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sábado, 11 de fevereiro de 2023

"Tár", de Todd Field (2022)



É o falso filme chato. Entrevistas, reuniões, almoços, aulas..., o que poderia ser extremamente fastidioso em muitos filmes, mantém-se interessante desde o início em "Tár". Até porque em cada um desses compromissos sociais, Cate Blanchett, impecável no papel da "maestro" Lydia Tár, uma das mais importantes e renomadas concertistas do mundo, nos faz ficar grudados à tela admirando sua atuação impecável, e atentos às opiniões e posicionamentos de sua personagem. Tár é uma mulher bem-sucedida, respeitada, influente, ela lidera a filarmônica de Berlim e toma das decisões administrativas, de pessoal e de repertório da orquestra. Em meio a ensaios para a nova apresentação, Tár se vê às voltas com o suicídio de uma ex-musicista da câmara, com uma decisão sobre um novo assistente para a orquestra, e o ingresso de uma jovem violoncelista por quem passa a se interessar. No entanto, um envolvimento íntimo com a acordeonista que morrera, o interesse de sua assistente pessoal pela vaga aberta da orquestra, e as situações embaraçosas que a presença da nova integrante causam em relação aos outros músicos e à companheira de Lydia, começam a causar complicações que levam a vida prestígio e tranquilidade da maestrina a uma derrocada fulminante.
Terá ela estrutura emocional para superar tudo isso? Apoio profissional, depois de despertar tantos ódios e invejas? Credibilidade, depois dos escândalos e de ver seu nome jogado na lama? Confiança da companheira, depois de reveladas suas mentiras e infidelidades?
Embora a tônica do filme se baseie nas relações de poder, me agrada muito as abordagens sobre arte, sobre a música em si. Nesse sentido, um dos momentos mais marcantes, para mim, é a sequência da aula dos aspirantes à orquestra, na qual Lydia questiona um aluno que alega não gostar de Bach por conta de questões da índole pessoal do compositor. Ela argumenta que o valor de uma obra não deve ser sobrepujado por aspectos exteriores a ela e, enfática, tenta fazer o garoto ver (ouvir) o brilhantismo de Bach. No entanto, diante da insistência do argumento do jovem, ela muito sagaz, colocando toda sua mordacidade em ação nas observações e exemplifições, faz prevalecer sua ideia diante da classe, até mesmo, fazendo com que o rapaz saísse constrangido. Talvez toda sua defesa da obra de Bach já fosse, subconscientemente, uma autodefesa, uma vez que, entre sua índole pessoal e sua competência profissional, dali para frente, na história, haveria muito para ser discutido. Mas naquele momento, mal sabia ela que, mais adiante, estaria colocada diante da inquisição da opinião pública e sob o julgamento dos colegas por conta de suas atitudes pessoais.
"Tár", no fim das contas, também é uma grande reflexão sobre o que realmente há de melhor dentro de cada um. Um convite para que não esqueçamos de quem somos. Quando Lydia Tár esqueceu da sua arte, sua vocação, aquilo que a fizera grande, que a fazia forte, e deixou-se levar pela vaidade, orgulho, pela arrogância, pelo poder, quando voltou seu olhar para outras direções e perdeu sua virtude, seu mundo desmoronou. A música era o que verdadeiramente importava, o tempo todo. Mas no momento mais difícil, ela talvez redescubra isso para fazer da música sua ressurreição.

Cate Blanchett entrega uma atuação de gala em "Tár".


 




Cly Reis

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Grupo Corpo – “Bach" e "Gira” – Teatro do SESI – Porto Alegre (07/10/2017)


Assistir o Grupo Corpo já de muito se tornou mais do que uma atração para mim: passou a ser uma obrigação enquanto cidadão brasileiro. Seja em Porto Alegre ou noutro lugar, desde a metade dos anos 90, quando os vi no palco pela primeira vez, de dois em dois anos – periodicidade que eles lançam novas montagens – é hora de desfazer a expectativa criada e conhecer o que irão apresentar de novo. Afinal, é sempre uma novidade a cada peça, e não raro, uma grata surpresa. Pois a companhia mineira é das poucas instituições artísticas (não só no Brasil, mas no mundo) capazes de surpreender a cada projeto mesmo o/s anterior/es tendo sido de alta qualidade. Ou seja: conseguem superar o que já é bom. Caso de “Gira”, o ousado espetáculo apresentado na nova turnê, o qual conta com a brilhante trilha sonora da banda paulista de jazz Metá Metá.

Se as duas últimas estreias, “Triz” (de 2013, trilha de Lenine) e “Dança Sinfônica” (2015, sobre composições de Marco Antônio Guimarães), foram igualmente competentes mas não necessariamente arrebatadoras, “Gira” consegue o feito de rivalizar com as melhores montagens da rica história de mais de 40 anos da companhia. E até superá-las. Inspirado nos ritos da umbanda, “Gira” traz como principal referência, além da estética do universo mágico das religiões afro-brasileiras, o orixá Exu, o dono do movimento e das transformações da vida. É ele quem liga o mundo dos humanos ao mundo das divindades. Na forma de movimentos e sons, foi exatamente isso que se viu no palco.

