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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

John Lennon - "Plastic Ono Band" (1970)


 

por Roberto Sulzbach 

“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”
da letra de "God", de John Lennon

Em 11 de dezembro de 1970, John Lennon lançava sua primeira investida pós Beatles: o "Plastic Ono Band". Vinte e nove anos depois, em 11 de dezembro de 1999, este, que vos escreve, nascia, em um hospital da zona norte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Comemorar meu aniversário junto dessa obra chega a ser um motivo de orgulho. Um marco na música pop e um último prego no caixão do movimento hippie, o qual tinha o próprio Lennon como símbolo. O disco contou com Klaus Voormann, amigo desde a época que viveu em Hamburgo com o restante do Fab Four; Phil Spector, produtor e pianista; Billy Preston, também no piano; Yoko Ono, creditada como “ar” (Lennon depois explicou que ela montou a "atmosfera’ das músicas"); Ringo Starr, na bateria (por óbvio) e Mal Evans, creditado como “chá e simpatia”.  

Meu primeiro contato com a obra foi em uma das milhares de vezes que assisti Os Simpsons com o meu pai, em uma época que a série ainda era criticamente aclamada como uma grande paródia da sociedade americana do fim do século XX/início do XXI. O segundo capítulo da décima quinta temporada da série, traz o retorno de Mona, mãe ausente do personagem Homer (por ser uma hippie ativista contra grandes corporações em fuga desde o final dos anos 60) em um episódio comovente. Ao final, Homer é “abandonado” novamente por sua mãe e após ela o deixar, não haveria música melhor para sintetizar o momento que “Mother”.  

Julia Stanley, mãe de John, cedeu a guarda do filho, quando ainda era pequeno para sua irmã, por conta de denúncias de negligência com o próprio filho. O pai de Lennon, Alfred, era um marinheiro, que raramente se encontrava em Liverpool e não viu o filho crescer. Julia morreu quando John tinha apenas 16 anos de idade, vítima de um atropelamento, justo em um momento em que o garoto se reaproximava da mãe. “Mother” é a sintetização da raiva, tristeza e desabafo, em forma de berros, que estavam guardados no artista. A letra inicia com “Mãe, você me teve, mas nunca tive você; eu queria você, mas você não me queria.” “Pai, você me deixou, mas nunca te deixei; Eu precisava de você, mas você não precisava de mim”. Em seguida, John esboça uma despedida, como se quisesse abandonar esse passado com “agora, eu só preciso lhes dizer; adeus”, para que então, Lennon se contrarie na estrofe seguinte dizendo “mamãe, não vá! Papai, volte para casa”. De forma alguma é necessário ter passado por situação semelhante para entender o que John sentia em relação a sua família. 

“Hold On” segue o disco com um riff de guitarra tranquilo, em que John começa a se acalmar e reafirmar que vai dar tudo certo. A música é doce e oferece um certo refúgio à pedrada que o ouvinte escutou, como um choro triste, e provavelmente emula o que Lennon passou ao longo das gravações do álbum (que era interrompido constantemente por crises de choro e gritos por parte dele). “I Found Out” trata sobre falsas religiões, cultos e até mesmo, a idolatria que ele exercia sobre uma massa gigantesca de ouvintes “eles não me queriam, então me fizeram uma estrela”, cantou. 

Em “Working Class Hero”, em estilo Dylanesco (em "Masters of War", principalmente), Lennon escreve uma de suas maiores músicas. Apenas portando o violão, O "Herói da Classe Trabalhadora" se rebela contra o sistema imposto, e questiona toda a máquina capitalista e a eterna luta incentivada à população por subir na escada corporativa e econômica. A música causou impacto tão grande, que um tal de Roger Waters passou a questionar a produção de suas letras psicodélicas e começou a expor maiores críticas à sociedade, que resultou, inicialmente, em "The Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd

“Isolation” finaliza o lado A, abordando a solidão que o autor enfrentava, tanto por ter se separado de seus amigos, e banda, quanto pelas críticas que ele e Yoko sofriam constantemente por parte da mídia. “Remember” nos traz uma realidade paralela, em que Guy Fawks (membro da “Conspiração da Pólvora”, que planejava bombardear, em 1605, a Câmara dos Lordes) conseguiu colocar em prática seu plano. Uma anedota de aquecer o coração é que a canção foi gravada no dia do aniversário de Lennon, e felizmente, foi registrado em vídeo, os amigos John e Ringo recebendo a visita do outro ex-companheiro de banda, George Harrison, que entregou de presente, uma demo de “It’s Johnny’s Birthday” (de "All Things Must Pass", de Harrison). 

Talvez a canção mais ingênua e doce de Lennon seja “Love”. Simples e direta: “O amor é real, real é o amor”. Não há muito o que dizer de uma música que, em poucas palavras, e um piano "silencioso", consegue transcorrer uma imensidão de significados que não podem ser quantificados. “Well Well Well” descreve pequenos casos da vida à dois de John e Yoko, como caminhar em um parque, dividir uma refeição e falar sobre temas como ‘revolução’ e ‘libertação das mulheres’. “Look at Me” nos traz um Lennon direto do “White Album”, perguntando ao ouvinte “quem que devo ser?”.

“God” é filosófica, existencial, e acima de tudo, impactante. Uma canção que começa com “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, não tem como não chamar a atenção. Com um piano espaçado e dramático, Lennon subverte todas as crenças que possuía, e não possuía, dizendo que não acredita na Bíblia, tarot, Jesus, Hitler, Kennedy, Budha, Yoga, Elvis, Zimmerman (Bob Dylan), e mais importante, não acredita nos Beatles. Após citar sua antiga banda, uma pausa dramática precede a frase “eu só acredito em mim. Em Yoko e em mim”. Ele segue com “o sonho acabou” e “Eu era a Morsa (referência a I Am The Walrus), agora sou o John”. Ou seja, estamos diante do verdadeiro John Lennon, e que é necessário deixar o passado Beatle para trás. O álbum finaliza com “My Mummy’s Dead”, uma balada curta e poderosa, que faz o contraponto com “Mother”, pois ao invés dos berros, Lennon canta calmamente que ainda não superou a morte de sua mãe, mesmo que ela tenha morrido há tanto tempo. 

Acima de tudo, "Plastic Ono Band" nos apresenta quem era o ser humano John Lennon, mesmo que ele tenha representado ¼ de um dos maiores fenômenos da música mundial. Da minha parte, acho uma coincidência barbara a pequena conexão de nascer no mesmo dia em que o disco foi lançado, anos antes. Mesmo com a perda do meu parceiro de Simpsons há muitos anos (e de música, inclusive era fã do Lennon), fico feliz de ter, tanto Homer, quanto John, para me acompanhar na sequência da minha caminhada sem ele. 

