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domingo, 21 de agosto de 2011

Stravinsky/Debussy/Ravel/Toyama– Concertos OSPA – Teatro Dante Barone – Porto Alegre/RS (16/08/2011)




Nunca tinha visto uma orquestra fazer bis. Pois na noite de 16 de agosto, no Teatro Dante Barone, da Assembleia Legislativa do RS, presenciei isso. Foi no 15° Concerto da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) – Temporada 2011, desta vez sob a ótima regência do maestro japonês Kiyotaka Teraoka, oficial da Orquestra Sinfônica de Osaka.
Em junho, já tinha assistido a outro concerto da Ospa, em homenagem Sergei Rachmaninoff. Muito bom. Mas este foi magnífico. A começar pela primeira peça: o balé “Petrouchka”, do genial maestro e compositor russo naturalizado francês Igor Stravinsky (1882-1971), que eu já adorava e tinha a maior vontade de ouvir ao vivo pela primeira vez. E as minhas expectativas foram totalmente atendidas. “Petrouchka” conta a história de um fantoche tradicional russo feito da palha e um saco de serragem como corpo que acaba por tomar vida e ter a capacidade amar. Como a outra grande obra de Stravinsky, o marco “A Sagração da Primavera” (1913), “Petrouchka”, feita entre 1910 e 1911, é absolutamente revolucionária, sendo uma das maiores responsáveis por mudar a cara da música universal no último século.


 A peça de Stravinsky inova em estrutura rítmica, orquestração, timbrística, forma, harmonia, uso de dissonâncias. Uma obra complexa e moderníssima que valoriza, particularmente, a percussão acima da harmonia e da melodia, algo nunca visto antes na música erudita. Influenciou largamente trilhas para cinema, a se perceber, por exemplo, uma clara referência em dois históricos temas: a do hitchcockiano “Psicose”, “hino” do suspense composto por Bernard Herrmann, com seus gritos agudos de violino, e a de “Tubarão”, de John Williams para o thriller de Spielberg, com aquela inesquecível levada minimalista de cellos em duas notas, repetem trechos de “Petrouchka” de forma quase idêntica.

Kiyotaka Teraoka regeu com brilhantismo
as peças de Stravisky, Ravel e Debussy
e ainda proporcionou um
emocionante e surpreendente bis.
O balé também tem várias parecenças com a música pop. As quatro partes que compõem a obra são coladas umas às outras, imprimindo uma unidade incrível à música como um todo, mesmo com tantas variações. Esse expediente foi utilizado com inteligência, por exemplo, pelos Beatles no clássico e influente disco "Sgt. Peppers". Outro detalhe muito similar à música pop é a forma como essas partes se interligam: uma sequência de bombo, forte e contínua, igual aos rolos de bateria que o rock instituiu.
Na segunda parte do concerto, seguiram a bela “Petite Suite”, do impressionista Claude Debussy (1862-1918), e “Pavanne pour un Enfante Défunte”, de Maurice Ravel (1875-1937), que, mais do que a de Debussy para com sua grande obra (“Prélude à L’Apres-Mid d’un Faune”), nem chega perto da genialidade de seu “Bolero”, esta, sim, um verdadeiro patrimônio da humanidade.

Maestro Yuzo Toyama:
lenda viva em seu país.
Mas a surpresa guardava-se para o final. Lembram-se que havia mencionado que nunca tinha visto uma orquestra tocar um bis? Pois a incrível “Rhapsody for Orchestra”, do maestro e compositor japonês Yuzo Toyama (ao qual eu dei graças a Deus por passar a conhecer) foi o que motivou. Nascido em 1931, Toyama é vivo, idolatrado em seu país e, mesmo a idade avançada, ainda se apresenta regendo por aí. “Rhapsody...”, sua obra mais celebrada, de 1960, me transportou para dentro dos filmes clássicos de Korosawa como “Os 7 Samurais” e “Yojimbo”. A abertura, só com percussão, adaptando a musicalidade típica do Japão feudal, é um desbunde. Rico em harmonia e construção melódica, o intenso e curto número de Toyama (pouco mais de 7 minutos) ainda desfecha incrivelmente. Depois de um breve silêncio (um “Ma”, na terminologia da música tradicional japonesa), um dos percussionistas retoma-a maravilhosamente percutindo duas bachi, pás de madeira adornadas que produzem um som fino e estridente. Dali para um final triunfante, aplaudido de pé por uns bons cinco minutos pelo bom público presente. E o bis veio exatamente a partir da repetição deste último trecho, para entusiasmo geral.
O maestro Teraoka, claramente afeito à obra do conterrâneo, colocou o coração na batuta e regeu com emoção extra, o que contagiou orquestra e plateia. Satisfeito, voltei louco para rever um bom Kurosawa e conhecer mais a obra do agora admirado Toyama.
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Rhapsody for Orchestra




segunda-feira, 10 de março de 2014

Erik Satie - "Entr'acte" (1924)



“Satie estava recomeçando a história
da música europeia mais uma vez.”
Reinbert de Leeuw




Este é um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS que bem pode ser também um Claquete, pois filme e trilha estão totalmente conectados, uma vez que imagem e som não existiriam um sem o outro. Esse conceito integral tão típico das artes cênicas e visuais só poderia vir de artistas que souberam antever o que hoje é chamado de arte contemporânea. Sim, antever, afinal estamos falando de uma obra datada de 1924. A música? A peça “Entr’acte”, do compositor vanguardista francês Erik Satie. O filme correspondente é outra joia, dirigida pelo cineasta René Clair, o mesmo de clássicos do cinema mundial “A Nós a Liberdade” (1931), a “versão europeia” de “Tempos Modernos”, de Chaplin.