A estreia, como é de praxe nas apresentações do Corpo, foi antecedida por uma mais antiga: o magnífico balé “Bach”, de 1996 de forte apelo religioso e cuja leitura modernizada da obra do compositor alemão que lhe dá nome (feita pelo constante parceiro musical da companhia, Marco Antonio Magalhães) vai, literalmente, da morte à ressurreição. Da mais densa dificultação do olhar, sob as luzes ofuscantes do purgatório, até a mais límpida e dourada iluminação, encenada por movimentos graciosos de vida eterna. Impressionantes os atos da dança nas cordas, suspensas no ar e distantes cerca de 2 metros do chão.

Vídeo de "Bach", de 1996

Em "Gira", a mirada religiosa se mantém em certo aspecto, mas por uma visão totalmente distinta. Ao invés da tradição católico-cristã, são agora os ritos das religiões de matriz africana, com seu gestual, formas e sonoridades que prevalecem. Num cenário-instalação (de Paulo Pederneiras) que coloca o espectador como que num terreiro de culto, a coreografia de Rodrigo Pederneiras revela intensidade, instintividade e até certa brutalidade. Linda brutalidade, aliás, vinda da profundeza da natureza humana – e também da não humana. Rodrigo vale-se da rica base referencial dos ritos de celebração tanto do candomblé quanto da umbanda (em especial as giras de Exu) para forjar todo um poderoso glossário de gestos e movimentos. Fortes e contorcidos, dão a dimensão da natureza de Exu: um orixá mágico, de proezas inimagináveis, e cujo bem e mal andam sempre lado a lado, insolúveis. Inspirados nos gestos manifestados nos cultos, há momentos que parece que os corpos se quebram tamanho contorcimento.

Corpos que se contorcem e até parecem se quebrar
A iluminação, dura e quente (coassinada por Paulo e Gabriel Pederneiras), muda muito pouco, pois são os dançarinos e seus movimentos hipnóticos que constroem a narrativa, a qual faz uma imersão pelo universo anímico dos orixás. Como entidades incorpóreas, os bailarinos – torsos nus, com a outra metade do corpo coberta por saias brancas de corte primitivo e tecido cru, tanto de mulheres quanto de homens – entram e saem das três paredes negras da caixa-preta, criando uma ilusão quase espectral de infinito que os transforma em éter quando saem de cena. Quando reaparecem, contudo, é como se se materializassem ali na frente de quem vê, ou como se as entidades "baixassem" nos "cavalos" dos dançarinos. Dançam, simulam sexos, giram, torcem-se, alimentam-se do corpo físico e depois somem mais uma vez, como se desintegrassem.

Para acompanhar/construir toda essa representação mitológica, a trilha da Metá Metá (Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França) não poderia ser mais adequada. Diria brilhante. É visível a quem assiste, assim como noutras montagens realizadas em parceria com outros compositores (“O Corpo”, com Arnaldo Antunes, de 2000, ou “Santagustin”, de Tom Zé e Gilberto Assis, 2002), que a dança é fruto da criação musical e vice-versa, num permanente diálogo movimento/som, carne/espírito. A partir da proposta sonora, a coreografia cria soluções gestuais e rítmicas expressivas àquela ideia. O contrário, entretanto, acontece também, uma vez que o conceito de “Gira” e seus elementos são comuns e assimilados por músicos e companhia. O resultado é uma “estreita sintonia” entre os dois polos, como definiu o Dinucci, principal compositor do conjunto.

A bruta sensualidade e a ousadia dos
corpos nus
Nas melodias, a banda adensa as características da musicalidade de matriz africana, incrementando-a com elementos similares da música moderna, como o jazz avant-garde, o hip-hop, o rock e até o funk carioca. Em termos de estrutura, a polifonia e a dissonância são os conceitos sonoros encontrados para responder à complexidade do tema, forjando um tecido sonoro rico em texturas, síncopes, contraposições e volumes. Assim, lhes é possível criar enredo para os orixás, como em “Bará” (um dos nomes de Exu na África), mas para “Ogó” (bastão fálico de Exu) e “Ogun”, facilitando a sugestão para a composição coreográfica. Os temas em geral se valem de muita percussão, mas também de samples, guitarras e sopros, como o marcante sax tenor de Thiago França. A voz de Juçara Marçal, de altíssima técnica, é capaz de acompanhar as variações rítmico-harmônicas que compasso/movimento pedem. Ainda, no que se refere a vocal, a diva negra Elza Soares empresta sua robusta voz em duas essenciais participações: “Pé”, logo no início do balé, e “Okutá Yangi II”, que fecha o espetáculo num clima talvez até mais apoteótico do que em qualquer outro do Grupo. Em tom alto, severo, rascante.

Como se as entidades estivessem "baixando"
nos bailarinos
“Gira” é tão coeso que posso afirmar que é melhor ou tão bom quanto clássicas montagens do Grupo Corpo – leia-se ”Benguelê” (1998), “Sem Mim” (2011) e a já mencionada “O Corpo”. Em termos de trilha sonora, outro trunfo da companhia, além da magnífica e peculiar dança, a afirmação também vale. A Metá Metá não deixou nada a desejar diante de outros autores que já trabalharam com o Corpo, como Caetano Veloso, João Bosco, Tom Zé e Zé Miguel Wisnik. Talvez “Gira” não se assemelhe apenas à profunda emoção que a encenação de “Parabelo”, de 1997, é capaz de causar, algo tão referencial na dança moderna brasileira que foi mostrada ao mundo todo na abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, ano passado. Contudo, em termos de proposta e realização, “Gira” mostra-se, sim, a mais completa da companhia mineira, pois é fruto de maturidade artística e técnica a qual chegaram e, principalmente, da ousadia e de atitude que sempre mantiveram - ainda mais, em épocas que qualquer nu em arte é motivo de censura. Afinal, abordar um tema tão visceral e verdadeiro, mas também tão discriminado e demonizado pelos ignorantes, exige coragem..

