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domingo, 17 de julho de 2011

Trio 3-63 – Projeto UniMúsica – Salão de Atos da UFRGS – Porto Alegre -RS (14/07/2011)


Olorum no toró: uma homenagem a Moacir Santos


Moacir Santos (1926-2006)
Tem dias que a chuva parece precipitar além do normal. E o último 14 de julho foi assim – pelo menos em Porto Alegre. Choveu 48 horas sem parar. E não era qualquer chuvinha. Era “chuva que Deus mandava”, incessante, bastante. Mas tanta água vinda do céu foi, para os mais atentos, o prenúncio de algo transcendental que aconteceria na noite deste fatídico e molhado dia. Numa homenagem ao maestro pernambucano Moarcir Santos, um dos maiores gênios da música universal dos últimos tempos, o Trio 3-63, dentro do Projeto UniMúsica 30 anos – tempomúsicapensamento, fez um inesquecível show para cerca de 400 destemidos – e abençoados – espectadores no Salão de Atos da UFRGS.
Trio 3-63: apresentação curta porém marcante

Formado pela flautista Andrea Englert, pelo pianista Paulo Braga e pelo percussionista Marcos Suzano, três feras, o Trio 3-63 destilou um show curto mas emocionante do início ao fim, onde predominou a execução perfeita, unindo técnica e alma, e, claro, a reverência a Moacir Santos, instrumentista, arranjador e compositor, autor de obras-primas da MPB, como o célebre álbum “Coisas”, de 1960, e “Opus 3 nº 1”, de 1979. Moacir, que viveu grande parte de sua vida artística nos Estados Unidos, onde é venerado, foi, ao lado de Tom Jobim  e Hermeto Paschoal, o grande mestre da revolução harmônica da música brasileira moderna. Sua estética tem, com um hibridismo impressionante, toques de jazz e erudito misturados aos ritmos essencialmente brasileiros, bebendo no vasto folclore do nordeste (maracatu, coco, roda, xaxado, cantos religiosos), na tradição dos ritmos afro-brasileiros (lundu, jongo, candomblé, samba, marcha, choro, maxixe) e até caribenhos (rumba, habanera, cuban jazz). Tudo sempre com muito bom gosto e perfeição.
Marcos Suzano, fera da percussão
No show, o Trio 3-63 destilou clássicos como “Coisa nº 1”, “Paraíso” e “Outra Coisa”. Porém, fizeram mais do que isso. A começar pela inteligente incursão a obras de outros compositores influenciados e/ou influenciadores de Moacir Santos, como os “Motivos Nordestinos”, do percussionista e compositor Luiz D’Anunciação, e “A Inúbia do Cabocolinho”, do maestro e pesquisador musical Guerra-Peixe, ex-professor de Moacir nos seus primórdios tempos em Pernambuco. Nesta seara, ainda apresentaram a gostosa “Radamés y Pelé”, de Tom Jobim (homenageado que, por sua vez, homenageava, além do craque da bola, outro craque, este dos sons, Radamés Gnatali, grande influenciador da bossa nova e de Moacir), além de uma composição do próprio Paulo Braga, “Farol”, onde claramente o pianista conjuga todas essas referências.




Mas o trio guardaria ainda outras duas surpresas. Primeiro que, a certa altura, o trio passou a quinteto. Primeiramente, com a entrada no palco do multi-instrumentista Lui Coimbra, que tocou violão e cantou a suave e brejeira “A Santinha lá da Serra”, parceria de Moarcir com o poeta Vinícius de Moraes. Depois, ao cello, Lui acompanhou a banda em outra novidade do show: “The beautiful life” e “Love Go Down”, canções inéditas no Brasil resgatadas por Andrea no acervo de Moacir nos EUA.
Ao final do show, junta-se aos integrantes o cantor e percussionista Carlos Negreiros, negro alto, tipo etíope, todo de branco como que uma entidade da umbanda. Com seu bongô e sua bela voz grave, mas de refinado alcance dos agudos, cantou com os quatro “Coisa nº 8 - Navegação”, de charmosa melodia e letra poética (“Depois de tanto palmilhar/ Desvios e bifurcações/ Da proa desta embarcação/ Consigo interpretar, enfim/ A carta de navegação/ Que o mar traçou dentro de mim”), proporcionando o momento mais emocionante do show. Foi também Negreiros quem creditou a Olorum, senhor da criação e dos céus, o milagre de estarmos ali, mesmo com o toró que o próprio orixá fazia cair lá fora. Só podia ser uma mensagem divina, pois fomos, de fato, abençoados nesta noite. Por Olorum e por Moacir Santos, cuja poderosa alma estava lá também, encharcando-se de alegria e beleza como nós todos.



terça-feira, 22 de abril de 2014

Os 15 Melhores Discos Brasileiros de Música Instrumental

Hermeto Paschoal, presente em 3 discos da lista,
"Em Som Maior", "tide" e o seu, "Hermeto".
Nessas brincadeiras diletantes de criar listas sobre os mais diferentes temas musicais nas redes sociais (10 melhores show assistido no Teatro da Ospa, 10 melhores discos de jazz da ECM, 10 melhores músicas contra a ditadura militar, 10 músicas chatas do Chico Buarque, 10 melhores discos de soul music, e por aí vai) fui instigado a montar uma que, num primeiro momento, titubeei. “Será que eu saberia compor uma com esse tema?”, pensei. Tratava-se do “Melhor Disco Instrumental de Música Brasileira”. Mesmo com meu conhecimento musical, que não é pouco, teria eu embasamento suficiente para criar uma lista interessante e, além disso, suficientemente informada a esse respeito? Pois, para minha própria surpresa, a lista saiu, e bem simpática, diga-se de passagem. Além de não se prender a um estilo musical específico (o que se chamaria burramente de “música instrumental brasileira” pura), típico de minha forma de enxergar a música e a arte, acredito que minha listagem não ficou pra trás em comparação a de outros que se empolgaram e publicaram as suas também.
Claro que tem muita coisa que não consta na minha lista que vi na de outros, pois certamente ainda tem muito o que se conhecer dentro do mar de maravilhas sonoras que existe. Raul de Souza, Barrosinho, Os Cobras, Victor Assis Brasil, Djalma Correa e Edison Machado, por exemplo, nem cito, pois não tive o prazer ainda de conhecer seus trabalhos a fundo ou ponto de saber selecionar-lhes um disco representativo. Mas acho que, afora o gostoso dessa prática quase infantil de elencar preferências, tais lacunas são justamente o papel dessas listas: abrir novos paradigmas para que novas revelações se deem e se passe a conhecer aquele artista ou banda que, quando se ouve pela primeira vez, se pensa com surpresa e excitação: “Cara, como que eu nunca tinha ouvido isso?!” Se algum dos títulos que enumero causar essa sensação nos leitores, já cumpri meu papel.