Clair chamou Satie para um desafio a que os dois, inquietos como eram, se instigaram. A proposta era a seguinte: o pintor e poeta Francis Picabia, desgostoso com os companheiros de dadaísmo, quis cutucar, igualmente, os surrealistas. Redigiu, então, um balé para o grupo Ballets Suédois, que estrearia em Paris, em pleno Théâtre des Champs-Élysées. O jocoso nome da produção dizia tudo: “Relâche”, o aviso que se colocava na porta dos cinemas quando as sessões eram suspensas. Isso ainda não era nada: no dia da avant-première, um dos cartazes do espetáculo trazia um aviso provocativo ao público: “Se você não gostar, o caixa lhe venderá apitos por dois centavos.” Pois o balé, com apitaços de vaia ou não, conteria dois atos e, no intervalo, seria apresentado um curta-metragem dirigido por Clair cuja trilha, assim como a de todo o espetáculo, coube a Satie. O resultado dessa química foi tão afrontosa que a música do filme se destaca a dos dois movimentos da dança, sendo inclusive desvinculada deles. Ou seja, um deboche homérico, uma vez que justamente a programação secundária (momento de dispersão e que exige menor concentração do público) é a mais representativa de todo o programa, pondo-se acima do principal.

Tal índole de ruptura e escárnio são típicos de Satie, um inclassificável compositor em constante mutação ao longo dos tempos. Ele já havia, àquela altura, composto obras marcantes para a história evolutiva da música europeia (“Relâche” é seu último trabalho antes de morrer, em 1925), como o tríptico “Gymnopédies” (1888) – com seus incomuns 18 compassos contínuos de apenas seis (!) notas, sem desenvolvimento nem transição, apenas um instante prolongado – e outras inovadoras peças, como o balé “circense-surrealista” “Parade”, que causou furor em 1917. Influenciado pela música de DebussyRavel e Stravinsky, bem como pelos modernistas franceses do Les Six, misturava o ragtime americano e a sonoridade fútil do teatro de variedades ao clima do cotidiano de uma Paris em efervescência cultural – deste o esoterismo ocultista até o populismo dos cabarés. Satie circulava por todas as correntes (dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, expressionismo, simultaneísmo) sem, contudo, filiar-se a nenhuma delas. Em “Entr’acte”, compõe uma peça totalmente despojada, sem cadência nem compasso definido: apenas marcação de ritmo e harmonia, relegando a segundo plano a melodia. O motivo sonoro, maldito feito uma engenhoca que se estragou naquele ponto, vai e volta, mecanicamente, doentiamente. “Entr’acte” é, assim, a gênese do minimalismo. A repetição e as cacofonias incômodas ao ouvido mostram o quanto Satie prenunciava os tempos esquizofrênicos da sociedade pós-moderna, em que a emoção vira produto e o homem vira máquina. Evidente esta analogia na sequência do funeral, em que todos os convidados, parecendo bestas, estão fora do tempo, até que o próprio caixão dá no pé e todos passam, simbolicamente, a correr atrás da morte. Aqui, Satie faz uma paródia da “Marcha Fúnebre” de Chopin, em que sua escrita para piano, rítmica e sem firulas, revela a influência da música de dance-hall e da vida urbana moderna.

Como na trilogia “Quatsi”, da dupla Godfrey Reggio-Philip Glass, “Entr’acte” é um filme-música (ou a música-filme, tanto faz). Dura pouco mais de 20 minutos, suficientes para entrar para a história da música no século XX e marcar o movimento surrealista no cinema, tendo sido produzido, inclusive, cinco anos antes de “Um Cão Andaluz”, de Luís Buñuel e Salvador Dalí (não é de se estranhar que a estreia de ambos os filmes tenha rendido enorme bafafá na sociedade parisiense da época). Ali já estavam, porém, vivas, as inovações técnicas (câmera na mão, efeitos de luz e lente, sobreposições, distorções visuais, enquadramentos incomuns) e conceituais (roteiro não-linear, narrativa poética, descompasso temporal da ação/personagem, desconstrução psicológica do palco-cenário) que marcariam o cinema avant-garde. O curta foi influência direta para o brasileiro Mário Peixoto em sua obra-prima “Limite” (1930) e para o “cinema de poesia”, que vai da Pier-Paolo Pasolini e Jean-Luc Godard a Júlio Bressane.

A Paris daquele início de século XX dava todos os elementos para essa ebulição criativa. A Cidade-Luz fervia em sua beomia noturna. Estavam lá a esta época algumas das mais inteligentes cabeças das artes em todas as frentes: Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Coco Chanel, Stravinsky, Marcel Duchamp. Jean Renoir, Jean Cocteau, Man Ray, Gertrude Stein, David Milhaud e os próprios BuñuelDalí, Clair e Satie. Com tanta produção, os rótulos empregados eram os mais diversos. “Entr’acte”, um típico produto consciente do entre-Guerras, capta esse espírito de diversidade, homogeneizando todas as vertentes. O filme é uma alegoria irônica e pessimista do futuro, como a antecipação das apropriações ideológico-simbólicas da publicidade (a bailarina em slow-motion vista em total contraplongê que vai e volta com a função de “encantar os olhos”), a erotização da violência através do artefato militar (o canhão “varão” que desencadeia a desordem no início do filme) e a fragilidade e a vigília da vida moderna em época de olhos digitais e mídia a la big brother (os dois homens manipulando a cidade em um tabuleiro feito marionete). Já a música, inegavelmente dadaísta, traduz isso a seu jeito: tal como Satie inaugurara em “Parade” sete anos antes, uma nova arte de colagem sonora é criada: melodias interrompidas quando ainda mal começaram, dissonâncias em abundância, ritmos entrelaçados e sobrepostos, ataques inesperados e paradas fora do tempo, fugas quebradas que “homenageiam” um passado já desfeito. Wagner, ópera italiana, escola austríaca, romantismo, classicismo: “nunca mais!”, bradava.

