Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta naval. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta naval. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Navegante Errante





foto: Doris de Oliveira - fototeca Cioma Breitman
Museu Joaquim José Felizardo - Pref. mun. de Porto Alegre
O Naval foi e sempre será o bar da minha infância. Encravado em pleno Mercado Público de Porto Alegre, centro histórico da cidade, o típico boteco, aberto nos longínquos anos de 1907, é parte essencial da história de porto-alegrenses como eu, tendo em vista sua tradição e notoriedade. Aquele pé-direito altíssimo; as portas de madeira estilo português; o piso de lajotas intercalando preto e branco; o cheiro de trago no ar; as mesas de madeira com plástico grosso por cima; os porta-retratos com fotos antigas; os afrescos do teto; o enorme cartaz acima das cabeças com a imagem de um navio; as fotografias pitorescas nas paredes; o ar que parecia tomado por uma neblina de satisfação. Tudo ali me encantava desde quando, guri, levado por meu pai e, muitas vezes, juntamente com meu irmão, comecei a frequentar o bar Naval. Ia a vários outros com meu pai, mas ao Naval era especial. Não era sempre. Às vezes, no dia de pagamento de meu pai, funcionário da prefeitura, saíamos da repartição dele na Borges de Medeiros e rumávamos direto para lá, felizes. E mesmo com essa frequência menos assídua era incrível como sempre me senti em casa, tal como se o bar fosse uma extensão da minha.

Aquela aura do local me dava impressão de que, ao adentrar pela porta, fosse pela de dentro do Mercado, fosse pela da calçada, que dá para a rua, saíamos do resto do mundo para entrar, exclusivamente, no Naval, como navegantes num barco solto no meio do mar. A percepção de criança fazia com que, inclusive, eu nunca atinasse exatamente de qual dos quatro lados do Mercado Público se entrava para acessá-lo. Parecia que era pelo lado do Guaíba... mas, não, era pelo Largo... ou pelo lado da Prefeitura...? Afora a justificativa do senso de direção ainda em desenvolvimento em uma criança como eu, não posso deixar de pensar hoje que a entrada para aquele museu boêmio era, na verdade, imaginária.

A melhor parte para nós eram as comidas. Comida de boteco típica, daquelas suculentas, sempre com o mesmo gosto anos a fio. Tínhamos nossos pratos prediletos: as almôndegas gigantes, espetacularmente bem fritas, e a chuleta de porco, um respeitável bife cujo sabor especial era um verdadeiro segredo. Tinha também uma pimenta maravilhosa, a melhor que já comi na vida, feira na casa, que só passei a apreciar mais velho, pois era muito forte para meu paladar naquela época.

Não bastasse todo esse espírito, ainda o aspecto humano era de total acolhimento por parte dos garçons, que, na minha mente infantil, estavam ali desde sempre (e, quem sabe, não estavam?). Paulo Naval, um português de olhar entre o arguto e o carinhoso cujo nome resume a simbiose de sua existência com o local, visto que ele e o bar eram parte da mesma coisa; e Mauro, tipo turco dono de olhos verdes intimidadores até o momento em que abria seu sorriso largo e receptivo. Ambos eram amigos de meu pai, a quem tratavam como verdadeira deferência. No entanto e até por isso, Paulo chamava-o, com uma permissividade cúmplice de quem sabia de muita safadeza de meu pai, de “negro sem-vergonha”. O local sempre recebeu desde cidadãos comuns até personalidades, como Lupicínio Rodrigues, Carlos Gardel, Túlio Piva, Elis Regina, Glênio Peres, Leonel Brizola, Jânio Quadros, Olívio Dutra. Mas não havia distinção: podia ser político, conhecido, operário, personalidade, artista, zé-niguém, jovem, ancião, bicha, vesgo. Independia: anônimos ou famosos, todos os clientes eram tratados com o maior dos respeitos e atenção, e, alguns, como meu pai, pessoa comumente querida aonde ia (ainda mais nas rodas de birita e botecos da vida), ganhavam, sim, uma atenção especial.

Episódio clássico que mostra essa afetuosidade foi a ocasião em que meu pai, num dos tais dias de pagamento, pegou todo seu ordenado e se atirou para o Naval, sozinho. Lá, tomou todas a ponto de não ter condições de voltar para casa tamanho o porre. Tentou dar uns passos, mas caiu em plena rua. Pois então que o Paulo, sabendo que o pai tinha recém recebido o salário e que estava com este todo sacado dentro da bolsa, tomou a liberdade de abri-la e guardar o dinheiro consigo. Depois, chamou um taxi, pagou do seu bolso o taxista e mandou meu pai pra casa. No dia seguinte, já refeito do pileque, meu pai voltou ao bar para resgatar seu pertence, agradecer e pagar o taxi. Paulo não aceitou o dinheiro. Meu pai sempre se emocionava ao se lembrar desse ato de pura amizade, tanto pela consideração que tiveram com ele, rara para com um cliente, quanto pela ética de como agiram.

Por essas e outras, não à toa o Naval me parecia algo realmente poético. E Paulo Naval era um poeta de mão cheia, autor do livro "O Garçom e o Cliente - No Balcão do Naval" cujo lançamento ocorreu em pleno bar num concorrido coquetel. Recordo de uma vez que, sentados numa das mesas, ele, orgulhoso, de avental enxovalhado e paninho branco úmido na mão, recitou uma de suas obras. Momento inesquecível para mim.

Na esteira de meu pai, eu e meus irmãos também éramos muito queridos lá. Lembro da primeira vez que fomos com minha irmã, ainda uma criança de uns 4 ou 5 anos, sob os olhos arregalados de minha mãe, que permitiu o passeio com a pequena mas não sem certo receio. Mas deu tudo certo. Engraçado que, por conta daqueles dias de calor louco de Porto Alegre, misturado ao cansaço de sair cedo de casa conosco, ela acabou dormindo profundamente em nosso colo, chegando a ficar com o corpo todo mole. Parecia uma boneca de pano, pois, além de não acordar, precisava ser segurada permanentemente para não desmoronar. Naquele dia, Paulo e Mauro, felizes com a ilustre visita como se fosse a de uma familiar sua, bateram uma foto dela ainda acordada, tomando uma Mirinda de garrafa. Essa foto foi parar na parede do bar, ficando ali desde então.

Os anos se passaram. Cresci, a dinâmica de minha vida se alterou e, nesse meio tempo, entre outras mudanças, meu pai, motivo de meu contato primeiro com o Naval, foi para o outro plano. Mesmo assim, sempre procurei com uma frequência até parecida com a que tinha na infância dar uma passada por lá, fosse para sentar e comer, levar algo pronto para casa ou apenas dar um alô para o Paulo e o Mauro. Sentia-me, no fundo, com certa responsabilidade de manter a herança emocional de meu pai para com eles. Via-os nessas ocasiões, e era muito bom. Mas os anos de casa e a rotina religiosamente diária já os havia desgastado. Normal. Envelhecidos, mantinham a mesma simpatia e sorriso aberto, fazendo as mesmas perguntas a cada vez que eu ia (em que eu e meu irmão trabalhávamos, se eu ou meu irmão que é arquiteto, como estavam minha mãe e minha irmã, essas coisas de gente afeita a ti). No entanto, era perceptível que estavam cansados e que aquele cenário se alteraria, mas eu, talvez por apego ao sentimento de magia alimentado desde a infância, nem pensei em cogitar.