Som é movimento e dança é vibração. Ou o contrário, tanto faz. Quando que se tem, com tamanha veracidade e poética, a oportunidade de vivenciar essas sensações tão genuínas em dança e em música ao mesmo tempo? A resposta é bienal: quando o Grupo Corpo apresenta uma nova montagem. Tão bom que a gente nem se importa de esperar mais dois anos para sentir isso tudo de novo.

Grupo Corpo - vídeo de "Gira"


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Vitor Ramil & Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro – Theatro São Pedro - Porto Alegre/RS (22/10/2016)



Visão geral do palco do Theatro São Pedro
com Vitor e a orquestra.
“Ares de milonga sobre Porto Alegre/
Nada mais, nada mais”.
da letra de
Ramilonga



Pode parecer contraditório, mas, às vezes, dependendo da intensidade emotiva que determinado show ao vivo tem para mim, é mais difícil escrever sobre ele. Foi assim com o do Paul McCartney, em 2010, do Gilbert Gil e orquestra, em 2014, e o da Meredith Monk, ano passado. Todos muito bem sorvidos pelos ouvidos e sentidos, mas que, na hora de transpor pro papel, parece que a emoção me congela. Pois outro desta lista foi o do cantor, compositor e escritor Vitor Ramil, que assisti ao lado das hermanas Leocádia e Carolina Costa em 2013. Naquela feita, como nestes outros que citei, não consegui escrever a respeito daquele que foi certamente um dos grandes shows que assisti. Música no seu mais alto nível. Pois o tempo se encarregou de me dar uma nova chance, igualmente acompanhado das duas e novamente tendo como cenário o majestoso e familiar Theatro São Pedro. E com um adicional incontestável: Vitor tocando com a Orquestra de Câmara do teatro. Ou seja, motivos de sobra para que, enfim, esse momento tão especial fosse por mim registrado.
Minha obrigação atestou-se já de início. Ainda sem o protagonista no palco, a orquestra, formada basicamente pelas cordas (cellos, violinos e violas), estremece-nos com uma luxuosa execução do Prelúdio das “Bachianas nº 4”, de Heitor Villa-Lobos. Que começo! Quando sobe finalmente, o gracioso Vitor brinca: “Quero ver se vocês vão querer me ouvir agora depois do Villa-Lobos”. “Foi no mês que vem”, de poesia romântico-lírica, numa brincadeira com o tempo cronológico e afetivo (“Vou fiquei/ No teu chegado e tu chegada ao meu/ Penso, grande é Deus/ Um paraíso prum sujeito ateu...”) dá início ao refinado e absolutamente musical espetáculo, tanto quanto o de dois anos atrás embora diferente. Não somente pelos arranjos da orquestra, assinados por Vagner Cunha e regidos pelo também bem-humorado maestro Antônio Borges-Cunha, os quais cumpriram, com muita felicidade a função de realçar os traços das canções. Mas, sim, pela obra maior de Vitor Ramil, um dos maiores músicos da atualidade no Brasil.
A habilidade como violonista e cantor destacam ainda mais o lindo timbre de voz, suave como uma pluma, e a capacidade criativa do compositor de criar melodias lindamente improváveis. O professor de artes Celso Loureiro Chaves diz, no texto do programa: “Há sempre uma surpresa nessas melodias. Quando pensamos que elas vão para um lado, elas tomam outro caminho e terminam como ninguém – a não ser Vitor – poderia ter pensado”. Essa é a sensação que se tem na tensa e quase expressionista “Livro aberto” – infelizmente prejudicada pelo pandeiro muito mal tocado por uma das integrantes da orquestra, único resvalo de todo o espetáculo –, a qual vai ganhando ares hipnóticos que as cordas ajudam a intensificar.
Para qualquer fã de Vitor, não precisa nem dizer que "Noite de São João", obra do célebre “Ramilonga”, de 1997, na qual ele musica uma poesia de Fernando Pessoa, foi das mais emocionantes. A regência de Borges-Cunha lhe empresta cores lúdicas, enquanto o músico entoa com absoluta delicadeza a melancólica e rica melodia. Igualmente de embasbacar, “Milonga das 7 Cidades” (mais uma de “Ramilonga”), a suplicante “Perdão” (“Perdoo o sol/ Que aquece meu corpo/ Perdoo o ar/ Que me alimenta/ Perdoo a dor/ Que desistiu de mim/ E a solidão/ Que não foi tanta como eu quis...”) e “Vem”, onde, a capella, Vitor arrasa no canto (a letra, fez sobre um prelúdio de Bach) enquanto o maestro conduz um belíssimo arranjo, chamando atenção para a segunda parte, em que todos abandonam os arcos para, delicada e ordenadamente, tangerem com os dedos as cordas de seus instrumentos.
Original do disco “Délibáb”, de 2010, “Querência” traz a poesia pampeana de João da Cunha Vargas, a quem muitos, incluindo a mim, passou a conhecer através das músicas de Vitor. Dos dois é outra das mais incríveis que se ouviu, esta apenas na voz e violão: “Deixando o Pago”, milonga capaz de transmitir ao mesmo tempo bravura e fragilidade, tristeza e sensação de liberdade: “Cruzo a última cancela/ Do campo pro corredor/ E sinto um perfume de flor/ Que brotou na primavera/ À noite, linda que era/ Banhada pelo luar/ Tive ganas de chorar/ Ao ver meu rancho tapera”.
No final do show, executando "Astronauta Lírico".
Hit gravado por nomes como Gal CostaMilton Nascimento, Chico César e Maria Rita, “Estrela Estrela”, amada pelo público, é a que mais foi possível ouvir o coro da plateia, silenciosa a maior parte do tempo, pois extremamente atenta a todos os acordes que se pronunciavam. Esta ganha um arranjo suave, acompanhando sua aura lunar e fugidia. Já em “Indo ao Pampa”, mais uma de “Ramilonga”, Loureiro Chaves escreve um arranjo especial no qual explora a atmosfera indiana da original e transpõe isso para a orquestra. Um show! Das melhores do set-list, a qual explode no refrão em ataques intensos das cordas. Especial também é o canto de Vitor, que avança impressionantemente de um tom médio para o agudo sem desafinar jamais. Que cantor!
 Outra das incríveis de seu repertório, igualmente adorada pelo público, “Astronauta Lírico”, levou-nos às lágrimas. Delicadeza resume bem essa canção, onde se nota novamente a esfíngica forma de Vitor compor. Valendo-se praticamente de “lugares comuns” da poesia, os versos, escritos com tamanha sensibilidade e destreza, são de uma poesia sem igual: “Quero perder o medo da poesia/ Encontrar a métrica e a lágrima/ Onde os caminhos se bifurcam/ Flanando na miragem de um jardim...”. E o refrão, em que ele consegue quebrar em três tempos uma pequena palavra como “terra”!? (sem que isso fique esquisito, aliás, pelo contrário: harmonizando lindamente palavra e som.)
 O primeiro bis é a própria “Ramilonga”, de lindo arranjo das cordas que veste a música num crescendo nesta que é a mais perfeita tradução da melancólica mas poética Porto Alegre, cidade cujos versos “nunca mais/nunca mais” se encaixam assustadoramente bem. O desfecho foi com a milonga “Mango”, talvez não a melhor escolha para um último número, haja vista a extensa lista de sucessos que fariam o público ir para casa embora levitando (“Loucos de cara”, “Joquim”, "Satolep"
, “Não é céu”), mas nada que desagradasse - pelo contrário, pois foi suficiente para, junto com o restante, fazer-nos ir para casa suspensos sim.
 Se ficou muita coisa de fora, é compreensível, pois é realmente difícil sintetizar cerca de 40 anos de música em um projeto complexo em formato e que envolve tantas mãos como este. Porém, certamente o que vimos manteve intacta a sublime obra deste gaúcho de Pelotas que tanto representa, com profundidade artística e até semiológica, a arte e o modo de ser do pampa. Vitor nos prova o quanto se é capaz de ser regional e universal ao mesmo tempo. Vitor nos mostra que existe outro Brasil que não só de Carnaval e Nordestes pasteurizados. Vitor nos evidencia que há uma beleza nessa combalida e vulgarizara imagem do ser gaúcho. Em Vitor nos identificamos e ele em nós.
 E sim, Vitor: não deixas nada a desejar diante do mestre Villa-Lobos, podes ter certeza.







por Daniel Rodrigues

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

The Beach Boys - "Pet Sounds" (1966)

Os Sons de Estimação

 “ 'God Only Knows' é a música
que eu queria ter escrito.”
líder dos Beatles


A psichodelic era dos anos 60, sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John LennonPaul McCartneyJimmi HendrixSid BarretRay DaviesBrian JonesArthur LeeArnaldo BaptistaLou ReedRocky EriksonFrank Zappa e mais uma dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes, também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock. Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros aspectos.

“Pet Sounds”, diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian, um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.

E conseguiu.

“Pet Sounds” é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys. Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The Beach Boys' Christmas Album”, trabalho anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e lúdico do harpschord executa uma ciranda, que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês, a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravo repete o tempo três vezes até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock. Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda. Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e agudos.

Um dos principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais, guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim), Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais, órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos rufares.

Outro trunfo do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a voz de Love, que, limpa e sem overdub, desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na orquestração.

Por falar em orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: I’m waiting for the day when you can love again”, violinos e cellos, sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”, em dois. Estupendo.

A segunda especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão, reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.

Depois do tom médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que se estende, ambos marcados pelo tic-tac de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.

Para os apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música moderna como "Like a Rolling Stone""Bolero""A Day in the Life""Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros, igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam, criando um efeito onírico tal como um Cantus Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos e dissesse: “só Eu sei”.

“I Know There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes. Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”. Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que equilibra temple blocks, bateria e tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em termos de música pop: o electro-theremin, sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como, inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito, Deus e homem fossem a mesma matéria.

Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.

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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.

Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde ZombiesPink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.



por Daniel Rodrigues
(Consultas técnicas e agradecimentos: Maria Beatriz Noll e Leocádia Costa)

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FAIXAS:
1. Wouldn't It Be Nice - 2:26 (Wilson, Asher, Mike Love)
2. You Still Believe in Me - 2:31
3. That’s Not Me - 2:30
4. Don't Talk (Put Your Head on My Shoulder) - 2:53
5. I’m Waiting for the Day – 3:06
6. Let's Go Away for a While - 2:21
7. Sloop John B - 2:54
8. God Only Knows - 2:46
9. I Know There's an Answer - 3:10 (Wilson, Terry Sachen, Love)
10.  Here Today - 2:55
11. I Just Wasn't Made for These Times - 3:10
12. Pet Sounds - 2:23
13. Caroline, No - 2:54
14. Unreleased Backgrounds - :50
15. Hang on to Your Ego – 3:17
16. Trombone Dixie – 2:53

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OUÇA O DISCO


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Philip Glass e Tim Fain- Teatro Municipal - Rio de Janeiro (15/09/2011)




Terminou no último dia 19 a série de recitais para piano e violino que o maestro e compositor norte-americano Philip Glass fez no Brasil neste mês de setembro nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. Na companhia de minha mãe – que até pouco tempo não o conhecia, mas é uma boa curiosa –, pude conferir a apresentação carioca, em pleno Teatro Municipal. Um luxo e um prazer a todos que puderam admirar um pouco da vasta e incomparável obra deste que é um dos maiores gênios vivos da música moderna, uma alma revolucionária e transformadora.
O fato de se restringir a apenas dois instrumentos não tirou a graça em nenhum momento da apresentação. Muito pelo contrário. Acostumado a compor para grandes orquestras ou mesmo conjuntos de câmara, Glass, inventivo compositor e exímio pianista, é também autor de magníficas obras solo, e foi este o recheio do que pôde ser apreciado pelo público. Estavam lá, só em piano e/ou violino, suas marcas: os acordes repetidos, as estruturas minimalistas, as melodias circulares, as variações tonais escritas com perfeição. A música de Glass flerta com o rock, com a música eletrônica, com a simplicidade saudável do pop, mas sempre com o pé firme no clássico. Ou seja: uma música completa para os nossos tempos. Para que outros instrumentos, né?
Com repertório todo de sua autoria, ele e o violinista norte-americano Tim Fain presentearam, em pouco mais de uma hora e meia, a numerosa plateia com dez números, começando pela inédita e “Três Estudos para Piano”, cujo primeiro movimento é simplesmente espetacular. Seguiu-se a longa e variante “Partita para violino solo”, escrita por Glass especialmente para as mãos hábeis e de pura sensibilidade de Fain. Depois do intervalo, vieram “Metamorphosis”, para piano, e a brilhante “Music from The Screens”, para piano e violino. A primeira parte, “The Orchard”, toda em contraponto, remete direto às fugas de Bach, porém com cores que modernizam o barroco. “France” e “The French Lieutenant” completaram esta que foi das mais aplaudidas da noite.
Glass e seu piano magistral
A seguir, ouviu-se “Pendulum”, também para piano e violino, em que o músico parece ter criado uma trilha poética para o conto de Poe: um pêndulo que se sucede em movimentos contínuos, de um lado para o outro, em sons com intervalos regulares, trazendo novamente a sensação de espiral característica de sua maneira de compor.
Show terminado, minutos de aplausos. Mas viria mais. No bis, Glass anunciou em português (aliás, como fizera sempre que falava ao microfone, lendo ou não) duas de suas obras-primas: “Opening/Closing”, da célebre série das “Glassworks”, gravadas por ele em 1981. Fui com grande expectativa para que tocasse essa. E ele tocou. Uma peça onde lirismo romântico e modernismo estão incrivelmente bem casados. Depois desta, podia até ir embora que já me dava por satisfeito. Mas aí Fain sacou seu violino e mandou ver a hipnótica e cáustica “Knee 4”, da “ópera-punk” "Einstein on the Beach" um dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS deste blog. Mesmo sem as vozes do coral, e tocando apenas uma parte da original, o violinista finalizou o recital em alto estilo com esta peça de difícil execução e requerente de muita técnica e velocidade.
Agora não precisava mais nada. Piano, violino e a magistral música de Philip Glass, além da beleza redentora do Municipal e a calorosa companhia de minha mãe. Noite de gala.



terça-feira, 26 de julho de 2016

Grupo Corpo – “Parabelo" e "Dança Sinfônica” – Teatro do SESI – Porto Alegre (26/06/2016)



Plasticidade sobre o palco.
Assistir ao Grupo Corpo é sempre uma ocasião especial. Ponto. Agora, imagine um espetáculo comemorativo aos 40 anos da companhia, com sessão pré da melhor montagem deles e na companhia amorosa de Leocádia e Carolina Costa, duas costumazes espectadoras do Corpo há décadas como eu. A perfeição! Assim foi com a apresentação de “Dança Sinfônica”, que a melhor companhia de dança do Brasil (quiçá, na atualidade, do mundo) trouxe a Porto Alegre junto com o balé "Parabelo", de 1997.

Como de praxe, abre-se com o espetáculo mais antigo. No caso de “Parabelo”, a escolha por esta e não outra peça de sucesso como “Corpo” (Arnaldo Antunes, 2000) ou “Onqotô” (Caetano Veloso e José Miguel Wisnik, 2005) parece bastante pontual, haja vista que, feitos quase 20 anos de sua estreia, continua dizendo muito sobre o trabalho dos Pederneiras e sua equipe. Para mim, mesmo já a tendo visto outras duas vezes anteriores nesse meio tempo, “Parabelo” é sempre uma avalanche emocional. Que belíssima montagem! Sobre músicas de Tom Zé e Wisnik, é, como disse antes, provavelmente a melhor coreografia do grupo e, igualmente, talvez a mais brilhante trilha sonora já escrita para eles – além de ser um dos grandes discos instrumentais de toda a música brasileira, certamente.

O rico e brasileiro "Parabelo" de 1997.
O esmero do material criado pela dupla, que entrelaça a cultura regional do Nordeste através dos sons e dos cantos folclóricos e antropomórficos à uma inerência da musicalidade barroca e ao atonalismo da vanguarda, dá a Rodrigo Pederneiras (coreografia), Fernando Velloso, Paulo Pederneiras (cenografia e cenografia), Freusa Zechmeister (figurino) um manancial de possibilidades de criação que sublimam muito do coração brasileiro. Ver esse espetáculo é sentir-se brasileiro e, mais do que isso, feliz por ver que se é capaz de criar algo tão bonito e rico tendo como substrato elementos que nos compõem como entes culturais. É impossível não se tocar pela beleza, pelo gingado, pela leveza (ora dureza), de momentos como do balé clássico se entremeando à realidade dura dos retirantes de “Assum Branco”, ou a apoteose “frevística” do fechamento com a faixa “Xique Xique”.

Depois do arrebatamento total advindo com “Parabelo”, a estreia de fato. A nova montagem, feita sobre trilha de um velho parceiro do Corpo, o também mineiro Marco Antônio Guimarães, tem todos os quesitos de um grande espetáculo. A música, escrita para grande orquestra – a primeira feita nesses moldes para a companhia, geralmente tomada de brasilidade temática e instrumentalização idem – retraz elementos de trilhas dele para o Corpo, como em “21” (1992), “7 ou 8 Peças para Ballet” (1994) e “Bach” (1996). Igualmente, aciona células sonoras de outros trabalhos marcantes da trajetória do grupo ("Benguelê", 1998; “Santagustin”, 2002; “Sem Mim”, 2011; “Triz”, 2013) como que prestando pequenas homenagens – típicas das obras sinfônicas –, o que aqui soa como metalinguagem também.

Metalinguagem, aliás, é a chave para esta nova montagem do Corpo. A vida dedicada aos palcos e a relação vital entre artista e obra conceituam “Dança...”. A cenografia/iluminação e os figurinos dialogam o tempo todo ao usarem o vermelho encarnado do veludo, típico das cortinas dos teatros, e o preto do fundo da caixa cênica como o elemento escuro, a não-luz. Dessa forma, o conceito coreográfico de “Dança...” se baseia todo nestas cores-elementos, nesses dois estados emocionais de vida e morte, em que os dançarinos surgem e somem de “dentro” das cortinas ou do fundo infinito do palco, como se se desprendessem dali para apresentar movimentos e, em seguida, retornarem a suas origens: o imaterial, o nada.

Saltos e esticar de pernas, lembrando o balé clássico e moderno.
Guimarães, cabeça do Uakati, vale-se, na composição, bastante do estilo “folk tropicalista” do grupo, que forma a banda principal da peça sinfônica. Eles usam instrumentos peculiares, como flauta e tambores Uakati, tubos PVC, piano sem o ataque, buzina de sopro, caxixi e castanhola. Somados à volumosa orquestra da Filarmônica de Minas Gerais, todos esses músicos dão à trilha uma textura bastante própria, que lembra em vários momentos os trabalhos do Uakati e de Philip Glass, compositor com quem coassinam a trilha de “7 ou 8...”. As coreografias de “Dança...”, por sua vez, vão de lances bastante lânguidos, referenciando o balé clássico – numa reverência à raiz da arte da dança – a gestuais peculiares da dança moderna, os quais hibridizam o folclórico aos movimentos da vida urbana, com suas assimetrias e desequilíbrios. Tudo, porém com muita leveza, haja vista os vários momentos de saltos e giros, menos comuns ao Corpo da forma tradicional como foram usados. Mesmo assim, estão presentes as jogadas de pernas, o balanço dos quadris, o corpo a corpo das duplas e as composições plástico-espaciais vistas em suas obras anteriores. Assim, a coreografia veste de forma muito competente a sonoridade proposta por Guimarães, e o que se vê em “Dança...”, universal e brasileiro na medida certa, é uma síntese de um trabalho de quatro décadas pautado pela inventividade e pelo rigor. Como dizem os próprios, uma dança sobre a memória.

Na comparação com o que se assistiu antes em “Parabelo”, entretanto, fica-se com uma sensação de “podia ser mais”. Mesmo forjando um universo mais onírico e fulgurante, acaba perdendo força diante daquela enxurrada de brasilidade, algo que marca muito a companhia nesses anos de estrada. Impossível assistir ao Corpo sem associá-los à uma tropicalidade. Isso não quer dizer que “Dança...”, enquanto proposta e realização, não tenha valido. Bem pelo contrário. É um trabalho em que se nota a simbiose entre artista e palco, vida e obra, encenação e real, luz e sombra. Uma justa homenagem que o Corpo presta ao teatro e a si mesmo enquanto artífice da arte da dança no Brasil e nas Américas. A nós, admiradores de longa data da companhia, que não só buscam não perder nenhuma estreia como ainda colecionam várias de seus CD’s (relembrando as danças a cada execução), a satisfação é completa. E com o gostinho da excitante dúvida: o que será que eles trarão daqui a dois anos na nova montagem? Isso fica para 2018.


Grupo Corpo - Dança Sinfônica






sexta-feira, 22 de março de 2013

Beck - "Odelay" (1996)




Um Homem (que perdeu a chance de ser) Célebre



"E aí voltaram as náuseas de si mesmo,
o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda,
e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico,
uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann."
trecho do conto "Um Homem Célebre"
de Machado de Assis

De um modo geral, procuro nunca nutrir expectativas quanto a artistas. O que ele já fez e eu goste me basta, e o que vier de bom pela frente é lucro. Porém, a uma exceção me permito: Beck Hansen, autor do espetacular “Odelay”, de 1996. Sem exagero, Beck ficou ali-ali para parear com gênios da música norte-americana como Stevie Wonder, Gil Scott-Heron, Bob Dylan ou Tom Waits  mas, parecido com o personagem Pestana do conto “Um Homem Célebre”, de Machado de Assis, nunca superou a si mesmo – e provavelmente não o fará mais talvez por autobloqueio. Beck despontou na cena alternativa no início dos anos 90 já prometendo. Veio numa crescente e trouxe ao showbizz o excelente “Mellow Gold”, de 1994, difícil de superar. Mas ele superou. Para mim o maior disco da música pop da sua década, “Odelay” é uma obra radicalmente criativa, transgressora e crítica, um disco caleidoscópico que traz em si todas as referências musicais possíveis e imagináveis, num caldeirão sonoro de composição, execução e produção na mais absoluta sintonia.

A coisa toda já começa tirando o fôlego com “Devils Haircuit”, pós-punk com um riff repetitivo carregado de distorção, um sequenciador eletrônico propositadamente simplório e muitos, mas muitos samples, colagens, efeitos de mesa, tudo que se possa imaginar. Impressionante. “Hotwax”, na sequência, começa com uma viola caipira e muda direto para um inusitado rap-folk. E assim o álbum segue, pois tudo cabe nesta “desordem organizada” criada por Beck: folk, funk, blues, hardcore, rap, indie, soul.  As faixas são como uma montanha russa, pois tudo pode mudar a qualquer momento. E muda. Alta riqueza de texturas, sonoridades, ritmos, notações. Um barroquismo moderno esculpido por psicodelia e experimentalismo. Assim é “Lord Only Knows”, que inicia com um grito ensandecido e passa, como se nada tivesse acontecido, a uma balada folk desenhada pelos lindos canto e voz de Beck.

“Derelict”, densa e percussiva, tem um tom dark com seus elementos indianos e árabes, lembrando as peças étnico-pop de David Byrne e Brian Eno de "Remain in Light" e "My Life in the Bush of Ghosts". Já “Novacane”, outra magnífica, é um rock carregado cantado como hip-hop, com um baixo pesado e bateria marcada, ao estilo do new-rock inglês de Stone Roses e Primal Scream e um riff feito apenas na modulação da distorção da guitarra no amplificador, uma ideia estupenda. Porém, o que parece num primeiro momento uma execução de músicos cai por terra quando entra sem aviso um sample que substitui tudo, voltando, logo em seguida, ao andamento anterior. Ou seja: uma quebra que serve para mostrar que tudo era apenas um produto artificial. Para causar ainda mais espanto, a música, em sua parte final avança para uma tensão de ruídos que se transformam num ritmo de break, como que saído de um Nintendo, terminando deste jeito: noutra textura e absolutamente diferente de como começou. É como se Beck pusesse à prova o que é tocado e o que não é, pois em todo o disco é quase impossível definir isso com exatidão, como se fosse uma música feita de plástico.

Esse conceito de reciclagem está também em “Jack-Ass”, mas em forma de tributo, visto que, num lance, Beck homenageia dois mestres da música pop universal: Van Morrison e Bob Dylan. Do primeiro, ele sampleia a linda base de "It's All Over Now, Baby Blue", um clássico de Dylan que Morrison versara para o Them em 1966. E o mais importante: o faz sem parecer preguiça ou falta de criatividade, pois recria uma nova música – ao estilo Dylan, propositadamente – em cima da melodia de uma outra recriação, a do Them, num processo semiótico. “Where it’s At”, hit do disco, é mais uma brilhante. Inicia com o chiado de uma agulha sendo posta sobre um vinil, que dá lugar a um soul retrô originalíssimo com direito a scratchs, samples diversos, ruídos, microfonias e um refrão pegajoso.

Pra não deixar que a coisa desvirtue para uma palhaçada pretensamente “cabeça”, “Minus” vem mostrar que rock bom é rock básico e sem firula. Sonic Youth na veia: seca, às guitarradas, voz furiosa e ritmo punk mantido na linha do baixo, que rosna. Depois, “Sissyneck”, uma mistura de folk e eletrofunk, assonante e harmonicamente complexa, mas com um refrão saboroso e totalmente agradável ao ouvido. Já “Readmade” segue a linha de massa sonora, com muitos efeitos, texturas e trabalho de estúdio, descendo o tom do disco novamente como foi em “Derelict”. Sóbria, traz curiosamente em seu sample de destaque uma frase sonora de “Desafinado”, clássico de Tom e Vinicius na versão de Sérgio Mendes.

Quase terminando o álbum, Beck sai com outra joia: “High 5”. Um break dance ao estilo Afrika Bambaata em que não faltam scratches, efeitos de voz e, claro, guitarras pesadas. Referências aparentemente díspares convivem e se entrosam perfeitamente nesta faixa. Inicia com um violão na batida de bossa-nova, que, em seguida, dá lugar às vozes de Beck e outros rappers com vozeirão de negrão do Harlem. Lá pelas tantas, o andamento é interrompido para entrar um trecho de... “O Lago dos Cisnes”! Como se não bastasse, depois de voltar no que era e de uma breve incursão daquela mesma melodia com som de videogame barato que desfecha “Novacane”, Beck adiciona a “High 5” cuícas de samba, encontrando a tal “batida perfeita” que Marcelo D2 tanto procura mas sem precisar fazer marketing disso.

Toda essa variedade torna “Odelay” quase uma obra aleatória, uma “obra aberta”, como definiria Umberto Eco. Aí entra uma das grandes questões que o disco levanta: ele questiona o papel do músico moderno diante da tecnologia e das novas formas de interação social através das mídias. É impossível o músico hoje ter total autenticidade de sua obra, pois esta, mesmo que ele não queira, será afetada pelos efeitos externos da vida contemporânea. Trata-se de uma nova autenticidade, a das TVs cuspindo publicidades e Big Brothers, do lixo eletrônico, do lixo pornográfico, do lixo midiático, do lixo sonoro. É “a nova poluição”, termo que dá título a uma das mais geniais faixas do disco: um drum n’ bass, espécie de “Tomorrow Never Knows” pós-moderno, mantido numa base inteligente de guitarra e colagens sem receio de esconder as “sujeiras”. Ou seja, é possível escutar os remendos entre um sample e outro de propósito. Sinal dos novos tempos, em que o músico não pode mais esconder que sua música se vale de elementos que estão além dele próprio. É a “estética do arrastão”, como diria Tom Zé.

Fechando o disco, depois de todo esse arsenal de sons e ideias, Beck dá um novo recado aparentemente contraditório: o de que, se o papel do músico-autor ficou mais subjetivo hoje, não quer dizer que ele não tenha ainda espaço para compor “à moda antiga”. É isto que está incutido em “Ramshackle”: acústica, só nos violões, voz e percussão. Sem sequem qualquer efeito de computador. O que seria um final “tradicional”, num disco como “Odelay” se torna ainda mais transgressor.

Isso que Beck trouxe em “Odelay” não é necessariamente uma novidade. Miles Davis já anunciava tal fusão conceitual no final dos anos 60 com "Bitches Brew"  na mesma época, Milton Nascimento e a galera do Clube da Esquina, assim como os tropicalistas, já experimentavam toda essa musicalidade, só que com aparato técnico mais deficiente; Prince e David Bowie também já formularam com precisão essa química. Beck mesmo já mostrara muito disso no seu trabalho anterior, e os Beastie Boys já faziam tal mescla de estilos e referências numa roupagem moderna desde Paul’s Boutique, de 1989. Mas Beck apresenta tudo isso com uma maestria diferente, denso, original, além de manter um senso de ironia constante uma vez que interroga a fundo a sociedade de massas, seu massacre de informações e imagens, suas ideologias distorcidas, suas ideias que se tornam abstratas de tão sem sentido. E ele faz isso reciclando tudo que já fora produzido em música pop até então, gerando um produto pós-moderno incrivelmente bem acabado.

Depois de “Odelay”, Beck caiu na pior armadilha que um artista pode cair: a de supervalorizar a sua arte. Passou a fazer trabalhos sempre apontando para um nível técnico altíssimo, sem, contudo, concentra-se no que interessa: a alma da obra. Neste sentido, lembra o dilema de Pestana, do conto machadiano, que, descontente por compor apenas polcas, tentava, mesmo com o sucesso popular destas, produzir em vão uma obra “respeitável”, a qual, no entanto, não conferia com seu espírito. É parecido com o que aconteceu com Beck: por causa de uma ideia genuína bem executada, “Odelay”, ele passou a inverter a lógica, ou seja, a tornar forçadamente uma boa execução numa ideia genuína. Já deu várias provas disso, sendo a última em 2012, quando lançou seu novo disco. Só de partituras (!). Nada consumível ou próximo do público como foram seus triunfos com “Mellow Gold” e, obviamente, “Odelay”, que, se não tem substituto até hoje, é porque talvez ele mesmo, Beck Hensen, não se disponha a superá-lo. Pelo menos, é o que se percebe: enquanto Pestana tinha neura em se superar, Beck tem medo do autoenfrentamento.

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FAIXAS:
1 "Devils Haircut" – 3:14
2 "Hotwax" – 3:49
3  "Lord Only Knows" – 4:14
4 "The New Pollution" – 3:39
5 "Derelict" – 4:12
6 "Novacane" – 4:37
7 "Jack-Ass" – 4:11
8 "Where It's At" – 5:30
9 "Minus" – 2:32
10 "Sissyneck" – 3:52
11 "Readymade" – 2:37
12 "High 5 (Rock the Catskills)" – 4:10
13 "Ramshackle"  – 7:29

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vídeo de Where it’s At




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Ouça: