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terça-feira, 31 de maio de 2016

A Cor do Som – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (29/05/2016)




A grande A Cor do Som em plena atividade.
Foi um acontecimento encantado que Porto Alegre presenciou na úmida noite de domingo. Afinal, a lendária banda A Cor do Som, com a formação original, resolveu reunir-se 32 anos depois da última vez e escolheu a capital gaúcha para estrear. A opção, aliás, se justificou plenamente. Num Bourbon Country lotado de fãs empolgados e emocionados, o grupo reviveu clássicos e sucessos, preenchendo uma ausência de quase todo esse tempo, haja vista que a última vez que pisaram num palco da cidade foi em 1981, no antigo Teatro Leopoldina. Aos que estavam lá àquela época, valeu a pena esperar, assim como para fãs como eu, que os somente bem depois os conheceu e passou a apreciar seu trabalho sui generis.

 O que se viu foi um verdadeiro espetáculo de musicalidade, virtuosismo e empatia de todos os integrantes com o público, o qual cantou todas as letras e soltou-se como poucas vezes vi nessas geladas terras gaúchas. Afinal, além de terem escrito a trilha sonora da adolescência de muitos dos presentes, os cinco músicos são capazes de conquistar públicos de todas as gerações. Intercalando suítes instrumentais com hits cantados, Armandinho (guitarra baiana e bandolim), Dadi (baixo), Mu Carvalho (teclados), Gustavo Schroeter (bateria) e Ary Dias (percussão),  trouxeram um repertório literalmente colorido, daqueles que se sai preenchido de alegria ao final. A mistura híbrida de funk, samba, pop, baião, reggae, choro, hard-rock, frevo, progressivo, maracatu, disco (e o que mais o ouvido conseguir detectar) faz com que criem um inclassificável tipo de jazz que somente uma banda desses trópicos como A Cor do Som – formada, entre outros, por remanescentes dos Novos Baianos e Banda do Zé Pretinho, Dadi e Mu, e descendentes diretos dos trios elétricos baianos, caso de Armandinho e Ary – pode conseguir.

E eles já saíram pondo tudo abaixo com “Saudação a Paz”, faixa que abre seu terceiro disco, de 1981. Em seguida, cantada com a voz suave do “leãozinho” Dadi, um dos grandes sucessos: “Abrir a Porta”, daquele que é talvez sua obra-prima, “Frutificar”, de 1979. Deste mesmo trabalho, mais uma maravilha instrumental na sequência: “Pororocas”, jazz-baião em que todos se esmeram, principalmente o virtuose Armandinho no bandolim, do qual ele extrai timbres de guitarra elétrica. Das cantadas, que contagiaram a plateia, ainda veio o lindo xote “Semente do Amor”, na voz de Mu (“Sim, é como a flor/ De água e ar luz e calor/ O amor precisa para viver/ De emoção, e de alegria/ E tem que regar todo dia...”), e “Beleza Pura”, do baiano e padrinho Caetano Veloso (autor do nome da banda e que lhes presenteou a música, um sucesso em 1979), que o conterrâneo Armandinho entoou.

De fato, a proximidade e o carinho que a música d’A Cor do Som tem para como os gaúchos é muito grande. Outra do mano Caetano encomendada a eles é uma que tem a cara de Porto Alegre. Aliás: é inspirada num dos bairros mais queridos da cidade, “Menino Deus”. A letra, de uma beleza incrível, claro, emocionou os que lá estavam a ouvindo na voz de Dadi: “Menino Deus, um corpo azul-dourado/ Um porto alegre é bem mais que um seguro/ Na rota das nossas viagens no escuro/ Menino Deus, quando tua luz se acenda/ A minha voz comporá tua lenda.”

Armandinho é ovacionado enquanto
sola no meio da plateia.
Vinham também sempre as instrumentais, que deixavam a plateia mais contemplativa e menos dançante, pois boquiaberta com tamanha destreza dos músicos e beleza musical. Caso de “Ticaricuriquetô”, de Armandinho, um misto de heavy-metal, frevo e rock progressivo em que o guitarrista arrasa com a pequena guitarra baiana. Dadi, Mu, Ary e Gustavo não ficam para trás nos solos, tanto quanto nas difíceis bases que as melodias exigem, remetendo muitas vezes à complexidade harmônica do jazz fusion de uma Weather Report ou Pat Matheny Group. Nessa linha, a talvez mais impressionante de toda a apresentação foi a clássica “Frutificar”, faixa-título do álbum de 1979 e de autoria de Mu. É ele quem a inicia com uma abertura quase erudita de alguns minutos conjugando piano e teclado elétrico. O baixo e a bateria entram de leve. É quando Ary, mais atrás no palco, ao lado da bateria, posiciona os bongôs à frente, pareando com o teclado e com Armandinho, que está ao centro. Ao comando do teclado, que intensifica o compasso, o percussionista deslancha uma intensa percussão típica africana, e aí quem entra é Armandinho. Cruzes! Num clima de trilha sonora de thriller de ação dos anos 70, os cinco se esbaldam nos improvisos e o tema vai num crescendo de emotividade até ganhar formas épicas. Um tema gigante.

Seguiram-se outras das melodiosas e cantaroláveis, como o reggae “Zero” e mais um hit: “Zanzibar”, em que Armandinho puxou a galera pra cantar e dançar. Houve o momento em que, durante o solo, o guitarrista, lá pelo meio do número, desce do palco e percorre os corredores da plateia. Solando! E solando MUITO bem! Fazia com a maior naturalidade o que muito guitarrista, mesmo totalmente parado e concentrado, não teria a mínima capacidade. Um monstro do instrumento. Para fechar, “Swingue Menina” pós todo o teatro pra se embalar ao som do reggae. O bis teve mais uma peça de pura habilidade e a gostosa “Dentro de Minha Cabeça”, em que Ary largou a percussão para assumir o microfone e cantar: “Dentro da minha cabeça/ Tenho um pensamento só/ Sei que não tenho juízo/ Dentro da minha cabeça/ Eu só quero amor/ Amor, amor...”. Detalhe: Ary dedicou-a a uma “amiga” das antigas que estava na plateia, a qual congelou tamanha a surpresa.

Juntamente com a saudosa Black Rio, A Cor do Som é certamente a grande banda de jazz brasileiro moderna. Porém, diferente dos autores de “Maria Fumaça”, cujas atividades se encerraram após perderem seu cabeça, Obderdan, já falecido, todos os seus integrantes estão ativos e em plena forma. Então, por que não aproveitar isso em vida, né? Foi essa celebração à vida, à música, às cores dos sons, que A Cor do Som compartilhou com todos nós esta noite. Lá fora podia já estar escuro e chuvoso, mas lá dentro estava colorido e iluminado.






sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Novos Baianos - "Novos Baianos F.C." (1973)





“Eles se achavam na época
melhores jogadores de futebol
do que músicos.” 
Solano Ribeiro



Quem me conhece sabe que a minha banda brasileira favorita veio da Bahia não é o Camisa de Vênus. Claro que são os Novos Baianos. E toda vez que alguém fala neles, pensa direto em "Acabou Chorare", um verdadeiro... clássico da MPB de todos os tempos. Adoro este disco. Mas o meu favorito deles é outro: “Novos Baianos F.C.”, terceiro disco da trupe, lançado um ano depois do “Acabou...”. Pensem bem: depois de fazer um disco como aquele, como seguir em frente? Pois Pepeu, Baby, Paulinho e Moraes e sua gangue resolveram fazer um LP falando das coisas que faziam parte da sua vida cotidiana naquele sítio em Jacarepaguá onde viviam em total harmonia (mais ou menos, né? como ficou claro no filme "Filhos de João - O Admirável Mundo Novo Baiano", de Henrique Dantas).

A brincadeira começa com “Sorrir e Cantar Como Bahia”, música de Luiz Galvão e Moraes Moreira que faz um jogo de palavras com a gravidez de Baby Consuelo e a maternidade do planeta: “Mãe pode ser e ter bebê/ E até pode ser Baby também”. Ela estava permanentemente grávida de Riroca, Zabelê e Nana Shara, suas três meninas que se tornariam o trio SNZ. O futebol do título está presente em “Só Se Não For Brasileiro Nessa Hora”. Como cronista do cotidiano, Galvão consegue mostrar exatamente o que acontecia nas ruas do Brasil, até bem pouco tempo, o joguinho de bola na calçada: “Que a vida que há do menino atrás da bola/ para carro, para tudo/ quando já não há tempo/ para apito, para grito/ E o menino deixa a vida pela bola/ Só se não for brasileiro nessa hora”. O lado nonsense de Galvão, o letrista da banda, aparece em “Cosmos e Damião”, uma verdadeira viagem onomatopaica na voz de Paulinho Boca de Cantor. Olhem que maluquice: “Qui qui qui qui qui não é qui qui qui/ Que bom é bom demais pra ser aqui/ Onde um faz hum e outro hum hum/ Mas que bom, todos hum!/ Como um dia, não ria ?/ Sorria como nós...um dia como esse de Cosmos e Damião/ você pode até dançar com Damião/ Mas quem contrariar a lei do Cosmos/ não vai pagar/ já paga ao contrariar”. Doideira total emoldurada pelas guitarras, bandolins e violões de Pepeu e Moraes, o baixo de Dadi, Jorginho Gomes na bateria mais Paulinho, Baby, Baixinho e Bola nas percussões. Eles fazem a gente cantar estes versos enlouquecidos.