Havia quem criticasse Satie por suas miniaturas musicais com escalas pouco convencionais, harmonias estranhas e uma total ausência de virtuosismo instrumental, reduzindo-o a um compositor de fracos recursos técnicos. Se o era, é mais louvável ainda, pois sua criatividade e capacidade transformadora são tamanhas que não é exagero dizer que ele é um dos precursores do espírito “faça você mesmo”, o grito dos punks, estes, os revolucionários roqueiros do fin de siècle. O fato é que uma obra tão significativa como “Entr’acte” exerceu influência direta na vanguarda pós-Segunda Guerra, tanto no meio erudito quanto no jazz e no rock. Para citar quatro exemplos expressivos: Terry Riley, em seu eletro-minimalista “A Rainbow in Curved Air”, de 1969; a mente “saudavelmente doentia” de Syd Barrett em “The Piper at the Gates of Down”, do Pink Floyd, do mesmo ano; as primeiras obras de Glass, tanto “Music in 14 Parts” (1971-74) quanto “Music with Changing Parts” (1971); e a maestrina jazzista Carla Bley em “Musique Mecanique” (1978). Se tamanho alcance não é digno de elogio, é, no mínimo, reflexo da recorrente contradição que caracterizaria os ilógicos e amorais tempos de hoje. Tempos, aliás, aos quais Satie já se fazia pertencer mesmo não vivendo neles. E para que precisaria?

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O CD traz ainda a íntegra de “Relâche”, com seus dois movimentos interpostos por “Entr’acte”, e a obra “Trois Morceaux en Forme de Poire” – que contém a conhecida peça “Maniere de commencement” e “Ragtime Parade”, arranjo posterior ao balé “Parade” escrito por Hans Ourdine –, todos em versão para piano. No vídeo, a trilha de “Entr’acte” é arranjada para orquestra, com regência de Henri Sauguet, de 1967.
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Ouça o Disco, Assista o Filme:
Erik Satie Entr'acte



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FAIXAS:
I. Trois Morceaux en forme de poire:

1. Maniere de commencement - 4:05
2. Prolongation de meme - 0:47
3. Lentement - 1:27
4. Enlevé - 2:43
5. Brutal - 2:12
6. En plus - 2:21
7. Redite - 1:31
8. Ragtime Parade - 2:33

II. Relâche - Premier Acte:
9. Ouverture - 1:09
10. Projection - 0:42
11. Rideau - 0:24
12. Entrée de la Femme - 1:14
13. "Musique" - 0:37
14. Entrée de l'Hommes - 0:38
15. Danse de la Porte tournante - 0:54
16. Entrée des Hommes - 0:39
17. Danse des Hommes - 0:42
18. Danse de la Femme - 1:04
19. Final - 1:15

III. Entr'acte:
20. Cheminées, ballons qui explosent - 1:29
21. Gants de boxe et allumettes - 0:42
22. Prises d'air, jeux d'echecs et bateaux sur les toits - 0:57
23. La Danseuse et figures dans l'eau - 0:42
24. Chasseur; et début de l'enterrement - 1:25
25. Marche fúnebre - 0:51
26. Cortege au ralenti - 1:35
27. La Poursuite - 1:10
28. Chute du cerceuil et sortie de Borlin - 1:00
29. Final (écran crevé et fin) - 1:05

IV. Relâche - Deuxieme Acte:
30. Musique de Rentrée - 0:56
31. Rentrée des Hommes - 0:54
32. Rentrée de la Femme - 1:15
33. Les Hommes se dévetissent - 0:34
34. Danse de l'Homme et de la Femme - 1:13
35. Les Hommes reganent leur place et retrouvent leurs pardessus - 0:51
36. Danse de la Brouette - 1:21
37. Danse de la Couronne - 0:57
38. La Danseur depose la Couronne sur la tete d'une specatrice - 0:46
39. La Femme rejoint son fauteuil - 1:05
40. Petite Danse Finale (la Queue du Chien) – 0:43







quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

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FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

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OUÇA O DISCO:






sexta-feira, 20 de março de 2009

Siouxsie & the Banshees "Nocturne" (1983)


"Siouxsie and the Banshees 
é uma das poucas bandas 
que se pode recomendar
 toda a discografia."
Kid Vinil



Vim ouvindo no carro entusiasmadamente o "Nocturne", álbum ao vivo da Siouxsie & the Banshees.
Cara, o que é aquele álbum?
Gravado no Royal Albert Hall em Londres, é outro dos que certamente figuram entre os melhores discos ao vivo da hist´ria do rock.
A "doida" introdução de Stravinsky - fantástica-, abre "Israel" que já entra com o baixo marcante e seguro de Steve Severin, no primeiro momento do disco e já dos pontos altos.
"Paradise Place" é uma pedrada agressiva e certeira. "Melt" mesmo sem os bandolins da original mantém o clima sombrio e sensual, muito graças à habilidade e técnica de Robert Smith do Cure, que participa dese álbum e curiosamente toca como jamais tocou antes mesmo na própria banda.
"Slowdive" por exemplo que tinha violino na sua versão original, nem sente falta desse elemento, uma vez que a guitarra de Smith dá conta do recado e confere mais "pegada" à canção.
Em "Cascade" o show fica por conta de Budgie que destrói com sua batida complexa e elaborada que invariavelmente aparece com grande qualidade em quase todas as faixas.
"Helter Skelter" é outro grande momento, "Nightshift" também é destaque, e "Eve White, Eve Black" introduzindo para a longa "Voodoo Dolly" é verdadeiramente sinistra e estas fecham o show e o álbum em grande estilo.
O show também resultou num filme da banda no qual se pode notar a presença de Robert Smith que, estranhamente, apesar da grande performance musical, quase não se mexe no palco. Mas ele não é dançarino, mesmo...

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FAIXAS:
  1. Intro - The Rite Of Spring
  2. Israel
  3. Dear Prudence
  4. Paradise Place
  5. Melt!
  6. Cascade
  7. Pulled To Bits
  8. Nightshift
  9. Sin In My Heart
  10. Slowdive
  11. Painted Bird
  12. Happy House
  13. Switch
  14. Spellbound
  15. Helter Skelter
  16. Eve White / Eve Black
  17. Voodoo Dolly

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Ouça:



Cly Reis


segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

9° Sinfonia de Beethoven pela Orquestra Sinfônica Brasileira - Theatro Municipal - RJ




Conheci ontem finalmente o Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
Bonito mas, surpreendenetemente para mim, pequeno. E conforme já sabia, uma imitação do Opera de Paris, o que não o desmerece em nada. Além da fachada de seu ecletismo remetendo ao neoclássico, já exaustivamente vista a cada ida à Cinelândia no centro do Rio, agora pude conhecer o espaço interno absolutamente nobre com seus veludos e tapetes vermelhos, evocativo com seus vitrais, brilhante com seus dourados e lustroso com seus mármores italianos.
Um dos belíssimos vitrais
A colunata da fachada
Fomos à apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, no último concerto do evento chamado Série Fora-de-Série, no qual executaram com brilhantismo a 9° Sinfonia de Beethoven, uma das maiores obras musicais já concebidas pelo homem. Inegavelmente um privilégio assistir a execução de uma obra como esta e de quebra, depois de 5 anos morando aqui,  conhecendo, finalmente, um dos pontos turísticos históricos mais importantes da cidade.
O interior rico e suntuoso.

THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO
O Teatro Municipal do Rio de Janeiro localiza-se na Cinelândia (Praça Marechal Floriano), no centro da cidade do Rio de Janeiro (RJ), no Brasil.
Construído em princípios do século XX, é um dos mais belos e importantes teatros do Brasil. A responsabilidade de sua gestão é da Fundação Theatro Municipal do Rio de Janeiro, vinculada a Secretaria de Estado de Cultura, que é presidida por Carla Camurati desde 2007, possui direção artística de Roberto Minczuk e direção operacional de Sonja Dominguez de Figueiredo França.


HISTÓRIA
A atividade teatral era, na segunda metade do século XIX, muito intensa na cidade do Rio de Janeiro. Ainda assim, a cidade não dispunha de uma sala de espetáculos que correspondesse plenamente a essa atividade e que estivesse à altura da então capital do país. Os seus dois teatros, o de São Pedro e o Lírico, eram criticados pelas suas instalações, quer pelo público, quer pelas companhias que neles atuavam.
Após a Proclamação da República brasileira (1889), em 1894 o autor teatral Arthur Azevedo lançou uma campanha para que um novo teatro fosse construído para ser sede de uma companhia municipal, a ser criada nos moldes da Comédie-Française.Entretanto, naqueles agitados dias, a campanha resultou apenas em uma lei municipal, que determinou a construção do teatro municipal. Essa lei não foi cumprida, apesar da cobrança de uma taxa para financiar a obra. Observe-se que a arrecadação desse novo tributo nunca foi utilizada para a construção do teatro.
Seria necessário esperar até à alvorada do século XX quando a sua construção viria a representar um dos símbolos do projeto republicano para a então capital do Brasil. À época, o então prefeito Pereira Passos promoveu uma grande modernização do centro da cidade, abrindo-se, a partir de 1903, a Avenida Central (hoje avenida Rio Branco) moldada à imagem dos boulevards parisienses e ladeada por magníficos exemplares de arquitetura eclética.
Nesse contexto, realizou-se um concurso para a construção de um novo teatro, do qual saiu vitorioso o projeto de Francisco de Oliveira Passos (filho do então prefeito Francisco Pereira Passos), que contou com a colaboração do francês Albert Guilbert, com um desenho inspirado na Ópera de Paris, de Charles Garnier.
O edifício foi iniciado em 1905 sobre um alicerce de mil e seicentas estacas de madeira fincadas no lençol freático. Para decorar o edifício, foram chamados os mais importantes pintores e escultores da época, como Eliseu Visconti, Rodolfo Amoedo e os irmãos Bernardelli. Também foram recrutados artesãos europeus para executar vitrais e mosaicos.
Finalmente, quatro anos e meio mais tarde – um tempo recorde para a obra, que teve o revezamento de 280 operários em dois turnos de trabalho – no dia 14 de julho de 1909 foi inaugurado pelo então presidente da República, Nilo Peçanha, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Serzedelo Correia era o então prefeito da cidade.
Originalmente com capacidade para 1.739 espectadores, em 1934, com a constatação de que o teatro estava pequeno para o tamanho crescente da população da cidade, a capacidade da sala foi aumentada para 2.205 lugares. A obra, apesar de sua complexidade, foi realizada em apenas três meses, também tempo recorde para a época. Posteriormente, com algumas modificações, chegou-se ao número atual de 2.361 lugares.
Em 1975, a 19 de outubro, o teatro foi fechado para obras de restauração e modernização de suas instalações e reaberto em 15 de março de 1978. No mesmo ano foi criada a Central Técnica de Produção, responsável por toda a execução dos espetáculos da casa.
Em 1996 iniciou-se a construção do edifício anexo, visando desafogar o teatro dos ensaios para os espetáculos, que, com a atividade intensa da programação durante todo o ano, ficou pequeno para eles e, também, para abrigar condignamente os corpos artísticos. Com a inauguração do anexo, o coral, a orquestra e o balé ganharam novas salas de ensaio e espaço para as suas práticas artísticas.
Em seus primórdios, apresentavam-se no teatro apenas companhias e orquestras estrangeiras - especialmente as italianas e francesas - até que, em 1931, foi criada a Orquestra Sinfônica Municipal do Rio de Janeiro. Entre as personalidades ilustres que nele se apresentaram destacam-se os nmomes de Maria Callas, Renata Tebaldi, Arturo Toscanini, Sarah Bernhardt, Bidu Sayão, Eliane Coelho, Heitor Villa-Lobos, Igor Stravinsky, Paul Hindemith, Alexander Brailowsky entre outras. Hoje a casa abriga a Orquestra Petrobras Sinfônica e a Orquestra Sinfônica Brasileira e são apresentados, majoritariamente, programas de dança e de música erudita.


fonte: Wikipedia

sábado, 24 de setembro de 2011

Exposição 'Queremos Miles!' - CCBB- Rio de Janeiro (18/09/2011)











capa de "Tutu",  álbum da
popularização definitivada obra de Miles
Aproveitando bem minha estada no Rio, pude conferir no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB RJ), em companhia de meu irmão e editor deste blog, a ótima exposição “Queremos Miles”, sobre a vida e obra do músico de jazz norte-americano Miles Davis (1926-1991). A mostra, que vai somente até 28 de setembro, recupera (quase) toda a biografia do talvez maior gênio do jazz mundial em todos os tempos, um verdadeiro escultor de sons e revolucionário da música do século XX ao lado de alguns outros poucos como Stockhausen, Tom JobimStravinsky Beatles.
Miles ainda menino
Organizada pela Cité de la Musique de Paris, a exposição – cujo título em português, embora a tradução literal, perde em significado, uma vez que o original, “We Want Miles”, faz menção também ao nome de um disco de Miles Davis –, resgata de forma cronológica a biografia deste influente artista que, disco após disco, antecipava e inventava novas tendências, novos estilos, revolucionando a arte moderna e influenciado gerações. O recorte pega desde o seu nascimento, na sulista de St. Louis, trazendo fotos dele quando pequeno com sua família, até o período final de sua carreira, demarcado por sua última obra-prima dentre as várias que produziu em quase 50 anos de vida artística: o álbum “Tutu”, de 1986, marco da criação do hoje popularizado jazz lounge. Da fase inicial, estão o encontro com Charlie Parker e Dizzie Gillespie, o “nascimento do cool”, em 1948, e os admiráveis títulos pelo selo Prestige nos anos 50, para o qual gravou seis obras-primas com o quinteto que incluía nomes como John Coltrane, Red Garland e Sonny Rollins.
Os instrumentos da banda dos anos 70
Multimeios, a abrangente mostra contém um rico acervo de aproximadamente 300 itens entre fotografias raras, capas de LP's, vídeos de apresentações em TV e shows, roupas e vários instrumentos utilizados por ele e por suas célebres bandas, além de partituras, documentos de registro de gravações em estúdio, quadros (belíssimos!) pintados pelo próprio Miles e até o manuscrito original do texto do pianista Bill Evans da contracapa do clássico álbum “Kind of Blue”, de 1959, o disco de jazz mais vendido da história e considerado por muitos insuperável no gênero. E, claro, muita música! Em cada canto, em cada ilha que se entrava pode-se escutar algumas das maravilhas de Miles. Às vezes, nem percebia que me apressava em ver determinada coisa, atraído pelo som de uma “All Blues”, “Pharaoh's Dance” ou “Nuit sur les Champs-Élysées“.
Painel com o estilo Miles dos anos 80
A personalidade camaleônica de Miles Davis, que nunca teve medo de mudar e progredir ao longo dos anos fica evidente, principalmente no aspecto visual: os finíssimos trajes bem cortados que vestia nos anos 40 e 50, transformariam-se, nos 60 e 70, na estética psicodélica da juventude. Igualmente, a bem elaborada curadoria de Vincent Bessières soube destacar muito bem os pontos impostantes da obra de Miles, como a fascinante trilha sonora do filme “Ascensor para o Cadafalso”, de 1957, a parceria com o pianista e maestro Gil Evans, que gerou os históricos “Miles Ahead” e “Porgy and Bess” (1957 e 59, respectivamente), ou as salas especiais dos discos clássicos: "Kind of Blue", sobre o qual comentei aqui neste blog tempo atrás; “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, ambos de 1969 e marcos do jazz fusion; "A Tribute to Jack Johnson" (1971), a memorável trilha para o documentário sobre o boxeador a quem Miles tanto admirava; e “On the Corner”, de 1972, quando Miles introduziu de vez o som do funk que vinha dos guetos americanos em sua música.
A única falha, por assim dizer, é a não inclusão do seu último disco, o póstumo “Doo-Bop”, de 1991. Sei que os puristas torcem a cara para este trabalho por sua mistura de hip-hop com jazz, o que aparentemente motivou a organização da mostra a não referi-lo – evidenciando a menor importância a que geralmente lhe atribuem. Eu, particularmente, gosto bastante deste disco não só por sua qualidade musical como por sua importância dentro da música pop diante do que se faria a partir de então no mundo do entretenimento. Quando os norte-americanos do Us3 surgiram com aquele seu jazz-rap em 1993, embora tenha gostado da banda, não segui o estardalhaço em torno do grupo como sendo algo revolucionário justamente por já ter escutado tudo aquilo em “Doo-Bop”. A justificativa dos críticos é a de que os produtores que finalizaram “Doo-Bop” o teriam feito sem a qualidade que Miles imprimiria se estivesse vivo. Sinceramente, acredito que, se o músico tivesse morrido depois da feitura do álbum, o conteúdo seria praticamente o mesmo e muitos dos detratores certamente o louvariam hoje (talvez até mais do que o disco merecesse). Preconceito ou não, falta de critério ou não, o fato é que, até por seu caráter póstumo, considero este momento importante na biografia do artista, por isso a falta dentro da exposição. Mas, entre tantos acertos que “Queremos Miles” traz, isso é o de menos. Mais fácil eu pegar meu “Doo-Bop” e me deliciar sozinho em casa.

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Queremos Miles
Até 28 de Setembro
Local: Térreo e 1º andar | CCBB RJ
Horário: Terça a domingo, das 9h às 21h


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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Música da Cabeça - Programa #65


“Isto é como encontrar uma nova câmara na Grande Pirâmide”. As palavras do genial saxofonista Sonny Rollins seriam exageradas se não estivessem se referindo a outro gênio do instrumento, do jazz e da música universal: John Coltrane. As recém-descobertas e divulgadas gravações inéditas do músico norte-americano e seu célebre quarteto estão no quadro “Música de Fato” desta semana. Ainda, muitas outras maravilhas sonoras como a soul brazuca de Tim Maia, o gothic industrial da Alien Sex Fiend, o hawaiian pop de Israel Kamakawiwo'ole e o balê avant garde de Igor Stravinsky. E ainda tem mais! Motivo de sobra pra você não perder o programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção, apresentação e revelações: Daniel Rodrigues. 


Rádio Elétrica:

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

“BOULEZBOWIE”: Esse (esquizo)frênico mundo que une (ou separa) a vanguarda do pop

Tá sempre morrendo gente pública por aí, sei. Mas nem sempre tenho o que lamentar. Morre gente conhecida toda semana, o que não quer dizer, necessariamente, que embora conhecidas de um relativo número de pessoas (às vezes, milhares delas), sejam de fato importantes. Essa dialética é típica desses tempos descriterizados e esquizofrênicos que vivemos. Lágrimas demais ou de menos sem se saber o porquê. Mas não deixa de ser, no mínimo, questionável, ainda mais quando, em menos de uma semana, morrem duas pessoas de extrema importância e ocupantes cada um de uma dessas esferas: o quase ignoto e o altamente popular. O quase ignoto por conta do mesmo descritério e esquizofrenia que empurra as massas a rechaçarem qualquer profundidade; o outro, altamente popular e cuja comoção pela morte foi gigantesca, é às vezes reduzido a um percentual mínimo daquilo que ele mesmo representa.
De minha parte como jornalista, crítico e diletante, lamento de verdade ambas as perdas. Falo de Pierre Boulez e David Bowie.


O rocker de batuta
Boulez, o compositor, maestro, professor e ensaísta francês, desconhecido totalmente de um relativo número de pessoas, era o último representante dos compositores da vanguarda erudita da primeira metade do século XX. Junto com os contemporâneos John Cage, Kerlheinz StockhausenLuciano Berio, Edgard Varèse, Benjamim Britten e Luigi Nono, ele, seguindo a sina aberta pela tríade de Viena nos anos 10 (Schöenberg, Berg e Webern), pôs de ponta-cabeça toda a tradição musical, subvertendo todos os conceitos: tom, harmonia, métrica, instrumentalização, timbrística. Raivoso e aferrado, Boulez foi um roqueiro punk com 40 anos de antecedência ao movimento. De modos elegantes e clássicos, por dentro era um punk total, combativo até no seu meio. A mesma agressividade expressiva, a violência como método e estilo. À imbecilidade ele respondia com doses desmedidas de cerebralismo. Era sua adaga perfurante. “Acredito que a música deve ser uma histeria coletiva de palavras violentas sobre o tempo presente”, disse em 1948.
Anos atrás, quando de seu aniversário de 80 anos (morreu dia 5 de janeiro, aos 90), li um artigo que, pertinente e conscientemente, colocava “Pli selon Pli”, uma de suas mais concisas e importantes obras, ao lado de outras duas significativas revoluções na música do século XX: o nascimento da bossa-nova com “Chega de Saudade”, com João Gilberto (1958), e a não menos vanguardista “Gesang der Junglinge” (1956), obra referencial do alemão Stockhausen.
Dessa vez, Boulez foi notícia novamente, mas muita gente que passou por esta não deu bola, o que é normal. Um compositor e maestro ligado a antipopulares termos como dodecafonia, atonalismo, eletroacústica, serialismo ou música aleatória só pode mesmo não ser popular. Ser desconhecido de um grande número de pessoas era, certamente, um elogio para Boulez. O desconhecido, afinal, nunca o assustou. Pelo contrário: era-lhe combustível. De língua afiada e criatividade idem, o jovem que estudara com Messiaen, logo o mandou às favas e o confrontou ideologicamente. Fez o mesmo com outro professor, Leibowitz, sem resquício de culpa. Jamais lhe existiam mestres. Não são poucos seus manifestos ferinos e altamente intelectualizados escritos ao longo da vida onde expunha suas ideias, o que o colocaram como um importante ensaísta da arte do seu tempo.
Boulez é responsável, na longa carreira que teve, por promover pelo menos três revoluções na música mundial.  Afora as marcantes obras da juventude, as cantatas "Le visage nuptial" (revista por ele quase quatro décadas depois), "Le soleil des eaux", onde explorava os ensinamentos do dodecafonismo aprendidos com Messiaen, e da primeira obra totalmente serializada, “Polyphonie X”, para 18 instrumentos, é entre 1953 e 1957 que lança a que é considerada sua primeira obra-prima: “Le marteau sans maître” para conjunto e voz, de relativo sucesso e uma síntese surpreendente das várias correntes na música moderna, englobando os mundos sonoros do jazz be-bop, o gamelão balinês, músicas tradicionais africanas e melodias tradicionais japonesas. Até o por ele satanizado Igor Stravinsky deixou de fora as críticas que recebia e aplaudiu de pé.
Outra radical criação: a já mencionada “Pli selon Pli”, cuja “original” data do final dos anos 50. Trata-se de um concerto inspirado em poemas do poeta francês Mallarmé onde passa a explorar com veemência a ideia de “obra em movimento”. Revisto em sua estrutura e métodos nas décadas seguintes, foi ganhando novas versões à medida que o irrequieto compositor reavaliava sua linguagem, fazendo com que, por conceito, sua concepção final estivesse sempre por vir. Tal como o já mencionado João Gilberto, que reelabora incessantemente os clássicos sambas da música brasileira em seu filarmônico violão, cunhando ao longo do tempo sempre versões únicas da mesma melodia, “Pli selon Pli” “nunca” acaba. Entendimento que só poderia brotar de alguém que representou tão firmemente a geração pós-Guerra, cujas marcas ainda são sentidas mais de 100 anos de eclodida a primeira delas.
Na maturidade, quando poucos compositores eruditos de sua geração não mais se arriscavam depois de tanto inovarem nas décadas anteriores, Boulez manteve-se na ponta da vanguarda, propondo novas experimentações. Se a música eletrônica o havia decepcionado nos anos 50 por sentir-se insatisfeito com o resultado das fitas magnéticas e seu processo “inorgânico” de realização, nos 70 volta à carga para dar-lhe nova identidade. Os meticulosos resultados dessa “velha descoberta” seriam sentidos em 1980, quando compõe “Répons” (para dois pianos, harpa, vibrafone, sinos, címbalo, orquestra e eletrônica). Ali, dá luz a uma obra em que a ressonância e a espacialização dos sons criados pelo conjunto se processam todos em tempo real, inclusive os elementos eletrônicos, normalmente criada penosamente em situações controladas. Nova síntese, nova profusão de ideias.
O fato é que, como um punk, amoral e dono da sua razão, Boulez jogou-se no labirinto do desconhecido e dali tirou o magma que brotaria dos vulcões de sua criatividade pronto para queimar todas as concepções preestabelecidas. Da tensão secular, criou uma linguagem densa e lírica. Sua partida deixa uma lacuna insubstituível. Um pilar que cede. O planeta Terra não tem mais nenhum representante da original vanguarda do século XX, a geração pós-Wagner, que passa por Strauss, Mahler e Debussy. A geração que aprendeu com – ou aprendeu a contrariar – Stravinsky, Eric Satie, Bela Bártok e Maurice Ravel. O longevo Boulez ainda resistia, e agora leva consigo uma herança que, a ver por esses tempos de descritério e esquizofrenia (e desmemoriados, consequentemente), um dia possa se apagar da memória do homem. Quiçá, cheguemos ao triste dia em que serão desmentidas oficialmente as barbaridades do Holocausto que Boulez presenciou e da sua forma combateu. Quem sabe, foi bom mesmo ele não viver tanto mais para ter de presenciar isso.

vídeo "Pli Selon Pli", Pierre Boulez



A batuta do rocker
Assim como para Pierre Boulez, o desconhecido também sempre foi combustível a David Bowie. Se o maestro buscava esse estado incessantemente, de modo a não repetir-se e recriar sua obra ao longo dos tempos, Bowie, no meio do mainstream, não só fazia isso como transformava essa busca em produto “vendável”. Ninguém como ele se valeu do universo de referências estilísticas da sociedade moderna e os reelaborou como Bowie, forjando um trabalho próximo do público mas sem deixar de infundir-lhe “dificultações”. Boulez, inventor de muitas dessas complexidades formais quase sempre desconhecidas do grande público, até por isso era quase um completo desconhecido do próprio. Bowie, na outra ponta, era popular mas impunha-se uma tarefa provocativa e rara: a de propor essas “dificultações desconhecidas” e torná-las, se não conhecidas, pop e assimiláveis.
Poderia falar longamente sobre vários dos períodos que Bowie orquestrou. De Ziggy Stardust ao vilão mutante Nathan Adler de “Outside”, passando pelo “Pin Up” à fase “limpa” de artifícios de Berlim. Mas em meio à enxurrada de coisas a seu respeito escritas e ditas nos últimos dias creio que o melhor recorte para esse momento é essa contribuição da desacomodação que o artista britânico sempre trouxera. “Sou uma prateleira de frascos vazios”, disse o poeta Fernando Pessoa em seu “Livro do Desassossego”. Bowie foi esse frasco vazio, onde fazia caberem todas as possíveis referências e mitos.
Escrevi sobre Bowie em meu livro, "Anarquia na Passarela", algo que se baseia bastante na questão da moda e comportamento dos punks, mas que vale tranquilamente para tal argumentação. Reproduzo dois:
“Vindo da cultura mod londrina dos anos 60, logo foi formando um estilo próprio de dândi ultrasofisticado e exagerado que desembocaria no seu ‘cameleônico’ individualismo cênico. Bowie era uma estrela do rock que nunca é ele próprio como pessoa: ele ‘interpreta’ papéis num enorme ‘palco’ chamado show-business. Por causa deste distanciamento bretchniano que tem da cultura de massa logrou influências vitais à cena [punk].”
“Tudo em Bowie era estilo, o que se percebia na sua indumentária ultradandi, barroca e ‘camp’. Seu passado mod, os anos 50, o cinema expressionista, a Berlim ‘decadente’ e suburbana, os anos pré-nazismo, o dandismo de Brummell, a androginia, a estética dos cabarés. Tudo lhe era alimento para a formação de um estilo pessimistamente decadente, cerebral e imaginário. Criava uma mitologia na qual nada era em vão; em cada ‘máscara’ sua vinha um efeito estético e fantasioso.“
Por tudo isso, Bowie mostrou facilmente que fazer música pop simplesmente é simplório e vago. Há de se adicionar personalidade e conceito para que se produza algo significativo. Bowie entendeu isso cedo, catalisando música, estilo, comportamento e equilibrando “alta” e “baixa” cultura – ou melhor, quebrando as barreiras entre uma e outra. Entendeu que a vanguarda das artes não existe apenas para impor a “alta cultura” de modo estanque e autobajulador. É, sim, célula orgânica, viva, que, compreendida em seus símbolos e elementos, podem e devem ser assimiladas, reelaboradas e deglutidas em outros e diferentes níveis de cultura e conhecimento.
A carreira de Bowie, muito mais profunda do que apenas os (ótimos) sucessos, é sabiamente contaminada pela vanguarda. "V-2 Schneider" contém claros traços de Boulez, Stockhausen e Varèse; o solo atonal de piano de "Aladdin Sane" contém Cage e Ligeti; a trilogia berlinense (inclua-se "The Idiot", de Iggy Pop, da mesma leva), contém em sua sonoridade pós-industrial os experimentos eletroacústicos fruto de ceticismo racional do pós-Guerra; o recente “Blackstar” contém a sonoridade pós-jazz assimilada tanto por maestros quanto músicos sem formação teórica como DJ’s, roqueiros e rappers"Low" e “Heroes”, com Brian Eno, são tão estruturalmente minimalistas que o próprio “pai” do estilo, Philip Glass, homenageou a Bowie e Eno com o duo “Symphony” sobre ambos os álbuns. O jornalista e crítico musical norte-americano Alex Ross, para quem Bowie foi um roqueiro refinado, observa que, “em meados dos anos 70, Bowie abandonou a forma ternária da estrutura pop em favor de formas semiminimalistas, caracterizadas por ataques secos e pulsações rápidas”.
É por isso que se torna tão penosa e simbólica a perda de Bowie: quem mais fará isso? É alarmante, se não desolador, que este papel nunca mais seja cumprido. Quem assumirá (compreenderá ou dará a devida importância) ao papel de unir e mimetizar essa ponte vanguarda-pop? Numa época em que streamings e mp3 circulam descontextualizados de suas obras de origem (quando esta, de fato, existe, se é que já não fora criada sem contexto algum), é salutar que um artista de quase 70 anos e 50 de carreira assombre o universo do entretenimento com o lançamento de um disco, uma obra que se constitui em si própria. Uma obra.
Walter Benjamin provavelmente ficaria instigado com esse episódio emblemático da morte de Bowie, e mais possivelmente ainda o ligaria com a já historicamente simultânea perda do pilar oposto a ele, a de Pierre Boulez. A vanguarda e o pop perderam seus calços, deixando um questionamento de dupla interpretação: a obra-de-arte na música morreu também junto com os dois? Findaram-se duas eras basais para a história da música através dos tempos? Todas as releituras de “Pli selon Pli” e o obscuro “Blackstar” darão ainda muito a se desvelar se se quiser, a depender do grau de (des)critério dos tempos (esquizo)frênicos que vierem adiante neste século XXI recém iniciado. O que se sucedeu, com a morte dos dois, talvez tenha sido um lampejo de que a arte musical esteja mais viva do que nunca. Ou, se não, é porque se enterrou de vez junto com Bowie e Boulez. Aí, será quando o desconhecido se tornará definitivamente desimportante.

video de "Blackstar", David Bowie