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FAIXAS:
1. "Mother" - 5:34
2. "Hold On" - 1:52
3. "I Found Out" - 3:37
4. "Working Class Hero" - 3:48
5. "Isolation" - 2:51
6. "Remember" - 4:33
7. "Love" - 3:21
8. "Well Well Well" - 5:59
9. "Look at Me"  - 2:53
10. "God" - 4:09
11. "My Mummy's Dead" - 0:49
Todas as composições de autoria de John Lennon

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OUÇA O DISCO:
John Lennon - "Plastic Ono Band"

domingo, 9 de outubro de 2016

John Lennon and Yoko Ono - "Double Fantasy" (1980)



"O disco é um diálogo,
e temos ressuscitado nós mesmos,
de certa forma, como John e Yoko.
Não como John ex-Beatle e Yoko ex-Plastic Ono Band.
É apenas nós dois,
e nossa posição foi a de que,
se o disco não vendesse,
isso significava que as pessoas
 não querem saber sobre John e Yoko.”
John Lennon,
na histórica última entrevista
à Rolling Stone em maio de 1980

Eu acho que John está aqui conosco hoje.
Ambos, John e eu, sempre nos sentimos muito orgulhosos
e felizes por fazermos parte da raça humana.
E ele fez uma boa música
para a Terra e para o universo.
Yoko Ono,
ao receber o Grammy de Álbum do Ano
por “Double Fantasy” em fevereiro de 1981



Nesta semana, eu não poderia colocar outro disco entre os meus favoritos de todos os tempos que não fosse esta maravilha de “Double Fantasy”, o último disco de John Lennon. Por todos os motivos do mundo. Inclusive por ser a semana do aniversário dele. E por ser um disco que fala de uma coisa muito em desuso hoje em dia: relacionamentos que dão certo, apesar de tudo. E não briguem comigo, pois acho que a Yoko tem tudo a ver com este disco e com sua proposta. Montado como uma crônica da vida de um casal normal – mais ou menos, né? Afinal, eles eram John e Yoko –, o disco passeia pelas várias fases legais e outras nem tanto do cotidiano. Coisa que muita gente não quer nem ver pintada.

Vamos começar com “(Just Like) Starting Over”, o primeiro grande sucesso do disco. John diz nela que, mesmo que se conheçam há tempos e já tenham atravessado poucas e boas, “É como se nós estivéssemos nos apaixonando de novo/ será como começar de novo”. Claro que no caso deles, um ex-Beatle e uma artista plástica de classe alta japonesa, as coisas ficam mais fáceis, mas a luta com o dia-a-dia é a mesma. Lá pelas tantas, John diz pra Yoko: “Por que não nos mandamos sozinhos/ Viajamos para algum lugar muito, muito longe/ Estaremos juntos por nós mesmos/ como fazíamos nos velhos tempos”. A velha tática de escapar da rotina. Só que, aqui, o lance é estar juntos.

“Kiss Kiss Kiss” traz Yoko pedindo pra John beijá-la, tocá-la, dar-lhe carinho num clima new wave (estilo musical de sucesso na época). Durante a canção, Yoko lhe pede atenção para que este amor não se perca. Como na vida real, os beijos e os carinhos levam até o orgasmo, que é explícito. Pelo menos, em japonês.

“Cleanup Time” já traz John contando suas vicissitudes caseiras. Naquele tempo, Yoko foi cuidar das finanças da família, enquanto John ficou responsável pelo filho Sean e pela casa. “A rainha está na casa da moeda/ contando o dinheiro/ o rei está em casa fazendo pão e mel/ sem amigos e até agora sem inimigos/ completamente livres/ Sem ratos a bordo do navio mágico de harmonia (perfeita)”. A perfeição da harmonia está entre parênteses porque nada é realmente perfeito. Enquanto “Starting Over” fazia a apologia da viagem para fugir da rotina, em “Cleanup Time”, John garante que “Não interessa quão longe viajemos/ Onde nós formos/ O centro do nosso círculo/ será sempre nosso lar”. O casal se entocou no seu apartamento no Edifício Dakota durante os anos em que John esteve fora do circuito.

Depois dessa lição caseira de felicidade, as coisas começam a pesar. Yoko vem com “Give me Something”. E as reclamações aparecem com tudo: “A comida está fria/ Seus olhos estão frios/ A janela é fria/ A cama é fria/ Me dê alguma coisa que não esteja fria, me dê”. É bom lembrar que Yoko fez parte daquelas famílias japonesas que criaram suas filhas para o casamento, mas que piraram no meio do caminho. Ela se envolveu com artes plásticas, teve uma filha e começou seu caso com John enquanto ele estava casado. O feminismo estava em seu DNA. No final, ela afirma: “Te dei minhas batidas do coração/ e um pouco de lágrimas e carne/ não é muito, mas enquanto estiver aí/ você pode pegar”. Tudo isso num cenário novamente new wave. É de se notar que, enquanto John é mais tradicional em suas escolhas musicais, Yoko sempre circulou pela vanguarda.

Depois desta reclamação, ele se dá conta de que as coisas não estão exatamente muito bem e diz: “Estou perdendo você” numa batida blues. A música, “I’m Losing You”, conta um pouco do que foi o famoso “Lost Weekend” de John em 1974, quando se separou de Yoko e tomou todas ao lado de bebuns juramentados como Ringo Starr, Harry Nilsson, Elton JohnKeith Moon, entre outros menos cotados. Pra começar, ele diz que: “Aqui em um quarto estranho/ no final da tarde/ O que estou fazendo aqui?/ Não tem dúvidas sobre isso/ Estou perdendo você/ De alguma maneira, as linhas se cruzaram/ A comunicação se perdeu/ Nem consigo falar contigo pelo telefone/ apenas tenho de gritar/ que estou perdendo você”. A dor de John é palpável, assim como as guitarras lancinantes de Hugh McCraken, Earl Slick e do próprio John. Ele tenta se defender, afirmando que “você diz que não está ganhando o suficiente/ Mas eu te lembro de todas as coisas ruins/ Então que diabo tenho de fazer?/ Botar um bandaid?/ E parar com o sangramento agora/ parar com o sangramento agora”. No final da canção, John tenta novamente se defender dizendo: “Sei que te magoei então/ mas isso foi muito tempo atrás/ E bem, você ainda tem de carregar esta cruz?/ Não quero ouvir sobre isso/ Estou perdendo você”.

O curioso é que, na mesma batida firme e no tempo de Andy Newmark, Yoko dá sua versão da história. Em “I’m Moving On”, ela mantém sua postura de confronto. “Guarde sua conversinha suave pra quando estiver paquerando/ Guarde seus beijos de segunda-feira para sua dama de vidro/ Quero a verdade e nada mais/ Estou indo embora, estou indo embora, você está ficando chato”. Ao contrário de todo o disco – e mantendo sua postura de sempre –, Yoko foge da vanguarda e da modernidade da new wave daquele momento e segue sua diatribe na batida do blues, mostrando que o sofrimento é dos dois.

Para aliviar a pressão, John faz sua homenagem ao filho Sean, então com cinco anos de idade. “Beautiful Boy” inicia com o pai dizendo ao filho para “Fechar os olhos/ não ter medo/ O monstro se foi/ está indo embora e seu pai está aqui”. Os steel drums de Robert Greenidge dão a medida da suavidade da canção. Mesmo assim, algo dizia a John que as coisas não estavam bem. Em diversos momentos do disco, tanto ele quanto Yoko, soltam pistas de que havia uma ameaça no ar. “No oceano, navegando pra longe/ mal posso esperar/ ver você crescer/ mas acho que ambos deveremos ser pacientes”. E a premonição se consuma quando afirma: “Antes de atravessar a rua/ pegue minha mão/a vida é o que acontece a você/ enquanto você está ocupado/ fazendo outros planos”. É bom lembrar que, na noite em que foi assassinado, John e Yoko voltavam do estúdio onde mixavam seu próximo disco, “Milk and Honey”, lançado postumamente.

“Watching the Wheels” é, provavelmente, a melhor música de todo o disco. Usando a metáfora de uma roda gigante como o movimento da vida, John faz um inventário da atitude das pessoas, fãs e jornalistas em relação ao seu sumiço. “As pessoas dizem que estou louco fazendo o que faço/ Bem, eles me dão todos os tipos de avisos pra me salvar a da ruína/ Quando digo que estou ok, eles me olham de um jeito estranho/ certamente você não está feliz, não está mais jogando”. No refrão, ele reforça sua postura: “Estou apenas sentado olhando a roda gigante girando e girando/ Eu realmente adoro vê-la rolar/ Não mais andando no carrossel/ eu apenas tive de deixar ir embora”. O oberheim de Ed Walsh percorre toda a música, enquanto John faz o tema ao piano. Outro destaque é para o baixo sempre presente de Tony Levin.

“Yes, I’m your Angel” traz Yoko brincando de jazz da década de 30, meio Billie Holiday, meio Bessie Smith (sem, é claro, o poder vocal destas duas cantoras). Até parece uma daquelas paródias jazzísticas que o grupo Queen fazia em seus discos dos anos 70, “A Night at the Opera” e “A Day at the Races”. A letra fala de um amor de conto de fadas que Yoko usa para dar um relax neste disco, onde o relacionamento entre homem e mulher, às vezes, chega a momentos muito difíceis.

“Woman” é simplesmente a maior declaração de amor que um cantor e compositor já fez para sua amada perpetrada em disco. Não somente porque tem um clima romântico, mas porque John admite suas falhas na condução do sucesso e da fama e porque dá o crédito a Yoko por tê-lo colocado no caminho certo. “Mulher, sei que você entende/ a criança dentro do homem/ por favor, lembre que minha vida está em suas mãos”. Depois de dizer isso, sobra muito pouco para John entregar. E ele consegue: “Mulher, deixe-me explicar/ Nunca pretendi te causar sofrimento ou dor/ então deixe-me dizer de novo, de novo, de novo/ Te amo agora e pra sempre”. Ao ouvir com fones, vocês vão notar os Benny Cummings Singers, um coral de igreja que participa sutilmente.

O disco até poderia terminar aqui tamanha a carga emocional que esta canção carrega. Mas Yoko ainda fala de seus “meninos” John e Sean em “Beautiful Boys”. Do filho, ela diz que “você é um menino bonito/ com todos os teus pequenos brinquedos/ teus olhos tem visto o mundo/ apesar de ter apenas quatro anos de idade... Por favor, nunca tenha medo de chorar”. Já a respeito de John, Yoko afirma que “sua mente mudou o mundo/ e agora você tem quarenta anos de idade/ você tem tudo o que conseguir carregar/ e ainda assim se sentir vazio/ Nunca tenha medo de voar”. O violão clássico de McCracken se mistura ao baixo fretless de Levin e aos teclados de Walsh dando um clima soturno à canção.

Na última participação de John no disco, a pop music beatelesca volta com “Dear Yoko”, outra declaração de amor, embalada numa faixa dançante e onde John retoma a harmônica dos velhos tempos, mesclada com as guitarras de Slick e McCracken, dois mestres dos estúdios. A canção chega a ser bobinha em alguns momentos como “mesmo quando eu vejo TV/ Tem um buraco onde você deveria estar/ Não tem ninguém deitado perto de mim, Yoko”. “Double Fantasy” também é um disco interessante porque alterna estes momentos mais “pesados”, de dificuldade no relacionamento de um casal, com climas mais animados, pra cima.

A influência da cultura japonesa na vida Yoko se faz presente em “Every Man Has a Woman Who Loves Him”, uma afirmação que eu realmente gostaria que existisse. Os teclados e as guitarras tecem uma teia de informação musical nipônica, enquanto as batidas de Newmark e o baixo de Levin marcam o ritmo. “Todo homem tem uma mulher que lhe ama/ na chuva ou no sol, na vida ou na morte/ se ele a encontrar em sua vida/ ele saberá ao colocar o ouvido em seu seio”. Depois, ela troca a perspectiva, falando da mulher: “Toda mulher tem um homem que a ama/ ao levantar ou cair na sua vida ou na morte/ e se ela o encontrar em sua vida/ Ela vai saber ao olhar em seus olhos”. No refrão, ela é quem faz o mea culpa: “Por que fico circulando quando sei que tu és a pessoa/ Por que eu corro quando tenho vontade de te abraçar?”.

O impressionante é que, ao chegar o final de “Double Fantasy”, Yoko tenha feito um exercício de premonição absoluto, sem imaginar o que iria acontecer. “Hard Times Are Over” ou “Os Tempos Difíceis Terminaram”. Num tom celebratório, Yoko começa dizendo que “tem sido muito difícil/ mas está ficando mais fácil agora/ Os tempos difíceis terminaram, terminaram por um tempo”. Mal sabia ela que, dois meses depois do disco ter sido lançado, Mark David Chapman faria todo aquele estrago na vida da gente em dezembro daquele mesmo ano. Com solo de sax de David Tofani, a canção usa os backing vocals para dar aquele astral de fim de disco. No relançamento do CD, ainda constam uma música que John estava terminando, “Help Me to Help Myself”, e a criticada “Walking on Thin Ice”, cuja mixagem encerrou no dia da morte de John e que Yoko lançou em fevereiro de 1981.

Além deste tom “cinema verité” de todo o disco, quando nem John nem Yoko escondem seus problemas e suas dificuldades, “Double Fantasy” tem a seu favor uma divisão bem clara de sonoridades: John mais clássico, tanto rock quanto pop, e Yoko trafegando com desenvoltura pela vanguarda e pelo new wave, muito em moda na época e cujos praticantes – especialmente The B-52’s – citavam nominalmente Yoko como grande influência.
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FAIXAS:
1. (Just Like) Starting Over - 3:56            
2. Kiss Kiss Kiss - 2:41   
3. Cleanup Time - 2:58 
4. Give Me Something - 1:34     
5. I'm Losing You - 3:57
6. I'm Moving On - 2:21
7. Beautiful Boy (Darling Boy) - 4:05     
8. Watching the Wheels - 3:59 
9. Yes, I'm Your Angel - 3:09      
10. Woman - 3:32           
11. Beautiful Boys - 2:55             
12. Dear Yoko - 2:34      
13. Every Man Has a Woman Who Loves Him - 4:03       
14. Hard Times Are Over - 3:19

Faixas inclusas na versão em CD, de 2000:
15. Help Me to Help Myself - 2:37
16. Walking on Thin Ice - 6:00
todas as faixas compostas por John Lennon e Yoko Ono

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OUÇA O DISCO

por Paulo Moreira

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Beatles - "Rubber Soul" (1965)

Transpiração ou inspiração? A história por trás de “Rubber Soul”, o álbum revolucionário que sobreviveu ao deadline

"Eu realmente não estava completamente
pronto para aquela unidade.
Parecia que todas [as músicas] eram juntas.
‘Rubber Soul’ era uma coleção de canções que,
de alguma forma, eram juntas
 como nenhum álbum já feito antes,
e fiquei muito impressionado.
Eu disse: ‘É isso. Eu realmente fui desafiado 
a fazer um grande álbum’."
Brian Wilson,
líder dos Beach Boys


Quando o assunto em pauta é a obra dos Beatles, a transpiração sempre andou abraçada à inspiração. Principalmente, no período entre 1962-1965, quando o quarteto vivia à base de anfetaminas para cumprir a agenda transbordada de shows, aparições na BBC, entrevistas e sessões de gravação em Abbey Road.
       
Com “Rubber Soul” não foi diferente. O LP, lançado em 3 de Dezembro de 1965, teve a honra de ser o primeiro a marcar um dos “fins” ligados aos Beatles. John, Paul, George e Ringo bateram o martelo para o empresário Brian Epstein. A turnê pelo Reino Unido seria a última da carreira. E eles cumpriram a promessa.  O fim dos shows foi uma exigência, já que o interesse era desenvolver as composições e o trabalho no estúdio. “Rubber Soul”, não há dúvida, foi o grito inicial de independência da banda para fugir da maratona de compromissos... Apesar de que muito sofrimento ainda estava por vir.

Bob Dylan
E não foi brincadeira. Com o Natal chegando, e a turnê pela Grã-Bretanha à vista, os Beatles foram obrigados a produzir (com ajuda de Norman Smith e George Martin) o sexto álbum da carreira em apenas um mês, entre Outubro e Novembro de 1965.

A inspiração transbordava pelas mentes da principal dupla de compositores.  Uma das fontes mais generosas foi Bob Dylan, que continuava a influenciar o grupo (“Help” – também lançado em 65 – trouxe “You’ve Got To Hide Your Love Away”, bastante dylanesca). Em “Rubber Soul”, o mix de folk e eletricidade de álbuns como "Bringing It All Back Home" e "Highway 61 Revisited" (respectivamente lançados em março e agosto daquele ano) deram o toque do novo rock americano ao sabor britânico de Liverpool.

Deadline
  Além de Lennon/McCartney, George Harrison aparecia naquela hora como a segunda força criativa. Na verdade, até Ringo conseguiu um crédito em uma das 14 faixas que entraram no disco. Mas como não dava apenas para ficar na inspiração, os Beatles precisaram resgatar músicas de seu arquivo para completar o álbum. O deadline era antes do Natal. E antes da excursão pelas Terras da Rainha, que estava marcada para iniciar na Escócia, dia 3 de Dezembro (Exatamente no dia que o LP chegaria às lojas).

Por isso, “Wait” foi fisgada das fitas de gravação de “Help!”, e “What Goes On” (composição antiga de John) teve de ser recuperada para ganhar cores das novas roupas dos Beatles.  No caso de “What Goes On”, Ringo contribuiu com 5 palavras, e ganhou o crédito como Richard Starkey, ao lado de John Lennon e Paul McCartney. As demais faixas – incluindo mais duas não incluídas no disco – precisaram ser geradas “à força” para cumprir o calendário.

“Maternidade”
A história das músicas dos Beatles pode ser complexa, mas como também existe limite de tempo e espaço para escrever, os contos da maternidade criativa serão breves...

“I’m Looking Through You” nasceu lenta, e ganhou mais pegada na versão definitiva. A música, que escancara os problemas de relacionamento entre Paul McCartney e Jane Asher, é um rocker com sombras do som produzido por Dylan em "Highway 61 Revisited" e do single “Positively 4th Street”.

A origem da linda balada “In My Life” é das mais disputadas. John garantiu que Paul criou o meio da música. Paul disse em sua biografia, “Many Years For Now”, que colocou a melodia sobre um longo poema editado pelo amigo sobre a infância e amigos da região de Penny Lane, em Liverpool.

A melodia de “Michelle” já existia há alguns anos na cabeça de Paul, mas só virou composição com a ajuda de John que a complementou com os “I want you, I want you, I want you”, inspirado por Nina Simone. O francês da música veio das aulas de francês da mulher do amigo Ivan Vaughan.

“Drive My Car” é outro exemplo da parceria Lennon/McCartney. Ao invés de “You can give me golden rings”, John sugeriu “Baby you can drive my car”, alimentando o duplo sentido materialista da letra.

Já “The Word” foi a primeira tentativa da dupla de escrever sobre o que aconteceria no “Verão do Amor” dois anos mais tarde. “Say the Word and you’ll be free... it’s sunshine”.

The Byrds
Na turnê de 65 pelos Estados Unidos, George Harrison tinha ficado amigo da banda The Byrds, que misturava o folk e o rock, também influenciada pelo som de Bob Dylan. Esta inspiração aparece nos arranjos de “If I Needed Someone” – o seu recado nada animador às fãs histéricas – graças à magistral base criada pela guitarra de 12 cordas usada no estúdio. Sua outra contribuição – “Think For Yourself” – tem letra filosófica e conteúdo pragmático. A letra acusa alguém de falar mentiras. Quem seria? A mulher Patty Boyd (que viria a ser mulher de Eric Clapton anos mais tarde) ou o empresário Brian Epstein?

Ciúmes
As músicas de Paul McCartney e John Lennon também não tinham tons alegres. “You Won’t See Me” e “We Can Work It Out” seguem a linda de “I’m Looking Through You”. Todas são gritos de descontentamento com a relação amorosa com a noiva, uma atriz bastante ocupada com o tradicional grupo inglês Old Vic.

 Já a sensual “Girl” – com instrumentação que remete à música grega – conta a história de uma mulher destruidora de corações, insensível e materialista.

“Run For Your Life” é o grito de ciúmes de John, casado com Cynthia Powell. “Day Tripper” (que divide o espaço do single com “We Can Work It Out”) fala de mulheres e drogas de forma subliminar. Segundo o próprio Lennon, assim como “Nowhere Man” (resultado de uma noite em claro, tentando buscar inspiração) a música foi criada “à força” (imagine se não fosse) para preencher os 14 sulcos do vinil.

Uma das (muitas) joias da coroa do LP fecha esse texto. Em “Norwegian Wood” (100% dylanesca) John e Paul dão show nas harmonias, e contam a história de um provável caso extraconjugal de Lennon que termina com incêndio no apartamento do casal. “So I lit a fire – isn’t good, Norwegian Wood” (“Então eu toquei fogo – a madeira da Noruega não é das melhores”).

A madeira citada na música pode não ser das melhores. Mas “Rubber Soul” – que completou 48 anos em dezembro de 2013 – é força de inspiração contínua no universo musical de hoje. E do amanhã.


por Eduardo Lattes
fonte e revisão: Claudio Dirani, autor de "Paul McCartney - Todos os Segredos da Carreira Solo" (esgotado na editora)
e "Na Rota da BR-U2" (disponível com o autor).

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FAIXAS:              
1. "Drive My Car" - 2:30
2. "Norwegian Wood (This Bird Has Flown)" - 2:05
3. "You Won't See Me" - 3:22
4. "Nowhere Man"  - 2:44
5. "Think for Yourself" (Harrison) - 2:19
6. "The Word" - 2:43
7. "Michelle" - 2:42
8. "What Goes On" (Lennon/McCartney/Starr) - 2:50
9. "Girl" - 2:33
10. "I'm Looking Through You" - 2:27
11. "In My Life" - 2:27
12. "Wait" - 2:16
13. "If I Needed Someone" (Harrison) - 2:23
14. “Run for Your Life" - 2:18

todas de Lennon/McCartney, exceto indicadas

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OUÇA:




Eduardo Lattes de Mattos Vellani é paulista é formado em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda.RP pela FIAM -Faculdades Integradas Alcântara Machado, de São Paulo. Devoto de Elvis Presley e de seus “apóstolos”, os Beatles, tem quase duas décadas de experiência em Public Relations. Coordena matérias jornalísticas de cobertura em campo, tendo acompanhado de perto a execução de filmagens e reportagens para clientes como SBT, Bandeirantes, FAAP, Roberto Manzoni, Astrid Fontenelle e vários outros.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sean Lennon - "Into the Sun" (1998)


“Sean Lennon inteligentemente se posicionou entre o pop e o experimental, propondo uma ideia caleidoscópica como fizeram os multiculturais dos anos ‘90 Beastie Boys, Beck e Cibo Matto.” 
 Stephen Thomas

