “Jazz” (embora já tivesse conhecimento suficiente para saber que a maioria das lojas não sabia classificar essa seção, por isso não era incomum achar um Richard Clayderman ou um Toto). Então que, numa dessas vezes, numa Multisom que até já fechou, encontrei um LP que tinha a maior cara de ser bom (e de jazz de verdade): “The Awakening”, de Ahmad Jamal Trio. Não só era o mais fino jazz como era, sim, muito bom, excelente.

Uma sonoridade refinada e viva exala do piano altamente técnico de Jamal, de uma identidade e emoção absurdas. É o que se vê na fenomenal faixa-título e de abertura, um dos melhores temas de jazz até hoje pra mim. Inicia com acordes soltos, que supõem um esboço da melodia, dando aos poucos forma a um jazz embalado e de clima suspenso com um toque erudito, seja pelos encadeamentos de acordes farfalhantes de Jamal, seja no padrão modal variante em si mesmo, mas sem suplantar a tônica. Intercala ataques ferozes até o mais suave dedilhar, ora rápido e miúdo nas teclas brancas agudas, ora altivo e imponente nas notas graves.

A aura clássica se intensifica na sequência, com outra obra-prima: “I Love Music”, uma peça lírica digna de Chopin e Rachmaninoff. Mas, como nos compositores românticos, este “amor” esconde mais mistérios do que se possa imaginar. Melancólica e densa, com um toque hispânico, abre com o piano em solo, num som cheio e ondulante. O baixo de Jamil Nasser e a bateria de Frank Gant entram depois de quase três minutos num complemento que envereda a música para uma amplitude sensorial ainda maior, mas mesmo assim as atenções se mantêm no estilo pronunciado do teclado de Jamal, desenhando uma harmonia rebuscada que alude, ao mesmo tempo, a um concerto beethoviano e às danças espanholas de Manuel De Falla.

Elevando o clima num jazz de compasso ligeiro e ritmo suingado, Jamal exercita variações de estruturas sobre uma base blues constante do baixo em “Patterns”, não menos magnífica. “Dolphin Dance” – delicada e etérea –, “You’re My Everithing” – ressonante, ora fugidia, ora acentuada – e “Stolen Moment” – apaixonante em sua construção em escalas – dão passagem para um desfecho forte e elegante com “Wave”, na mais impressionista versão do clássico de Tom Jobim  Nesta, o pianista norte-americano se vale de um expediente pelo qual foi reconhecido desde seu surgimento nos clubes de jazz de Chicago, nos anos 50: o de simplificar a estrutura musical de standarts, permitindo-se dar novas cores ao tema.

Vim a saber, à medida em que fui entrando mais no mundo do jazz, que este disco, que comprei numa louvável reedição de 1986 da WEA, havia sido lançado originalmente 16 anos antes. Além disso, soube que este pianista, das poucas lendas do jazz ainda vivas, atualmente com 73 anos, é simplesmente uma das maiores influências de Miles Davis, Red Garland, Bill Evans e toda uma geração de jazzistas, pianistas ou não. O que sei é que, adquirido às escuras, “The Awakening” é até hoje um dos preferidos da minha discoteca, que vira a mexe volta ao toca-discos com o mesmo prazer da primeira audição. O prazer de uma descoberta.
 
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FAIXAS:
  1. "The Awakening" - 6:19
  2. "I Love Music" (Emil Boyd, Hale Smith) - 7:19
  3. "Patterns" - 6:19
  4. "Dolphin Dance" (Herbie Hancock) - 5:05
  5. "You're My Everything" (Harry Warren, Joe Young, Mort Dixon) - 4:40
  6. "Stolen Moments" (Oliver Nelson) - 6:27
  7. "Wave" (Antonio Carlos Jobim) - 4:25
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