Mas Christian, tu cita o Humberto falando do Duran Duran e o disco não é deles, é do Arcadia! Explico. O Arcadia foi formado por 3 dos 5 integrantes do Duran Duran quando eles resolveram dar uma parada para tocar projetos paralelos. O fundador John Taylor (baixista) e o Andy Taylor (guitarrista) foram tocar com o Robert Palmer e o baterista do Chic no Power Station. Os outros 3 que são o vocalista Simon Le Bon, o tecladista Nick Rhodes e o baterista Roger Taylor fizeram o Arcadia. Uma coisa me passou pela cabeça agora, o Duran Duran poderia se chamar “The Taylors” porque 3 Taylor sem parentesco algum em uma mesma banda não é pouca coisa.
Para este projeto eles ainda contaram com a guitarra do David Gilmour nas faixas "The Promise" e "Missing", e participações como a da Grace Jones, Sting, Carlos Alomar, Herbie Hancock e outros músicos. Para mim é um pop elegante, funkeado e com muitas camadas de produção características dos anos 80, mas sem muito exagero. "Election Day" foi o single que puxou o disco, mas ao longo da audição tu vais percebendo outras músicas que também faziam parte das rádios na época como a "Goodbye Is Forever" e a "The Promise".
Quem puder, ouça a versão tripla que conta com o disco normal, outro disco com versões estendidas/remixes/instrumentais e ainda um DVD com clipes das músicas. Mais ou menos neste período foi que o Duran Duran colocou a música "A View to a Kill" no filme "007 Na Mira dos Assassinos". No clipe desta música pode-se notar o “climão” que estava entre os membros da banda, onde nenhum aparece contracenando com o outro. Este disco foi importante para a retomada do Duran Duran que aconteceu no disco seguinte, que foi o "Notorius", agora resumido a 3 integrantes, o John Taylor, o Simon Le Bon e o Nick Rhodes. Muito do que foi desenvolvido a partir desta reunião já estava contido neste belo disco que é o "So Red The Rose", do Arcadia. Escuta, vale a pena.
para um bandido esquisito" trecho da letra de "Notorius", segundo Simon Le Bon, uma indireta dedicada ao guitarrista Andy Taylor que havia saído da banda em litígio
Um trabalho de amadurecimento. Assim pode ser definido "Notorious", dos britânicos do Duran Duran. Reduzidos a um trio, depois de projetos paralelos e problemas com integrantes, com este álbum de 1986 a banda, que surgira e se firmara com um new-wave excessivamente apelativo comercialmente reforçado por um visual adequadamente provocativo para o público feminino, atingia um nível de qualidade sonora até então conseguido apenas eventualmente, como na excelente "Save a Prayer" do segundo álbum, na boa "Reflex" do disco anterior, e na ótima "A View to a Kill" da trilha do filme "Na Mira dos Assassinos" da série 007.
"Notorius" é técnico, sofisticado e charmoso. Um pop limpo, ainda comercial mas com alguns toques sutis do darkismo em voga naquela metade dos anos 80, estrategicamente pensado para ganhar também aquele filão de público que era significativo naquele momento. A começar pelo visual da banda que trocava as roupas coloridas e extravagantes por um figurino mais sóbrio e levemente sombrio como mostra a capa do álbum, a influência pode ser notada de forma bem evidente em faixas gélidas como "Winter Marches On" ou de forma mais sutil na condução moderada de "American Science" e em "Hold Me", pop-rock competente mas muito mais duro e contido do que os seus habituais.
Mas provavelmente a maior mudança e a marca deste disco seja a influência do funk, do soul e dos ritmos negros nas composições. Muito por influência do produtor, o brilhante Nile Rodgers, ex-integrante do Chic, nos anos 70. A excelente "Notorious", é um bom exemplo deste toque black de Nile Rodgers aliado ao reflexo gótico daqueles tempos. Apesar de embalada e muito soul-music, a música que dá nome ao disco, carrega uma certa aura obscura, que a torna mais interessante ainda. Os teclados do craque do time, Nick Rhodes, com suas texturas imitando metais e com as ritmadas pontuações de piano são matadoras e por certo o grande ponto alto da canção.
Destaque também para a ótima "Skin Trade", muito "Chic"; para o pop pungente "Meet El Presidente"; para "So Misled", música normalmente não muito destacada mas uma das melhores do disco; e para a balada "A Matter of Feeling", um dos grandes hits do disco.