A estas alturas, segunda década dos anos 2000, já é possível identificar com clareza quais foram os grandes discos da última década do século passado, os anos 90. Depois dos anos 50, marco do nascimento do rock, dos explosivos e extrapolados ’60, dos psicodélicos e revoltados ’70 e dos criativos e inteligentes ’80, o que restaria à música pop nos ’90? Repetir-se? Não! Alguns artistas souberam recriar e até trazer coisas bem novas. "Broken" , do 9 Inch Nails, "Nevermind" , do Nirvana, ou "Loveless", do My Bloody Valentine, já elencados como Álbuns Fundamentais neste blog, são bons exemplos. “Moon Safari”, do Air, “Odelay”, do Beck, e “Big Calm”, do Morcheeba, provavelmente darão as caras por aqui ainda. Mas mesmo gostando mais de alguns destes, um que a mim marcou muito os anos 90 e com o qual me delicio a cada audição é “Into the Sun”, do cantor, compositor e multi-instrumentista Sean Lennon, o “filho do homem”.
“Into the Sun” é, simplesmente, apaixonante. De sonoridade sofisticada, experimental e com um toque artesanal, o CD de estreia deste abençoado ser – resultado da cruza de John Lennon com Yoko Ono – emenda uma pérola atrás da outra, numa explosão de criatividade e técnica. O referido ar “caseiro” não é à toa: exceto algumas participações, Sean compõe, produz, canta e toca todos os instrumentos. A delicada faixa-título – uma bossa-nova de rara beleza com direito à batida de violão a la João Gilberto – é a única em que divide o microfone, acompanhado de Miho Hatori, vocalista da banda Cibo Matto. A outra integrante deste grupo, a então namorada Yuka Honda, co-produtora e “musa inspiradora” da obra, dá sua contribuição com samples, programações e no vocal de “Two Fine Lovers”, um jazz-lounge funkeado ao mesmo tempo romântico e dançante, e de “Spaceship”, outra das melhores.
Uma peculiaridade que impressiona na música de Sean é a sua capacidade de inventar melodias de voz absolutamente belas. É o caso de “Home”, single do CD que rodava direto na MTV com o ótimo clipe de Spike Jonze. Por trás das guitarradas estilo Sonic Youth e da bateria possante do refrão, a melodia de voz é doce, linda, daquelas de cantar de olhos fechados pra saborear cada frase. Outra assim é “Bathtub”, um mescla de MPB com Beatles em que, novamente, Sean destila sua destreza com a palavra cantada, principalmente na parte final, onde se cruzam três melodias de voz apresentadas durante a faixa.
Eu sei, eu sei! É óbvio que a dúvida surgiria: afinal, a música Sean se parece com a de John? Como TUDO em música pop depois dos  The Beatles, sim; mas, surpreendentemente, menos do que seria normal pela consanguinidade. A voz, claro, lembra o timbre levemente infantil do beatle. Das músicas, “Wasted”, só ao piano e voz, e, principalmente, “Part One of the Cowboy Trilogy”, um country como os que John tinha incrível habilidade ao compor, remetem bastante. Mas fica por aí. No máximo, a parecença conceitual com álbuns do pai como “Plastic Ono Band” ou “Imagine” por conta da diversidade estilística – o que, convenhamos, não era uma característica só de sir. Lennon.
Outra marca de Sean é a composição no violão. Da ótima faixa de abertura, “Mystery Juice”, à balada “One Night”, passando pelas bossas – a já citada “Into the Sun” e “Breeze”, outra belíssima –, ele brande as cordas de nylon para extrair melodias muito pessoais e profundas. A mais intensa destas é, certamente, “Spaceship”, que começa só ao violão sobre ruídos eletrônicos e na qual vão se adicionando outros instrumentos e sons, até estourar em emoção no refrão, com guitarras distorcidas, bateria alta e a voz de Honda no backing. Ótima.
Mas a variedade musical de Sean não pára por aí. Depois de MPB, indie, country e balada, ele apresentaria ainda, se não melhor, a mais bem trabalhada música do álbum: “Photosynthesis”, um jazz-rock instrumental no melhor estilo Art Ensemble of Chicago. Puxado pelo baixo acústico, que mantém a base o tempo inteiro, tem samples, solos de flauta e de piano, até que, depois de um breve breque, a música volta com um impressionante solo de percussão latina e, emendando, um outro de trompete. Incrível! “Sean’s Theme”, mais um jazz, este mais piano-bar, fecha bem “Into the Sun”, que traz ainda “Queue”, um gostoso rock embaladinho que termina sob uma camada densa de guitarras, revelando, mais uma vez, a engenhosidade no trato com a melodia de voz.
Um “disco de cabeceira” para mim, que não canso de reouvir. Um baita disco de rock com a distinção de quem herdou o que de melhor seu pai tinha como gênio da música que foi: a sensibilidade artística.

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vídeo de "Home", Sean Lennon



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FAIXAS:
1. "Mystery Juice"
2. "Into the Sun"
3. "Home"
4. "Bathtub" (S. Lennon/Yuka Honda)
5. "One Night"
6. "Spaceship" (S. Lennon/Timo Ellis)
7. "Photosynthesis"
8. "Queue" (S. Lennon/Y. Honda)
9. "Two Fine Lovers"
10. "Part One of the Cowboy Trilogy"
11. "Wasted"
12. "Breeze"
13. "Sean's Theme"

Todas as músicas de autoria de Sean Lennon, exceto indicadas.
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Ouça:

domingo, 28 de agosto de 2022

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial 14 anos do Clyblog - The Beatles - "The Beatles" ou "White Album" (1968)

 



"Todo clichê tem uma razão e o motivo pelo qual este disco é citado em 11 de 10 listas é pelo simples fato de ser genial.
Ele tem lugar quase sagrado no meu coração, inclusive fico períodos longos sem escutá-lo para sempre ter a mesma reação a cada música, um arrepio que começa na base da coluna e vai até o topo da cabeça.
Essa sensação não muda desde o meu primeiro contato com ele, aos 13 anos."
Titi Müller, 
atriz, apresentadora e ex-VJ da MTV




Branco.
O branco pode ser o nada, o vazio. Uma folha de papel sem desenho, sem palavras, sem ideias, um lapso de pensamento, uma breve falha de memória, um cegueira por excesso de luz ou mesmo a ausência total de cor. Por outro lado, é a soma de todas as cores. Todo o espectro, girando tão rapidamente, que o olho humano sequer é capaz de distinguir todas as variações cromáticas para apenas enxergar... o branco.
Branco...
Uma capa totalmente branca apenas com um nome gravado em relevo.
A aparente simplicidade por trás de uma capa totalmente branca guarda, na verdade, a complexidade de uma das obras mais sofisticadas da história da humanidade. Talvez seja exatamente essa impressão errônea do nada que, no fundo, contém tudo. Uma obra tão cheia de variedades, elementos, possibilidades, cores, que os olhos da percepção humana mal sejam capazes de assimilar tudo, de ordenar todas as informações. "The Beatles", de 1968, mais conhecido como "White Album" traz tantos elementos que muitas vezes é impossível classificar se aquele quarteto genial fizera um rock, um jazz, um blues, um foxtrote, uma suíte clássica, um folk, ou tudo isso junto numa mesma peça musical.
"White Album" tem trinta faixas e seria cansativo falar de todas, desta forma destaco aqui aquelas que na minha opinião não podem deixar de ser mencionadas, pelas razões e méritos mais diversos, embora fãs mais fervorosos e conhecedores mais eruditos possam contestar minha seleção. "Back in the U.S.S.R." que abre o disco é um rock no estilo do velho yeah, yeah, yeah mas que, claramente, com toda a bagagem adquirida de uma banda mais madura, segura e ousada, está alguns passos à frente da sonoridade da banda lá dos primórdios; "While My Guitar Gently Weaps" é uma das mais belas canções do grupo e um dos melhores trabalhos coletivos do quarteto, com o acréscimo, ainda, de Eric Clapton que dá a canja do lindíssimo solo de guitarra, um dos mais marcantes da história do rock; "Blackbird" é solar, iluminada, à primeira vista uma canção aparentemente simples, mas que apreciada com a devida atenção, revela-se um peça musical da mais alta sofisticação; o blues choroso de "Revolution 1" que eu costumava ouvir numa vinheta da Rádio Ipanema em Porto Alegre e sempre tinha a curiosidade de saber o que era aquilo; e  "Dear Prudence", linda, doce, suave, que conheci com a Siouxsie e seus Banshees e, devo admitir, nesse caso, que divido a preferência com a original. A propósito, outra que conheci com a Rainhas das Trevas do gótico, mas que, aí sim, prefiro disparado a original, é "Helter Skleter", por sinal, um das minhas preferidas do álbum e da banda, exatamente por toda a sujeira, barulheira, fúria, características pouco comuns na obra dos Beatles.
Os quatro, no estúdio, durante as
gravações do álbum, em 1968

