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quarta-feira, 10 de abril de 2013

Baden Powell e Vinícius de Moraes - "Os Afro-Sambas" (1966)


"Nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica (...) é esta sem dúvida a nova música brasileira (...) digo-o em consideração a sua extraordinária qualidade artística, à misteriosa trama que os envolve: um tal encantamento em alguns que não há como sucumbir à sua sedução, partir em direção ao seu patético apelo."
Vinícius de Moraes,
na contracapa da edição original



Assim que aquilo começou a tocar foi como seu eu tivesse sido capturado por um canto de sereia. Aquele coro feminino quase hipnótico, aquele batuque, aquele aquela voz sussurrada, aquele violão mágico. O que era aquilo?  O violão sofisticado de Baaden Powell, unido à poesia característica e ao vocal arrastado de Vinícius de Moraes, explorando os ritmos afro-brasileiros com classe, estilo, requinte, ao mesmo tempo que com simplicidade e crueza, compunham um dos álbuns mais notáveis da música brasileira, “Os Afro-Sambas”, de 1966.
Uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens.
“Canto de Ossanha”que abre o disco é simplesmente emocionante com seu dueto inicial de Vinícius com a atriz Betty Faria, naquela espera com voz ofegante para a introdução do refrão e finalmente na explosão do estribilho com o coro do Quarteto em Cy.  Lindíssima, espetacular, fantástica!
O Quarteto em Cy, que a propósito, faz os vocais de apoio em todas as canções do álbum, são destaque na incrível “Canto de Xangô”, de arranjos vocais admiráveis de linhas clássicas contrastando com uma percussão marcante bem característica de pontos de umbanda; e na linda “Bocoché” na qual as vozes parecem emergir do fundo do mar.
“Tempo de Amor” é bem samba-de-raiz, bem samba de fundo-de-quintal, que aliás foi a intenção de como o disco deveria soar.  Puro, primário como uma roda de samba, rústico como um terreiro de candomblé. “Canto do Caboclo Pedra-Preta” também soa bem crua, bem básica e o destaque é para a interpretação magistral de Vinícius, que nem sequer era um grande cantor. Já “Tristeza e Solidão” é mais requintada, e embora tenha o instrumental percussivo, a bateria, os agogôs, os atabaques, bem destacados e evidentes, aparece como uma espécie de bossa-nova bem trabalhada.
O disco fecha com “Lamento de Exu”, faixa sem letra, marcada apenas pela técnica da execução de Baden, emoldurada por evoluções vocais líricas do coro feminino, constituindo, então, um encerramento grandioso e digno de um grande álbum.
Um dos discos que mais me impactou nos últimos tempos. Assim que comecei a ouvi-lo na casa do meu irmão, Daniel , conforme descrevi acima, me apaixonei. Até copiei um arquivo para mim, mas como sou chato e gosto mesmo de mídias originais, recentemente adquiri uma edição inglesa do álbum. Foi meio difícil achar, mas valeu o esforço. Aqui no Rio, por exemplo, estive em uma loja de discos bem conceituada em MPB, a Toca do Vinícius, à cata deste “Afro-Sambas” e de uma boa coletânea do Nelson Cavaquinho. Chagar a ir até lá era algo do tipo “se não tiver na Toca do VINÍCIUS, não tem mais em lugar nenhum”. O dono da loja indicou-me que encontraria facilmente algum do Nélson em uma Loja Americanas da vida, mas meio que me desanimou quanto ao “Afro-Sambas”, dizendo-me que somente com muita sorte o encontraria em LP no Brasil, e em CD só encontraria no exterior, mas que me parabenizava pelo bom gosto. Agradeço, caro comerciante, ainda mais sabendo dos títulos que lida e manuseia todos os dias em sua loja, mas o elogio não é para mim. Não sou eu, o disco que é de muito bom gosto. De muitíssimo bom gosto. Eu só fui capturado.
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FAIXAS:
  1. Canto de Ossanha - 03:23
  2. Canto de Xangô - 06:28
  3. Bocoché - 02:34
  4. Canto de Iemanjá - 04:47
  5. Tempo de amor - 04:28
  6. Canto do Caboclo Pedra-Preta - 03:39
  7. Tristeza e solidão - 04:35
  8. Lamento de Exu - 02:16
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Ouça:

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 12 ANOS DO CLYBLOG - Toquinho & Vinícius de Moraes - “São Demais os Perigos Desta Vida...” (1972)

 

Acima, capa original,
com arte de Carlos Leão
As outras duas, capas das
versões para os mercados
latino e francês,
respectivamente, de 1973

"São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão principalmente
Quando uma lua chega de repente
E deixa no seu, como esquecida
E se o lugar que atua desvairado
vem se unir uma música qualquer
Vem se unir uma música qualquer..."


O disco “São Demais os Perigos Desta Vida...”, de Toquinho e Vinícius de Moraes. é, parafraseando os próprios, para viver um grande amor. Desde a primeira vez que o escutei, tornou-se um vinil inseparável para mim e que está sempre à mão. Escuto todo ele, mas a faixa que lhe dá título, “São Demais...” é a que se repete... se repete... se repete. Tanto na tristeza de uma perda como na espera de um outro grande amor como nas alegrias próprias de um novo começo.


"Aí estão é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher
Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer de tão perfeita..."