O álbum, apesar do bom desempenho comercial, teve opiniões divididas a seu respeito. Pode-se dizer que fãs que estava mais interessadas no visual dos garotões ficaram um tanto decepcionados com um disco mais rico e trabalhado musicalmente. Já pessoas interessadas em um boa música entenderam e gostaram conquistando até, alguns, como eu, que não simpatizavam muito com o grupo.
Depois de "Notorious" a banda alternou bons e maus momentos. As idas e vindas, as excessivas trocas de integrantes e as frequentes "adaptações" às tendências musicais fizeram com que a banda não mantivesse uma constância nem tampouco uma produção coerente e qualificada. Para piorar, como já não são mais garotos, o antigo apelo às fãs histéricas funciona muito pouco hoje em dia e se muito, vale pela memória. Se para muitos (ou muitas) o que vai ficar na lembrança serão os cabelos arrepiados e corte mullet dos anos 80, de minha parte o que não será esquecido é o único grande disco que produziram. Qual? É notório.
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A temporada de shows pelo Brasil está "bombando" neste final de ano e vou gozar deste benefício (ainda que seja um "benefício" caro).
Além do badalado show da Madonna em dezembro, que já é de conhecimento geral, anuncia-se agora Cindy Lauper e Duran Duran, também em turnê pelo país.
Provavelmente vou ver a Cindy Lauper (aqui no Rio, dia 15 de novembro). O Duran em São Paulo custará R$200,00 e imagino que deva ser mais ou menos isso aqui no Rio, com apresentação prevista para 23 de novembro. Aí, tô fora. É legal mas não vale duzentas pratas.
Vou também ao Tim Festival ver o MGMT, que conforme havia postado aqui anteriormente, foi uma das coisas que mais me impressionou sonoramente nos últimos tempos e que se apresentam aqui no dia 24 deste mês.
Perdi o Justice pq estava lesionado e mal podia andar ou pular e curtir e também perdi o NIN e o Cult que não vieram ao Rio.
Em compensação, já tô com o ingresso na mão pra ver a Madonna, que como falei, também aqui neste espaço, não me empolga muito com o novo álbum, mas é sempre Madonna.
Vocês acham que sabem o que tem dentro deste pote. Não tem nada coração de Dom Pedro I, não! São as relíquias que o MDC 281 vai trazer nesta quarta. Lotado de boa música, ali tem The Doors, Fundo de Quintal, Public Enemy, Duran Duran, Body Count, Lory F Band e mais. Ainda tem um espacinho pra um Cabeça dos Outros, esse sim, vindo de Portugal. Conservado em formol, o programa de hoje vai ao ar na imperial Rádio Elétrica. Produção, apresentação e coração batendo: Daniel Rodrigues.
Abaixo o Marco Temporal! Exaltando o que se deve, demarcamos o nosso tempo com que há de melhor neste MDC, a se ver por Stevie Wonder, Caetano Veloso, Duran Duran, Smashing Pumpkins, Paulo Zdane um Cabeça dos Outros.Sem PL 203, o programa está marcado para as 21h na atemporal Rádio Elétrica. Produção, apresentação e dignidade aos povos originários: Daniel Rodrigues
O 1º de Maio já passou, mas a gente não para de trabalhar nunca para fazer prosperar a boa música, evidentemente. Enfileirando na esteira a gente tem Mutantes, Aimee Mann, Maria Rita, Duran Duran, Milton Nascimento e mais. Na pausa para o descanso, ainda um Sete-List para escutar um jazz enquanto pega um sol com os colegas. O portão da fábrica já foi aberto e é só entrar e bater o ponto, às 21h, na fordista Rádio Elétrica. Produção, apresentação e produção em série: Daniel Rodrigues.