Mas tem o rock empolgante de "Glass Onion", com todas as autorreferências; tem as "mutações" constantes de Rocky Racoon"; tem os vocais intensos de John em "I'm So Tired"; tem também o blues envenenado "Yer Blues"; a energia e o psicodelismo de "Everybody's Got Something to Hide..."; a belíssima melodia vocal de "Sexy Sadie"; a loucura psicodélica de "Revolution 9"... Ah, tudo!!!
Se "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" havia, praticamente criado o conceito de álbum, o "Álbum Branco", mesmo em meio a um ambiente convulsionado de uma banda em processo de fragmentação interna, levava a ideia a um nível superior. O que, pensando bem, de certa forma, possa ter colaborado para um álbum tão genial, diversificado e com um conjunto tão contraditoriamente "harmonioso". Cada membro, tão independente e autossuficiente, estava, naquele momento, maduro, seguro e plenamente apto a produzir algo tão grandioso individualmente, que o material, colocado dentro da obra do grupo, praticamente complementava o dos demais criando um produto final incrível e inigualável.
Branco também pode simbolizar pureza e tal como fazem as crianças, de maneira belíssima, a pureza permite a alguém ser o que quer ser, falar o que quer falar sem se preocupar com nada. Simplesmente ser verdadeiro.
Segundo o artista, criador da arte, Richard Hamilton, a ausência total de qualquer cor era proposta em contraste ao excesso de informação da capa do disco anterior,  "Sgt. Pepper's...". Sim, entendo... Mas, aprofundando um pouco o pensamento a esse respeito, talvez o branco do álbum signifique algo mais, Talvez signifique exatamente o momento em que cada um tenha sido totalmente puro, totalmente verdadeiro consigo mesmo, o que, assim como a verdade das crianças, sempre resulta em beleza.
E nós, que não temos nada a ver com as diferenças que eles tinham, ganhamos, aquele que tenha sido, possivelmente, o momento mais brilhante daqueles quatro caras.
Brilhante...
Sim, tão alvo, tão claro que chega a ser... brilhante.
Branco.

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FAIXAS:
(no formato LP)

Lado 1

1. "Back in the U.S.S.R." (voz de Paul McCartney) 2:43
2. "Dear Prudence" (voz de John Lennon) 3:53
3. "Glass Onion" (voz de Lennon) 2:17
4. "Ob-La-Di, Ob-La-Da" (voz de McCartney) 3:08
5. "Wild Honey Pie" (voz de McCartney) 0:52
6. "The Continuing Story of Bungalow Bill" (voz de Lennon) 3:14
7. "While My Guitar Gently Weeps" (composição e voz de George Harrison) 4:45
8. "Happiness Is a Warm Gun" (voz de Lennon) 2:43

Lado 2
9. "Martha My Dear" (voz de McCartney) 2:28
10. "I'm So Tired" (voz de Lennon) 2:03
11. "Blackbird" (voz de McCartney) 2:18
12. "Piggies" (composição e voz de Harrison) 2:04
13. "Rocky Raccoon" (voz de McCartney) 3:33
14. "Don't Pass Me By" (composição e voz de Ringo Starr) 3:51
15. "Why Don't We Do It in the Road?" (voz de McCartney) 1:41
16. "I Will" (voz de McCartney) 1:46
17. "Julia" (voz de Lennon) 2:54

Lado 3
18. "Birthday" (vozes de McCartney e Lennon) 2:48
19. "Yer Blues" (voz de Lennon) 4:04
20. "Mother Nature's Son" (voz de McCartney) 2:48
21. "Everybody's Got Something to Hide Except Me and My Monkey" (voz de Lennon) 2:24
22. "Sexy Sadie" (voz de Lennon) 3:15
23. "Helter Skelter" (voz de McCartney) 4:29
24. "Long, Long, Long" (composição e voz de Harrison) 3:04

Lado 4

25. "Revolution 1" (voz de Lennon) 4:15
26. "Honey Pie" (voz de McCartney) 2:41
27. "Savoy Truffle" (composição e voz de Harrison) 2:54
28. "Cry Baby Cry" (vozes de Lennon e McCartney) 3:02
29. "Revolution 9" (vocalizações de Lennon, Harrison, George Martin e Yoko Ono) 8:22
30. "Good Night" (composição de Lennon e voz de Starr) 3:11

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Ouça:
The Beatles - "The Beatles" A.K.A. "White Album" (1968)





por Cly Reis

terça-feira, 2 de abril de 2019

The Claypool Lennon Delirium - “South of Reality” (2019)



"Dois mundos colidiram e que mundos gloriosos e estranhos eles são."
Texto do site oficial da banda

“Sean é um mutante musical, segundo meu próprio coração. Ele definitivamente reflete sua genética - não apenas as sensibilidades de seu pai, mas também a perspectiva abstrata e a abordagem única de sua mãe. É uma loucura gloriosa."
Les Claypoll 

“Eu disse a Les que eu era sobrinho de Neil Diamond. Eu acho que isso é o que realmente o vendeu na ideia de trabalhar comigo.”
Sean Lennon

Toda hora pinta alguém que vem com aquela já manjada sentença de que “o rock morreu”. A irrelevância da maioria do que surge no mundo do rock ‘n roll quase faz com que se acredite nisso. Porém, de tempo em tempo, aparece algo que dá esperança de que não só o rock não se extinguiu como ainda é capaz de se reinventar. A última grande confirmação deste alento chama-se The Claypool Lennon Delirium, a junção de dois músicos supercriativos, Les Claypool e Sean Lennon, que a feliz improbabilidade promovida pelos deuses roqueiros uniu quase sem querer. Recentemente, eles lançaram “South of Reality”, seu segundo disco, que dispensa a comum ação confirmativa do tempo para entrar para a história. Um rock colorido, plástico, artístico, criativo, fora do convencional. Uma obra-prima imediata.

Iniciada em 2016, por conta de um convite de Claypool, à época em final de turnê com sua Primus, a Sean, igualmente “de bobeira” nalgum projeto, a parceria rendeu o já surpreendente “Monolith of Phobos”, daquele ano, e o EP "Lime and Limpid Green", de 2017. Agora, a dupla afirma a química entre ambos em nove faixas, que fazem valer do talento de cada um tanto na criatividade compositiva quanto, igualmente, de suas qualidades técnicas como instrumentistas e produtores. Eles realçam as características que os marcam tanto na Primus de Clyapool, irreverente e dissonante, quanto na carreira solo de Sean, melodista de fina estampa, homogeneizando tudo isso e construindo, assim, uma nova identidade sonora: psicodélica, incomum e nada óbvia. Embora o experimentalismo, peculiar aos dois artistas, “South...” não descamba para o “cerebralismo” excessivo ou para devaneios lisérgicos intermináveis. Tudo está sempre a serviço de uma obra sonoramente instigante.

Claypool, um dos maiores baixistas da história do rock, aproveita sua destreza não apenas para improvisar mas para criar riffs, bases e texturas. Já Sean, verdadeiro herdeiro dos gênios de seu pai, John Lennon, e da mãe, Yoko Ono, além de tocar com habilidade invejável guitarra e bateria, adiciona seus inventivos arranjos vocais, riffs e contra-riffs, que completam o parceiro. Essa contribuição fica clara na faixa de abertura, “Little Fishes”. Circense e bufa, lembrando Syd Barrett e a Beatles da fase “Sgt. Peppers”, é visível que a ideia inicial da melodia partiu de Claypool, que divide os vocais com Sean. Porém, como bom parceiro, além das variações rítmicas extraídas da bateria, Sean adiciona à canção sua guitarra, fundamental para as segunda, funkeada, e terceira partes, um jazz progressivo que remete a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin.

A dupla Sean e Claypool: encontro de dois
mundos que deu certo
O mesmo processo se vê na gostosa “Easily Charmed by Fools”, a mais pop do disco – embora a psicoldelia se faça presente inevitavelmente. Riff de Claypool no baixo, resposta de Sean na guitarra, que também coloca a sua voz doce para contracantar, dando um ar de rock sessentista a esse funk estilizado. Mais Claypool ainda é “Toady Man's Hour”, de andamento quebrado e marcada pelo vocal esganiçado do baixista. Até nisso, aliás, eles se completam: a docilidade do timbre vocal de Sean, muito parecido com o de seu pai, contrabalanceia a esquisita e chistosa voz de Claypool.

Para compensar, entretanto, “Boriska”, de raiz beatle, haja vista a semelhança com a grandiosidade melódica de Lennon/McCartney, é toda Sean, mas com as adições de Claypool tanto no timbre inconfundível de seu baixo quanto no arranjo invariavelmente inconstante que permeia, aliás, a maioria das faixas. Destaque para os dois solando na segunda metade do número: Sean na guitarra e Claypool com um arco no baixo elétrico, expediente que ele já usara na Primus, como em “Mr. Krinkle”, de “Pork Soda” (1993).

Já “Amethyst Realm” é um verdadeiro exemplo da fusão das duas musicalidades. Rock denso e de arranjo intrincado, tem a cara das melodias cantaroláveis de Sean – inclusive com a subida  de tom na segunda parte, algo muito Beatles também –, parecida com outras belas canção escritas pelo próprio no passado como “Spaceship” (“Into the Sun”, 1997) ou a faixa-título de “Friendly Fire” (2006). Porém, traz uma base de baixo de Claypool com a qual a música não existiria. E se Claypool segura todas por detrás, desta vez é Sean que apavora com improvisos de guitarra ao melhor estilo Robert Fripp. A faixa-título é outra prova da comunhão dessas duas mentes. Baixo e guitarra cumprem juntas a ideia central da melodia, e as vozes, em uníssono, se misturam. Lembra Primus e os trabalhos de Sean no mesmo grau.

Porém, mais do que qualquer outra faixa do disco, duas delas representam a simbiótica união entre os dois músicos. Ainda mais complexas, “Blood and Rockets - Movement I, Saga of Jack Parsons - Movement II, Too the Moon” e “Cricket Chrionicles Revisited - Part I, Ask Your Doctor, Part II, Psyde Effects”, como os próprios títulos indicam, são minissinfonias, haja vista suas estruturas em “movimentos” e “partes” e a engenhosidade da composição. “Blood...” é um épico de pouco mais de 6 min, expondo a versatilidade de cada um tanto em composição quanto arranjo e harmonia, além, igualmente, na técnica instrumental e produtiva que têm. Melancólica, conta a trágica história real de Jack Parsons, um engenheiro norte-americano dos anos 30, que ajudou a desenvolver a tecnologia para propulsão de foguetes espaciais e pertenceu ao chamado “Esquadrão Suicida” da universidade Caltech que, ao que indica a história, se suicidou explodindo a si próprio após envolver-se com a seita Thelema, comandada pelo ocultista Alester Crowley (“Faça o que tua vontade/ O amor é a lei/ Me faça voar até a lua”, diz a letra, parafraseando a lei thelemista cantada por Raul Seixas nos anos 70 como "Sociedade Alternativa").

Já “Cricket...”, igualmente sinfônica, remonta a influência indiana de George Harrison à música pop. Sean, com igual habilidade da guitarra, toca cítara, enquanto teclados viajantes percorrem o espaço sonoro e o baixo namora com o jazz. Ainda, acompanham percussões típicas da música que Ravi Shankar legou aos Beatles e ao rock dos anos 60. Delirante como o próprio nome da banda aponta. “South..” se despede com a Beatles-Primus “Like Fleas”: neo-psicoldelismo na medida certa, que poderia tranquilamente ser uma bonus track do “Magical Mystery Tour”, de mais de meio século atrás e sem dever nada a tal.

Se diante de tanta coisa dispensável que o rock do século XXI tem apresentado der aquela vontade de reclamar que “o rock morreu”, acalme-se. Pegue “South...” da The Claypool Lennon Delirium e deixe rolar. O efeito será tranquilizador pela constatação de que essa máxima não se aplica e, ao mesmo tempo, animador por causa daquilo que se ouve: um som empolgante como é o bom e velho rock ‘n’ roll.

FAIXAS:
1. “Little Fishes”
2. “Blood and Rockets - Movement I, Saga of Jack Parsons - Movement II, Too the Moon”
3. “South of Reality”
4. “Boriska”
5. “Easily Charmed by Fools”
6. “Amethyst Realm”
7. “Toady Man's Hour”
8. “Cricket Chrionicles Revisited - Part I, Ask Your Doctor, Part II, Psyde Effects”
9. “Like Fleas”
Todas as composições de autoria de Les Claypoll e Sean Lennon

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues