Surgidos em meio ao movimento Tropicalista do final dos anos 60, o trio paulistano Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee, os Mutantes, inspirados pelos Beatles traziam à música brasileira uma proposta absolutamente original e inovadora, agregando à psicodelia desta raiz rock, ritmos regionais brasileiros e incorporando toda a linha de pensamento e ação daquele movimento artístico no que dizia respeito à quebra de regras, padrões, formatos e paradigmas.
Em seu disco de estreia de 1968, “Os Mutantes”, a banda levava ao extremo seus preceitos: em um trabalho brilhante desfaziam a estrutura das canções, teatralizavam a música, desvirtuavam gêneros e misturavam linguagens artísticas.
“Panis et Circenses” a faixa que abre o disco, com sua letra surreal e arranjos 'aloprados' do maestro Renato Duprat, é um exemplo claro deste rompimento de estrutura mudando de forma várias vezes ao longo de sua duração, incorporando ruídos, elementos publicitários, sinais sonoros, até acabar abruptamente interrompendo a encenação de um jantar em família.
“A Minha Menina” que vem na sequência, de autoria de Jorge Ben, traz uma introdução com o próprio mandando todo mundo tossir e ainda sua colaboração na própria música com aquele violão ímpar cheio de ritmo, numa batucada-rock com a guitarra de Sérgio Dias bem alta, aguda e destacada.
Quem ouve “Adeus Maria Fulô”, um retrato crítico e cru da vida no sertão nordestino e da fuga pra cidade grande, num primeiro momento pode-se deixar enganar pela instrumentação percussiva e pela condução de cuíca, mas logo vai perceber tratar-se na verdade de um falso-samba regionalista nesta canção que, talvez, na sua essência seja a mais rock de todo o disco.
Outro destaque é “Bat Macumba”, de Caetanoe Gil. Bem ritmada e embalada com uma guitarra estridente solando o tempo todo, é daquelas canções cuja letra genial, cheia de simbologias, fonologias, ícones e chaves é tão significativamente formal que é possível lê-la e perceber sua estrutura concretista visual mesmo musicada e acompanhar sua composição e decomposição. Batmacumba iêiê batmacumbaoba Batmacumba iêiê batmacumbao Batmacumba iêiê batmacum Batmacumba iêiê batmacum Batmacumba iêiê batman Batmacumba iêiê bat Batmacumba iêiê ba Batmacumba iêiê Batmacumba iê Batmacumba Batmacum Batman Bat Ba Bat Batman Batmacum Batmacumba Batmacumba iê Batmacumba iêiê Batmacumba iêiê ba Batmacumba iêiê bat Batmacumba iêiê batman Batmacumba iêiê batmacum Batmacumba iêiê batmacumba Batmacumba iêiê batmacumbao Batmacumba iêiê batmacumbaoba
A divertida (mas séria) “O Senhor F” é quase teatro mambembe; “Le Premier Bonheur du Jour” com sua letra em francês seria charmosa com o vocal sensual de Rita se não fossem as fungadas ao fim de cada verso; “O Relógio” é extremamente bem construída no seu experimentalismo bem ao estilo "Sgt. Peppers"; e a versão de “Baby” (outra de Caetano) com sua guitarra rasgada, é cantada de maneira irreverente, quase debochada, por Arnaldo Baptista. No mais, temos a excelente “Trem Fantasma”, a experimental e psicodélica “O Relógio”; o jazz "Tempo no Tempo"; e a finalização com a instrumental de linhas orientais “Ave, Gengis Kahn”.
Disco fundamental para o rock brasileiro, para a música popular brasileira como um todo e por que não para um cenário mais amplo, a observar-se a recente descoberta e surpresa de artistas internacionais com o som dos Mutantes. Sua presença já se fazia obrigatória nesta seção fazia algum tempo. Demorou, mas finalmente ei-lo aqui. Carimbo de qualidade ÁLBUM FUNDAMENTAL do ClyBlog.