“’D’ é um instantâneo de uma banda lidando com uma recém-conquistada consagração em plena forma. O disco não encerra um ciclo artístico, pelo contrário, coloca possibilidades sobre a mesa, exala total frescor e antecipa as direções que o grupo seguiria, profundamente transformado por este aceno ao Brasil. Jamais eles seriam os mesmos.”Carlos Eduardo Lima, jornalista e historiador
Desde muito cedo tive uma ligação especial com Os Paralamas do Sucesso. Quando comecei a gostar de música, nos anos 80, ali pelos 7, 8 anos, era o Paralamas, entre os grupos surgidos no rock brazuca da época, que mais me faziam a cabeça. Gostava, claro, da Legião Urbana, dos Titãs, do RPM, do Capital Inicial e de outras. Mas o power trio formado por Herbert Vianna (guitarra e vocais), Bi Ribeiro (baixo) e João Barone (bateria) me transmitia algo a mais. Talvez já antevisse o meu gosto – que mais crescido passaria a tomar lugar igualmente especial em meu imaginário musical – pelos ritmos latinos e brasileiros, aos quais cedo souberam mesclar a seu rock potente e melódico. Tanto é fato essa ligação forte com a banda que o meu primeiro disco que ganhei, no Natal de 1986, foi um cassete de “Selvagem?”, daquele ano, disco no qual o Paralamas consolidava o discurso social e seu estilo de rock tomado de reggae e ska jamaicanos, mas também conectado com os ritmos Brasil e a América Latina.
Sucesso nas rádios, uma apresentação histórica no primeiro Rock in Rio e três discos lançados deram ao grupo a maturidade suficiente para os levar ao Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. Acompanhada do hoje “quarto Paralama”, o não à toa chamado João Fera, que estreava com eles nos teclados, a banda desembarcava no festival mais democrático e amplo do jazz mundial, repetindo o feito de outros brasileiros que marcaram época por lá, como Elis Regina, Gilberto Gil e João Gilberto. Se no passado estes foram os responsáveis por difundir a MPB na Europa, agora era a vez da mais completa banda do rock brasileiro dos anos 80 mostrar o que esta geração tinha de melhor. O resultado disso é o brilhante disco “D”, registro ao vivo que está completando 30 anos.
Com os quatro tocando tudo e mais um pouco sobre o palco, “D” tem repertório muito bem escolhido, valorizando, obviamente, a safra do último trabalho em estúdio, mas também incluindo hits, material novo e até surpresas. De “Selvagem?”, há as versões irrepreensíveis da filosófica “O Homem” (“O homem traz em si a santidade e o pecado/ Lutando no seu íntimo/ Sem que nenhum dos dois prevaleça...”) e do reggae-punk “Selvagem”, tão político e cru que poderia muito bem ser uma canção dos Titãs – tanto tem semelhança, que Herbert canta incidentalmente durante a execução "Polícia", clássico deles.
Ainda referentes à turnê do recente álbum, outras duas: "A Novidade", que reproduz o reggae suingado da original, imbatível diante das outras duas versões ao vivo que a música ganhou anos depois: uma, com o coautor, Gil, em 1994, num reggae arrastado, e a meio ragga, que os Paralamas gravariam em “Vâmo Batè Lata”, de 1995. Além disso, o primor da letra de Gil - com quem a parceria já denotava a intencionalidade de maior diversidade sonora da banda - merece sempre destaque: lírica, reflexiva, surrealista: “A novidade era o máximo/ Do paradoxo estendido na areia/ Alguns a desejar seus beijos de deusa/ Outros a desejar seu rabo pra ceia”. A segunda é a salsa pop "Alagados", um dos hits da época que, na esteira da MPB de protesto dos anos 70, denunciava as condições indignas de vida dos miseráveis, seja da vila dos Alagados, em Salvador, das favelas cariocas ("a cidade que tem braços abertos num cartão-postal") ou de Trenchtown, na Jamaica, tão próxima do Brasil em cultura e miséria. Não por acaso, neste número, Herbert cita versos de "De Frente Pro Crime", um dos sambas-denúncia de João Bosco e Aldir Blanc escritos nos anos 70.
“D”, porém, guarda também surpresas. Uma delas é a que abre o disco: o arrasador reggae "Será Que Vai Chover?” em sua primeira execução pública e cuja inspiração em Jorge Benjor é inequívoca, seja em “Chove Chuva” ou “Que Maravilha”. A presença espiritual do Babulina se confirma mais adiante durante o show, quando o trio manda uma interpretação histórica de "Charles, Anjo 45", comprovando o que a banda já sabia muito bem fazer desde seu primeiro disco: versar outros artistas.