A capa do disco, com desenho de Carlos Leão, é linda. A do meu LP está bem judiada. Não têm muitas informações sobre o disco propriamente, e o encarte com os créditos já nem me lembro mais. É o segundo disco da parceria gravado em 1972. E foi nesse ano que descobri este disco, que mexe com a minha alma.


"E que a vida não quer de tão perfeita
Uma mulher que é  como a própria lua:
Tão linda que só espalha sofrimento."
da letra de "São Demais os Perigos Desta Vida...” 



por  W L A D Y M I R   U N G A R E T T I


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FAIXAS:
01. "Cotidiano Nº 2" (Como Dizia O Chico...)
02." Tatamirô" (em louvor de Mãe Menininha do Gantois) "Ponto de Caboclo" da Bahia, em arranjo de Edinho do Gantois
03. "São Demais Os Perigos Desta Vida..."
04. "Chorando Prá Pixinguinha"
05. "Valsa Para Uma Menininha"
06. "Para Viver Um Grande Amor"
07. "Menina Das Duas Tranças"
08. "Regra Três"
09. "No Colo Da Serra"
10. "Canto De Oxalufa"
Todas as faixas de autoria de Toquinho e Vinícius

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Wladymir Ungaretti foi durante os últimos 25 professor de Jornalismo da Fabico/UFRGS. Exerceu a profissão por 40 anos em diversas redações. Comanda e edita o blog  Pontodevista: www.pontodevista.jor.br e assina suas fotos com a marca Wu. 
Outros links: wladyunga.tumblr.com/ e br.pinterest.com/ungareti3499/

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Discos para (e de) quarentena


A Queen, isolada numa
fazenda para gravar sua
obra-prima
Nesse período de isolamento em casa pela Covid-19, de todo lado surgem listas com indicações do que se ler, assistir e, bastantemente, ouvir. De playlists a discos, muitos recorrem à música pra aliviar a barra da clausura forçada. Eu mesmo colaborei com uma seleção recentemente para o site AmaJazz sobre os discos de jazz que 50 pessoas escolheram para escutar na quarentena – o meu, aliás, foi "The Real McCoy", de McCoy Tyner, a pouco resenhado por mim para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog.

Mas o que ainda não ouvi falarem são os discos não necessariamente próprios para este momento, mas os FEITOS em isolamento. Seja no estúdio improvisado na própria casa, num apartamento fechado, numa mansão isolada da civilização e até num hospício ou cadeia. Tem de tudo. Não é novidade que artistas em geral busquem essa condição de recolhimento para se concentrar, principalmente quando intentam um projeto novo. Porém, geralmente isso ocorre de maneira controlada e adaptada a um fluxo rotineiro. Aqui, não. Falamos de exemplos da discografia do rock, da MPB, da black music e do jazz concebidos ou gravados em condições extremas de afastamento de qualquer outra coisa que pudesse interferir além da própria criação musical. Tamanho foco não raro acarretou em trabalhos brilhantes, sendo alguns bastante recorrentes em listas de melhores em vários níveis.

Woodland, a casa que viu nascer
"Trout...", da Captain Beefheart
Mesmo que o motivo para se isolar destes discos não seja o de um perigo à saúde como hoje, cada um deles é, a seu modo e motivo, também fruto de um momento necessário de reflexão. Se seguirmos o termo pelo que diz o dicionário, "reflexão", do latim tardio, quer dizer "ato ou efeito de refletir algo que se projeta". Música, assim como toda arte, não é exatamente isso?

Aqui, então, uma listagem que serve como dicas para audição nestes dias com 15 discos cujo processo de isolamento lhes foi essencial para serem concebidos, mesmo que a própria sanidade mental de seus autores tenha sido, em certos casos, comprometida para que isso ocorresse (se é que já não estava). Se a nossa saúde física está em perigo atualmente, a discografia musical, diante dessa (aparente) contradição entre “liberdade” e “prisão”, é capaz de sanas nossas mentes.


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1. “Os Afro-Sambas” – Baden Powell e Vinícius de Moraes (1966)
Local: Casa de Vinícius de Moraes, Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, Brasil

Já resenhado aqui no blog, é o exemplo clássico na música brasileira de confinamento que deu certo. Mas não um isolamento para ficar limpo ou longe da família e das tentações. Os instrumentos de home office foram o poderoso violão de Baden, o papel e a caneta de Vinícius e um engradado de whisky 12 anos. “Eu fiquei tão entusiasmado que passamos uns três meses completamente enfurnados”, disse Vinícius sobre a temporada em que abrigou Baden em seu apartamento no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, para comporem as mais de 50 canções que resultariam n”Os Afro-Sambas”. Depois da concepção, foi só lapidar em estúdio com as intensas percussões, os arranjos e regência do maestro César Guerra-Peixe e as participações vocais do Quarteto em Cy e de Dulce Nunes. Como Cly Reis bem colocou na resenha de 2013, “Os Afro-Sambas” é “uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens”.

OUÇA O DISCO


2. “Music from Big Pink” – The Band (1968)
Local: "Big Pink", West Saugerties, Ulster, Nova York, EUA

Ia tudo bem com os canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Richard Manuel em 1966. Eles formavam o grupo de apoio de Bob Dylan no clássico “Bringing It All Back Home” e revolucionavam o folk rock ao eletrificá-lo de forma inequívoca. Mas o perigo está sempre à espreita. Não demorou muito para que as reações contrárias viessem e as vibrações ruins dos conservadores da música norte-americana afetassem tanto Dylan, que o fizeram se acidentar de moto. Fim da linha? Não, pelo contrário: fase superprodutiva. Com músicas até sair pela orelha, os rapazes da The Band alugam uma casa de cor rosa em West Saugerties, uma pacata vila no Condado de Ulster, em Nova York, e concebem seu primeiro e histórico álbum, metalinguisticamente chamado de “música da grande casa rosa”. Resultado: “Music...”, cuja capa reproduz um óleo da autoria de Dylan, é classificado como 34º melhor disco pela Rolling Stone's entre os 500 maiores de todos os tempos. Não precisa dizer mais nada.


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3. “Trout Mask Replica” – Captain Beefheart & His Magic Band (1969)
Local: Woodland Hills, Ensenada Drive, Modesto, Califórnia, EUA

O blueser vanguardista Don Van Vliet já havia dado ao mundo do rock dois discos memoráveis com sua Captain Beefheart: Safe as Milk (1967) e Strictly Personal (1968). Mas um filho musical de Frank Zappa como ele jamais se contenta com o que já fizera. Movido por um desejo artístico superior, Vliet fez, então, “Trout...”. Reproduzo o parágrafo que abre a resenha que escrevi em 2013 sobre este disco aqui para o blog, pois vai na essência do que essa obra representa: “Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. (...) Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira ‘obra de arte’, um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.”

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4. “Gilberto Gil” - Gilberto Gil (1969)
Local: Quartel da Vila Militar, Deodoro, Rio de Janeiro, e domicílio-prisão, Rua Rio Grande do Sul, Pituba, Salvador, Brasil

Antes de “Changin’ Time”, do norte-americano Ike White (que falaremos logo adiante), outro grande disco cunhado em regime de cárcere era produzido, infeliz ou felizmente, no Brasil. Foi em 1969, nos anos de ditadura militar. O que se tem a celebrar desse capítulo triste da história brasileira é que nem a repressão foi suficiente para impedir que a genialidade de Gilberto Gil produzisse um álbum grandioso tanto em qualidade quanto em simbologia e resistência. O supra-sumo do tropicalismo. E ainda num ínterim tenso e degradante. Em prisão domiciliar em Salvador após meses encarcerado no Rio de Janeiro e quatro meses antes de embarcar para o exílio em Londres, Gil lançou mão apenas de seu violão e de sua voz para gravar as bases de todas as músicas que comporiam seu novo álbum. Nove preciosidades que, quando foram parar nas mãos de Rogério Duprat para que este as produzisse e as vestisse com os outros instrumentos e orquestrações, seu autor já estava em pouso forçado no Velho Mundo. O antropólogo Hermano Vianna observa, abismado, que "Gilberto Gil" “é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado”. Milagre maior é saber que desse disco há obras como “Aquele Abraço”, “Futurível”, “Cérebro Eletrônico” e “Volks Volkswagen Blues”.

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5. “Barrett” – Syd Barrett (1970)
Local: Fulbourn Hospital, vila de Fbridbourn, Cambridgeshire, Inglaterra

Syd Barrett é daqueles gênios que nunca bateram muito bem. A capa, desenho dele, denota esse ínterim entre a loucura e a mais graciosa sanidade. Ao mesmo tempo em que produzia coisas incríveis, como a marcante participação (e fundação!) na Pink Floyd, era capaz de cair num estado vegetativo indissolúvel. A esquizofrenia era ainda mais comprometida pelo uso de drogas pesadas. Tanto que, logo depois de “The Piper at the Gates ofDown”, de 1967, o de estreia da banda, Roger Waters e David Gilmour assumiram-lhe a frente. Mas não sem desatentarem do parceiro, que gravaria logo em seguida o também lendário “The Madcap Laughs”. Gilmour, aliás, amigo e admirador, fez o que poucos fariam para manter viva aquela chama: montou um estúdio em pleno manicômio, em que Barrett fora internado, em 1969, para que o “Crazy Diamond” registrasse sua obra mais bem acabada antes que sua mente se deteriorasse e o impedisse disso para sempre. Foi, aliás, exatamente o que aconteceu com Barrett, morto em 2006 totalmente recluso e sem ter nunca mais entrado num estúdio com regularidade. Antes, graças!, deu tempo de salvar “Barrett”, dos discos cinquentões de 2020.

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6. “Led Zeppelin IV” – Led Zeppelin (1971)
Local: Headley Grance, East Hampshire, Inglaterra

Era comum a galera do rock dos anos 60 e 70 dar umas escapadas sabáticas para ver se conseguiam fugir um pouco burburinho de fãs e executivos e produzir algo que lhe satisfizesse. Acabou sendo o que aconteceu com a Led Zeppelin para a produção daquele que foi seu mais celebrado disco: o “IV” (ou "Four Symbols", ou "ZoSo" ou "o disco do velho”). Em dezembro de 1970, a banda se reuniu no recém-inaugurado Sarm West Studios, em Londres, para a pré-produção de seu até então novo álbum. Só que não. Outra banda, a Jethro Tull, havia chegado primeiro. O quarteto Page/Plant/Bonham/Jones decidiu, então, por sugestão dos integrantes de outra grande banda inglesa, a Fleetwood Mac, finalizar a produção no pequeno estúdio da Headley Grance, uma mansão de pedra de três andares em East Hampshire, no meio do nada, com fama de mal assombrada mas com uma acústica incrível. Prova do acerto na escolha do lugar para a gravação é o som da bateria de Bonham em "When the Leevee Breaks", gravada, com microfones-ambiente na base da escadaria da casa. O resultado é um som trovejante e uma das introduções de bateria mais marcantes de todos os tempos. Fora isso, o local viu nascerem alguns dos maiores clássicos do rock de todos os tempos, como "Black Dog", "Rock and Roll", "Stairway to Heaven" e "Four Sticks".

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7. “Exile on Main St.” – The Rolling Stones (1972)
Local: Mansão Nellcôte, Villefrance-sur-Mer, Costa Azul, França

Sabe tudo que se fala do caos que foi o set de filmagens de “Apocalypse Now”, do Coppola, com drogas, sexo, atrasos, grana desperdiçada, crises e, claro, o isolamento de toda a equipe  do filme numa floresta quente e úmida? Algo semelhante foram as gravações de Exile...”, dos Rolling Stones. Troca-se apenas a úmida floresta asiática pela da famosa Nellcôte, mansão localizada na mediterrânea Villefrance-sur-Mer, Sul da França, que presenciou, entre 10 de julho a 14 de outubro de 1971, um festival de sexo, drogas e muito, mas muito rock ‘n’ roll. Quase ninguém saía nem entrava, a não ser traficantes e groupies para animar as noites viradas. Os atrasos, como no filme, foram decorrência, o que, aliás, também fez gastar tempo e dinheiro. No que se refere à crise, foi uma financeira que fez a banda fugir da Inglaterra para aquele lugar longe de tudo – principalmente do fisco. Cenário perfeito para sair tudo errado, certo? Se o filme de Coppola venceu a Palma de Ouro e virou o maior filme de guerra de todos os tempos, “Exile...”, a seu tempo, se transformou no melhor disco dos Stones – o que é quase dizer que se trata do melhor disco de rock de todos os tempos.



8. “Rock Bottom” – Robert Wyatt (1974)
Local: Little Bedwyn, vila de Wiltshire, Inglaterra

O segundo disco solo do inglês Robert Wyatt, então baterista da Soft Machine, é outra experiência radical de isolamento forçado. Porém, esta se deu por um motivo limite: um grave acidente. Na noite de 1º de junho de 1973, em uma festa regada a Southern Comfort COM tequila (receita ensinada pelo parceiro de bebedeira Keith Moon), Wyatt, depois de incontáveis doses, não percebeu que saía a pé por uma janela, despencando sem escalas direito do quarto andar rumo ao chão. Ele acordou só no outro dia numa cama de hospital sem movimentar as pernas nunca mais a partir de então. Quando ele finalmente conseguiu se sentar em uma cadeira de rodas, um dos primeiros objetos que encontrou no hospital foi um velho piano na sala de visitas, onde começou a trabalhar no material de “Rock Bottom”, algo como “fundo do poço”. Após um período difícil de adaptação à sua nova condição, ele começou a gravar faixas no início de 1974 em uma fazenda em Little Bedwyn, numa pacata vila de Wiltshire, sudoeste da Inglaterra, alavancando a unidade de gravação móvel da Virgin Records, estacionada no campo do lado de fora da casa. Para o crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi, “Rock...”, cuja soturna arte da capa também é de autoria de Wyatt, é uma das 15 obras mais importantes da música moderna na segunda metade do século XX.



9. “A Night at the Opera” – Queen (1975)
Local: Rockfield Studios, Rockfield Farm, Monmouthshire, País de Gales

A história desse disco é tão legal, que virou uma das melhores sequências do premiado filme “Bohemian Rhapsody” - faixa, aliás, que exprime com grandeza a importância e qualidade ímpar do disco da Queen. Depois do sucesso dos primeiros álbuns com o grupo e recém contratados por uma grande gravadora, a banda sabia que tinha que trazer algo melhor e novo no álbum seguinte. Pois Freddie Mercury, em alta efervescência criativa, convence o restante do grupo a se instalar temporariamente na Rockfield Farm, uma pequena vila no sudeste do País de Gales, longe do burburinho dos fãs e, principalmente, de qualquer influência que o desviasse do objetivo de fazer, sem modéstia, uma obra-prima. Se a gravadora achou ousado demais e houve críticas à mistura de música clássica com rock, não importa. O fato é que “A Night...” logo estourou, entrou para a lista dos mais vendidos e saiu bem àquilo que Freddie intentava: uma obra-prima.



10. “Changin' Times” – Ike White (1976)
Local: Tehachapi State Prison, Tehachapi, Califórnia, EUA

Se o assunto é disco produzido e gravado num ambiente fechado, “Changin’ Times”, de Ike White, vai ao extremo. Músico prodígio, hábil com vários instrumentos e de uma capacidade compositiva sem igual, ele poderia ter sido um dos grandes astros da black music norte-americanos, no nível de James Brown, Isaac Hayes ou Curtis Mayfield. Só que o destino cruel quis que aquele homem negro tão talentoso quanto pobre fosse sentenciado por um homicídio e passasse a maior parte da vida na cadeia. Mas foi dentro de uma, a penitenciária de Tehachapi, uma pequena cidade no interior da Califórnia, que White, em 1976, ajudado por Stevie Wonder e pelo produtor Jerry Goldstein, revelasse ao mundo aquele é um dos melhores discos da música soul de todos os tempos, o acertadamente intitulado “Tempos de Mudança”. Esses dados são adivinhados pelos agradecimentos na capa do álbum ao superintendente Jerry Emoto, do Departamento de Correções da Califórnia, e ao restante da equipe da prisão "sem cuja ajuda esse projeto não poderia ter sido realizado". E não há mais informações sobre Ike White. Nada. Ano passado, o documentário “The Changin' Times of Ike White”, de Daniel Vernon, revelou alguma coisa mais do pouco que se sabe sobre a lenda Ike White. Porém, ouvindo um disco tão maravilhoso quanto este talvez se conclua que seja isso mesmo tudo que se precise saber.



11. “Bedroom Album” – Jah Wabble (1983)
Local: Dellow House, Dellow Street, Wapping, East London, Inglaterra

Dellow House, sito ao logradouro de mesmo nome, área urbana da Grande Londres, código postal E1. Este é o endereço em que o lendário baixista britânico Jah Wabble gravaria um de seus discos mais influentes para a galera do pós-punk, entre eles, Renato Russo, que ovacionava este álbum. Porém, nem mesmo todas essas indicações geográficas são suficientes para apontar precisamente onde o disco fora concebido, produzido e gravado: o próprio quarto de Wabble. Aliás – assim como o já citado disco da The Band – o título, "Bedrom Album", mais claro, impossível. Depois de ter ajudado John Lydon e sua trupe da Public Image Ltd. a definir o som dos anos 80 e 90, Wabble, não dado por satisfeito e dono de uma carreira solo que passa desde a música eletrônica ao free funk, fusion, experimental e new-wave, faz seu o melhor trabalho até hoje. As linhas de baixo graves e mercadas ganham toda a relevância nos arranjos, que tem como aliada a guitarra do parceiro Animal (Dave Maltby). Os outros instrumentos, todos a cargo do dono do quarto. Semelhanças com a sonoridade da P.I.L., há, como na brilhante “City”, nas arábicas “Sense Of History”, “Concentration Camp” e “Invaders of the Heart”. Uma aula de como fazer um disco brilhante sem sair da cama.

OUÇA O DISCO


12. “Blood Sugar Sex Magik” – Red Hot Chili Peppers (1991)
Local: The Mansion, Laurel Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

A The Mansion, antiga construção na montanhosa Laurel Canyon, em Los Angeles, era lendária e assombrada. Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas famosos como Mick Jagger, David Bowie, Jimi Hendrix e The Beatles estiveram nela. Conta-se que, nos anos 20, seus donos a abandonaram depois que um homem morreu caindo de sua varanda. Há quem afirme que, quando esteve em seus corredores, as portas se abriam sozinhas. Era o cenário perfeito para que os malucões da Red Hot gravassem "BSSM", seu quinto e mais festejado álbum. Os 30 dias em que Anthony Kiedis, Flea, John Frusciante e Chad Smith se mudaram para a mansão pertencente ao produtor Rick Rubin foram essenciais para que criassem clássicos e hits do rock como "Give It Away", "Under The Bridge", "Suck My Kiss" e "Breaking the Girl". Funk, punk, heavy metal, indie, jazz fusion, pop. Tudo junto e misturado no disco que, junto de “Nevermind”, do Nirvana, fez o rock alternativo sair das cavernas e ir para as paradas.



13. “Wish” – The Cure (1992)
Local: The Manor Studio, Shipton Manor, Oxfordshire, Inglaterra

A The Cure também teve a sua vez de reclusão. Foi para a gravação de “Wish”, de 1991. O trabalho anterior, o celebrado “Disintegration”, foi um sucesso de crítica e público, mas bastante tempestuoso durante as gravações. Último disco com o então integrante formador Lawrence Tollhust, muito desse clima se deve à relação já bastante estremecida dele para com Robert Smith e outros integrantes da banda. Já sem ele, decidem, então, se enfurnar numa mansão em estilo Tudor em Oxfordshire, interior da Inglaterra, a chamada Shipton Manor. Um lugar espaçoso, cheio de espelhos enormes, tapetes persas, lareiras e um enorme mural no átrio. A ideia eram justamente, fugir um pouco de toda a polêmica e as complicações em torno do processo que o Tolhurst movia contra Robert Smith e o grupo. A safra foi frutífera, tanto que rendeu um álbum duplo, o último grande da banda, e com o hit “Friday I’m in Love”, que colocou “Wish” nas primeiras posições em várias paradas naquele ano.



14. “Ê Batumaré” – Herbert Vianna (1992)
Local: Antiga residência dos Vianna, Estrada do Morgado, Vargem Grande, Rio de Janeiro, Brasil

Talvez um desavisado que conheça Herbert Vianna hoje, paraplégico por causa de um acidente sofrido em 2001, pense que “Ê Batumaré”, assim como o disco de Wyatt, seja caseiro por motivos de "força maior". Mas, não. À época, quase 20 anos antes daquele ocorrido trágico, o líder e principal compositor da Paralamas do Sucesso, dotado de todas as funções motoras, estava dando uma guinada sem volta na carreira pela influência da música brasileira em sua música (em especial, do Nordeste). Já se percebiam sinais em discos da banda, como “Bora Bora” (1988) e “Os Grãos” (1991), e se sentiria ainda mais no sucessor “Severino”. Gravado, tocado e cantado inteiramente pelo ele em uma garagem sem tratamento acústico e num equipamento semiprofissional (como está escrito no próprio encarte), ouve-se de Zé Ramalho a Win Wenders, de baião a eletroacústica, de rock a repente, além de instrumentos de diversas sonoridades e timbres e, claro, as ricas melodias que sempre foi capaz de criar. O álbum é o centro desta mudança de paradigma que Herbert trouxe à sua música, à de sua banda e ao rock nacional como um todo. Se à época a imprensa brasileira – sempre pronta para criticar os artistas de casa – recebeu o disco com frieza, considerado-o “experimental” (mentira: eles não entenderam!), nunca mais o rock brasileiro foi o mesmo depois de “Ê Batumaré”.



15. “The Downward Spiral” – Nine Inch Nails (1994)
Local: 10050 Cielo Drive, Benedict Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

Nos anos 90, o avanço da tecnologia dos equipamentos sonoros dava condições para se montar estúdios portáteis onde quer que fosse. Foi então que o multi-instrumentista norte-americano Trent Reznor pensou: “por que não instalar um em plena 10050 Cielo Drive, a mansão nos arredores de Beverly Hills, Los Angeles, em que, na madrugada do dia 9 de agosto 1969, a família Manson assassinou cinco pessoas, entre elas, com requintes de crueldade, a atriz e modelo Sharon Tate, grávida do cineasta Roman Polanski?” O que para alguns daria arrepios, para o líder da Nine Inch Nails foi motivação. Ali ele compôs o conceitual “The Downward Spiral”, disco de maior sucesso da banda. Reznor, que se mudara para a casa, absorveu-lhe o clima macabro para criar uma ópera-rock cheia de ruídos, distorções e barulho em que o personagem principal passa por solidão, loucura, descrença religiosa e repulsa social. Até o estúdio improvisado ganhou nome em alusão àquele trágico acontecimento: Le Pig, uma referência a uma das mensagens deixadas escritas nas paredes da casa com o sangue dos mortos. Se por sadismo ou mau gosto à parte, o fato é que o disco virou um marco dos anos 90, considerado um dos melhores álbuns da década pouco após seu lançamento por revistas como Spin e Rolling Stone.


Daniel Rodrigues
Colaboração: Cly Reis

quinta-feira, 3 de julho de 2014

cotidianas #306 - O Cambolão



Bombonera que nada!
Quem nunca jogou no Cambolão não sabe o que é pressão.
Pressão fora e dentro de campo. Aquelas Libertadores de antigamente, sabe, sem regras, sem antidoping, com intimidações...
Sabe?
É... Aquilo só que piorado.
Um lugar escondido, sem escapatória, sem testemunhas, no meio da selva. Chamar de selva é um exagero, tá bom, mas efetivamente o Torneio do Cambolão era disputado num lugar remoto, inóspito, no meio do mato.
Quando o João, que na verdade se chamava Vinícius mas que na verdade se chamava Alcione mas não gostava do próprio nome e que por chamar os outros de João por não saber o nome dos outros era simplesmente conhecido por João, nos falou de um torneio no Parque Saint-Hilaire, em Viamão, nos pareceu interessante. A Juventus, nosso timezinho de amigos, deveria mudar de ares, disputar com outros times que não os de sempre, sair do bairro. Sim, seria legal.
Mas quando o próprio Alcione Vinícius, vulgo João, nos disse que deveríamos pegar o ônibus da linha Pinheiro, que levava a um dos bairros mais temidos da região metropolitana, e não o da empresa Viamão que deixaria em frente ao parque começamos a nos perguntar se a ideia havia sido mesmo boa. Deveríamos entrar pelos fundos do parque num campo que não fazia parte, exatamente, do complexo convencional de lazer. Hum... Não gostamos muito daquilo mas fomos.
Mas quando o Pinheirão começou a fazer voltas e mais voltas e seguir por caminhos cada vez mais esquisitos e a civilização começou a ficar para trás, começamos verdadeiramente a questionar a validade daquela pequena excursão. Contudo seguimos, e então, após percorrer um longo caminho desembarcamos. Desembarcamos no meio de um nada. Uma estrada de terra cercada de mato pelos dois lados.
E o torneio? E o campo? Onde era?
O João (Vinícius ou Alcione) nos indicava que, como era nos fundos do parque, deveríamos entrar pela cerca de arame e andar "um pouco" até o local dos jogos. Bem, a essas alturas posso assegurar que ninguém, a não ser o próprio João, ex-morador da localidade, estava se sentindo muito confortável com a situação, mas já que estávamos ali, havíamos acordado cedo e, principalmente, éramos loucos de fome por futebol, o seguiríamos mato adentro. À medida que caminhávamos e nos embrenhávamos pelas matas nosso pavor aumentava. Parecia aquelas florestas vietnamitas do Rambo ou as do Platoon. A impressão era que um amarelo saltaria sobre nós a qualquer momento, pisaríamos numa mina terrestre ou seríamos pegos numa armadilha pendurados pelos pés. Quanto mais caminhávamos, mais nosso arrependimento aumentava. O que que estávamos fazendo ali? Até que depois de minutos caminhando, que nos pareceram uma eternidade, finalmente ouvíamos ouvíamos vozes. O Parque! A civilização!!!
Engano.
Pelo contrário.
Selvagens.
O que vimos era ainda mais aterrorizante que tudo o que tínhamos passado até então. Uma pequena clareira de chão batido extremamente ondulada com uma goleira de pau em cada extremidade e invadido nas laterais por raízes das árvores que praticamente delimitavam o campo envoltas em uma nuvem que confundia poeira com uma misteriosa fumaça. E nas árvores, sobre elas e entre elas, criaturas com olhares famintos nos espreitavam como feras. Aquilo parecia o kumite d"O Grande Dragão Branco", só que no meio do mato, a cena da chegada do barco em "Apocalypse Now" só que sem água, o clipe opressivo de "Wish" dos Nine Inch Nails só que sem grades, os zumbis cercando o shopping em "Madrugada dos Mortos". O horror, o horror!
Na verdade a sensação de que aqueles meninos eram feras e que nos olhavam sequiosos por algo devia-se em grande parte ao fato de que, se não éramos "mauricinhos", naquele modestíssimo ambiente, tínhamos aparência de guris de apartamento, filhinhos de papai, o que podia fazer supor que teríamos algo de interessante em nossas bagagens de jogo. E o pior é que era verdade. Não éramos ricos, como já disse, mas gostávamos de coisas boas e as adquiríamos na medida do possível. O time tinha um bom uniforme, completo, bonito e de uma marca esportiva renomada, sem falar no fato de que a maioria dos nosso jogadores gostava de ter boas chuteiras de futebol society, caneleiras, etc. que tinham conseguido a muito custo com esforço próprio ou dos pais que, por sua vez, também não nadavam em dinheiro para dar aqueles acessórios aos filhos. E a consciência de nossas "valiosas" cargas só fazia aumentar nosso pavor.
Sufocados por um cheiro insuportável de maconha dos atletas e torcedores dos outros times que se espalhavam seminus e esfarrapados, apavorados com o cenário, deliberamos rapidamente se deveríamos ficar e jogar o torneio ou sair de fininho e dar o fora dali antes que fosse tarde. Concluímos que não teríamos como disfarçar uma saída à francesa e convencidos pelo João-Vinícius de que, apesar da aparência, não havia riscos, decidimos ficar.
Como algumas equipes não haviam comparecido e como havia menos times do que o previsto para a disputa do torneio, teríamos uma partida eliminatória que nos levaria ou não para a fase seguinte. Houve uma espécie de consenso natural: perderíamos a partida para termos um bom motivo, aí sim, para dar o fora dali o quanto antes. Não só por isso. O time adversário era tão mal encarado que imaginamos que não encararia de uma maneira muito desportiva se perdesse para aqueles "mimosinhos" ali.
Bom, na hora de nos fardarmos, chegamos a pensar em não usar o uniforme do time, mas não teríamos outra alternativa, do contrário ficando um time à moda palhacinho, No entanto, quem tinha um tênis mais velho e, assim, a opção de não expôr suas chuteiras  naquele ambiente potencialmente arriscado, optou por usa-lo, afinal, seriam só 40 minutos de apreensão e depois era dar no pé daquele lugar.
Nossa tensão era tão grande que nem vimos o tempo passar. Era simplesmente levar gols e sorrir. Mesmo que quiséssemos ganhar o jogo, provavelmente não conseguiríamos tamanho era nosso nervosismo e, por que não dizer, medo.
Se não me engano o martírio acabou em 6x0. Tudo bem. Aquilo era o de menos. Um torneio a mais, um torneio a menos não ia fazer diferença nas nossas vidas. O que temíamos era exatamente por elas: as nossas vidas. Arrumamo-nos rapidamente, recolhemos o que tínhamos que recolher e fomos saindo de forma apressada mas cuidadosa, tal a cena das crianças na escola em "Os Pássaros" de Hitchcock.
No fim das contas, fomos nos afastando suavemente, fingindo tranquilidade, percorremos o caminho pela floresta e chegamos à cerca de arame farpado. Ufa! Mas não estávamos certos de estarmos seguros. Será que não teriam se arrependido de não terem levado nada daqueles manés? Será que não teriam esperado para nos pegar desprevenidos longe do local do jogo? Será que não estariam ainda tramando um plano para que todos os times nos pegassem juntos? Será que não teriam optado por armar a tocaia naquela estrada deserta ao invés de fazê-lo no campo?
E aquele ônibus que não aparecia...
Demora, demora e o ônibus chegou. Embarcamos aliviados. Estávamos a salvo.
Era só voltar para casa e esquecer aquele pesadelo.
(Esquecer?)
Nada aconteceu. Não nos levaram nada, não nos agrediram, nem sequer nos abordaram. Aliás, provavelmente toda aquela sensação de insegurança fora fruto tão somente de um certo preconceito social de garotos de classe média em relação a um ambiente mais desfavorecido e pelo aspecto de seus moradores e frequentadores, mas esquecer aquilo é impossível. Jamais esquecerei a sensação de entrar naquele campinho no meio do mato esfumaçado com árvores apinhadas de moleques em todos os galhos.   .
O horror, o horror!
Bombonera é brincadeira perto daquilo.


Cly Reis

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Chico Buarque - "Construção" (1971)



"Ao entregar a letra, num golpe de ironia e audácia, o advogado da gravadora pediu que a proibissem; os censores então, como que para contrariá-lo, liberaram "Construção" sem cortes."
relatado pelo escritor Humberto Werneck,
no livro "Tantas Palavras - Letra e Música",
songbook de Chico Buarque



Tijolo por tijolo num desenho mágico. Assim foi construído "Construção"(1971), disco espetacular de Chico Buarque de Holanda; o primeiro gravado após sua volta do exílio, provavelmente o melhor do artista e um dos maiores da música brasileira. Ao contrário da boa parte dos discos de Chico que eram verdadeiras colchas de retalho com músicas feitas em épocas diferentes, com parceiros variados, para fins diferentes (filmes, peças, homenagens), "Construção" fora planejado para ser efetivamente um álbum e provavelmente por isso mostre uma coesão, uma unidade, uma encaixe tão perfeito entre as músicas que o tornam diferenciado na obra do cantor.
Constitui praticamente uma grande sinfonia cotidiana, uma grande ópera do homem comum, com tragédias, amores, sangue e emoção. Reforçam esta sensação de obra erudita os arranjos ousados e intensos do maestro Rogério Duprat, com suas cordas e metais poderosos. Já em "Deus lhe Pague" que abre o disco esta intensidade fica demonstrada: ela é forte, ela é densa, com sua condução grave, sua percussão pesada e com as vozes do MPB4 intensificando o sarcasmo da gratidão.
"Cotidiano" que a segue alivia o clima num samba descontraído faz um infinito ciclo do dia-a-dia. "Desalento", um samba triste com uma cuíca chorosa, parceria com Vinícius de Moraes, é um dos poucos casos de música que não deveria estar ali uma vez que faria parte originalmente do compacto de "Apesar de Você" que acabou não saindo, vetado pela censura.
A faixa título, "Construção" é a verdadeira ópera trágica cotidiana: dramática desde sua sonoridade até seus versos pessimistas. Um dia na vida de um operário de obra; aquele dia que ele, cansado da vida, da injustiça, da mesmice, decidira ser o último de sua vida. E Chico descreve isso de maneira mágica, brincando com as palavras, jogando com os versos, num exercício formal absolutamente bem engendrado, amarrando a letra toda por uma anáfora que serve de fio condutor e mantendo uma admirável regularidade silábica de dodecassílabos. A dramaticidade da letra, da situação do operário, do incidente fatal ganham proporções ainda maiores novamente com a orquestração de Duprat e com o coro do MPB4 até chegar a um final  onde repete-se um trecho de "Deus lhe Pague" (dentro de "Construção") reafirmando toda e desesperança.
Segue com o gostoso samba "Cordão"; com a lamentosa "Olha, Maria" parceria com Vinícius e Tom Jobim, bem com a cara do maestro soberano; com o desafiador "Samba de Orly" que não se privou, mesmo em época de censura forte e violenta, de falar de quem estava fora do país morrendo de saudades mas que não podia voltar por 'forças maiores'. "Minha História", uma adaptação de uma canção italiana de Lucio Dalla chamada "Gesù Bambino", também teve seus problemas com a censura e com a igreja pela menção a um Menino-Jesus de procedência indigna e vida marginal e boêmia, à qual Chico então teve que se contentar em deixar o nome que pretendia traduzir simplesmente, apenas entre parênteses e no original em italiano.
O disco baixa a rotação totalmente na última faixa, numa espécie de canção de ninar, como que num convite a um relaxamento depois de tantos dramas, compromissos e agruras, em que Chico se despede com "Acalanto". A última peça. O último tijolo.
A obra estava completa.
Álbum mais que fundamental! E não sou apenas eu que digo: "Construção" é um dos poucos discos brasileiros na publicação "1001 Discos Pra Ouvir Antes de Morrer", livro que conta com avaliações de críticos especializados do jornalismo internacional; além disso, foi eleito o terceiro melhor disco brasileiro de todos os tempos na edição brasileira da Rolling Stone, e também pela mesma revista, a canção "Construção" foi considerada a melhor música brasileira da história.
É pouco?
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FAIXAS:
  1. "Deus lhe Pague" – 3:19
  2. "Cotidiano" – 2:49
  3. "Desalento" (C. Buarque, Vinícius de Moraes) – 2:48
  4. "Construção" – 6:24
  5. "Cordão" – 2:31
  6. "Olha Maria" (C. Buarque, V. de Moraes, Tom Jobim) – 3:56
  7. "Samba de Orly" (C. Buarque, Toquinho, V. de Moraes) – 2:40
  8. "Valsinha" (C. Buarque, V. de Moraes) – 2:00
  9. "Minha História (Gesù Bambino)" (Lucio Dalla; versão de C. Buarque) – 3:01
  10. "Acalanto" – 1:38
*todas as músicas, Chico Buarque, exceto as indicadas
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Ouça:
Chico Buarque Construção

Cly Reis

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Toquinho & Maria Creuza – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (20/08/2015)



A dupla homenageando Vinícius de Moraes
foto: Dulce Helfer
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor, compositor e violonista Toquinho e a cantora Maria Creuza se reuniram para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes, pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong). Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a “sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música brasileira, como Chico BuarquePaulo César PinheiroJorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
 Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada, faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como “Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido” amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um dos maiores clássicos da MPB.
 O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e “Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem subestimá-las.
 No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico, “Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
 É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran, Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico, Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de 130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas, muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.