Uma das influências mais marcantes do grupo,  Dorival Caymmi, é reinterpretado e rearranjado em “O Samba da Minha Terra”. Uma mistura de MPB com Jimmi Hendrix, a versão deles valoriza o verso: “Quem não gosta de samba/ Bom sujeito não é/ É ruim da cabeça ou doente do pé”. Esse sim é o verdadeiro roque brasileiro, onde as guitarras convivem harmonicamente com a percussão e não copiam ninguém. Ao ouvir os discos dos Novos Baianos – e esse, em particular –, fico imaginando porque grande parte da gurizada se deixa seduzir pelo “rock brasileiro” dos anos 80. Todas as bandas daquela fase são inspiradas em algum grupo inglês do período. Poderia também dizer copiadas. Enquanto isso, os NB usaram a incrível e inesgotável matriz de ritmos nativos para fazer uma música criativa e inteligente. “Vagabundo não é Fácil” é outro exemplo das letras maluquetes de Galvão numa cama de samba com um surdo bem marcado: “Se eu não tivesse com afta/ até faria uma serenata pra ela/ Que veio cair de morar/ Em cima de minha janela”. Lá pelas tantas, rola uma rima de “Bicarbonato de sódi”o com “pessoas sem ódio”. Hilário! E no final, mais um jogo de palavras: “Ao menos leve uma certeza/ Você me deixa doído/ Mas só não me deixará doido/ Porque isso sou/ Isso eu já sou”. Na sequência, outro sambão daqueles de sair cantando pela rua: “Com Qualquer Dois Mil Réis”. Na voz de Paulinho Boca de Cantor, a música brinca com a figura do malandro carioca: ”E o malandro aqui/ Com Qualquer Dois Mil Réis/ Põe em cima uma sandália de responsa e essa camisa/ de malandro brasileiro/ que me quebra o maior galho”. E o refrão é chicletaço musical: “E esse ano não vai ser/ Igual aquele que passou/ oh oh oh oh oh que passou”.

Depois deste samba balançado, vem a faixa mais “roquenrou” de todo o disco, “Os Pingo da Chuva”, que Baby Consuelo se encarrega de dar aquele molho. Preste a atenção nos comentários da guitarra de Pepeu durante toda a canção, enquanto Baby canta este história pro seu namorado – não por acaso, ele, Pepeu, na época –, dizendo que ele não deve se preocupar com o céu que está “preto e as nuvens que até as sombras assombram”. Ela sabe que “Você tem seus argumentos de querer/ o sol pra bater sua bola/ E a lua pra ver sua mina/ ou só pra ir ali na esquina...Faça como eu que vou como estou/ porque só o que pode acontecer/ É os pingo da chuva me molhar”. E esse rock vira um baião elétrico no final. É aí que eu me refiro. Com tantas possibilidades rítmicas e melódicas, os roqueiros dos anos 80 se contentavam em copiar The SmithsThe Cure, The Police, entre outros. Que desperdício! “Quando Você Chegar” é uma bossa a lá João Gilberto onde Moraes fala de um filho que está chegando e que, aparentemente, iria chamar de Pedro. Os planos devem ter mudado, pois este filho é o guitarrista Davi Moraes, que veio a Porto Alegre em 2013 com ele para um show em homenagem aos 40 anos de “Acabou...”. Lá pelas tantas, esta bossa vira um samba. E a letra é tão boa que vai inteira: “Quando você chegar/ é mesmo que eu estar vendo você/ Sempre brincando de velho/ me chamando de Pedro/ me querendo menino que viu de relance/ Talvez um sorriso em homenagem à Pedro/ Pedro do mundo dum bom dum bom dum bom.../ Fique quieto que tudo sana/ Que a língua portuguesa, a língua da luz/ A lusitana fez de você o primeiro guri/ Meu guri, meu gurizinho/ Água mole em pedra dura, pedra pedra até que Pedro”.

Pra encerrar “Novos Baianos F.C”, duas faixas sem letra. Desde "Acabou Chorare" existia, dentro dos Novos Baianos, o grupo instrumental A Cor do Som, formado por Pepeu, Dadi, Jorginho e os percussionistas. As duas últimas músicas são dedicadas a este embrião de trabalho que iria desembocar no grupo de mesmo nome que gravaria seu primeiro disco em 1977. Na formação de estreia, só Dadi permaneceria, tendo ao seu lado o irmão Mu mais Armandinho e Gustavo. “Alimente” e “Dagmar” são dois exemplos do que seria desenvolvido pela Cor e por Pepeu em seu primeiro trabalho solo, “Geração de Som”, em 1978. Choro, samba, rock, tudo misturado e embalado pra presente. Uma delícia de disco que muita gente não conhece. Em 1978, os Novos Baianos gravam seu último disco, “Farol da Barra”, outro trabalho incrível. E decolam as carreiras solo de Pepeu, Baby, Dadi na Cor do Som. Mas isso, como sempre, é outra história.


vídeo de "Só Se Não For Brasileiro Nessa Hora" - Novos Baianos


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FAIXAS:
1. "Sorrir e cantar como Bahia" (Luiz Galvão/Moraes Moreira) – 3:37
2. "Só se não for Brasileiro Nessa Hora" (Galvão/Moraes) – 3:28
3. "Cosmos e Damião" (Galvão/Moraes) – 4:07
4. "O Samba da minha Terra" (Dorival Caymmi) – 3:29
5. "Vagabundo não é Fácil" (Galvão/Moraes) – 5:06
6. "Com qualquer Dois Mil Réis" (Galvão/Moraes/Pepeu Gomes) – 3:26
7. "Os Pingo da Chuva" (Galvão/Moraes/Pepeu) – 4:10
8. "Quando você Chegar" (Galvão/Moraes) – 3:19
9. "Alimente" (Jorginho Gomes/ Paulinho Gomes) – 4:44
10. "Dagmar" (Moraes) – 2:31

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OUÇA:



quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Jorge Benjor - Circo Voador - Rio de Janeiro / RJ (08/08/2015)



Jorge Benjor animando a festa no palco do Circo Voador
Mais um daqueles shows que te marcam. Eu, que já havia assistido ao mestre Jorge Ben ou Benjor por volta de 1995, aceitei de pronto o convite de minha mãe para revê-lo um dia depois de pousar no Rio de Janeiro para umas curtas férias. Leocádia, que nunca o vira, engrossou o coro do “sim”. E lá estávamos nós: com a luxuosa, agradável e principalmente animada companhia de minha mãe, em pleno Circo Voador. Lotado, o local presenciou uma eletrizante apresentação, com Benjor e sua Banda do Zé Pretinho tocando os sucessos que sempre levantam a galera mas, além disso, executando uma série de clássicos, daqueles escondidos dentro de sua maravilhosa discografia, o que, para um apaixonado por sua obra como eu (principalmente a dos anos 60 e 70), foi algo de pura surpresa e emoção.

E como não se tocar com um show que já começa com a benção a Ogum/São Jorge, de quem o cantor e compositor é filho e xará? “Jorge de Capadócia” abre os trabalhos no terreiro. Com a graça recebida, é hora de começar o show de fato. E não podia ser mais entusiasmante, pois entra, em seguida, a música que dá nome ao competentíssimo grupo, o qual estava dedicado a “animar a festa” de verdade. Tal qual a primeira Banda do Zé Pretinho e reduzida daquela que vi nos anos 90 – quando contava com backing vocals, mais percussões e outra guitarra –, a formação agora tinha Lory, exímio no piano e teclados; Lucas Real, pulsante na bateria (posicionada ao lado do próprio Benjor e não atrás dele, pra ver a importância do ritmo da batida); Jean, no sax e flauta; Marlon, impecável no trombone; “Messiê” Nenê, eterno na percussão – e na empolgação! – e o mestre Dadi, também da formação original da Banda e de quem a palavra “baixo” já é um sinônimo. Mais com menos, pois além da qualidade dos músicos, os arranjos, quando não aqueles conhecidos, se adequaram perfeitamente às melodias. Isso ficou evidente principalmente nas mais “obscuras” do repertório, como o medley reggae com “Take it Easy My Brother Charlie”, “Bebete Vãobora” e, pra matar do coração um diletante benjoriano como eu, "Zumbi".