Mas as mudanças, de fato, ocorreram. Outro dia, dando voltas no Mercado Público, resolvi, como de costume, visitar os amigos Paulo e Mauro. Fui tomado de surpresa quando cheguei à porta do Naval. O local, todo reformado, agora tinha límpidas paredes brancas, arquitetura requintada e ar totalmente asséptico. Descaracterização própria de uma protomodernidade ignorantemente desmemoriada. A foto de minha irmã não estava mais lá, assim como os porta-retratos velhos, o cartaz do navio e tampouco a névoa de prazer. Até a porta que dava pra rua havia virado uma simplória janela. Dava pra ver que uma conceituada consultoria empresarial havia agido ali implacavelmente e passado o rodo em tudo que fosse nostálgico e não-moderno, deixando o local com cara não de botequim do Mercado Público de Porto Alegre, mas com cara de boteco bacaninha da Vila Madalena paulista. E, eu, com cara de bobo.

Perguntei a um garçom, um loiro baixinho, onde estavam o Sr. Paulo e o. Sr. Mauro. “Se aposentaram”, respondeu, olhando-me com uma expressão de estranhamento desdenhoso como se eu fosse um navegante errante em águas alheias. Mas meu desapontamento era a maior prova de que, na verdade, era ele o deslocado. Aquela indiferença modernosa e acéfala, que valoriza apenas o novo e cuja falta de alcance nem se presta a procurar no passado sentidos para o hoje, era o maior sinal da ação desrespeitosa desses tempos atuais. De fato, tudo que não fosse jovem tinha ficado para trás ali: aquelas conversas revolucionárias ou jogadas fora, aquelas bebedeiras homéricas ou o simples trago no fim do expediente, aqueles amores arrebatadores ou meros galanteios, aquelas figuras pitorescas ou cidadãos comuns, aquelas geniais ideias artísticas ou importantes acordos políticos. Tudo isso pertenceu a um tempo espacial diferente disso que se vive no dia a dia. Um tempo não-racional impossível de ser percebido por um simples garçom como os de hoje, que bate ponto como um escriturário. Tive o impulso de perguntar onde tinham posto a foto de minha irmã... mas recolhi a fala. Agradeci e fui embora, com um fio de melancolia e resignado com um mundo que insiste em ser muito real.

Mesmo assim, não deixei de frequentar o Naval. Volto lá de vez em quando. A comida é outra, gostosa também. Mas incomparável. Trata-se de outro Naval, pois “aquele” Naval, dos mocotós violentos, dos saraus de poesia, dos bate-papos inflamados, do chope perfeitamente tirado e dos tipos elegantemente extravagantes e encantadores, como foi meu pai, não existe mais. Perdeu-se no horizonte do oceano de lembrança, rumando para outra dimensão de tempo e espaço. Contudo, talvez minha paixão pelo Naval permaneça porque explique, justamente, esta minha atemporalidade ou o sentimento de, às vezes, estar deslocado no tempo. Assim como me acontecia quando subia à proa do Naval e me sentava à nau, com as pernas curtinhas que não encostavam o convés do tombadilho, para navegar longe sem sair do lugar. 

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Bar Naval - Porto Alegre 27/09/09








O Mercado Público de Porto Alegre,
patrimônio histórico
Tive neste final de semana uma breve passagem pela minha cidade, Porto Alegre, na qual revi parentes, amigos e fui ao meu estádio, o Beira-Rio. Aproveitei também, já que em dado momento estava no Centro da cidade na hora do almoço e tendo que esperar meu irmão por mais uma hora, para ir em um dos lugares mais tradicionais da cidade dentro de um dos pontos mais significativos e históricos dela: o Bar Naval, dentro do Mercado Público.
A velha placa do Naval
Conheço o Naval desde que me conheço por gente e por certo o Naval me conhece antes que eu me conhecesse. Provavelmente, imagino, já com dois ou três anos de idade deva ter sido levado ao bar, até porque fui testemunha que minha irmã com menos idade foi apresentada ao Naval, provavelmente com menos de um ano.
Revi o proprietário, figura simpaticíssima e já parte da história da cidade, Seu Paulo Naval, amigo de longa data de meu pai que mesmo não me vendo há anos não esqueceu do gurizinho que era levado lá e sempre pedia a mesma coisa: chuletinha de porco à milanesa (inclusive ainda me trata por “gurizinho”).
O Naval, bar com 102 anos de história, sempre teve a característica de, mesmo com suas acomodações modestas e simples, receber as mais ilustres figuras da cidade além de visitantes importantes como Nélson Gonçalves, Gardel e muitos outros. Dizem que o ex-governador Olívio Dutra era cliente assíduo (e consta que seja chegado numa birita), que Lupicínio Rodrigues ia lá de vez em quando, atores do centro do país, jogadores da dupla Grenal – lá eu conheci pessoalmente Figueroa, o capitão do Andes do Internacional.
Pra manter a tradição comi, é óbvio, uma chuleta de porco à milanesa. O mesmo sabor de todos estes anos. Sempre que ia a Porto Alegre pensava em ir lá, visitar o Seu Paulo, falar das histórias do pai, almoçar lá e tudo mais, mas sempre deixava passar. Acho que paguei uma dívida comigo, com o Naval, com Seu Paulo, com a tradição e com a minha cidade.

Fotos de artistas nas paredes,
muitos inclusive que estiveram lá.



Eu com Seu Paulo.

Cly Reis

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

cotidianas #391 - Ildo e a Porto Alegre que está se indo



Ildo, o garçom mais querido da cidade.
Não sou um andarilho de Porto Alegre. Já fui, não sou mais. O perímetro limitador do círculo casa-trabalho ajuda a isso. Mas não SÓ por isso. Cada vez mais desinteressada consigo, minha cidade vem ficando cada vez mais desinteressante para os outros. Políticas públicas burras, mal pensadas, não planejadas, intransigentes e corruptas a acinzentam diariamente. É resultado visível o atraso econômico, social e cultural a cada meio-fio sem pintura, a cada negócio de anos que fecha as portas, a cada buraco que aniversaria, a cada reestreia de peça teatral igual há 30 anos, a cada mão de via pública invertida sem por que. Não que deixe de circular e ir a lugares, teatros, museus, parques, shows, restaurantes, bares, etc. Faço; entretanto, em virtude de alguma atração ou programação prévia. Ir pelo prazer de ir, deriva, raramente.

Essa “desidentidade” que a cidade Porto Alegre (ou seria uma “des-cidade”?) vem sofrendo de mais de uma década para cá (assim como o Estado gaúcho, haja vista esse atual governo, a institucionalização do escapismo) com certeza é o que vem me afastando dela mesma. Adoro suas ruas, sua luminosidade subtropical, seu céu de azul paralelo 30, a beleza inequívoca de suas gentes, sua infinita e mal aproveitada capacidade intelectual. No entanto, de lugares, pontos-chave da urbanidade porto-alegrense, aqueles que são sinônimos e se confundem com a urbe, poucos se salvaram da despersonalização. Poucos, cabem nos dedos, mas existem. E a Lancheria do Parque é um deles, graças a Deus.

Por essas coisas que talvez somente Ele possa explicar (se quiseres, estou aqui de ouvidos atentos, combinado?), estávamos livres Leocádia, Carolina e eu antes do show de Caetano Veloso e Gilberto Gil, no Araújo Vianna, quase ali de fronte para a Lancheria. A conclusão foi óbvia: paramos antes na “Lanchéra” e depois “s’imbora pro show!”. Além do mais, fazia anos que cada um de nós não voltava lá. Desavisados de que um fato importante ocorreria dali a horas (menos de 48), sentamos no aperto das mesas e pedimos a um dos garçons mais novos xis e um balde de suco a preço de um copo cada um, como todo bom frequentador dali faz.
A emblemática Lancheria, de tão homogeneizada com o Bom Fim, com as imediações da Redenção, com a cidade de uma forma geral, parece existir ali desde que éramos ainda a Porto dos Casais (Não é essa a impressão que lhes dá também?). QG dos alternativos, cozinha dos moradores do bairro, ponto de encontro e turístico. Circulam ali jovens, velhos, crianças, hippies, punks, rajneeshes e até gente normal. E todo mundo convive todos os dias, como se o exótico não fosse exótico aos normais e como se os normais não fossem normais aos exóticos. Ou vice-versa. Essa naturalidade é tão mais democrática e simbólica do que qualquer protocultura de CTG nativista, muitas vezes segregadora e sexista. Uma Porto Alegre que tenta dar certo.

Histórias dali? Eu, como qualquer jovem porto-alegrense e roqueiro, tenho. Lembro de uma vez que, ainda redigindo meu livro "Anarquia na Passarela", estava com a bíblia punk “Mate-me, por Favor” a tiracolo para pesquisa. Lá pelas tantas, na mesa com alguns amigos meus, um frequentador, um cara vestido de forma simples mas com uma expressão nada simples – perturbada, pra ficar por aqui – vidrou no meu livro e veio até mim pedir-me emprestado enquanto eu permanecesse ali – e fez isso com toda a educação que podia, registre-se, até porque era evidente que queria MUITO ler o que desse e não podia correr o risco de receber de mim uma negativa. Claro que disponibilizei (não sou louco de negar pra um maluco daqueles!). Enquanto conversava com meus amigos, de vez em quando percebia o “colega” parar a leitura e virar devagarzinho não só para mim, mas para todos no bar, como numa panorâmica de filme de terror que antecede uma cena horripilante. Os olhos vidrados e um sorriso entre o sarcástico e o psicótico na boca. De arrepiar! Ficava imaginando e comentando na mesa: “que parte ele deve estar lendo pra ter essa reação?” Na hora de ir embora, mesmo com certo receio de pedir o volume de volta, tomei coragem e, em troca, fui até abraçado por ele num esfuziante agradecimento.

Coisas de Lancheria do Parque.

Pois uma dessas coisas peculiares ocorreu não naquela ida que nós três fizemos antes do show, mas logo depois. Espetáculo assistido, corações ainda pulsando, demos passos desnorteados pela Osvaldo Aranha em direção ao HPS pela quadra da esquerda. Ao passarmos pela Lancheria, brinquei:

- Vamos, então, na Lancheria? – num tom de como não tivéssemos feito isso a menos de quatro horas.

Já passos adiante da porta de entrada, Leocádia e Carolina param e respondem:

- Ué, por que não?

Voltamos. Para encerrar a noite com um derradeiro café e acalmar os ânimos daquele momento glorioso do qual vínhamos. Entramos no mesmo fuzuê de sempre: muita gente na porta, muita gente na frente do caixa, muita gente nos corredores estreitos, todo o tipo de gente sentada tomando uma ceva, comendo um lanche, mandando ver num suco. Nós queríamos um simples café. Já nos bastava.

Naquela mesa lá do fundo, aquela encostada na escadinha que dá para a cozinha (a mesma em que vi Nei Lisboa certa vez, sozinho e de porre), sentamos e enxergamos no cardápio a palavra que queríamos encontrar: “Café”. Estava completo nosso fechamento da noite. Até estranhamos nós, que não voltávamos lá fazia anos, estarmos ali pela segunda vez no mesmo dia... Quem veio nos atender? Não o mesmo garçom de horas atrás, mas o Ildo. Ele, que seria dali a menos de 48 horas o tal fato importante ao qual me referi. Pedi-lhe três cafés e ele, na sua simpatia de sempre, desculpou-se:

- Puxa, meu amigo, vou ficar te devendo. A essa hora a gente não serve mais café.
Entreolhamo-nos e, antes de nos esboçarmos frustração, Ildo largou uma joia:

- Café a essa hora só na Rodoviária!

Sim: em Porto Alegre, cujos atrasos e intransigências não preciso repetir, café àquelas alturas só mesmo na deslocada Rodoviária. Não falo de uma desértica madrugada de domingo, mas de um horário antes da meia-noite de uma agitada sexta-feira. Contudo, não ficamos chateados com o Ildo, afinal, a própria Lancheria fecharia dali a 15 minutos. De resto, é mais uma nesse poço que a cidade e seu comércio, por consequência, se meteu. Nem um local de circulação garantida 24 horas por dia com ali resiste ao empobrecimento social, econômico e cultural dos melancólicos dias atuais da metrópole gaúcha. Segurança? Hábito? Invalidade da demanda? Não sei; só sei que saímos com mais uma desgostosa confirmação da cidade onde vivemos.

Afora isso, Ildo, simpático e espirituoso, nos deu ao menos uma sensação de acolhimento, mesmo sem os cafés. Tentei argumentar, em vão, e foi então que ele completou com algo que me marcou. Simbólico por demais o diálogo:

- É que a gente teve aqui mais cedo, e agora só voltamos pra tomar um cafezinho – disse eu, ao que ele me responde:

- Eu sei que vocês tiveram aqui. Eu conheço todo mundo.

Tinha essa sensação de acolhimento na infância no antigo Naval, no Mercado Público, sobre o qual já falei noutra crônica. Paulo Naval e Mauro, os eternos garçons de lá, nos recebiam, desde guris, com esse mesmo espírito atencioso, honesto e alegre, invariavelmente com brincadeiras comigo ou com meu pai, com quem ia sempre. Era nítida a percepção de que eles, igualmente a Ildo, conheciam “todo mundo” que passava por ali. Embora de épocas diferentes em minha vida, ambos os estabelecimentos carregam o mesmo clima de um lugar que você entra e se sente bem. Digo sempre que a Lancheria, especificamente, é tão legal que não tem nada de especial: não há um prato campeão de concurso gastronômico, uma bebida conhecida da casa, nada suficientemente marcante de sua cozinha ou geladeiras que justifique tamanha fama. O legal da Lancheria é a Lancheria. E ponto. A atmosfera; o movimento; a luz branca forte; a permanente fila do banheiro feminino; a comida indigesta que passa o dia inteiro próximo à porta que dá pra avenida; a visão da Redença quando se está dentro.

E pessoas como o Ildo, ele, símbolo desse ambiente, desse universo. Ildo estava, sim, sempre de olho em tudo e sabia quem entrava e quem saía, por anos a fio, dia a dia. Até que resolveu dignamente recolher de vez o guarda-pó, o boné e o paninho úmido no armário.

Ildo está indo embora.

Soube pela Carolina, no dia seguinte, que Ildo se despediria da Lancheria, dos fregueses e amigos no último dia 30 de agosto. Estava explicada nossa misteriosa segunda ida na noite anterior. Uma comoção bonita na cidade a fez ganhar quase esquecidas cores de beleza e sinceridade, abafando um pouco o cinzento cotidiano. Ildo recebeu centenas de pessoas, que foram se despedir dele num domingo de sol quente em temperatura e afetividade. Mal trabalhou: ficou ali tirando fotos e selfies, dando entrevistas, brindando com a cerveja que era acostumado a servir. Recebendo o destaque que alguém como ele raramente recebe. E que bom que numa época como a de hoje alguém com ele receba. Vendo a mobilização, uma amiga postou no face algo como: “às vezes, ainda creio na humanidade”.

Não fui à despedida oficial do Ildo. Nosso último encontro dentro da Lancheria valeu como uma. Informal, como ele sempre agiu com todos que atendia. Afinal, não acredito (e é aí que Tu entras, viu, Deus?) que aquele improvável e até mal explicado retorno nosso à Lancheria, quase à meia-noite, como que empurrados para retroceder os passos que já dávamos adiante, tenha sido uma coincidência. Foi algum toque dos deuses do Bom Fim (Scliar, Nêga Lu, RöhneltNico, Hartlieb), das forças míticas oswaldeiras que nos puseram lá de novo para sermos atendidos pela derradeira vez por Ildo. Justo por ele entre tantos garçons. Definitivamente, não era o café que nos aguardava. Era ele, para um último aperto de mão engendrado pelo destino.