Não faltaram, igualmente, os sucessos, como uma matadora "Ska" (com a participação do “abóbora selvagem” e amigo George Israel no sax), "Óculos" e "Meu Erro", esta última, que fecha este memorável show d'Os Paralamas do Sucesso em solo suíço. A banda lançaria ainda mais sete álbuns ao vivo ao logo da carreira. Porém, mesmo três décadas decorridas, nenhum se equipara à qualidade, pegada e espírito de “D”. Com os rapazes no auge, esta apresentação simbolizou o merecido reconhecimento à geração do rock brasileiro dos anos 80 no mundo. Em uma época de alta efervescência no universo do pop-rock, com gente do calibre de U2, The Cure, Sting, Madonna, Duran Duran, Bon Jovi, Prince, entre outros, em plena forma, o BRock mostrava que também merecia atenção pela originalidade inimitável da música feita no Brasil.
Os Paralamas do Sucesso - "Ska" (ao vivo em Montreux, 1987)
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FAIXAS:
1. "Será Que Vai Chover?" (Herbert Vianna)
2. "Alagados" (Música incidental "De Frente Pro Crime" - João Bosco, Aldir Blanc) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
3. "Ska" (Herbert Vianna)
4. "Óculos" (Herbert Vianna)
5. "O Homem" (Bi Ribeiro, Herbert Vianna)
6. "Selvagem" (Música incidental: "Polícia" - Toni Bellotto) (Bi Ribeiro, João Barone, Herbert Vianna)
7. "Charles, Anjo 45" (Jorge Ben)
8. "A Novidade" (Bi Ribeiro, João Barone, Gilberto Gil, Herbert Vianna)
Os irlandeses da U2, no topo da lista, em foto de Anton Corbjin da época de "Bad"
Sabe aquela música de um artista pop que você escuta e se
assombra? E o assombro ainda só aumenta a cada nova audição? “Caramba, que som
é esse?!”, você se diz. Pois bem: todas as décadas do rock – principalmente a
partir dos anos 60, quando as variações melódico-harmônicas se multiplicaram na
reelaboração do rock seminal de Chuck Berry, Little Richard e contemporâneos – são
repletas de músicas assim: clássicos imediatos. Mas por uma questão de autorreconhecimento, aquelas
produzidas nos anos 80 me chamam bastante a atenção. É desta década que mais
facilmente consigo enumerar obras desta característica, as que deixam o ouvinte
boquiaberto ou, se não tanto, admirado.
Conseguiu entender de que tipo de música estou falando?
Creio que talvez precise de maior elucidação. Bem, vamos pela didática das duas
maiores bandas rock de todos os tempos: sabe “You Can´t Always Get What You
Want”, dos Rolling Stones, ou “A Day in the Life”, dos Beatles? É esta
espécie a que me refiro: podem não ser necessariamente as músicas mais consagradas
de seus artistas, nem grandes hits, mas são, inegavelmente, temas grandiosos, emocionantes,
que elevam. Você pode dizer: “mas têm outras músicas de Stones ou Beatles que
também emocionam, também são grandes, também provocam elevação”. Sim, concordo.
Porém, estas, além de terem essa característica, parecem conter em sua gênese a
ideia de uma “grande obra”. Dá pra imaginar Jagger e Richards ou Lennon e
McCartney – pra ficar no exemplo da tabelinha Beatles/Stones – dizendo-se um
para o outro quando compunham igual Aldo, O Apache em "Bastardos Inglórios": “Olha, acho que fizemos nossa obra-prima!”
Quer mais exemplos? “Lola”, da The Kinks; “Heroin”, da Velvet Underground; “Marquee Moon”, da Television; "We Are Not Helpless", do Stephen Stills; "Kashmir", da Led Zeppelin. Sacou? Todas elas têm uma integridade especial, uma alma mágica, algo de circunspectas, quase que um selo de "clássica".
Pois bem: para ficar claro de vez, selecionamos, mais ou menos em ordem de preferência/relevância, as 30 músicas do pop-rock internacional dos anos 80 as quais reconhecemos esse caráter. Para modo de poder abarcar o maior número de artistas, achamos por bem não os repeti, contemplando uma música de cada - embora alguns, evidentemente, merecessem mais do que apenas uma única indicada, como The Cure, U2 e The Smiths. Haverá as que são mais conhecidas ou mais obscuras; as que, justamente por conterem certo tom épico, se estendem mais que o normal e fogem do padrão de tempo de uma "música de trabalho"; artistas de maior sucesso e outros de menor alcance popular; músicas que inspiraram outros artistas e outras que, simplesmente, são belas.