Entre as famosas, “Ive Brussel”, “Fio Maravilha”, “País tropical/Spyro Gyro” e “O dia em que o sol declarou seu amor pela terra”. Impossível ficar parado. A linda “Santa Clara Clareou” emendou, como de costume, com “Zazuêra”. Benjor recuperou – e aí está mais um dos ganhos da banda enxuta e afinada – o arranjo que fizera como no seu memorável disco "10 Anos Depois", de 1973, quando junta a “mutante” “A Minha Menina” com “Crioula” e “Cadê Teresa". Semelhante ele fez quando tocou outros dois pout-pourris "Por Causa de Você, Menina/ Chove Chuva/ Mas que Nada" e a sequência de “Que Pena” com a fantástica "O telefone tocou novamente” (toque do meu celular) e, pra desmontar a pessoa de vez, “Que Nega é Essa”.

As surpresas não parariam por aí. Do aclamado "A Tábua de Esmeralda", de 1974, não foi apenas o sucesso “Os alquimistas estão chegando” – que teve, inclusive, direito a uma parte com versos em francês. Querido pelo próprio compositor, o disco teve várias faixas tocadas, como “Eu Vou Torcer”, “Magnólia”, “Menina Mulher da Pele Preta”, a já citada “Zumbi” e, melhor ainda, o psycho-samba-funk “O Homem da Gravata Florida”. A relação sentimental de Benjor com seu cancioneiro estava evidente neste set-list, pois além dessas ele ainda sacou a lúdica “O Circo Chegou” (do disco “Ben”, de 1971) e, pra arrebatar de vez, uma enfurecida versão de outro de seus clássicos: “Umbabarauma”, música que tem um dos melhores riffs da história (seja do rock ou da MPB). Com a devida potência dada pelo baterista Lucas e o baixo reforço do baixo de um “novo baiano” como Dadi, o Babulina mandou ver num samba-rock pesado de dar vergonha em muito roqueiro. Espetacular! Momento do show que não sabia se sambava, assistia, chorava ou dava uma de headbanger – podia escolher qualquer reação que todas se justificavam.

Leocádia e eu no Circo Voador
curtindo o showzaço de Jorge Benjor
Benjor pediu uma paradinha de cinco minutos para recuperar o ar (afinal, mesmo em ótima forma, já passa dos setentinha), tempo muito bem aproveitado pelo pianista Lory, que executou solo Tom Jobim (“Passarim”), Stevie Wonder (“Isn’t She Lovely”) e outra bem bonita também mas que não identifiquei. Depois de baixar um pouco os ânimos com as já mencionadas “O circo chegou” e “Eu vou torcer”, sambas melodiosos, a animação voltou de vez na segunda parte do espetáculo. Teve até homenagens ao “síndico” Tim Maia, tanto no cover de “Do Leme ao Pontal”, dos grandes sucessos do amigo e parceiro, quanto em “W/Brasil”, responsável por trazer de volta Benjor nos anos 90 na qual que, quando a galera cantava “Tim Maia”, Benjor completava com: “Tá lá em cima!” e com “Tá no céu!”. Dos 90 também teve “Alcahol”, que convenientemente veio na sequência de “Os Alquimistas...”.

A imortal “Taj Majal”, numa versão bem parecida com a de "África Brasil", de 1976 (em que Dadi e Nenê integravam o banda), pôs tudo mundo pra sacolejar. Porém, antes foram chamadas ao palco, como já é de tradição nos shows de Benjor, dezenas de moças da plateia para a execução de “Gostosa” (“Gostosa/ Ela é gostosa/ O problema é que ela mora muito longe/ Bem que minha mãe avisou/ Bem que minha mãe avisou...”). Uma verdadeira bagunça divertida, que quase pôs o roadie à loucura de tanta mulher que subiu no palco. Mas tudo era festa, pois o clima era de verdadeira comunhão e alegria em torno da música. Energia total.

Como disse no início, foi daqueles shows que se sai com o corpo sacudido e a alma lavada. Um privilégio rever este, que é um dos músicos mais originais da música moderna. Um cara capaz de fundir com a maior naturalidade samba, rock, baião, funk, jongo, reggae, xote, jazz e rodos os ritmos afro-latinos que se possa imaginar. Sua música é a tradução do que, nos anos 70, o festival de jazz de Montreux esperava da música contemporânea. 20 anos depois, pude, numa ocasião tão especial, comprovar que ele continua sendo o maior performer do Brasil e que, sim, ele um “bandleader” e respeitado não só na sua casa e por seus “amigos e camaradinhas”, mas todos que, como eu, o amam e o admiram. E tem como não respeitar? Mais de 70 e mandando ver em duas horas de show com todo aquele suingue e vivacidade? Não é pra qualquer um. Longa vida ao Babulina. Salve, simpatia! Salve, Benjor!


trecho de "Fio Maravilha" executada no show do Circo Voador






quinta-feira, 10 de março de 2011

Novos Baianos - "Acabou Chorare" (1972)

Lá vem o Brasil bater à minha porta


 
Acima, a capa original de 1972,
e abaixo, a do relançamento em 1984
“Um heavy-samba que misturava
os mestres da MPB
com os sons internacionais
resultou num dos melhores discos
da história da música pop nacional.”
Nelson Motta



Era só um grupo de hippies doidões que, na utopia de viver em uma comunidade de “paz e amor”, saiu em bando da Bahia para se socar em um sítio em Vargem Grande, no Rio de Janeiro, estado onde a indústria fonográfica de fato acontecia naquele início de anos 70. Almejavam ganhar a vida tendo como inspiração seus ídolos do rock: Jimi Hendrix, Janis Joplin, Beatles, Mama’s & The Papa’s e por aí vai.
Num Brasil tricampeão de futebol e em plena ditadura de AI-5, os “heróis da resistência” e também baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso recém voltavam do exílio em Londres. Os festivais, sufocados, já não tinham a mesma efervescência político-cultural. Nas rádios, o predomínio do pop mezzo-caipira mezzo-brega mezzo-romântica (ou seja: para tentar agradar a todo mundo) da dupla Antonio Carlos & Jocafi não desagradava aos militares, e isso era o que importava. O movimento hippie, assim como qualquer outra manifestação artística e cultural, não tinha a menor voz naquele cenário (a ver a repressão ao tropicalismo). Ou seja: aquela turma estava fadada a cair no esquecimento.
Até que um dia, ainda morando na cidade, aparece na porta do apartamento da galera um senhor sério de terno e gravata. Era a “cana”? O cheiro do baseado tinha incomodado tanto assim os vizinhos? Depois de muito se amontoarem para espiar pelo olho-mágico, perceberam de quem se tratava: era simplesmente o Brasil que lhes batia à porta. Ah! O outro nome do Brasil é João Gilberto, caso não saibam. E a turma de ripongos – formada por Baby Consuelo (vocal, percussão), Paulinho Boca de Cantor (vocal, percussão), Pepeu Gomes (guitarra, violão solo, craviola, arranjos), Dadi (baixo), Jorginho (bateria, bongô, cavaquinho), Baixinho (percussão e baixo), Bolacha (bongô) e liderada por Moraes Moreira (vocal, violão base, arranjos) e Luiz Galvão (composições) – era a banda Novos Baianos.
Formado ainda em Salvador, em 1968, os Novos Baianos lançariam um ano depois seu disco de estreia, “Ferro na Boneca” que, embora o relativo sucesso comercial, não podia ser repetido para um segundo trabalho. A fórmula roqueira já não condizia com o que a mídia e nem os próprios músicos ansiavam. Eram talentosíssimos: Moraes e Galvão, criativos compositores; Pepeu, o primeiro virtuose da guitarra brasileiro; Baby, uma intérprete irreverente e moderna; Dadi, um baixista de mão cheia. Mas sentiam que precisavam de sangue novo.
Foi então que, naquela aparição divina, o “velho baiano” trouxe-lhes o dendê que faltava na receita. A bossa nova, que o João Gilberto ajudara a cunhar em 1958 com Tom Jobim e Vinícius de Moraes, além de modernizar o samba, diminuindo seu compasso e adicionando toques do cool jazz americano, tinha impregnada na sua estrutura melódica e harmônica toda a tradição do samba, do maxixe aos standards da Rádio Nacional. Quer dizer: o exemplo da bossa de João Gilberto vai além da música: é o reconhecimento de um Brasil etiologicamente desenvolvido enquanto força artística. E os Novos Baianos captaram isso. Com o talento e experiência que tinham, em 1972, eles entraram no estúdio da Som Livre sob o comando de Eustáquio Sena para criar o disco que hoje é um dos mais importantes da música popular brasileira: “Acabou Chorare”.
A veia brasileira já diz a que veio de cara, abrindo o disco com “Brasil Pandeiro” numa versão histórica do samba de Assis Valente (composição de 1940, imortalizada na voz de Carmen Miranda) incluída no repertório por indicação de João Gilberto. Ali já estava tudo pelo o que a banda passou a ser reconhecida a partir de então: a fusão incrivelmente harmoniosa e orgânica do regional e do universal, onde tudo é samba ao mesmo tempo em que é rock, que é baião, que é frevo, que é pop. E com rebeldia, bom humor e pegada!



Em seguida, talvez grande obra-prima dos Novos Baianos enquanto conjunto: “Preta Pretinha”. Uma balada de mais de seis minutos que inicia apenas com voz e violões brejeiros, e que vem num crescendo aonde os outros elementos da banda vão sendo adicionados aos poucos até um final emocionante em que todos brilham. Aliás, esta é uma das características do disco: ser extremamente bem executado, a ver a bela instrumental "Um Bilhete Pra Didi", de pura técnica e inúmeras referências melódicas que vão de Hendrix a Jacob do Bandolim.
Há "Mistério do Planeta", "A Menina Dança" e “Tinindo Trincando”, canções pop com levada de MPB e um trabalho de guitarra excepcional de Pepeu Gomes. Mas é mesmo a raiz afro-brasileira que dá o tom: em "Swing de Campo Grande" (“Minha carne é de carnaval/ Meu coração é igual”) e “Besta é Tu” a galera chama no pé! Esta última, claramente surgida de um momento de discussão que acabou dando samba.
A ligação com as raízes do Brasil, que João Gilberto tão bem traduziu na bossa nova na sua inaugural batida de violão e seu modo econômico mas completo de cantar, entraram na música dos Novos Baianos de forma consistente e definitiva. Mas não com exageros. E esta releitura inteligente do moderno e do antigo fez com que “Acabou Chorare” se alinhasse ao tropicalismo, tão carente de um novo gás naquele instante. “Nós vimos o tropicalismo de Gil e Caetano e acreditamos que era possível criar algo novo”, disse Galvão certa vez.
O fato é que esta obra abriu portas para que bandas como Paralamas do Sucesso, Pato Fu, Rappa e Skank tenham hoje terreno para misturar o pop que vem de fora com ritmos brasileiros sem que se lhes torçam a cara por isso. Com justiça, “Acabou Chorare” é considerado discoteca básica essencial, tanto que consta como primeiríssimo da lista dos 100 discos fundamentais da música brasileira pela revista Rolling Stone.
Mas falta falar ainda da verdadeira pérola do disco: a faixa-título. Se em “Preta Pretinha” o talento de todos é chamado em cena, na faixa “Acabou Chorare” são apenas os violões de Moraes e Pepeu que brilham. E isso basta. Bossa nova total, esta delicada canção de ninar, além da linda melodia (e o rico solo de Pepeu ao final), traz na letra uma novidade na música brasileira enquanto estilo. Antes mesmo de grandes obras musicais para crianças como “A Arca de Noé” de Vinícius ou “Os Saltimbancos” de Chico Buarque, ela versa palavras do imaginário lúdico infantil com uma pureza e inocência que suscitam imagens incomuns e até surreais. Neologismos, palavras que se encadeiam pela sonoridade, frases “sem sentido”. Afinal, quem não há de se emocionar com os singelos versos que dizem que a abelhinha “Faz zunzum e mel”, ou que ela “Tomou meu coração e sentou/ Na minha mão”?
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“Acabou Chorare” têm como “musa” a filha de João Gilberto, a hoje internacionalmente conhecida Bebel Gilberto, com 6 anos na época. A coisa toda surgiu do convívio dos dois com a banda. O título, algo como “parou o choro”, era dito por Bebel e vem da confusão que ela fazia entre os idiomas português, espanhol e inglês por conta dos períodos de residência no México e EUA, além do Brasil.
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Foi João Gilberto também quem, um dia, sentado na rua ao lado de Moraes e Galvão, ao ver uma linda mulata passar caminhando com “seus requebros e maneiras”, disse aos dois a frase que inspirou a música Moraes, gravada em 1979: “olha lá, gente: lá vem o Brasil descendo a ladeira!”
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FAIXAS:
1. "Brasil Pandeiro" (Assis Valente)
2. "Preta Pretinha" (Luiz Galvão / Moraes Moreira)
3. "Tinindo Trincando" (L. Galvão / M. Moreira)
4. "Swing de Campo Grande" (Paulinho Boca de Cantor / L. Galvão / M. Moreira)
5. "Acabou Chorare" (L. Galvão / M. Moreira)
6. "Mistério do Planeta" (L. Galvão / M. Moreira)
7. "A Menina Dança" (L. Galvão / M. Moreira)
8. "Besta é Tu" (L. Galvão / Pepeu Gomes / M. Moreira)
9. "Um Bilhete Pra Didi" (Jorginho Gomes)
10. "Preta Pretinha (reprise)" (L. Galvão / M. Moreira)

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Ouça:
Novos Baianos Acabou Chorare




por Daniel Rodrigues

terça-feira, 9 de agosto de 2011

“Filhos de João - O admirável mundo novo baiano”, de Henrique Dantas (2011)




Assisti neste fim de semana a “Filhos de João - O admirável mundo novo baiano", de Henrique Dantas, um divertido documentário sobre os Novos Baianos, a grande banda de MPB dos anos 70. Revolucionários, os Novos Baianos – leia-se Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Dadi, Paulinho Boca de Cantor e toda uma enorme trupe que formava a banda – foi responsável pela manutenção do movimento tropicalista no Brasil pós-AI5 e pela revalorização dos elementos tradicionais da música brasileira, mesclando-os com muita propriedade e qualidade ao rock de Hendrix , Stones , Beatles , Janis e outros.
Para mim, adorador de música brasileira e da banda, ver um filme como este é um deleite. E fiquei extremamente feliz quando percebi já no título uma afinidade de pensamento, uma vez que há alguns meses escrevi para este blog uma resenha sobre o melhor disco dos Novos Baianos, “Acabou Chorare”, de 1971. Intitulada "Lá Vem o Brasil Bater à Minha Porta" , abordei justamente a relação da banda com o “velho baiano” João Gilberto e o episódio em que ele, numa aparição tão inesperada quanto mágica no apartamento dos músicos no Rio, levou àquele grupo de hippies “os requebros e maneiras” do samba, ensinando-lhes a batida de violão da bossa nova e abrindo a cabeça da galera para os ritmos brasileiros, tornando-se pai espiritual da galera. Impressionou tanto que Moraes, por exemplo, chegou a cogitar de não tocar nunca mais depois daquilo! A narrativa do filme, bem estruturada, ressalta com assertividade este ponto, mostrando como os Novos Baianos passaram a introduzir o toque afro-brasileiro no seu estilo por indicação de João, mudando para sempre o modo de fazer rock e de fazer música popular no Brasil e no mundo.
Há revelações interessantes, como a de que o nome artístico Baby Consuelo foi atribuído a então Bernadete Dinorah inspirado no de uma personagem prostituta do filme “udigrudi” brasileiro “Caveira My Friend” (de Álvaro Guimarães, 1970). Também, a ideia da música “Acabou Chorare” – primeira bossa nova composta por aqueles jovens roqueiros e talvez a composição mais linda do grupo –, que surgiu das histórias que João Gilberto contava sobre sua pequena filhinha, a hoje cantora mundialmente conhecida Bebel Gilberto. E se quem escuta a música já se emociona (eu, em pleno cinema, me peguei às lágrimas), imagina o sentimento do autor! E foi isso que Moraes confessou: de tão impactado pela beleza e emoção de ter feito aquela canção, passou quatro dias sem dormir, tocando repetidas vezes a obra-prima que acabara de criar.