Aí vão, então os meus 15 discos preferidos da música brasileira instrumental, mais ou menos em ordem:


1 – “Maria Fumaça”, da Banda Black Rio (1977)


2 – “Coisas“, do Moacir Santos (1965)
3 – “A Bed Donato”, do João Donato (1970)
4 – “Wave”, do Tom Jobim (1967)
5 – “Em Som Maior”, da Sambrasa Trio (1965)


6 – “Revivendo”, do Pixinguinha e os Oito Batutas (1919-1923 – coletânea de 1895)
7 – “O Som”, da Meirelles e os Copa 5 (1964)
8 – “Donato/Deodato”, do João Donato e Eumir Deodato (1973)
9 – “Sanfona”, do Egberto Gismonti (1981)
10 – “Light as a Feather”, da Azymuth (1979)
11 – “Jogos de Dança”, do Edu Lobo (1982)
12 – “Opus 3 No. 1”, do Moacir Santos (1968)
14 – “Tide”, do Tom Jobim (1970)


15 – “Hermeto”, de Hermeto Paschoal (1971)






quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Música da Cabeça - Programa ESPECIAL #190

 

VIDAS NEGRAS IMPORTAM! Assim como a cultura, a arte, a música. Estes temas estão todos na entrevista da edição especial 190 do MDC com o ex-Ministro da Igualdade Racial e Embaixador do Movimento AR Eloi Ferreira no Mês da Consciência Negra. Além disso, também outros pretos como Marku Ribas, Jimi Hendrix, Public Enemy, Milton Nascimento e Moacir Santos e os quadros "Música de Fato" e "Palavra, Lê". Programa imperdível hoje, 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. #movimentoAR #VidasNegrasImportam



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

João Donato - 1º Porto Alegre Jazz Festival – Parque da Redenção – Porto Alegre/RS (12/10/2014)



Água!

Chuva só se foi de musicalidade com o versátil e eclético João Donato no palco.
O temor era de que caísse um toró como ocorrera na manhã daquele domingo. O espetáculo estava marcado para as 11h, porém, ali pelas 9h, o tempo mostrava-se nublado mas estável, sem nenhuma chuva. Com a programação confirmada pelas redes sociais, fomos, Leocádia e eu, assistir ao principal e derradeiro dos shows gratuitos do 1º Porto Alegre Jazz Festival. E, ao contrário do que pudesse se esperar, não foram pingos que caíram sobre nós, mas um sol forte de mormaço que assolou o Parque da Redenção. O clima abafado, entretanto, não tirou o prazer de assistir a uma das lendas vivas da MPB e da música mundial: o pianista, acordeonista, arranjador, compositor e cantor acreano João Donato.

Com sua simpatia peculiar, Donato, um dos principais músicos brasileiros de todos os tempos, veio à cidade comemorando seus 80 anos de vida. Acompanhado de uma maravilhosa banda – Robertinho Silva, craque da bateria; Luiz Alves, baixo acústico; Ricardo Pontes, sax alto e flauta; e José Arimatéa, flughorn e sax tenor –, ele nos inundou com o que há de mais cristalino na música brasileira sintonizada com o mundo. Tudo compartilhado com o público com a sabedoria e a doce malandragem que sempre lhe foram características. Não à toa, o tema inicial do show foi “Amazonas (Keep Talking)”, clássico do álbum "Quem é Quem", de 1972, resenhado aqui no blog por Márcio Pinheiro. Sente-se nela o mambo cubano, o jazz fusion, a Bossa Nova, a soul music, tudo enredado num riff de piano inconfundível e solos magníficos de Donato, de Alves e dos dois sopros. Grandiosa como o rio que leva seu nome.

A sensação mágica de estar vendo João Donato ao vivo logo se ressalta. É assombroso perceber que justo aquele senhor animado e tomado de genialidade no palco é o ÚNICO compositor pré-Bossa Nova vivo. O único! Todos já se foram: Dolores Duran, Antonio Maria, Billy Blanco, Johnny Alf, Paulo Moura, Moacir Santos – e, claro, o próprio Tom Jobim, que foi pré, durante e pós-Bossa. Donato, este músico de formação tão erudita quanto popular, que viveu o boom da Bossa Nova mas logo se bandeou para os Estados Unidos para realizar obras referenciais como “A Bad Donato” (1970) e “Donato/Deodato” (em parceria com Eumir Deodato, de 1973), não só seguiu produzindo espantosamente nos anos 70, 80 e 90 afora como, está aí até hoje, desbravando oceanos.

Sensação mágica de estar vendo ao vivo
um dos maiores gênios da música brasileira.
Mas se o assunto era água, em seguida Donato chamou a todos para caírem na lagoa com “O Sapo”, outro marco de seu repertório que, na versão do show, não veio com a letra de Caetano Veloso (que a reintitula de “A Rã”), mas com o vocalise clássico – algo como: “Pã-rã-rã-rã/ Pã-rã-rã-rã-rá daza-inguê/ Daza-inguê-inguê guin-rin-gui-din/ Guin-rin-gui-din gui-din gon-ron-gon-don/ Gon-ron-gon-don pã-rã-rã-rã...” – que, até onde vai meu conhecimento, teve sua “letra” inventada por João Gilberto quando este a gravou em 1971 no disco “João Gilberto en Mexico”.

Vieram outras belezas de total musicalidade: “Rio Branco” (referência à cidade-natal do compositor mas não menos aquífera em conceito); a gostosa “Nasci para Bailar”, que trouxe novamente os ritmos caribenhos; a romântica “Até quem sabe”; o bop “Song of my Father”, do pianista norte-americano Horace Silver; e o samba cool “Café com Pão”.

Das celebradas parcerias com Gilberto Gil tivemos o privilégio de ouvir algumas das melhores. Primeiro, “Bananeira” (“Bananeira, não sei/ bananeira, sei lá/ a bananeira, sei não/ a maneira de ver...”), animada e cantada pela plateia. “Lugar Comum”, das mais belas do cancioneiro de ambos os músicos, veio em ritmo de bossa nova, como a água do mar batendo, como um “começo do caminhar pra dentro do fundo azul”. A sabedoria oriental desta (“Tudo isso vem, tudo isso vai/ Pro mesmo lugar de onde tudo sai...”) se reflete em outra parceria da dupla, “A Paz”, das preferidas do público. Esta, porém, quase foi estragada por uma participação (nada) especial do músico gaúcho Totonho Villeroy (ah, não pode mais chamar de “Totonho”? Tem que ser Antonio agora, pra dar o ar de “artista sério”? Puxa, desculpe, mas até João Donato o anunciou assim). Não fosse o espetacular riff, a melancólica e profunda letra de Gil (que remonta ao cinema de Ozu à "Rosa de Hiroshima" de Vinícius) e o primor da execução da banda, Villeroy, desatento e sem brilho, quase direcionou a bomba atômica que cairia sobre o Japão para Porto Alegre. Ele conseguiu, apenas cantando e no único momento em que esteve no show, errar a letra! E duas vezes! O público e Donato (este, com oito décadas nas costas) tiveram que lembrá-lo, como num karaokê. Ridiculamente desnecessário.

Ainda rolaram duas de autoria de Donato com Martinho da Vila, mostrando o quanto a natureza africana e rural do segundo se reflete na universalidade estilística do colega. Uma delas, “Suco de Maracujá”, um samba maxixado cuja engraçada letra, de estilo literário típico do compositor carioca, relata a preocupação de um homem prestes a se casar com uma mulher muito fogosa (“Pra me casar com você/ Eu vou ter que me cuidar/ Contratar um personal/ Treiner pra me acelerar”). E, dependendo das situações do cotidiano do casal, a dieta dele vai se alterando: “Quando a gente for deitar/ Um bom pó de guaraná/ Se a quentura tiver morna/ Come um ovo de codorna/ E se a noite for infinda/ Aí só Pau de Cabinda/ Se ela quiser bis no fim/ Pimenta no amendoim/ E depois pra me acalmar/ Suco de maracujá.” O outro samba, “Daquele amor nem me fale”, também chistosa, dá uma cutucada no Governo: “Posso até discutir religião/ Ou falar num domingo de sol/ Criticar a terrível inflação/ O machismo, o racismo a tortura/ Mas daquele amor, Nem me fale...”.

O show terminou com João agradecendo aos gaúchos por terem trazido o sol, mas não sem antes gritar seu tradicional jargão para que a banda finalize os números: “Água!”. Coincidência ou não com a chuva que se prenunciava e não precipitou, ouvimos isso duas vezes, uma delas, inclusive, na faixa que encerrou a apresentação abaixo de muito sol, a marchinha “O bicho tá pegando” (“O coro tá comendo/ O bicho tá pegando”), que instaurou um clima de dança de salão no parque.

Assistir João Donato, ainda mais já numa idade assim tão avançada (e que, pelo contrário, ele não parece ter), é realmente muito especial, pois fica ainda mais evidente nessas horas a grandiosidade da música brasileira, que, naturalmente, se posiciona entre todos os chamados “estilos” musicais. Donato é genuinamente jazz? É. E é genuinamente MPB? É também. É tudo – e mais um pouco. Tanto faz o rótulo. O fato é que saímos, com perdão do trocadilho, encharcados de boa música, de música pura, límpida. Tu és água, João Donato.







quinta-feira, 30 de março de 2017

Dom Um Romão – “Dom Um Romão” ou “Braun-Blek-Blu” (1973)




As duas capas: edição original e
da reedição de 1974
“Agora as mesas foram viradas. 
Os brasileiros estão contratando músicos 
de jazz para tocar sua música. 
É ainda um casamento da música
 brasileira e do jazz, mas o corte 
está sendo feito do ponto de vista brasileiro.” 
Gary Giddins,
no texto original 
da contracapa do LP



Quando o jazz fusion, no final dos anos 60 e início dos 70, escancarou as portas do jazz tradicional, mesclando-o ao gênero mais pop do século XX, o rock, um novo paradigma se abriu. Até então fortemente ligado ao ritmo dançante do swing, ao virtuosismo do be-bop e à sofisticação do cool, o jazz passava a ser, na prática, tudo: rock, funk, vanguarda, clássico, ritmos latinos, música indiana, oriental, etc.. Para bem ou para mal, qualquer coisa que minimamente se valesse de elaboração musical passou a também poder ser considerado jazz. Houve quem se favorecesse com tal releitura, caso da música brasileira. Principalmente pós-bossa nova, o Brasil e seus músicos entraram de vez no mapa da música moderna e passaram a ditar, Tetê a Tetê com norte-americanos e europeus, os rumos da arte musical “culta”. Tom Jobim, João Donato, Moacir Santos, Eumir Deodato e Sérgio Mendes, nos Estados Unidos desde os anos 60, desbravaram essa trilha. Agora uma nova e ainda mais arejada geração de brazucas desembarcava nos “states”. Os percussionistas, em especial, considerando as características da música brasileira, tiraram vantagem. Caso dos rapidamente reconhecidos Naná Vasconcelos e Airto Moreira e de outro craque das baquetas, que ganhou os corações e mentes dos exigentes jazzistas: Dom Um Romão.

Dono de um estilo único e muito natural que une a versatilidade adquirida nas orquestras da noite carioca à alta técnica da sincopa e das divisões rítmicas, Romão tem uma história peculiar. Filho de um também baterista, literalmente herdou-lhe o dom, pondo-o em prática, nos anos 50, nos bares boêmios do Beco das Garrafas. Cedo, já havia realizado feitos invejáveis para qualquer músico de sua geração: no Brasil, participara, em 1958, da gravação do marco inicial da bossa nova “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, e, alguns anos mais tarde, do memorável “O Som”, da Meirelles e os Copa 5, de 1964, o “A Love Supreme” brasileiro. Já nos Estados Unidos, integrou a “cozinha” do clássico “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, em 1967, e substituíra o amigo Airto na mitológica banda Weather Report, a maior referência do jazz fusion, tocando, de 1972 a 1976, ao lado de feras como Wayne Shorter, Josef Zawinul, Alphonso Johnson e Eric Gravatt. Mas faltava-lhe o trabalho solo no exterior (já tinha um LP homônimo, de 1964, gravado no Brasil), aquele que ratificasse não apenas suas qualidades como instrumentista, mas também como compositor e band leader. A oportunidade veio em 1973, quando o cultuado selo Muse o chama para realizar um projeto à altura de seu merecimento.

A reverência ao novo contratado fica evidente pelo time convidado a participar das gravações. O set reuniu uma lista extensa de músicos: dos “gringos”, figuras referenciais como Stanley Clarke e Frank Tusa, no contrabaixo; Gravatt, na percussão; Lloyd McNeill, flauta; Joe Beck, guitarra elétrica; Jerry Dodgion; sax-alto e flauta; Richard Kimball, sintetizador; Mauricio Smith, sax-soprano e flauta; Jimmy Bossey, sax-tenor; e William Campbell Jr., trompete. Ainda, como não poderia deixar de ser, o disco conta com músicos brasileiros – e não quaisquer músicos –: no órgão e no piano acústico, Sivuca; no harpischord, Donato; no piano elétrico e acústico, Dom Salvador; na percussão, Portinho; e no violão, Amauri Tristão.

“Dom Um Romão” traz seis faixas de absoluta perfeição e que representam a contribuição sui generis que o Brasil dava à nova feição do jazz: o samba, o baião, o maracatu e os ritmos folclóricos brasileiros e latinos fundidos ao hard-bop, ao jazz modal, ao cool jazz. Tudo começa na espetacular “Dom’s Tune”, um “cartão de visitas” arrasador que virou tema cult entre os músicos e admiradores tardios de Romão. Pura destreza e musicalidade, a começar pela rica percussão do próprio autor, que comunga vários instrumentos como caxixi, chocalho, pratos, chipô, tamborim e sinos. Sobre uma base modal de tempo 5/3 do piano de Dom Salvador, Beck esmerilha a guitarra, solando os mais de 8 minutos do número. Isso sem falar dos sintetizadores de Richard Kimball, das incursões percussivas de Portinho e da frase repetida dos sopros que, a partir da segunda metade, passam a dar um riff para a música. Certamente um dos melhores exemplares do jazz dos anos 70.

Segue “Cinnamon Flower”, uma versão bastante original de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento, evidenciando a inventividade harmônica e melódica do compositor mineiro, muito a ver com o jazz contemporâneo. Em ritmo de baião, tem Romão percutindo a trinca típica do gênero (bumbo-caixa-triângulo), além do riff executado nas flautas, os quais evocam aqueles lindos versos: “A lua morena/ A dança do vento/ O ventre da noite/ E o sol da manhã/ A chuva cigana/ A dança dos rios/ O mel do Cacau/ E o sol da manhã”. A guitarra com pedal wah-wah faz não só a levada como também o principal solo, dando ainda mais modernidade a um tema de raízes folk. O melhor do jazz fusion, mas num ritmo tão tipicamente tupiniquim, que somente um brasileiro podia estar à frente.

Romão relembra os tempos de bossa nova num tema altamente elegante: “Family Talk”. Composição sua mas que bem poderia ser de Tom Jobim nalgum de seus discos da A&M, “Tide” ou “Wave” (este último, em que o baterista participa), haja vista a parecença da sonoridade transparente e o conceito musical sofisticadíssimo: dominante em “Sol”, batida de violão ao estilo João Gilberto, baixo acústico trasteando como o de Ron Carter, a levada malemolente da bateria no aro da caixa e, principalmente, o arranjo, que privilegia a flauta como executora do riff. Perfeita. Não bastasse, o mestre Donato aparece para fazer um solo bem a seu estilo: econômico e inteligente.

Assim como a segunda faixa, “Ponteio” é mais uma releitura de clássico da MPB, esta agora, que em muito lembra Shorter e a Weather Report, talvez a versão mais inspirada que a composição de Edu Lobo e Capinam pudesse ganhar. Romão comanda um constante triângulo, enquanto seu xará Dom Salvador, o electric piano. É o pianista também quem desvela um rico solo no teclado acústico, que tem por trás as inventivas viradas e variações rítmicas de Romão na bateria, enquanto os intensos baixo de Clarke e congas de Gravatt mantém uma atmosfera caribenha. Outro solo, agora de flauta na segunda parte, incute ainda mais a complexidade jazzística ao tema, que não perde, entretanto, o teor grave da melodia original, a qual remete inevitavelmente às rodas e duelos de viola nordestinos.

“Braun-Blek-Blu”, que informalmente dá nome ao disco, é outro espetáculo à parte. Sozinho no estúdio, somente ele e seu aparato, Romão substitui uma bateria de escola de samba inteira. Ao mesmo tempo em que é um samba marchado e acelerado, exigindo alta técnica e controle dos tempos, lembra, sem erro, também o maracatu rural do Nordeste brasileiro com seus tambores, chocalhos e gonguê. Hábil, o percussionista consegue variar o compasso, acelerando e desacelerando o ritmo. Isso, enquanto executa viradas e ataques junto com os próprios vocalises, que se hegemonizam às batidas. Nada menos que impressionante.

O sertão dos trópicos retorna com a interpretação de mais um hino do cancioneiro brasileiro: “Adeus, Maria Fulô”. No entanto, Romão e Cia. dão uma pegada de latin jazz explosivo ao singelo baião. E com consentimento do próprio autor, Sivuca, que comanda o órgão e o piano, enquanto o sax soprano de Mauricio Smith anuncia, apenas em sons, o riff (“Adeus, vou-me embora, meu bem/ Chorar não ajuda ninguém/ Enxugue o seu pranto de dor/ Que a seca mal começou”). O mesmo Smith é quem manda um belo solo, desta vez improvisando com total liberdade no tenor. Romão preenche o espaço com uma rara multiplicidade de texturas e cores, ajudado pela percussão de Gravatt e Portinho. Um final digno a um disco irreparável do primeiro ao último acorde.

Como disse o jornalista Maurício Pinheiro:“No viés de reinvenção dos conceitos do jazz moderno, o álbum é um testemunho dos estímulos provocados por essa geração que marcou o início dos anos 1970”. Junto com trabalhos igualmente essenciais e revolucionários dos compatriotas Airto, (“Fingers”), Flora Purim, (“Butterfly Dreams”) e Hermeto Pascoal (“A Música Livre de Hermeto Pascoal”) – todos do mesmo ano e gravados nos Estados Unidos –, “Dom Um Romão” marca uma fase áurea do jazz moderno brasileiro no exterior, servindo de referência até os dias de hoje para músicos (brasileiros ou não) das mais diferentes vertentes. Afinal, tudo é jazz.

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Reeditado dois anos depois com nova arte, em 1990, a 32 Jazz lançou em um único CD, intitulado “The Complete Muse Recordings”, os dois trabalhos de Dom Um Romão pelo selo Muse, este e o também ótimo “Spirit of the Times”, de 1974, do qual se incluíram suas sete faixas: “Shakin' (Ginga Gingou)”, “Wait On The Corner”, “Lamento Negro”, “Highway”, “The Angels”, “The Salvation Army”, e “Kitchen (Cosinha)”.

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FAIXAS:
1, “Dom’s Tune” (Dum Um Romão) - 8:39
2. “Cinnamon Flower” (“Cravo e Canela”)(Milton Nascimento) - 3:30
3. “Family Talk” (Romão) - 5:30
4. “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam) - 6:30
5. “Braun-Blek-Blu” (Romão) - 4:40
6. “Adeus, Maria Fulô” (Sivuca/Humberto Teixeira) - 7:59

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tom Zé - "Estudando o Samba" (1976)



“[Tom Zé] pensou e realizou este disco, onde procurou reunir uma variedade de tipos e de formas rurais e urbanos do samba, dando a cada música a vestimenta que achou mais adequada.”
Elton Medeiros


Nos anos 90, o destino pôs diante de Tom Zé o 'talking head' David Byrne, que o trouxe do ostracismo para uma posição de artista cult e mundialmente reverenciado. Mas o início desta história hoje já conhecida nasceu de uma audição despretensiosa de um dos vários LP’s de MPB que Byrne comprara numa vinda ao Brasil. Dentre aqueles bolachões, um lhe fez a diferença. Foi este que o motivou a procurar saber quem era aquele artista e, em seguida, conhecê-lo e gravá-lo. Este álbum era “Estudando o Samba", de 1976, sem dúvida o melhor trabalho do baiano de Irará.

Metalinguístico, atonal, serialista, revisionista. Todos estes atributos “difíceis” estão certos quando creditados a “Estudando o Samba”. Mas tudo tem pouca importância quando o negócio é simplesmente ouvi-lo. Um deleite! Trata-se de um disco indiscutivelmente conceitual, o que já lhe garante certa aura de complexidade. É, talvez, o grande disco-conceito da música brasileira depois do “Coisas” do Moacir Santos, de 1965 (neste quesito, nem “Tropicália”, de 68, em que Tom Zé participa junto com toda a turma de Caetano, Gil, Gal, Nara e Mutantes, é tanto). Mas, acima de tudo, é delicioso escutar o álbum do início ao fim e curtir músicas como “Tô”, “Hein?” e “Vai”, onde Tom Zé desconstrói o gênero samba para, didaticamente, mostrá-lo de maneira híbrida em suas mais variadas vertentes.

Comecemos pelo fim. Afinal, sou daquela teoria de que todo grande disco tem uma obra-prima de desfecho, de abertura ou as duas coisas juntas. No caso de “Estudando...” a faixa final não é bem um espetáculo, mas, com certeza, original e incomum, por isso o destaque. Intitulada “Índice”, traz na letra de frases fragmentadas e de sentido vago um verdadeiro índice remissivo em que se repassam os títulos de todas as músicas anteriores. Aí o motivo tanto de a letra ser quase silábica, pois todos os títulos (exceto “A Felicidade” e a própria “índice”) são formados por palavras que não passam de quatro letras, quanto, também, do teor fortemente conceitual do disco, visto que a obra se autoreferencia a todo instante.

Se o final do disco é interessante, porém não musicalmente estonteante, o início é. “Mã”, samba modernista repleto de referências aparentemente díspares, é a tradução da obra de Tom Zé (não à toa o próprio artista a regravou com outras letras mais de uma vez depois). Num clima entre a ópera e o ritualístico, mistura batuque de terreiro, canto de trabalho das lavadeiras nordestinas, coro sacro-religioso, ruídos da São Paulo urbana, entrecruzamentos vocais ao modo das vanguardas europeias (Ligeti, Stockhausen) e riff de rock (tocado não na guitarra, mas cavaquinho de samba!). Tudo está ali: tradição e vanguarda, lundu e tropicália, popular e erudito, roça e asfalto; e de uma forma intensa, poderosa. Já tendo criado ótimas músicas até então (o samba concretista “Todos os Olhos”, o sertanejo-pop “Sabor de Burrice” ou o funk-rock “Jimi Renda-se”), “Mã” é, definitivamente, marco da maturidade musical de Tom Zé como músico.

Na sequência, a única do disco que não é de sua autoria: o clássico “A Felicidade”, de Tom e Vinícius. A escolha, claro, não foi à toa: tocada em ritmo de valsa-rancho, Tom Zé canta lindamente em tom baixo acompanhado só de violão, que sincopa o compasso. Ainda, esparsos acordes de baixo e frases de orquestra de metais ao estilo de George Martin ou Rogério Duprat. Através desta economia de elementos, Tom Zé põe a nu a belíssima estrutura melódica original da canção, homenageando não apenas a famosa dupla de autores, mas a bossa nova como um dos gêneros sambísticos. Ainda, para arrematar, depois de um dos últimos “soluços” da síncope, entra uma cozinha de pagode na diagonal do compasso, desconexão rítmica esta que não estraga a música. Pelo contrário: cai tão bem que faz deixar ainda mais clara a percepção de que os criadores da bossa nova muito se inspiraram no que vinha do morro.

Outra que merece todos os elogios é “Toc”, talvez o único samba serial da história! Próximo ao que o maestro francês Pierre Boulez inventou, o serialismo (método de composição que usa séries de notas, ordenando-as e variando suas durações, intensidades e ataques), “Toc” representa, em tese, uma sequência de sons infinitos e contínuos. Só não é assim porque, como um jogo de xadrez, o compositor “joga” com as notas e as séries sonoras, tirando-as, adicionando-as, repetindo-as, deslocando-as, num esquema matemático em que as variáveis são intermináveis. Sem nenhuma percussão, esta “brincadeira” instrumental ainda traz um dos “inventos” de Tom Zé: o agogô no esmeril, uma serra de verdade adaptada como instrumento musical, o que faz deste samba soar mais barulhento do que muito rock pesado.

“Tô” é outra pérola; das minhas preferidas. Parceria com o sambista Elton Medeiros e de letra filosófica, mas pegajosa (“Eu tô te explicando pra te confundir/ Eu tô te confundindo pra te esclarecer/ Tô iluminado pra poder cegar/ Tô ficando cego pra poder guiar”), é um sambão urbano a la Riachão. O disco ainda passa pelo samba brejeiro (“Ui!”), o samba minimalista (“Dói”), o samba-canção (“Só”), o samba-marchinha (“Vai”) e o samba “dor de cotovelo” (“Se”: “Ah, se maldade vendesse na farmácia/ Que bela fortuna você faria”). Tudo de forma revisitada, revisada, irônica e filtrada pelo olhar tropicalista de Tom Zé.

“Estudando o Samba” significa, na história da MPB, um passo adiante na linguagem do gênero não por inventar um novo conceito, mas por montar uma “enciclopédia do samba”, evidenciando, ao decompor a espinha-dorsal dos seus subestilos, as mil e uma possibilidades que ainda poderia vir a ser explorado. E deu certa a experiência em laboratório. Estão aí Towa Tei, Beastie Boys, Sean Lennon, Ed Motta e Fantastic Plastic Machine que não me deixam mentir. Todos adicionaram a seu paradigma de referências o samba, invariavelmente usando-o entre outros estilos. Afinal, foi Tom Zé mesmo quem disse: “estudando [o samba] pra saber ignorar”.

FAIXAS:
1. Mã
2. A Felicidade
3. Toc (Instrumental)
4. Tô
5. Vai
6. Ui!
7. Dói
8. Mãe
9. Hein?
10. Só
11. Se
12. Índice
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Ouça “Estudando o Samba”:
Tom Zé Estudando o Samba
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Além de “Estudando o Samba”, vale ouvir outros três discos super representativos da longa obra de Tom Zé: “Todos os Olhos” (1973), a “mais completa tradução” da São Paulo moderna; “The Hips of Tradition” (1992), o marcante primeiro trabalho gerado após a redescoberta por David Byrne; e a linda trilha do balé “Parabelo” (1997), composta em parceria com José Miguel Wisnik para o Grupo Corpo.

Ouça “Todos os Olhos”:
Todos os Olhos

Ouça “The Hips of Tradition”:
The Hips of Tradition

Ouça “Parabelo”:
Parabelo

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por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Música da Cabeça - Programa #241


Como diz aquela canção: "Negro é a soma de todas as cores". Na Semana da Consciência Negra, a gente se veste de orgulho e africanidade ao som de Moacir Santos, John Coltrane, Steely Dan, Pixies, Noel Rosa e mais. Ainda tem no "Cabeça dos Outros" o punk empoderado das Clandestinas, a homenagem aos 80 anos de João Nogueira no "Palavra, Lê" e um salve à imortalidade de um dos maiores homens negros desse planeta: Gilberto Gil. Afro mas universal, o MDC desta semana começa às 21h na afirmativa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e punho em riste: Daniel Rodrigues. #consciencianegra #semanaconsciencianegra #20denovembro #diadaconsciencianegra


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Música da Cabeça - Programa #64


A histórica capa da Time diz: “Welcome to America”. Sem a mesma ironia, nós também damos as boas-vindas no Música da Cabeça desta semana. No programa de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica, vamos falar sobre a desumana ação do Governo Trump contra os imigrantes ilegais. E como nem tudo é tristeza, teremos também a beleza da música de Moacir Santos, The Smiths, Nelson Cavaquinho, Ramones, Tom Waits e outros. Eles vêm nos salvar das trevas dessa política sem escrúpulos! O “Sete-List” e o “Palavra, Lê”, igualmente, cumprem o mesmo papel. Estão bem recebidos? Então, agora é só começar. A produção e a apresentação são de Daniel Rodrigues.




Rádio Elétrica:

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Música da Cabeça - Programa #186

 

O MDC vem tal essa imagem aí da bandeira: separando o joio do trigo. Nessa com a gente estão Moacir Santos, Steely Dan, Cartola, New Order, Gilberto Gil, Lobão e mais. Além da conquista democrática dos hermanos chilenos no "Música de Fato", vamos ter um "Sete-List" lembrando os 80 de Pelé e um "Palavra, Lê" para o também recém aniversariante Milton Nascimento. Tudo assim hoje: sem resquício de autoritarismo, 21h, na constitucional Rádio Elétrica. Produção, apresentação e estallido social: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
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quarta-feira, 26 de junho de 2019

Música da Cabeça - Programa #116


As variadas cores do São João e do LGBT+ estão representadas no ecletismo do programa desta semana. Olha só quantos tons diferentes: Baco Exu do Blues, David Bowie, Carmen Miranda, Tom Waits, Led Zeppelin, Moacir Santos, Leonard Cohen e mais. E o mais legal: cores diferentes mas totalmente harmônicas! Vem pra Festa Junina do Música da Cabeça, que tenho certeza que vão fazer questão de ficar presos na nossa cadeia. A fogueira tem hora pra acender: às 21h, no Arraial da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e quadrilha: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
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quarta-feira, 21 de junho de 2017

Banda Black Rio - "Maria Fumaça" (1977)




“A Banda Black Rio é um dos maiores acontecimentos musicais desse planeta”.
Lucas Arruda


“Coisa mais séria que tem! Um dos discos instrumentais mais bem feitos no Brasil. Tudo absolutamente certo aqui: temas, timbres, só acerto.”
Ed Motta


O jazz no Brasil teve de caminhar alguns quilômetros em círculos para que obtivesse uma identificação real com o país do carnaval. Em termos de indústria fonográfica, até os anos 70 as apostas sempre estiveram sobre o samba e derivados ou outros gêneros comerciais, como o bolero, a canção romântica, a bossa-nova carioca, os festivais, a MPB e até o rock. Mesmo presente na sonoridade das orquestras das gafieiras ou na bossa nova, o jazz se misturava aos sons brasileiros mais pela natural influência exercida pelos Estados Unidos na cultura latina do que pelo exemplo de complexidade harmônica de um Charlie Parker ou Charles Mingus. Expressões bastante significativas nessa linha houve nos anos 50 e 60, inegável, mas jazz brasileiro mesmo, com “b” maiúsculo, esse ainda não havia nascido.

Por essas ironias que somente a Sociologia e a Antropologia podem explicar, precisou que o gênero mais norte-americano da música desse uma imensa volta para se solidificar num país tão africanizado quanto os Estados Unidos como o Brasil. Essa solidificação se deve a um simples motivo: assim como na criação do jazz, cunhado por mentes e corações de descendentes de escravos, a absorção do estilo no Brasil se deu também pelos negros. No caso, mais de meio século depois, pela via da soul music. O chamado movimento “Black Rio”, que estourava nas periferias cariocas no início da década de 70, era fruto de uma nova classe social de negros que surgia oriundos das “refavelas”, como bem definiu Gilberto Gil. Reunia milhões de jovens em torno da música de James Brown, Earth, Wind & Fire, Aretha Franklin e Sly & Family Stone. DJ’s, dançarinos, produtores, equipes de som, promoters e, claro, músicos, que começavam a despontar da Baixada e da Zona Norte, mostrando que não eram apenas Tim Maia e Cassiano que existiam. Tinha, sim, outros muitos talentos. Dentro deste turbilhão de descobertas e conquistas, um grupo de músicos originários de outras bandas captou a essência daquilo e se autodenominou como a própria cena exigia: Black Rio.

Formada da junção de alguns integrantes dos conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição, a Black Rio compunha-se com o genial saxofonista Oberdan Magalhães, idealizador e principal cabeça da banda; o magnífico e experiente pianista Cristóvão Bastos; os sopros afiados de José Carlos Barroso (trompete) e Lúcio da Silva (trombone); o não menos incrível baixista Jamil Joanes; Cláudio Stevenson, referência da guitarra soul no Brasil; e, igualmente impecável, o baterista e percussionista Luiz Carlos. Com uma insuspeita e natural mescla de samba, baião, funk, gafieira, rock, R&B, fusion, soul e até cool, a Black Rio inaugurava de vez o verdadeiro jazz brasileiro. Um jazz dançante, gingado, sincopado, cheio de groove e de rebuscamentos harmônicos.

Banda das mais requisitadas dos bailes funk daquela época, eram todos instrumentistas de mão cheia. Se nas apresentações eles tinham a luxuosa participação vocal de dois estreantes até então pouco conhecidos chamados Carlos Dafé e Sandra de Sá, tamanhos talento e habilidade não podia se perder depois que a festa acabasse e as equipes de som guardassem os equipamentos. Precisava ser registrado. Foi isso que a gravadora WEA providenciou ao chamar o tarimbado produtor Mazola – por sua vez, muito bem assessorado por Liminha e Dom Filó, este último, um dos organizadores do movimento Black no Brasil. Eles ajudaram a dar corpo a Maria Fumaça, primeiro dos três discos da Black Rio, a obra-prima do jazz instrumental brasileiro e da MPB, uma joia que completa 40 anos de lançamento em 2017.

Como se pode supor, não se está falando de qualquer trem, mas sim um expresso supersônico lotado de musicalidade e animação, que transborda talento do primeiro ao último acorde. Sonoridade Motown com toques de Steely Dan e samba de teleco-teco dos anos 50/60. Tudo isso pode ser imediatamente comprovado ao se escutar a arrasadora faixa-título, certamente uma das melhores aberturas de disco de toda a discografia brasileira. O que inicia com um show de habilidade de toda a banda, num ritmo de sambalanço, logo ganha cara de um baião jazzístico, quando o triângulo dialoga os sopros, cujas frases são magistralmente escritas e executadas. A guitarra de Cláudio faz o riff com ecos que sobrevoam a melodia; Jamil dá aula de condução e improviso no baixo; Cristóvão manda ver no Fender Rhodes; Luis Carlos faz chover na bateria. Quando o samba toma conta, praticamente todos assumem percussões: cuíca, pandeiro e tamborim.

Sem perder o embalo, uma versão originalíssima de “Na Baixa Do Sapateiro”, comandada pelo sax de Oberdan, que atualiza para a soul o teor suingado da melodia, e outra igualmente impecável: “Mr. Funky Samba”. Jamil, autor do tema, está especialmente inspirado, fazendo escalamentos sobre a base funkeada e sambada como bem define o título. Mas não só ele: Luiz Carlos adiciona ritmos da disco ao jazz hard bop, e Cristóvão mais uma vez impressiona por sua versatilidade na base de Fender Rhodes e no solo de piano elétrico. Uma música que jamais data, tamanha sua força e modernidade.

O líder Oberdan assina outras duas composições, a sincopada “Caminho Da Roça” e a carioquíssima “Leblon Via Vaz Lôbo”, em que Cláudio e o próprio improvisam solos da mais alta qualidade. Outros integrantes, no entanto, não ficam para trás nas criações, caso de Cláudio e Cristóvão, que coassinam uma das melhores do disco: “Metalúrgica”. Como o título indica, são os sopros que estão afiados no chorus. O que não quer dizer que os colegas também não brilhem, caso de Luiz Carlos, criando diversas variações rítmicas, Cláudio, distorcendo as cordas, e a levada sempre inventiva de Jamil.

A versatilidade e o conceito moderno da Black Rio revisitam outros mestres da MPB, como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Baião”), onde o ritmo nordestino ganha tons disco e funk; Edu Lobo (“Casa Forte”), de quem realçam-lhe a força e a expressividade das linhas melódicas; e Braguinha, quando o lendário choro “Urubu Malandro”, de 1913, vira um suingado e vibrante samba de gafieira. Nota-se um cuidado, mesmo com a sonoridade eletrificada, de não perder a essência da canção, o que se vê na manutenção de Cristóvão nos teclados e da adaptação das frases de flauta para uma variação sax/trompete/trombone.

Outra pérola de Jamil desfecha essa impecável obra num tom de soul e jazz cool, que antevê o que se chamaria anos adiante no Brasil de “charme”. Embora a canção seja de autoria do baixista, é o trompete de Barrosinho que arrasa desenhando toda melodia do início ao fim.

Talvez seja certo exagero, uma vez que já se podia referenciar como jazz “brazuca” o som de Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Airto Moreira, João Donato, Eumir Deodato, Flora Purim, Dom Um Romão, entre outros – embora, a maioria tenha-o feito e consolidado seus trabalhos fora do Brasil. Com a Black Rio foi diferente. Com todos pés cravados em terra brasilis, foi o misto de contexto histórico, necessidade social, proveito artístico e oportunidade de mercado que a fizeram tornar-se a referência que é ainda hoje. Uma referência do jazz com cheiro, cor e sabor latinos. Mas para além das meras classificações, a Black Rio é o legítimo retrato de uma era em que o Brasil negro e mestiço passou a mostrar a riqueza "do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão".

Banda Black Rio - "Maria Fumaça"


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FAIXAS
1. Maria Fumaça (Luiz Carlos Santos/Oberdan) - 2:22
2. Na Baixa Do Sapateiro (Ary Barroso) - 3:02
3. Mr. Funky Samba (Jamil Joanes) - 3:36
4. Caminho Da Roça (J. Carlos Barroso/Oberdan) - 2:57
5. Metalúrgica (Claudio Stevenson/Cristóvão Bastos) - 2:30
6. Baião (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga) - 3:26
7. Casa Forte (Edu Lobo) - 2:22
8. Leblon Via Vaz Lôbo (Oberdan) - 3:02
9. Urubu Malandro (Louro/João De Barro) - 2:28
10. Junia (Joanes) - 3:39

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

63ª Feira do Livro de Porto Alegre



“Tempo pra ler, todo mundo tem”, será?


O slogan da 63ª FLPOA (como sempre abrevio a cada edição) é no mínimo provocativo. Criado pela CRL em parceria com a agência Bonaparte a campanha permite ao público em geral refletir sobre questões muito contemporâneas como o tempo destinado a leitura. Num mundo cada vez mais virtual onde grande parte dos temas circula em celulares portáteis para todos os fins, do cinema à leitura, será que reservamos tempo para ler no nosso dia a dia? Fica então o desafio para a reflexão de quais conteúdos optamos por agregar a nossa rotina e ocupar de certa forma a nossa cabeça.

Em meio a tantos dissabores que temos enfrentado em relação ao meio cultural no Estado do RS hoje começa um evento que traz leveza, alegria e a literatura como foco: a 63ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre.

Numa Praça que se modifica desde 1955 para receber a Feira do Livro da cidade, nesta edição tudo cabe dentro dela. O ambiente em que se encontrarão as barracas dos editores, as áreas de programação adulta e infanto-juvenil, os países homenageados e também as áreas de convivência para lanches rápidos e cafés estão dentro da Praça da Alfândega. Os braços desse ambiente atingem dois centros culturais que estendem a Feira pela Rua dos Andradas, o Centro Cultural CEEE Erico Verissimo e a Casa de Cultura Mario Quintana.

Essa proximidade traz um ambiente acolhedor e colorido já que nesta época do ano primaveril as árvores estão mais floridas. A leveza está no acesso que a população gaúcha e os turistas ganham com a Feira no coração do Centro Histórico. Em meio a prédios históricos como a ex-sede dos Correios (hoje Memorial do RS), o Museu de Arte do estado do RS (MARGS), o Santander Cultural (infelizmente numa fase institucional péssima em função de toda a polêmica sobre a exposição Queer Museu) e o próprio ambiente da praça que recebeu faz poucos anos a reformulação do projeto Monumenta, desvenda-se barracas, pipoqueiros, palcos, stands promocionais, exposições, ciclos de cinema e muito burburinho durante os 19 dias de Feira.

A Praça se transforma num local legal para encontros, leituras e está aberta a muita circulação de conhecimento. Neste ano a Feira pretende atender aos consumidores ávidos por novos títulos, com preços promocionais com descontos mínimos de 20%, variando de acordo com cada livreiro descontos maiores que esse.

A patrona da Feira deste ano,
Valesca de Assis
Nesta edição a Patrona é a escritora de Santa Cruz, Valesca de Assis*, que recebeu das mãos da Patrona da 62ª Cintia Moscovich, a notícia que a sororidade estava mantida! Na realidade nestes 62 anos de Feira poucas vezes as mulheres foram Patronas, entretanto a representatividade sempre foi de alto nível: Lya Luft (1996), Patrícia Bins (1998), Jane Tutikian (2011) e Cintia Moscovich (2016).  As primeiras palavras de Valesca foram relacionadas a uma postura política e humana: "A nossa Feira, como tem sido, como foi no ano passado, vai ser a Feira da resistência. Eu sou uma resistente há muito tempo, já passei por uma ditadura, já apanhei na Praça da Alfândega, e vou continuar resistindo em nome dos livros e com o intelecto que me resta, porque as pernas já estão meio danificadas. "A resistência é permanente. Só o livro,  a leitura, vai salvar o nosso país".

A programação concebida por Jussara Rodrigues (adulta) e Sônia Zanchetta (infanto-juvenil) contempla autores dos países homenageados nórdicos, David Lagercrantz, Kim W. Andersson e Carl Jóhan Jensen entre outros oriundos da Finlândia, Suécia, Noruega, Dinamarca e Islândia e também a autores negros que trarão suas produções, questões de lusofonia, abrangendo gaúchos e estrangeiros (o ganhador do Prêmio Nobel, o nigeriano Wole Soyinka, a homenagem em forma de Sarau ao poeta Oliveira Silveira, Oscar Henrique Cardoso, Lilian Rocha, Ana dos Santos, Eliane Marques, Deivison Moacir Cezar de Campos e Luís Maurício Azevedo) entre outros.

Haverá homenagens para os escritores Luis Fernando Veríssimo, Luiz Antonio de Assis Brasil, Armindo Trevisan, Maria Carpi e o músico Belchior, falecido no início do ano.

Jussara Rodrigues e Sônia Zanchetta,
responsáveis pela programação
Sônia destaca: “Assim como o Seminário 'A arte de contar histórias', a 12ª edição da Mutação na Feira, que traz quadrinhos e cultura pop, e “já tem um público certo” terão novas edições esse ano." Acontecerá também o Colóquio de Literatura e Infância – Diálogos com as Matrizes Africanas, com participação dos escritores Júlio Emílio Braz e Otávio Jr, etc. Alguns eventos também regulares participantes da FLPOA estarão renovando suas edições: a 10ª Mostra de Ilustração de Literatura Infantil e Juvenil Traçando História, o III Encontro de Escritores Negros do Rio Grande do Sul, o VII Seminário Internacional da Biblioteca e da Leitura no Desenvolvimento da Sociedade.

Neste ano estarei na minha 15ª edição da FLPOA. Nos últimos anos estou trabalhando na equipe de fotografia junto aos colegas, Luis Ventura, Otávio Fortes e Iris Borges. Nossa turma está dentro da Imprensa da Feira. Daí que teremos no Clyblog cenas das atividades e quem sabe mais resenhas comentando algumas atividades dessa edição.

Destaco quatro atividades que são diversas entre si e que valem a pena se agendar para participar: a palestra com a Monja Coen que abordará sob a luz budista o tema “O Sofrimento é Opcional” (11 nov), o Encontro dos autores Mia Couto e Ondjaki com a Patrona Valesca de Assis (13 nov), abordando a questão lusófona, o 2º Encontro de Influenciadores Literários e Seguidores (18 nov), que vai englobar booktubers, blogueiros, instagramers, mas também os inscritos e seguidores e o espetáculo “O Urso com Música na Barriga” (19 nov) com texto de Erico Verissimo, direção de Arlete Cunha e atuação do grupo Atimonautas que trabalha com bonecos de manipulação direta. Dicas imperdíveis!

Conheça a programação atualizada e monte a sua agenda  De 1º a 19 de novembro  a Praça estará em festa, mas ela só ficará completa com a sua presença. Participe!

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SERVIÇO
Área Infantil
Bancas: 10h às 20h30
Programação: 9h às 20h30

Área Geral e Internacional

Dias úteis e domingo: 12h30 às 20h30
Sábado: 10h às 20h30


Confira algumas imagens:


Atividades para os pequenos na programação infantil da Feira (foto: Miguel Sisto)

Marco Sena, presidente da Câmara do Livro, organizadora do evento

A equipe de foto: Luis Ventura, eu, Otávio Fortes e Iris Borges

* Valesca estreou como escritora em 1990, com a publicação de "A Valsa da Medusa". O trabalho "Harmonia das Esferas" foi vencedor do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes e Prêmio Especial do Júri da União Brasileira de Escritores, em 2000. Hoje ela é professora de História especializada em Ciências da Educação e ministrante de oficinas de escrita criativa.  Valesca é casada com o Patrono a 20 anos atrás, Luiz Antonio de Assis Brasil também  escritor.


texto: Leocádia Costa
fotos: Luis Ventura