********************************************* FAIXAS: 1. "Panis et Circenses" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) 3:38 2. "A Minha Menina" (Jorge Ben) 4:42 3. "O Relógio" (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 3:30 4. "Adeus Maria Fulô" (Humberto Teixeira, Sivuca) 3:04 5. "Baby" (Caetano Veloso) 3:01 6. "Senhor F" (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 2:33 7. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) 3:10 8. "Le Premier Bonheur du Jour" (Frank Gerald, Jean Renard) 3:36 9. "Trem Fantasma" (Arnaldo Baptista, Caetano Veloso, Rita Lee, Sérgio Dias) 3:16 10. "Tempo no Tempo (Once Was a Time I Thought)" (John Philips - Versão: Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 1:47 11. "Ave Gengis Khan" (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias) 3:48 *************************** Ouça: Os Mutantes 1968
Quando se fala que o brasileiro tem memória curta, essa é uma grande verdade. Principalmente, quando se refere aos importantes artistas da música. Talentos da black music como Cassiano, Noriel Vilela, entre outros, caíram numa espécie de amnésia. Infelizmente (e surpreendentemente) também é o caso de Neyde Zis - uma das maiores cantoras do País do gênero, considerada por alguns especialistas a melhor.
Conhecida como “A Musa”, “Diva da Black”, “A menina mulher”, Neyde era sinônimo de sucesso no final dos anos 1960. Não é a toa que tinha como parceiros Tim Maia e Jorge Ben (que depois colocou o "Jor"). Lamentavelmente, após uma meteórica e estrondosa carreira, caiu no ostracismo musical e no desconhecimento popular.
No entanto, canções de qualidade são eternizadas e basta uma audição para relembrar (para alguns) ou descobrir (para outros), o quão é incrível a sonoridade e a inconfundível voz de Neyde Zis. O disco “Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Zis” mostra essa riqueza de sons.
Neste registro, a cantora encerra sua "trilogia" musical. Tentou retomar a carreira nos anos 1980, com um disco honômino, mas não teve a mesma criatividade e sucesso de anos anteriores. Em “Dó, Ré, Mi”, que pode ser percebido pela capa, mostra o quanto de experimentalismo e de psicodelia (típicos da época) estão contidos no disco.
A obra - que tem Neyde nos vocais, no violão e nas composições - conta com grandes participações, como dos seus velhos e eternos parceiros: Tim Maia, Tony Tornado e Jorge Ben. Além das contribuições de Erasmo Carlos, Arnaldo Baptista (dos Mutantes) e do Trio Mocotó.
Neyde Zis no programa do apresentador Sílvio Santos em 1968
Na faixa "Machado de Assis era negão, sim", a letra é uma crítica ácida que, por ironia do destino, aborda a falta da memória do povo brasileiro. Além disso, valoriza tanto a literatura como da negritude no País. O Trio Mocotó contribui nesta música com um excepcional ritmo, incorporando muito swing do samba rock. Já em “Mãe preta”, Neyde mais uma vez faz um show à parte. Além da voz principal, gravou os três backing vocals, mostrando a sua facilidade de alcançar notas agudas até as mais graves.
Em “Meu nego” (tendo relatos que essa música foi dedicada ao Jorge Ben), tem o mesmo nos vocais e no violão. Já em “The black is on the table” é a vez de Tim Maia aparecer em cena, com seu inglês e voz impecáveis. Tim toca bateria nesta canção, um dos raros registros da carreira do “Sindico” neste instrumento. Aliás, esta música também faz uma crítica social, expondo-a literalmente na “mesa” para todos ouvirem.
Na “Barato total”, Arnaldo Baptista empresta suas “veias psicodélicas” no piano. Também foi responsável por samplers, com ruídos difíceis de detectar do que se tratam.
A “Ogulabuiê” é uma espécie de “revival” de Neyde no período em que cantava junto com Tony Tornado na BR3. A “Diva da black” fez questão que esta música soasse como nos tempos que participava do grupo, quando era uma mera coadjuvante. Nesta, ela divide os vocais com o próprio Tony. Na “Uh, Uh” tem Erasmo Carlos tocando guitarra. O Tremendão colaborou para que esta faixa fosse a mais rock de todas.
A “Ezistência/rezistência” é a canção que abre o disco, com início melancólico e finaliza com um samba de raiz tradicional do Rio de Janeiro. Já a “Zumbi” fecha esta preciosidade brasileira. Curiosamente, na letra, Neyde parece ter tido um pressentimento do seu declínio, cantando: “minha liberdade já se foi, sou uma escrava da dor. Meu quilombo parece longe, seja lá meu destino para aonde for”.
O esquecimento pode perdurar anos, mas não é eterno. O que é permanente é o talento de Neyde Zis, a grande musa da black music do Brasil. Recordar é viver, principalmente para apreciar a boa música.
A psichodelic era dos anos 60,
sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John Lennon, Paul McCartney, Jimmi Hendrix, Sid Barret, Ray Davies, Brian Jones, Arthur Lee, Arnaldo Baptista, Lou Reed, Rocky Erikson, Frank Zappae mais uma
dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um
trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes,
também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock.
Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da
música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao
fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson
poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta
sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito
temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros
aspectos.
“Pet Sounds”,
diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian,
um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era
danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai
era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada
tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra
lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia
perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento
vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que
os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se
pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.
E conseguiu.
“Pet Sounds”
é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys.
Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The
Beach Boys' Christmas Album”, trabalho
anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e
condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à
teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já
começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e
lúdico do harpschord executa uma ciranda,
que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de
outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por
aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês,
a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravorepete o tempo três vezes
até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste
entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura
do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock.
Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda.
Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e
coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo
em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância
de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e
agudos.
Um dos
principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a
concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na
harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos
XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais
impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala
diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até
eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se
de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na
quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por
quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais,
guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim),
Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais,
órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas
preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa
inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na
complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado
que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de
sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos
rufares.
Outro trunfo
do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para
com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes
de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue
atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian
que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha
de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas
combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos
elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se
nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a
voz de Love, que, limpa e sem overdub,
desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação
grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't
Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o
andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como
num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na
orquestração.
Por falar em
orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos
lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada
por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em
contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se
destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos
segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o
fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: “I’m waiting for the
day when you can love again”, violinos e cellos,
sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem
juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e
instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam
para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around
and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”,
em dois. Estupendo.
A segunda
especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a
faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade
de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão,
reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada
de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é
instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o
conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com
mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de
madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de
orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.
Depois do tom
médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na
introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que
se estende, ambos marcados pelo tic-tac
de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl
alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em
contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica
tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a
caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com
um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o
tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.
Para os
apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o
final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que
vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez
o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música
moderna como "Like a Rolling Stone", "Bolero", "A Day in the Life", "Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e
suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque
do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros,
igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos
lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a
emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma
orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam,
criando um efeito onírico tal como um Cantus
Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em
louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos
tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos
e dissesse: “só Eu sei”.
“I Know
There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com
mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra
base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música
barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de
espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos
tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes
menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco
de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes.
Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra
obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”.
Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que
equilibra temple blocks, bateria e
tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em
termos de música pop: o electro-theremin,
sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou
nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como,
inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta
sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a
faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito,
Deus e homem fossem a mesma matéria.
Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.
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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.
Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde Zombies, Pink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.
É mais uma daquelas artistas que a gente parece nunca estar preparado para perder.
A gente sabe que um dia esses mitos vão, a própria Rita já vinha bem debilitada, em virtude de um câncer, mas era difícil aceitar que uma hora aconteceria.
Bom, mas temos que aceitar. Temos que entender, nos consternar. Nos conformar com tudo o que já nos proporcionou, o legado de atitude que deixou e com a obra que construiu.
Obra que começou com "Fruto Proibido" de 1975, embora a cantora já tivesse dois álbuns lançados numa época meio enrolada com sua ex-banda, os lendários Mutantes, no curso de sua separação com Arnaldo Baptista e sua expulsão do grupo.
Uma pena, se formos considerar tudo o que construiu com os Mutantes, mas uma sorte considerando tudo o que ela podia fazer e mostrou-se capaz a partir dali.
"Fruto Proibido" é uma das grandes obras do rock brasileiro! Disco que escancara o rock de Rita, sua atitude, destrava sua ânsia por dizer coisas, por se revelar, por se mostrar mulher cheia de personalidade, reivindicações, desejos.
Disco que já traz alguns dos grandes hits de sua carreira como "Agora Só Falta Você", que soa quase como um recado para sua ex-banda ("Um belo dia resolvi mudar /e fazer tudo o que eu queria fazer /me libertei daquela vida vulgar / que eu levava estando junto a você") ; a irreverentíssima "Esse tal de Roque Enrow", parceria com "O Mago" Paulo Coelho; a auto-reveladora e feminista "Luz Del Fuego", a desafiadora faixa que dá título ao disco, "Fruto Proibido", ("quem foi que disse que eu devo me cuidar"); e a que se tornaria praticamente um "hino" de sua carreira, "Ovelha Negra", alcunha que, de certa forma, sempre a acompanhou por sua rebeldia e atitude.
Só nos resta agradecer por coisas como essa, por álbuns como este, por suas letras, por seu doboche, por ter sido até o fim essa ovelha negra inspiradora para todos os rebeldes.
Vai em paz, Rainha Mutante!
**********************
FAIXAS:
1. "Dançar pra não Dançar" (Rita Lee) 4:13 2. "Agora só Falta Você" (Luis Sérgio Carlini / Rita Lee) 3:25 3. "Cartão Postal" (Paulo Coelho / Rita Lee) 3:25 4. "Fruto Proibido" (Rita Lee) 2:04 5. "Esse Tal de Roque Enrow" (Paulo Coelho / Rita Lee) 3:53 6. "O Toque" (Paulo Coelho / Rita Lee) 5:20 7. "Pirataria" (Lee Marcucci / Rita Lee) 4:29 8. "Luz del Fuego" (Rita Lee) 4:42 9. "Ovelha Negra" (Rita Lee) 5:39
Topei, dia desses, com o livro
“Discoteca Básica: 100 personalidades e seus 10 discos favoritos” e, blogueiro como sou, com seção dedicada a
álbuns importantes, além de apaixonado por música e colecionador
de CD's e LP's, fiquei extremamente interessado. Trata-se de uma
série de listas elaboradas por 100 personalidades, em sua maioria
ligadas ao mundo da música, que destacam, cada um, 10 álbuns
musicais importantes de alguma forma em suas vidas. Por mais que
tivesse me dado coceira pra comprar, até hesitei um pouco em comprar
imaginando que as indicações dos convidados pudessem meramente cair
naqueles clichês tipo “progressivo é mais técnico e o resto é
pobre”, ou “sou do metal e escolhi 5 AC/DC e 5 Iron Maiden" ou
“Beatles é melhor que tudo” e simplesmente saírem nomeando 5
entre os 10, 7 de 10 ou mesmo 100% da lista só de Beatles. Mas não.
Um que outro até manifestou a intenção de relacionar Beatles nas
10 posições mas felizmente meus temores não se confirmaram. No
caso do Fab Four, em especial, tiveram, por óbvio, um número de
indicações proporcional à sua importância de maior banda de todos
os tempos, mas felizmente as listas mostraram-se bem diversificadas,
curiosas e contendo dicas bem interessantes. Os convidados em sua
maioria são de alguma maneira ligadas ao mundo da música, como os
músicos Arnaldo Baptista, Péricles Cavalcanti, Dinho e Andreas Kisser, por exemplo, mas também encontramos artistas visuais,
produtores, executivos de gravadoras, e ex-VJ's da MTV como Didi,
Gastão, Edgar e Thunderbird.
O que torna o livro mais interessante é
que a proposta do organizador, Zé Antônio Algodoal, não foi a de
necessariamente listar 10 discos qualitativamente ou em ordem de
preferência. Seus entrevistados podiam utilizar o critério que
quisessem e essa liberdade de escolha resultou em listas muito
bacanas. Questões afetivas, cronológicas, de formação,
profissionais, primeiras aquisições, parcerias, influências, os
critérios adotados são os mais diversos, alguns convidados
preferindo comentários mais genéricos, abrangentes, outros mais
detalhados, pontuais, disco a disco. Alguns relatos como o da
francesa Laetitia Sadier da banda Stereolab são muito amplos,
bonitos e completos, por outro lado, pessoas de quem gostaríamos de
ter alguma consideração a mais sobre suas escolhas, como no caso do
apresentador Jô Soares, foram extremamente econômicos, deixando uma
breve observação ou às vezes nenhuma.
A paixão demonstrada pelo músico
Hélio Flanders em suas descrições; o envolvimento do diretor de
cinema e teatro Felipe Hirsh; as metamorfoses da ex-diretora da MTV
Brasil, Ana Buttler; o caso dos primeiros dez discos que o Gordo
Miranda ganhou do pai; o texto criativo e bem escrito de Xico Sá; e
a emoção de Airto Moreira ao ser apresentado ao álbum “Miles
Ahead” pela cantora Flora Purim, no relato de Rodrigo Carneiro, são
alguns dos pontos mais legais do livro e que não podem deixar de
serem lidos. Como curiosidades, me chamou a atenção o fato do álbum
“Boys Don't Cry” do The Cure, que eu, fã, nem considero dos
melhores, aparecer bastante entre os votantes; a surpreendente
'disputa' acirrada entre o "Força Bruta", muito votado, e o
"Tábua de Esmeralda", que no fim das contas prevaleceu; e o fato
de que alguns dos meus xodózinhos como o "Psychocandy" do Jesus
and Mary Chain, que eu considero a melhor coisa que eu já ouvi, e o
"Loveless" do My Bloody Valentine, que eu costumo dizer que seria
o disco que eu levaria para uma ilha deserta, aparecem com bastante
frequência no livro em diversas listas, inclusive na do próprio
organizador. No mais, muitos dos meus favoritos aparecem com grande
destaque entre os mais escolhidos como, por exemplo, o "Nevermind"
do Nirvana, o "Transa" do Caetano e o "Tábua de Esmeralda" de Jorge Ben.
Elogios também para a parte gráfica
do livro muito caprichada, cuja arte, meio retrô e saudosista, faz
referência, desde a capa, a vinis, toca-discos e equipamentos de som
antigos.
Para quem gosta de listas, como eu,
especialmente aqs de música, é um livro que desperta a vontade de
montar as suas próprias, com critérios diferentes, de modo que se
consiga contemplar todos aqueles discos que, de certa forma quase
como filhos, e tem um lugar reservado no coração.
INTERIOR, NOITE EXTERIOR, DIA, ESTÚDIO DE GRAVAÇÃO. NARA, GAL, GIL, CAETANO, TORQUATO, CAPINAN E OS MUTANTES. FRENTE AO MICROFONE. OBEDECEM AO MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT. UNÍSSONO.
TODOS – As coisas estão no mundo, só que é preciso aprender.
CORTA.”
Trecho do texto do encarte original de “Tropicália”
“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.“
Trecho do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, 1928.
A filosofia antropofágica que o modernista Oswald de Andrade concebeu em finais dos anos 20 traz no cerne uma revolução conceitual cuja difícil assimilação perdura ainda nos dias de hoje. Como criar uma arte brasileira e original ao deglutir, temperado com os sabores tropicais, aquilo que vem de fora? Oswald converteu o ato de canibalismo ameríndio do colonizador numa metáfora de combate ideológico. Noutras palavras, devorar e digerir todas as influências estrangeiras que sirvam para fortalecer a própria cultura e, assim, recriá-la.
Desafiador, por óbvio. Afinal, isso significa, antes de saber identificar o que é de fora, entender o que pertence a si próprio. Complicado de concretizar, ainda mais em terras tupiniquins historicamente subjugadas e inferiorizadas. Houve quem topasse a briga, contudo. E não foi um alguém, mas um grupo. Em 1967, Caetano Veloso e Gilberto Gil, filhos da santa Bahia imortal e seguidores da bossa-nova de João Gilberto, organizaram o movimento e orientaram o carnaval. Sob a égide das ideias oswaldianas, criaram aquilo que pertinentemente se chamou de “Tropicália”, disco e movimento, que estão completando celebráveis 50 anos. Vestidos de parangolés por dentro e por fora, eles, mais os representantes da Paulicéia Desvairada Mutantes e Rogério Duprat, os conterrâneos baianos Gal Costa e Tom Zé, a carioca Nara Leão o os poetas tão nordestinos quanto universais Torquato Neto e Capinan, fizeram aquilo que o continental, desigual e rico Brasil moderno ensejava: estabelecer uma verdadeira ponte entre o rural e o urbano, a alta e a baixa cultura, o bom e o mau gosto. Vicente Celestino dialogava, sim, com rock britânico, e Carmen Miranda não ficava abaixo da avant-garde. O mesmo para com Luiz Gonzaga em relação à Disney, ou os sambistas do morro à linhagem clássica do Velho Mundo. Tudo junto e misturado. Era mais que um desejo: era uma necessidade.
Caetano e Gil à época do Tropicalismo, as duas principais cabeças do movimento
De fato, a conturbação sociológica a que os anos 50 e 60 se acometiam não era pouca: Guerra do Vietnã, ameaça de desastre atômico, ascensão das ditaduras nas Américas, Crise dos Mísseis, assassinato de Kennedy, corrida espacial, revolução sexual. No Brasil, se a bossa-nova, a arquitetura de Niemeyer e o Cinema Novo colocavam o País no mapa mundial da produção intelectual – para além apenas da habilidade física de um futebol já bicampeão mundial àqueles idos –, os primeiros anos de Ditadura Militar anunciavam tempos cada vez mais sombrios de censura, perseguições, prisões, vigília, cerceamento e exílio – como acabaria por ocorrer com Caetano e Gil menos de dois anos dali. Os festivais espocavam de euforia e tensão. A cultura de massa começava a fermentar nas telas da tevê. Roberto Carlos, Elis Regina e Wilson Simonal movem multidões. Ao mesmo tempo, pairava no ar um clima de inquietação, medo e incertezas. E a antropofagia cultural caía como uma luva para compreender essa louca realidade brasileira.
“Tropicália” mostrava-se, então, como um acidente inevitável. Não tinha mais como fugir: era ir adiante sem lenço e sem documento enquanto o seu lobo não vinha."Tupi or not tupi", era essa a questão. Os acordes de órgão em clima litúrgico abrem o disco dando uma noção da complexidade que seguirá até o seu término. A missa pagã irá começar! É o início de “Miserere Nobis”, cuja letra de Capinan guarda em seu latim ecumênico ideias revolucionárias de igualdade social (“Tomara que um dia de um dia seja/ Que seja de linho a toalha da mesa/ Tomara que um dia de um dia não/ Na mesa da gente tem banana e feijão”) e de resistência (“Já não somos como na chegada/ O sol já é claro nas águas quietas do mangue/ Derramemos vinho no linho da mesa/ Molhada de vinho e manchada de sangue”).
A influência do rock psicodélico da época está totalmente presente, como na colegam das faixas, igual ao então recente e já referencial “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”. Mal “Miserere...” anuncia seu término, já começam a se ouvir estrondos intermitentes. É a percussão martelada de “Coração Materno”, a superversão do seresteiro Vicente Celestino pela ótica tropicalista. Inspirando-se na veia sinfônica dos Beatles (“She’s Leaving Home”, “Eleanor Rigby”, entre outras), mas superando-os em conceito, a música evoca a orquestração carregada de Duprat e o canto emotivo de Caetano para dramatizar (ainda mais!) a canção escrita nos anos 30, redimensionando seu caráter operístico. Novamente, a dialética clássico versus popular. Ao mesmo tempo, a nova leitura moderniza o antigo original, cuja certa breguice esconde um ar tragicômico, dando-lhe um caráter de seriedade que o faz parecer... ainda mais tragicômica! Fina ironia.
É a vez, então, dos Mutantes aparecerem pela primeira vez com “Panis et Circencis”, um dos hinos do movimento e tão importante no repertório que subtitula o projeto. A produção impecável e ousada de Manuel Berenbein põe os acordes do Repórter Esso – noticiário de radio e telejornalismo símbolo da cultura de massa daquele Brasil – antecipando a exótica melodia que vem a seguir, misto de balada medieval com cantata italiana. A letra faz aberta crítica às “pessoas da sala de jantar”, a burguesia alienada apenas “ocupada em nascer e morrer”. Metalinguística, lá pela metade da faixa, o coro de Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias é emulado como se o tape tivesse sido desligado. Um segundo momento na música traz solos de flauta e corneta e repetições de versos enquanto o andamento acelera para, em nova interrupção, entrar a ambiência de uma sala de jantar com pessoas à mesa, quando, enfim, tudo acaba sendo engolido de vez por um som agudo. Só no terceiro final, aí que a música acaba realmente. Como numa edição de um filme de Glauber Rocha ou um quadro de Hélio Oiticica, a fragmentação e a descontinuidade que traduziam os tempos confusos de então.
Nunca se vira nada igual na música brasileira (e nem mundial) até então.
Fragmentação na edição de"Terra em Transe", de Glauber Rocha, de 1967
Eis que dá a impressão de que tamanha subversão parece ser superada com “Lindoneia”, um bolero classicamente orquestrado e com a doce voz de Nara, símbolo da bossa-nova e do “bom gosto” consensual na música brasileira. Ledo engano. Inspirada numa tela do artista visual Robens Gerchman – aliás, autor da arte da capa do disco –, “Lindoneia” remonta a história de depressão de uma linda modelo que, diante da hipocrisia asfixiante da sociedade moderna, se suicida. “Despedaçados, atropelados/ Cachorros mortos nas ruas/ Policiais vigiando/ O sol batendo nas frutas/ Sangrando”. São as imagens que as retinas da jovem não conseguem parar de enxergar até que, fatalmente: “No avesso do espelho/ Mas desaparecida/ Ela aparece na fotografia/ Do outro lado da vida”. Sem precisar das famigeradas guitarras elétricas, combatidas pelos conservadores da MPB àqueles idos, a música é tão impactante e provocativa quanto o restante.
Na linha do que pautaria toda sua obra, “Parque Industrial”, de Tom Zé – que ainda gravaria o primeiro disco solo naquele ano –, é outra obra-prima de “Tropicália”. A sonoridade de bandinha marcial, como se celebrasse ignorantemente a industrialização do sentimento humano, é típica da ironia do baiano de Irará. Ele critica num só tempo as indústrias do entretenimento, dos bens de consumo e da comunicação, sem deixar de dar uns tapas na Igreja Católica: “Despertai com orações/ O avanço industrial/ Vem trazer nossa redenção”. E o refrão diz, impiedoso: “Pois temos o sorriso engarrafado/ Já vem pronto e tabelado/ É somente requentar/ E usar/ Porque é made, made, made, made in Brazil”.
O baião-exaltação “Geleia Geral” tem na poesia de Torquato e na brilhante melodia de Gil outro hino tropicalista, quase um ideário ali condensado. “Um poeta desfolha a bandeira/ E a manhã tropical se inicia/ Resplendente, cadente, fagueira/ Num calor girassol com alegria/ Na geleia geral brasileira/ Que o jornal do Brasil anuncia”. A letra carrega a complexidade cultural que a Tropicália descobria, como que tirando um véu das escondidas “relíquias do Brasil”:“Doce mulata malvada/ Um LP de Sinatra/ Maracujá, mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil/ Três destaques da Portela/ Carne seca na janela/ Alguém que chora por mim/ Um carnaval de verdade/ Hospitaleira amizade/ Brutalidade, jardim.” Brasilianista, carrega em seus versos Macunaíma, Sérgio Buarque de Hollanda, cultura de massa, diáspora africana, arte popular, folclore. Uma das mais belas letras do cancioneiro nacional.
Instalação "Tropicália", de Oiticica, de 1966, antecipando o movimento
Se a referencial bossa-nova carioca permeia toda a obra, como no sucesso “Baby” – aqui, na sua versão mais clássica – e "Enquanto seu Lobo Não Vem", genial em sua construção em contrapontos, o igualmente basal baião nordestino sustenta a dissonante "Mamãe, Coragem", outra joia da parceria Caetano/Torquato (“Mamãe, mamãe não chore/ Não chore nunca mais, não adianta/ Eu tenho um beijo preso na garganta/ Eu tenho um jeito de quem não se espanta”) cuja interpretação de Gal é irretocável. Novamente, um final abrupto que, junto de todos os outros elementos sonoros e simbólicos, dá feições não apenas musicais, mas também visuais e antropológicas à proposta tropicalista.
A poesia concretista-visual da letra de"Bat Macumba"
O passeio pela cultura brasileira está presente ainda na farra “Bat Macumba”, de letra claramente sintonizada com o concretismo de um dos padrinhos do movimento, Augusto de Campos, e cujo arranjo mistura os batuques de terreiro com as guitarras distorcidas do rock; na releitura histórico-musical de “Três Caravelas”; e na faixa que encerra apoteoticamente o álbum, "Hino ao Senhor do Bonfim", que se indica uma afirmação “baianística” dos seus mentores, também funciona como um interessante contraponto à música de abertura, “Miserere Nobis”: primeiro, a súplica e, depois, a elevação.
Caetano, Gil e a turma tropicalista já eram artistas populares tanto por suas obras musicais quanto pelas participações ativas em teatro, tevê e cinema. Mas é a partir desse projeto coletivo muito bem concebido e acabado que eles engendram uma revolução não somente em suas obras e carreiras, mas na cultura nacional. Nunca mais o Brasil foi o mesmo. Nunca mais o Brasil se viu da mesma forma. BRock, Black Rio, Lambada, Axé Music, Pagode, Mangue Beat: tudo teve (e seguirá tendo) o visto do Tropicalismo.
A pretensão modernista ainda hoje é digerida pelos dentes do Tropicalismo. Mesmo tão influente que foi e é, ainda lhe restam pedaços mal comidos sobre o prato – basta ver, hoje, o abismo que há entre Anitta e Criolo, dois influenciados. Por querer ou não, o movimento abriu caminho para a proposição de uma verdadeira identidade nacional, uma expressão brasileira salvadora. A Tropicália, em sua assimilação da antropofagia, fez o contrário dos inocentes índios quando os europeus lhes compravam com meros espelhos: dessa vez, foi o nativo quem apresentou o espelho para o forasteiro e lhe disse: “Olha só como eu sou”.
O Tropicalismo pôs o Brasil sobre um palco iluminado pelo sol dos trópicos e ornamentado com frutas e vegetação – com direito a mulatas rebolando e declamações de poesia ufanista. Sugeriu que o Brasil enxergasse a si próprio, que se lhe percorresse as matas, os sertões,os mangues, as praias e os morros. Conhecesse por dentro suas mansões, malocas, palafitas e ocas. Considerou admitir-se complexo, pois mestiço e pluricultural. Levantou a esperança da realização da alternativa alegre e sábia diante dos outros povos do mundo. “A alegria é a prova dos nove”, como já preconizava o Manifesto Antropofágico.
Se “o Brazyl não conhece o Brasil”, pois “nunca foi ao Brazil”, como disse certa vez Tom Jobim, a Tropicália propôs uma ruptura emancipadora a estes tristes trópicos. Ir a seu próprio encontro, mas não ao vento de caravelas, e sim, de expresso. De número 2222. No embalo do ritmo alucinante da modernidade para forjar o renascimento de uma nação. Como um (re)descobrimento do Brasil.
FAIXAS 1. "Miserere Nóbis" (Capinam, Gilberto Gil) – com Gilberto Gil - 3:44 2. "Coração Materno" (Vicente Celestino) – com Caetano Veloso - 4:17 3. "Panis et Circencis" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) - Os Mutantes - 3:35 4. "Lindoneia" (Caetano Veloso) – com Nara Leão - 2:14 5. "Parque Industrial" (Tom Zé) – com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e Tom Zé- 3:16 6. "Geleia Geral" (Gilberto Gil, Torquato Neto) – com Gilberto Gil - 3:42 7. "Baby" (Caetano Veloso) – com Gal Costa e Caetano Veloso - 3:31 8. "Três Caravelas (Las Tres Carabelas)" (Algueró Jr., Moreau. Versão: João de Barro) - Caetano Veloso e Gilberto Gil - 3:06 9. "Enquanto seu Lobo Não Vem" (Caetano Veloso) - com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Rita Lee - 2:31 10. "Mamãe, Coragem" (Caetano Veloso, Torquato Neto) – com Gal Costa - 2:30 11. "Bat Macumba" (Caetano Veloso, Gilberto Gil) – com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 2:33 12. "Hino ao Senhor do Bonfim" (Artur de Sales, João Antônio Wanderley) com Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Os Mutantes - 3:39
Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim
especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os
sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter
assistido ao documentário “Filme sobre
um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal.
Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir
os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”.
Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de
outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia
cultural recente da cidade.
Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia
competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a
história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no
final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente
toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais
ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional,
cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados
de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo
ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de
toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno
deste.
Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80.
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário
e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de
1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super
8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que
sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à
consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta
a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural
e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos
anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação
política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família
e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas
origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos
bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o
rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar
uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80,
quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana.
Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como
ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler,
João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).
Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do
cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda),
embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas
dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem
como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita,
mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências
estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos
saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti,
Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos
grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary
Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários
como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto,
deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos
jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).
Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade.
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da
juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o
pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes,
o hardcore d’Os Replicantes ou o
pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de
Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no
cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da
formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil,
que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a
de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O
negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.
E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente
quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou
culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como
fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim
significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais
moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”,
“desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um
sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua
estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do
município, e isso por causa de muita insistência.
Peninha, ferino e hilário.
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as
minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos
artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no
comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos
Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia
Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende
o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser
considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo
Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um
momento tão efervescente e interessante na cidade.
Sabemos que não se repetirá.
A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o
cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola.
Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma
engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito
menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente,
não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo
isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso
para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual
injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo,
na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade.
Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo
que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.
No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do
filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa
abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”,
a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o
mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar
narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode
cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo
contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente
como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana
Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são
de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto
Alegre de uma forma ou de outra como eu.
Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão
acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da
infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos
marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando
a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que
apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em
2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.