E desculpe aos fãs, mas, claro, muita gente ficou de fora, inclusive figurões que emplacaram superbem nos anos 80, como Michael Jackson, Elton John, Bruce Springsteen e Queen. Até coisas que adoraria incluir não couberam, como “Hollow Hills”, da Bauhaus, “Hymn (for America)”, da The Mission, "51st State", da New Model Army, "Time Ater Time", da Cyndi Lauper, "Byko", do Peter Gabriel, "Up the Beach", da Jane's Addiction, "Pandora", da Cocteau Twins, "I Wanna Be Adored", da Stone Roses... Mas não se ofendam: tendo em vista a despretensão dessa listagem, a ideia é mais propositiva do que definidora. Mas uma coisa une todos eles: criaram ao menos uma música diferenciada, daquelas que, quando se ouve, são admiradas de pronto. Aquelas músicas que se diz: “cara, que musicão! Respeitei”.
Chuva só se foi de musicalidade com o versátil e eclético João Donato no palco.
O
temor era de que caísse um toró como ocorrera na manhã daquele
domingo. O espetáculo estava marcado para as 11h, porém, ali pelas
9h, o tempo mostrava-se nublado mas estável, sem nenhuma chuva. Com
a programação confirmada pelas redes sociais, fomos, Leocádia e
eu, assistir ao principal e derradeiro dos shows gratuitos do 1º
Porto Alegre Jazz Festival. E, ao contrário do que pudesse se
esperar, não foram pingos que caíram sobre nós, mas um sol forte
de mormaço que assolou o Parque da Redenção. O clima abafado,
entretanto, não tirou o prazer de assistir a uma das lendas vivas da
MPB e da música mundial: o pianista, acordeonista, arranjador,
compositor e cantor acreano João Donato.
Com
sua simpatia peculiar, Donato, um dos principais músicos brasileiros
de todos os tempos, veio à cidade comemorando seus 80 anos de vida.
Acompanhado de uma maravilhosa banda – Robertinho Silva, craque da
bateria; Luiz Alves, baixo acústico; Ricardo Pontes, sax alto e
flauta; e José Arimatéa, flughorn e sax tenor –, ele nos inundou
com o que há de mais cristalino na música brasileira sintonizada
com o mundo. Tudo compartilhado com o público com a sabedoria e a
doce malandragem que sempre lhe foram características. Não à toa,
o tema inicial do show foi “Amazonas (Keep Talking)”, clássico
do álbum "Quem é Quem", de 1972, resenhado aqui no blog por
Márcio Pinheiro. Sente-se nela o mambo cubano, o jazz fusion,
a Bossa Nova, a soul music, tudo enredado num riff de
piano inconfundível e solos magníficos de Donato, de Alves e dos
dois sopros. Grandiosa como o rio que leva seu nome.
A
sensação mágica de estar vendo João Donato ao vivo logo se
ressalta. É assombroso perceber que justo aquele senhor animado e
tomado de genialidade no palco é o ÚNICO compositor pré-Bossa Nova
vivo. O único! Todos já se foram: Dolores Duran, Antonio Maria,
Billy Blanco, Johnny Alf, Paulo Moura, Moacir Santos – e, claro, o
próprio Tom Jobim, que foi pré, durante e pós-Bossa. Donato, este músico de formação tão erudita quanto popular, que viveu o boom
da Bossa Nova mas logo se bandeou para os Estados Unidos para
realizar obras referenciais como “A Bad Donato” (1970) e
“Donato/Deodato” (em parceria com Eumir Deodato, de 1973), não
só seguiu produzindo espantosamente nos anos 70, 80 e 90 afora como,
está aí até hoje, desbravando oceanos.
Sensação mágica de estar vendo ao vivo
um dos maiores gênios da música brasileira.