Baby, Galvão, Moraes e Paulinho,
o núvleo da banda
Ponto negativo é a não-participação de Baby. Corrigindo: é Baby do Brasil, hoje evangélica, quem não participa, pois se negou a gravar entrevistas. Mas a Baby Consuelo, ah, essa estava lá! Magrinha e extrovertida, ela aparece em filmes da época como no documentário para a TV alemã, realizado na metade dos anos 70, em que canta, radiante, “A Menina Dança”. Uma doçura. João Gilberto é outro que não aparece – a não ser numa imagem fotográfica. Mas é citado por quase todos os entrevistados: Dadi, Tom Zé, Rogério Duarte, Moraes, Galvão, Pepeu e outros. Sua figura é tão essencial na história dos Novos Baianos que sua aparição é até dispensável. Mais do que isso: a não-aparição de João, se não proposital, acaba adensando ainda mais a aura mística que ele tem para com todos da MPB moderna, e o filme capta super bem essa reverência.
“Filhos de João” é mais um bom registro documental tal como vem se fazendo no Brasil nos últimos 10 anos, período em que o cinema nacional avançou muito neste formato, resgatando momentos e personagens importantes como a Velha Guarda da Portela, Dzi-Croquettes, Paulinho da Viola, Oscar Niemeyer, jornal Sol, Wilson Simonal e vários outros. Agora, é a vez de saudar os Novos Baianos, no “passado, presente, particípio”, como diz naquela letra.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Jorge Ben - "Solta o Pavão" (1975)



"Pavão Real, Pavão Dourado
Procedente da África e da Índia [...]
Sua cauda, de uma plumagem azul. verde e ouro
Formando um lindo e majestoso leque
Na Idade Média
O pavão, pela sua figura bonita e livre
Era visto como uma ave real e da sorte." 
Jorge "Sanctus" Ben,
do texto da contracapa original do disco 


Na metade dos anos 70, Jorge Ben, que ainda não tinha se tornado o Benjor que assumiria a guitarra elétrica no lugar do violão, já havia alcançado tudo que um artista popular podia. Estouro no disco de estreia, altas e baixas vendagens, idolatria e ostracismo, adesão a movimentos (sambalanço, soul, tropicalismo), participação e vitória em festivais, hits nas paradas, gravações internacionais e até briga judicial por plágio (vencida por ele sobre um Rod Stewart metido a esperto). Mas principalmente, desde que começara a carreira, o “Babulina” foi responsável pela talvez mais extensa e irreparável sequência de discos de um artista na indústria fonográfica no Brasil. Somente nos primeiros cinco anos daquela década, enfileirou os álbuns “Força Bruta”, “Negro é Lindo”, “Ben” e “10 Anos Depois”, isso sem falar dos registros ao vivo com o Trio Mocotó e dos clássicos absolutos “Gil & Jorge/Xangô Ogum” e “A Tábua de Esmeralda”. Com estes dois, principalmente o segundo, o autor de “Chove Chuva” atingia o ápice da criatividade e forjava uma linguagem totalmente peculiar, com melodias de alta inventividade, harmonias despojadas, estilo de cantar próprio e ritmo, muito ritmo. Seu samba-rock, carregado de referências ao esoterismo, à religião, à filosofia e a uma visão humanista do mundo, é igualmente sustentado na cultura popular da ginga, do país tropical, do amor, das moças bonitas e da cordialidade.

O que faltava, então, a um artista consagrado por crítica e público? Explodir. Isso que é “Solta o Pavão”: uma explosão de sonoridade, de balanço, de misticismo, de religiosidade, das paixões. Aquilo que Ben trouxera em “A Tábua...” se intensifica neste seu último disco antes da adoção de vez da guitarra, ocorrido um ano depois noutro disco emblemático, “África Brasil”. Está nele toda a bruta brasilidade de Ben, encharcada de matizes africanas e influenciada por elementos da cultura pop, do funk norte-americano ao gospel, da soul ao blues, do rock ao jazz. “Solta...”, assim, com seus riffs inspiradíssimos, sua percussão carregada e arranjos modernos, tem o despojamento e o peso de um disco de rock – sem dever nada em densidade a outros de roqueiros daquele ano, como “Fruto Proibido”, de Rita Lee, ou “Novo Aeon”, de Raul Seixas –, mas ainda com um pé no Jorge Ben do “Samba Esquema Novo”: o da batida percussiva no violão de nylon, malemolente, suingado, malandro, enraizado no morro.

A abertura dignifica todas essas qualidades: um riff de violão como um Neil Young acústico e a batida potente da percussão ao fundo. Prenúncio do arrasador samba que irá começar: “Zagueiro”, uma ode ao “anjo da guarda da defesa” no futebol. Quem sustenta a coesa cozinha, além da Admiral Jorge V Group (João “Van da Luz”, piano; Dadi “Aroul Flavi”, baixo; João “Zim” da Percussão, ritmo; e Gusta “Von” Schroeter, bateria) são os Cream Crackers, grupo formado por ninguém menos que o percussionista e arranjador Zé Roberto, o não à toa intitulado Mestre Marçal e um jovem pernambucano já muito afim com o samba chamado Bezerra da Silva. Todos comandados pela batuta de Jorge “Sanctus” Ben.

O pensamento sobre o ser humano ganhava suma importância na obra de Ben àquela época. Se o filosofia alquimista do Egito de 1.300 a.C. fora responsável pela letra de “Hermes Trismegisto Escreveu” em “A Tábua...”, agora Ben volta sua abundante musicalidade para dar cores aos densos escritos do filósofo oficial da Igreja da Idade Média: São Tomás de Aquino. Capaz de musicar até bula de remédio (e torná-la suingada!), Ben adapta trechos do complexo livro “Suma Teológica”, escrito no século XIII, e o transforma num samba cheio de molejo. Em “Assim Falou Santo Tomás de Aquino” ele consegue imprimir no hermético texto escolástico frases sonoramente cantaroláveis, como: “Senhor, que tens tido feito o nosso refúgio” ou “Estão enganados, puramente enganados/ Estão errados, puramente errados”.

O clima de devoção sambada continua na sequência numa das melhores do disco – e, por que não, da carreira de Ben. “Deus todo poderoso eterno pai da luz, da luz/ De onde provem todos bens e todos dons perfeitos/ Imploro vossa misericórdia infinita, infinita/ Deixai-me conhecer um pouco de vossa sabedoria eterna”. Esses versos dão a ideia da contrição contida na lindíssima "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros", misto de prece franciscana e canto humanista. De ritmo vibrante e contagiante, passa longe de ser piegas. Pelo contrário, a música tem uma aura especial, tanto por causa da melodia quanto pelo coro alto e intenso, que traz o mesmo “Ôôô” de “Os Alquimistas Estão Chegando”, de “A Tábua...”, porém, usados em outro tom para dar uma atmosfera de canto litúrgico. Ben, como em todo o disco, está solto, tocando o violão com total desembaraço, brincando com vocalizes e melismas e inventando cantos na hora da execução.

Por falar em brincadeira, a divertida "Cuidado com o Bulldog" é, além disso, um show de musicalidade. Começa em um ritmo de rock com o band leader esmerilhando o violão e Dadi mandando ver numa base de baixo no melhor estilo Novos Baianos, ambos acompanhados por uma bateria que abusa dos rolos. Até que, de repente, um breque, e a música dá uma virada para se transformar num samba gingado daqueles de não deixar ninguém parado. A impressão é de farra, mas os músicos estão fazendo um samba-jazz do mais alto nível. Ben aproveita para se divertir com o tema, lançando grunhidos como se estivesse sendo mordido pelo cão (um desses, sampleado pela Nação Zumbi no início de “Cidadão do Mundo”, do disco “Afrociberdelia”, de 1996) e bolando frases engraçadas como: “Bulldog, mandíbulas de ouro” ou “Bulldog não perdoa, Bulldog morde”. Registro ao vivo no estúdio – assim como tudo dos álbuns dele à época –, lembra a naturalidade e a descontração das jam sessions com Gilberto Gil do então recente “Gil & Jorge”. Impagável.

"O rei chegou, viva o rei", com sua linha de metais tropicalista, segue o conceito letrístico de prosa medieva (“Então vierem os cavaleiros com seus uniformes brilhantes/ Garbosos e triunfantes/ Um abre-alas lindo de se ver/ E logo atrás/ Separado por lanceiros/ Vinha a guarda de honra, orgulhosa, polida, agressiva/ Porém bonita/ Anunciando e protegendo o rei”), estilo que serviria, entre outras semelhantes de Ben, de inspiração a Caetano Veloso para escrever “Alexandre”, do disco “Livro”, de 1997. Também prosada e tomada de suingue, "Luz Polarizada" (“Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Ó meu filho/ Lava as escórias com a água tri-destilada/ Pois aquele que forja a falsa prata/ E o falso ouro/ Não merece a simpatia de ninguém”) lembra a psicodelia de “O Homem da Gravata Florida”, do disco anterior. Ben, totalmente à vontade com os companheiros no estúdio, chama-os para o “La, la, la, la, la, la” do refrão dizendo: “Quero ver o coral agora!”

Mas se tem algo que está no mesmo pé que a religiosidade e o esoterismo em “Solta...” são elas: as musas. Como um menestrel medieval apaixonado, Ben canta para várias delas: "Dumingaz", um samba “maravilha” e “sensual”, como classifica o próprio enquanto canta; “Luciana”, a “canção singela” feita pra lembrar-se do seu trovador quando se ouvir no rádio (clara homenagem a Gil por "Essa é pra Tocar no Rádio", que gravaram juntos em "Gil & Jorge" um ano antes); "Jesualda", samba-rock de riff puxado no assovio que conta a história da mulata saída da favela que ganhou a vida no exterior; e "Dorothy", outra irretocável, com destaque para o arranjo de flautas de Ugo Marotta.

“Solta...” ainda tem a gostosa "Se Segura Malandro", tema do filme homônimo de Hugo Carvana (na linha de “O Namorado da Viúva”, de “A Tábua...”) e um dos mais inspirados temas da história da música brasileira: “Jorge da Capadócia”. Um hino da MPB, regravado por Caetano, Fernanda Abreu e Racionais MC’s, que virou um símbolo do próprio autor, xará do Santo Guerreiro e filho de Ogum, o correspondente ao santo católico no Candomblé pelo sincretismo. Musicando a oração de São Jorge, Ben atinge um clímax como apenas em especiais momentos de sua carreira conseguira – talvez, parecidas, só “5 Minutos” e “Zumbi”, faixas que cumprem o fechamento dos discos “A Tábua...” e “África Brasil”. Isso porque, ao evocar as preces ao Jorge dos Céus, o Jorge da Terra o faça com tamanha potência que a música acaba ganhando uma dimensão mais profunda, etérea e espiritual. O Coral do Kojac entoa o título da canção repetidas vezes num samba marcado e intenso sob um riff de guitarra (sim, de guitarra!). Porém, a exaltação se arrefeça para, aí sim, serem declamados os emocionados versos: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem/ Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem/ Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal”. Ben, com sua voz oscilante, funde canto de escravos à dicção do morro. Um teclado entra para fazer a base, enquanto o violão sola e a percussão, estilo jazz-fusion, desenha um compasso arrastado e assimétrico. Para terminar, retorna a melodia da abertura, porém ainda mais enérgica, mais volumosa, mais expressiva. Um desbunde.

Guardadas as devidas proporções, “Solta...” é o “Magical Mystery Tour” de Jorge Ben: ao mesmo tempo em que é a continuidade natural de uma obra-prima revolucionária (“Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, no caso dos Beatles, “A Tábua...”, para o músico brasileiro), também a consolida, redimensionando-lhe as ideias e conceitos originais. Assim, tanto este quanto o da banda inglesa passam longe de serem meros “volumes 2” das obras-irmãs, haja vista que são tão únicos quanto estas e até mais ousados. “Solta...” é, sim, um feliz acontecimento da música brasileira de um momento em que Ben, figura única no panteão da MPB, está com toda vitalidade e alegria. Um artista pleno, que concebeu, na linha evolutiva de sua própria obra, o mais livre e completo trabalho. Majestoso e colorido como a cauda de um pavão.

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FAIXAS:
1. "Zagueiro" - 3:05
2. "Assim Falou Santo Tomaz de Aquino" - 3:04
3. "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros" - 3:16
4. "Dorothy" - 3:58
5. "Cuidado com o Bulldog"  - 2:53
6. "Para Ouvir no Rádio (Luciana)" - 4:20
7. "O rei chegou, viva o rei" - 3:03
8. Jorge de Capadócia"  - 3:53
9. "Se Segura Malandro" - 2:53
10. "Dumingaz" - 3:30
11. "Luz Polarizada"  - 2:20
12. "Jesualda" - 4:06
todas as composições de autoria de Jorge Ben

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OUÇA O DISCO:
Jorge Ben - "Solta o Pavão"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Tribalistas - "Tribalistas" (2002)


“Já nasceu o Deus Menino/ E as vaquinhas vão mugindo/ Blim blom, blim blom/ Blim blom nylon”. 
Da canção “Mary Cristo”

Quando, em 2002, “Já sei Namorar” se tornou o último hit de verão brasileiro com qualidades musicais e “Velha Infância” era ouvida tanto na boca de jovens quanto de senhoras donas de casa, estava claro que “Tribalistas”, o disco, já nascia popular e clássico. Também pudera: um supergrupo formado por Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte tinha tudo para dar certo, como de fato deu. Era como se os três principais polos culturais do Brasil se juntassem na figura destes três artistas: São Paulo, por meio do concretismo multimídia arejado de Arnaldo; o mítico Rio de Janeiro, com sua tradição da MPB e do pop nacional pela via de Marisa; e a Bahia, cuja ancestralidade afro-indígena em cores rítmicas e melódicas se materializava através de Carlinhos. Juntos eles traziam a capacidade de potencializar o que há de melhor na história da música popular brasileira como nunca antes acontecera. Mas se como banda era então algo inédito, a construção desta simbiose entre os três vinha de muito tempo.

A antenada Marisa foi a catalisadora do “anti-movimento” tribalista. Foi ela a principal intérprete a revelar as potencialidades dos parceiros compositores antes mesmo de suas carreiras-solo: Arnaldo, ainda com os Titãs, em 1991, no disco “Mais”, no qual lhe gravou três músicas inéditas, e Carlinhos a partir de “Verde Anil Amarelo Cor-de-Rosa e Carvão”, de 1994, antes deste se tornar um popstar internacional. Naturalmente, os três perceberam várias sintonias e complementaridades entre si. A química do grave da voz de Arnaldo e com a leveza mezzo de Marisa, por exemplo, já está lá no primeiro disco dele, “Nome”, de 1992, em “Alta Noite” e “Carnaval”. Com Carlinhos, o estreitamento da relação veio em seguida com as gravações de “Maria de Verdade” e “Segue o Seco”, marcos na carreira dela. Juntos os três aparecem pela primeira vez em “Memórias, Crônicas e Declarações de Amor” na canção “Amor, I Love You”, composição de Carlinhos e Marisa de 2000, cantada por ela e que tem a declamação poética de Eça de Queiroz na voz característica de Arnaldo. Mas antes mesmo outros sinais “tribalistas” já se anunciavam, como no duo dela com Carlinhos em “Hawaii e You” e “Busy Man”, de “Omelete Man”, de 1998 (que tem, aliás, produção dela), e em “O Silêncio” (1996), em que o titã e o líder da Timbalada cantam juntos.

A partir daí, só cresceu a irmandade e eles nunca mais se separaram. “Paradeiro”, “Água Também é Mar”, “Não Vá Embora”, “Universo ao meu Redor”, “Doce do Mar”, “Não é Fácil”, “Talismã” e uma dezena de músicas são fruto de suas colaborações nos anos seguintes. Quando decidiram, então, se unir como banda, a identidade e a sinergia entre eles já era tamanha que bastava apenas dar um nome ao projeto: “Tribalistas”. Enfim, “chegou o tribalismo no pilar da construção”. Na execução, os percentuais de participação de cada um são quase iguais. Quando não realizam as mesmas funções, proporcionalmente compensam em outras. Multi-instrumentista, Carlinhos tem a voz menos destacada, mas é quem naturalmente comanda os arranjos. Marisa, além de ser a produtora, é a figura central com seu violão, seu canto e sua liderança. Arnaldo, por sua vez, influencia menos nos arranjos, mas é a cabeça criativa de várias letras e ideias sonoras, além de também dar forma às melodias vocais. Isso tudo ajudado pela qualidade musical de Dadi e Cezar Menezes.

Perfeito do início ao fim em sonoridades, timbres, arranjos, produção e até duração (13 faixas que não se estendem mais do que 42 minutos), o disco tem, além da memorável capa desenhada em chocolate pelo artista visual Vik Muniz, a fineza das interpretações e, principalmente, das composições do trio, melodistas de mão cheia. Neste quesito, tanto Marisa quanto Arnaldo e Carlinhos colaboram diretamente. “Carnavália”, que abre o disco com um ar nobre, é um híbrido de estilos dos três. Uma levada de violão de influência ibérica ao estilo de Milton Nascimento, com som amplo e cheio, se une a vozes em uníssono e elementos de samba e eletrônicos, coisas que os três valorizam e se valem amplamente em suas obras. "Um a Um", logo em seguida, entra rasgando numa balada ardente e apaixonada (“Muito além do tempo regulamentar/ Esse jogo não vai acabar/ É bom de se jogar/ Nós dois/ Um a um”), também resultado da integração compositiva do trio.

Arnaldo, "Zé" Marisa e Carlinhos: soma de talentos sem igual
na história da música brasileira moderna
A já citada “Velha Infância” é, com certeza, uma das mais belas canções de amor do cancioneiro nacional de todos os tempos, num nível de “Você é Linda”, “Quase um Segundo” ou “Como É Grande o Meu Amor por Você”. E isso gente do cacife de Nelson Motta e Jô Soares disseram! Sensível e cantarolável. A letra (“Eu gosto de você/ E gosto de ficar com você/ Meu riso é tão feliz contigo/ O meu melhor amigo é o meu amor”) é de uma simplicidade tão tocante, que atinge uma pureza de sentimento que nem Roberto e Erasmo dos bons tempos conseguiram se assemelhar. Depois, a gostosa e suingada "Passe em Casa", parceria deles com Margareth Menezes – e que também empresta sua voz –, é outro sucesso que pega facilmente quem a escuta: “Passam pássaros e aviões/ E no chão os caminhões/ Passa o tempo, as estações/ Passam andorinhas e verões/ Passe em casa/ Tô te esperando, tô te esperando”.

Uma sequência mais cadenciada emenda a “arnaldística” “O Amor é Feio”, em que aparece a tal tabelinha vocal entre ele e Marisa já experimentada por ambos ao longo dos anos; outra balada romântica, "É Você", tão característica de Marisa quanto de Carlinhos  - mas não sem os toques de Arnaldo, como os versos “Deita no meu leito e se demora” ou “Um ritmo, um pacto e o resto rio afora”; e “Carnalismo”, melodiosa como uma delicada caixinha de música (“No rastro do seu caminhar/ No ar onde você passar...”) e onde funciona novamente o vocal Arnaldo/Marisa.

A natalina “Mary Cristo”, mesmo coassinada por Arnaldo e Marisa, é claramente produto da criatividade do baiano da turma. Hábil em compor melodias lúdicas, é Carlinhos, inclusive, quem praticamente põe a primeira voz. A letra, que mescla termos em inglês com português com total fluidez (“Mary, Mary, Mary Cristo/ Cristo, Cristo, Mary, Mary”), como já fizera em “Amor, I Love You”, “Everybody, Gente” ou “Uma Brasileira”, é uma característica dele. Também, o uso de onomatopeias com finalidade tanto melódica quanto poético-sintática (“Carneirinho me dá lã, mé” e “Blim blom”) é igual ao que ele já apresentara em “Meia Lua Inteira” ou “Amantes Cinzas”.

"Anjo da Guarda" mantém o clima quase infantil da anterior, porém amplificando a ideia muito afeita a Arnaldo (“Direitinho”, “As Árvores”, “Pequeno Cidadão”) e também a Marisa (“Borboleta”, “O Céu”). "Lá de Longe", uma das mais brilhantes do disco, traz uma atmosfera etérea e circular, como um mantra. Tanto Marisa quanto Carlinhos e Arnaldo vão intercalando os vocais, formando um encadeamento perfeitamente homogêneo dado pelo arranjo e pela técnica de estúdio. E que melodias e letra bonitas! (“Longe, lá de longe/ De onde toda beleza do mundo se esconde/ Mande para ontem/ Uma voz que se expanda e suspenda esse instante/ Lá de longe...”).

Bem Marisa novamente, “Pecado É lhe Deixar De Molho” é uma bossa nova muito parecida com os que eles produziria em “Infinito Particular”, de 2006. Quase acabando o disco, contrariando, aliás, as regras da indústria fonográfica de destacar a música de trabalho entre as primeiras para facilitar o consumo, vem “Já sei Namorar”. Colocação, entretanto, que não a impediu de se tornar um enorme sucesso de público e crítica, tendo recebido Grammy Latino de "Gravação do Ano", Prêmio Multishow de Música do Ano, e MTV Video Music Brasil 2003 pela escolha da audiência. Bastante Arnaldo em concepção, é quase uma continuação de “Não Vou me Adaptar”, do repertório dos Titãs, porém trazendo como tema a fase da adolescência agora não como o medo de tornar-se adulto e o desconforto do corpo em transformação, mas já experimentando a sexualidade e o desejo de individuação de uma maneira espontânea e bonita. A letra diz: “Já sei namorar/ Já sei beijar de língua/ Agora só me resta sonhar/ Já sei onde ir/ Já sei onde ficar/ Agora só me falta sair”. Dançante e melodiosa ao mesmo tempo, a música foi parar na playlist de qualquer festa ou lugar que se frequentasse à época do seu lançamento. Não à toa, pois é uma doçura de canção.

Arnaldo entoa palavras-chave que determinam não apenas a faixa que dá título ao trabalho e ao grupo como também marca o encerramento do disco. Um ritmo pop tribal típico dele, mas que conta com as mãos de Marisa e Carlinhos, obviamente, fecha o álbum num clima animado e despojado. “Os Tribalistas já não querem ter razão/ Não querem ter certeza, não querem ter juízo nem religião/ Os Tribalistas já não entram em questão/ Não entram em doutrina, em fofoca ou discussão”. E o refrão, adorável, é daqueles de cantar acompanhando-os: “Pé em Deus/ e fé na Taba”.

O disco foi lançado com um DVD – um sucesso de audiência na TV Globo –, que traz a mesma sequência de faixas sendo executadas pela banda e que quase não se percebe diferença para com as gravações em estúdio tamanha é a qualidade técnica desses músicos. No vídeo, dá para perceber algumas nuances do processo criativo dos Tribalistas e a irmandade entre eles, espírito este que transparece para os sons que produzem. Tanto é verdade que essa afinação entre os três se repetiu 15 anos mais tarde com igual êxito em “Tribalistas 2”. Por isso, mais do que apenas a faixa “Mary Cristo”, este álbum tem muito a ver com Natal, haja vista este amor entre os três, amor de irmãos que se respeitam, se admiram e se complementam entre si com suas semelhanças e diferenças. Dois homens e uma mulher: Arnaldo, Carlinhos e Zé.

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Clipe de "Já sei Namorar", do DVD "Tribalistas"


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FAIXAS:
1. "Carnavália" - 4:16
2. "Um a Um" - 2:41
3. "Velha Infância" (Antunes, Brown, Monte, Davi Moraes, Pedro Baby) - 4:10
4. "Passe em Casa" (Antunes, Brown, Monte, Margareth Menezes) - 3:54
5. "O Amor É Feio" - 3:11
6. "É Você" - 2:51
7. "Carnalismo" (Antunes, Brown, Monte, Cezar Mendes) - 2:36
8. "Mary Cristo" - 3:00
9. "Anjo da Guarda" - 2:47
10. "Lá de Longe" - 2:17
11. "Pecado É lhe Deixar de Molho" - 2:58
12. "Já Sei Namorar" - 3:16
13. "Tribalistas" - 3:23
Todas as composições de autoria de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown, Marisa Monte, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Tribalistas - "Tribalistas"

Daniel Rodrigues

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Caetano Veloso - Teatro da Ospa - Porto Alegre (1992)


O conhecimento que adquiri sobre cultura é, hoje, para um adulto de 42 anos, bem mais assimilável diante dos olhos alheios do que quando eu era jovem. Naquela época, meu gosto e entendimento por cinema e música causavam espanto, visto que não correspondiam com o de muito adulto, quanto menos ao de outros jovens da minha idade. Como um guri de 13 anos, negro e de classe média é capaz de gostar (e entender!) daquilo que somente a classe média alta (e branca) detém? Enfim, não se escapa ileso disso no Brasil. Considerando a devida bagagem adquirida de lá para cá, posso dizer que, na juventude, já me mostrava interessado e conhecedor de muita coisa – principalmente, em comparação a pessoas então da minha idade, muito mais preocupados em ter grana para gastar na balada do fim de semana. Eu, um ET entre meus pares, queria saber mesmo era de filmes e de música. Meus gastos se voltavam a locadoras, discos e a conhecer coisas.

Caso de Caetano Veloso, a quem havia descoberto fazia alguns anos mas que, naquele 1992, completando 50 anos de vida, se revelava fortemente a mim através do seu então novo disco, “Circuladô”. Pela MTV, via seguidamente o ótimo clipe da música de trabalho “Fora da Ordem”. Mas, principalmente, minha curiosidade se despertava por causa da antenada Rádio Ipanema. Pela rádio, minha escola musical-cultural, ouvia não apenas esta música, mas também outras joias daquele disco, como a pedrada crítico-social “O Cu do Mundo”. Fui atrás do disco, óbvio. Adquiri-o em K7, trabalho que se tornou, até hoje, um dos meus preferidos de Caetano e sobre o qual já falei aqui no blog. Assim. quando o baiano anunciou que vinha a Porto Alegre para a turnê do álbum, não pestanejei. Sem ninguém tão empolgado quanto eu para ir ao show, fui sozinho.

Seria o primeiro sem a companhia de ninguém, nem pais, nem irmão, nem amigo. Só eu. Era comum ir às sessões especiais de cinema sozinho, mas a um show, que acabaria tarde da noite, nunca. E longe de onde era minha casa, na zona Sudeste de Porto Alegre. De ônibus, por cerca de 1 hora, me desloquei até o alto do Bom Fim/Independência em direção ao antigo e hoje desativado Teatro da Ospa, onde ocorreria o show. Com a devida preocupação de minha mãe, fui. Lembro que tinha fila Av. Independência afora, passando pela frente da casa da Cruz Vermelha, uma novidade para mim, que não frequentava aquelas imediações. Já ali, minha figura impressionava aqueles que assistiriam junto comigo dali a algumas horas o memorável show de Caetano. Lembro-me claramente que um senhor de meia-idade, de óculos e provavelmente fã do músico desde quando era adolescente, perguntou a mim com admiração que idade eu tinha.

Caetano e a grande banda comandada por Jaques Morelenbaum
Já lá dentro, na plateia superior esquerda, num bom lugar para quem não tinha dinheiro suficiente para pagar o valor para se assistir lá de baixo, posso dizer que foi naquela feita que me deparei pela primeira vez com a maestria do pessoal dessa geração (ele, Chico, Paul, Milton, Stevie, Bethânia, Stones, Gil, etc.). Não apenas a qualidade musical, mas a maestria de saber montar set-lists. Cruzes! “Circuladô”, o disco, já trazia músicas que garantem uma apresentação de alto nível se entremeadas com sucessos antigos e outras canções mais populares, o que normalmente se faz repertórios de shows. Mas essa “turma” sabe ir além disso. Caetano e sua ótima banda (Luiz Brasil, guitarra, violão e Synthaxe; Marcos Amma e Welington Soares, percussões; Dadi, baixo; Marcelo Costa, bateria; e Jaques Morelenbaum, cello, além da produção do show) articulam um show cujo encadeamento das músicas é tão bem construído que virou, não à toa, referência na obra do próprio Caetano. 

Equilibrando hits, clássicos, versões, textos, letra de idiomas diferentes e releituras suas e de outros compositores, além das faixas do disco que motivava a turnê, o show é uma sequência de tirar o fôlego de qualquer fã ou aspirante a isso, como eu o era ali. Momentos mais enérgicos, outros, mais cândidos; outros, ainda, mais populares ou mais conceituais. Mas sem jamais perder o ritmo narrativo. Aliás, como não se embasbacar com uma sequência inicial como esta?: Abre-se com a clássica “A Tua Presença” num novo e magnífico arranjo; engata uma versão bossa-nova “banquinho-violão” de “Black or White”, de Michael Jackson, expediente que o próprio Caetano já inovara poucos anos antes ao fazer o mesmo com “Billie Jean”, também autoria do Rei do Pop, mas que, ali no show, pegava todo mundo de surpresa; e uma virada sem pausa para um rock minimalista com o texto inédito “Os Americanos”, este, não cantado, mas lido por seu autor, que, além da qualidade inequívoca de compositor, é também um escritor de mão cheia.
Não lembro bem onde entrava no show “Fora da Ordem”, mas com certeza era na primeira metade em se tratando de música de trabalho do disco novo. O fato é que, logo em seguida, emenda-se outra sequência incrível e inesperada: a linda “Um Índio” – em uma versão melhor que a original dos Doces Bárbaros –, a novelística "Queixa" e uma assombrosa "Mano a Mano", clássico tango de Carlos Gardel com Morelenbaum ao cello e Caetano apavorando no vocal. Mas não terminava aí: só na voz e violão, vêm uma trinca com a assertividade dissonante de "Chega de Saudade"; uma surpreendente versão de "Disseram que eu Voltei Americanizada", do repertório de Carmen Miranda; e “Quando eu Penso na Bahia", em que Caetano torna Ary Barroso muito caymmiano.

A bela arte da capa do disco ao vivo,
que fazia cenário para o show visto
na Ospa
Intercalando um que outro dos ótimos temas de “Circuladô” – como “A Terceira Margem do Rio" (das raras dele e de Milton Nascimento), “Itapuã” e a já citada “O Cu do Mundo” –, Caetano traria ainda outras pérolas consagradas (“Você é Linda”, “Os Mais Doces Bárbaros", “Sampa”) e mais surpresas. Uma delas, é a versão para "Oceano", então recente sucesso de Djavan que emocionou a galera. Outra: uma estupenda versão para “Jokerman”, de Bob Dylan, ponto alto do show e que lhe confere o começo de uma segunda e derradeira parte. Mas não terminava ali (Caramba!). Tinha mais coelhos naquela cartola, pois o espetáculo trazia também duas revelações. Primeiro, a de que a querida “O Leãozinho” havia sido escrita, nos anos 70, justamente para um dos integrantes daquela banda, Dadi, o que resultou numa execução desta somente com o seu contrabaixo acompanhando a voz de Caetano. A outra revelação também é relativa aos anos 70, mas consideravelmente mais melancólica visto que resultante dos reflexos da Ditadura Militar. Antecipando o que traria em seu livro-ensaio “Verdade Tropical”, de 1997, Caetano conta para a plateia, antes de cantar “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”, que Roberto e Erasmo Carlos a escreverem em sua homenagem, e que conheceu a canção recém-composta numa visita de Roberto a ele e Gil no exílio, em Londres, ocasião aquela em que se emocionou muito.

Para mim, que conhecia de cabo a rabo “Circuladô”, ficou claro por que, de todas, tanto“Ela Ela”, arranjada e tocada em estúdio com Arto Lindsay, como “Lindeza”, com Ryuichi Sakamoto aos teclados, igualmente sui generis, cada qual com suas particulares performances irreproduzíveis à altura sem esses músicos específicos, não se executaram. Além de compreensíveis ausências, ambas nem de longe fizeram falta ao show, que, antes de tudo, foi um show de repertório. Tão marcante foi tal apresentação, que se tornou o primeiro de uma série de discos ao vivo de Caetano, o CD duplo “Circuladô Vivo”, algo que passou a acontecer com regularidade a partir de então após cada disco de estúdio lançado. A qualidade técnica da gravação, que se tornava disponível à época no Brasil pós-Collor, certamente colaborou para isso. Porém, antes de qualquer coisa, o tratamento dado pela também iniciante parceria entre Caetano com Jaques Morelenbaum é crucial para o sucesso do álbum ao vivo, um dos mais celebrados da carreira de Caetano. Se no estúdio os Ambitious Lovers Arto e Peter Scherer vinham numa ótima tabelinha com o baiano desde “O Estrangeiro”, de 1989, o que se adensaria em “Circuladô”, no palco, era a mão versátil do maestro líder da Banda Nova de Tom Jobim que ditava a musicalidade. Por influência dele, "Terra" (que ficou de fora do CD, assim como outra clássica, "Baby"), talvez a melhor melodia de Caetano, ganhou no show a talvez sua melhor versão das várias que o autor já registrara ao longo da carreira.

Não tenho idade para ter ido a shows célebres de Caetano em Porto Alegre, como o da turnê do disco “Cinema Transcendental”, em 1979, ou o de 1972, no Araújo Vianna, de onde, após encantar a plateia, partiu com figurino e tudo rumo ao histórico e único encontro que teve com Lupicínio Rodrigues, no Se Acaso Você Chegasse, na Cidade Baixa. Mas a ver pela repercussão que este show de 1992 teve, tanto com o lançamento e sucesso do CD ao vivo como também de um especial para a TV Manchete e um documentário dirigidos por Walter Salles Jr. e José Henrique Fonseca – à época, em VHS –, era impossível Caetano não conquistar de vez aquele pré-adolescente da periferia porto-alegrense, que, encantado com o que vira, nem se abalou por andar sozinho tarde da noite de volta para casa. Aliás, ele nem lembra como e quando chegou em casa. Mas que chegou, chegou – para alívio de sua mãe. Se não, ele não estaria aqui agora, redigindo este texto recordado da grande noite em que viu Caetano Veloso pela primeira vez ao vivo.

Show "Circuladô Vivo" (1992)

Documentário "Circuladô Vivo" (1992)


Daniel Rodrigues