Mas se
o assunto era água, em seguida Donato chamou a todos para caírem na
lagoa com “O Sapo”, outro marco de seu repertório que, na versão
do show, não veio com a letra de Caetano Veloso (que a reintitula de
“A Rã”), mas com o vocalise clássico – algo como:
“Pã-rã-rã-rã/ Pã-rã-rã-rã-rá daza-inguê/
Daza-inguê-inguê guin-rin-gui-din/ Guin-rin-gui-din gui-din
gon-ron-gon-don/ Gon-ron-gon-don pã-rã-rã-rã...” – que,
até onde vai meu conhecimento, teve sua “letra” inventada por João Gilberto quando este a gravou em 1971 no disco “João
Gilberto en Mexico”.
Vieram
outras belezas de total musicalidade: “Rio Branco” (referência à
cidade-natal do compositor mas não menos aquífera em conceito); a
gostosa “Nasci para Bailar”, que trouxe novamente os ritmos
caribenhos; a romântica “Até quem sabe”; o bop “Song
of my Father”, do pianista norte-americano Horace Silver; e o samba
cool “Café com Pão”.
Das
celebradas parcerias com Gilberto Gil tivemos o privilégio de ouvir
algumas das melhores. Primeiro, “Bananeira” (“Bananeira, não
sei/ bananeira, sei lá/ a bananeira, sei não/ a maneira de
ver...”), animada e cantada pela plateia. “Lugar Comum”,
das mais belas do cancioneiro de ambos os músicos, veio em ritmo de
bossa nova, como a água do mar batendo, como um “começo docaminhar pra dentro do fundo azul”. A sabedoria oriental
desta (“Tudo isso vem, tudo isso vai/ Pro mesmo lugar de onde
tudo sai...”) se reflete em outra parceria da dupla, “A Paz”,
das preferidas do público. Esta, porém, quase foi estragada por uma
participação (nada) especial do músico gaúcho Totonho Villeroy
(ah, não pode mais chamar de “Totonho”? Tem que ser Antonio
agora, pra dar o ar de “artista sério”? Puxa, desculpe, mas até
João Donato o anunciou assim). Não fosse o espetacular riff,
a melancólica e profunda letra de Gil (que remonta ao cinema de Ozu
à "Rosa de Hiroshima" de Vinícius) e o primor da execução da
banda, Villeroy, desatento e sem brilho, quase direcionou a bomba
atômica que cairia sobre o Japão para Porto Alegre. Ele conseguiu,
apenas cantando e no único momento em que esteve no show, errar a
letra! E duas vezes! O público e Donato (este, com oito décadas nas
costas) tiveram que lembrá-lo, como num karaokê. Ridiculamente
desnecessário.
Ainda
rolaram duas de autoria de Donato com Martinho da Vila, mostrando o
quanto a natureza africana e rural do segundo se reflete na
universalidade estilística do colega. Uma delas, “Suco de
Maracujá”, um samba maxixado cuja engraçada letra, de estilo
literário típico do compositor carioca, relata a preocupação de
um homem prestes a se casar com uma mulher muito fogosa (“Pra me
casar com você/ Eu vou ter que me cuidar/ Contratar um personal/
Treiner pra me acelerar”). E, dependendo das situações do
cotidiano do casal, a dieta dele vai se alterando: “Quando a
gente for deitar/ Um bom pó de guaraná/ Se a quentura tiver morna/
Come um ovo de codorna/ E se a noite for infinda/ Aí só Pau de
Cabinda/ Se ela quiser bis no fim/ Pimenta no amendoim/ E depois pra
me acalmar/ Suco de maracujá.” O outro samba, “Daquele amor
nem me fale”, também chistosa, dá uma cutucada no Governo:
“Posso até discutir religião/ Ou falar num domingo de sol/
Criticar a terrível inflação/ O machismo, o racismo a tortura/ Mas
daquele amor, Nem me fale...”.
O show
terminou com João agradecendo aos gaúchos por terem trazido o sol,
mas não sem antes gritar seu tradicional jargão para que a banda
finalize os números: “Água!”. Coincidência ou não com
a chuva que se prenunciava e não precipitou, ouvimos isso duas
vezes, uma delas, inclusive, na faixa que encerrou a apresentação
abaixo de muito sol, a marchinha “O bicho tá pegando” (“O
coro tá comendo/ O bicho tá pegando”), que instaurou um clima
de dança de salão no parque.
Assistir
João Donato, ainda mais já numa idade assim tão avançada (e que,
pelo contrário, ele não parece ter), é realmente muito especial,
pois fica ainda mais evidente nessas horas a grandiosidade da música
brasileira, que, naturalmente, se posiciona entre todos os chamados
“estilos” musicais. Donato é genuinamente jazz? É. E é
genuinamente MPB? É também. É tudo – e mais um pouco. Tanto faz
o rótulo. O fato é que saímos, com perdão do trocadilho,
encharcados de boa música, de música pura, límpida. Tu és água,
João Donato.
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais
um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha
querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor,
compositor e violonista Toquinho e a
cantora Maria Creuza se reuniram
para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do
escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi
especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um
espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que
deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes
en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco
juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O
show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes,
pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a
cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de
compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong).
Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a
“sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música
brasileira, como Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Jorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada,
faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como
“Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te
Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A
Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda
parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho
ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico
instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele
contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou
depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido”
amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus
maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la
em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava
prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No
entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para
São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius
desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal
havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora
depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um
dos maiores clássicos da MPB.
O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações
de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com
Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente
que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já
escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as
tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e
“Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela
ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De
uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como
ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das
complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem
subestimá-las.
No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo
mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra
valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico,
“Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como
Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não
crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter
sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período
tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação
entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran,
Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico,
Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a
tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E
mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria
Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de
130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas,
muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas
talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.
Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips, Universal e em edição conjunta com o disco imediatamente anterior de João, "Amoroso"
"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário".
Gilberto Gil
"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira".
Maria Bethânia
"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado".
Caetano Veloso
Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa
fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez
sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes
é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não
raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o
povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os
continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto
o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só
samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do
maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer
então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por
consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a
realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...
O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual
que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços?
A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo
interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal
e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao
inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às
harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a
tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do
seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o
Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela
metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa
da produção intelectual mundial.
Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores,
chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado
"Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o
destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo,
juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus
versos.
O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas,
sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de
lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na
carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do
álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de
ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem
trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O
repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos
50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos
matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas
dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas
era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano
para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.
Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João ao vivo exibindo sua arte: momento único
Celebrações se inauguram ao som de hinos. Não poderia ser
diferente, então, que o disco começasse com aquele que é considerado o segundo
símbolo musical nacional, talvez mais conhecido que o próprio hino pátrio: “Aquarela
do Brasil”. O clássico de Ary Barroso – então já imortalizado em gravações como
as de Francisco Alves com a orquestra de Radamés Gnatali, em 1939, ou a de Elis Regina, de 30 anos depois – ganha uma versão revestida de personalidade e
elegância e que vai ditar o conceito de toda a obra. Os primeiros acordes
são emitidos da espinha dorsal: o violão, instrumento que João integrou à voz
na sua revolução bossa-novista ao invés de dissociar um elemento do outro como
até então havia sido em música popular. Porém, desta vez ele tem correligionários para acompanhá-lo
em sua magia, pois é um uníssono emocionante o que se ouve. Os famosos versos
ufanistas "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou
cantar-te nos meus versos" saem das vozes de João, Gil e Caetano juntas. Quanta
história e simbologia unidas! Assim, impactante, como a delicada força das águas
do mar, eles intercalam-se, cada um repetindo uma vez a letra sozinho para,
num final triunfante, tornarem a unir os vocais, agora acompanhados da
empolgante percussão comandada por Paulinho da Costa e os teclados e
sintetizadores arranjados por Johnny Mandell. A sensação ao final da faixa é
que podia até ficar somente nisso, de tão completo que é. Mas tem mais.
A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”,
samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da
música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a
perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com
seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas,
joão-gilbertiando o que há de bom.
A união de vozes do trio volta para interpretar uma
deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz
rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo
impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra
baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia,
que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No
Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa
voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e
a bossa nova em si –, mínimo é mais.
A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a
vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante:
pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música
brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons
que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem
emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.
Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo
menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil
que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os
germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos
forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado
dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente,
faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa
legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas
ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o
Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e
contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas
protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do
peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual.
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documentário "Brasil",de Rogério Sganzerla (1981)
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FAIXAS: 1. "Aquarela do Brasil (Brasil)" (Ary Barroso) - 6:34 2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks,
Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18 3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13 4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50 5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57 6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20