Embora sutil e desavisada, foi uma despedida como a que não pude ter com Paulo e Mauro do Naval: quando voltei lá, uma nave espacial clean e carioquesada havia aterrissado sobre o verdadeiro boteco. Mas a Lancheria do Parque permanece lá, orgânica e resistente. Mesmo sem o querido Ildo. Diferente de lugares como o próprio Naval, irremediavelmente solapados pela nossa “desidentidade/des-cidade”. Não sou um andarilho de Porto Alegre; já fui, como disse. Mas bem que vale a pena às vezes circular, mesmo numa cidade que está se indo a olhos vistos. E pior: sem a integridade com que Ildo o fez.





domingo, 3 de janeiro de 2016

Museu Naval - Rio de Janeiro (02/01/2016)








Estive ontem no Museu Naval, no centro do Rio de Janeiro, de onde partiria meu passeio de barco pela Baía de Guanabara e aproveitei para dar uma olhada na exposição permanente do local que conta, por meio de maquetes, miniaturas, documentos, objetos, vídeos, linhas de tempo, etc., toda a história da navegação brasileira desde o descobrimento até os dias de hoje. Nada de fora do comum mas interessante. Tá de bobeira no centro do Rio, acabou de sair do CCBB, do Caixa Cultural, tem que dar um tempo até o início de uma sessão de cinema? Dá uma passada lá e dá uma conferida no acervo da Marinha Brasileira. Vale a passadinha.



A fachada do prédio, no centro do Rio

Gaivotas

Culatra de um canhão, mo Pátio das Armas

Foooogo!



Minuciosas miniaturas de caravelas

Maquetes de episódios históricos

Brasão

A evolução das embarcações marítimas

Este blogueiro com as belas miniaturas ao fundo.


Cly Reis

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Os 300 de Esparta", de Rudolph Maté (1962) vs. "300", de Zack Snyder (2006)



Jogo de estratégia. Dois times que sabem ficar ali encolhidinhos defendendo até esperar a hora certa para atacar. A história em que, aproximadamente, apenas trezentos homens espartanos defendem a Grécia do ataque do tirano Xérxes com seu numerosíssimo exército, é basicamente igual nos dois filmes, o original de 1962, "Os 300 de Esparta", e seu remake, de 2006, chamado apenas "300". Em ambos os casos, o time, digo..., o exército comandado pelo capitão, quero dizer, general Leônidas, ciente de sua inferioridade numérica dentro de campo, posiciona-se num local limitado, estreito, por onde obrigatoriamente o exército do Rei Xérxes teria que passar, e fica ali, fechadinho, sem deixar o adversário penetrar na sua defesa e dando suas estocadas ofensivas, sempre que possível.
O time antigo não é ruim! Típico filme épico de Hollywood. Mais modesto, é verdade, com menos aparato, orçamento, menor suntuosidade, mas mesmo assim caracterizando bem aquele tipo de produções históricas, bíblicas, mitológicas que os estúdios americanos gostavam de fazer. O novo, por sua vez, é extremamente impressionante visualmente com uma fotografia digital espetacular que imita fielmente a concepção de Frank Miller, criador da graphic novel da qual o filme se baseou, e do qual é, por sinal, é uma espécie de "auxiliar técnico de luxo" do treinador Zack Snyder, homem que é especialista em dirigir times que procuram jogar no estilo HQ.

"Os 300 de Esparta" - trailer

"300" - trailer

O time de Snyder adota a mesma estratégia do time de '62 mas é mais abusado. Fica bem agrupado, compacta as linhas, mas avança com os pontas de lança levando perigo à retaguarda adversária. Atrai o time Persa para seu próprio campo mas aí então avança em bloco e espreme o adversário contra seu próprio campo fazendo-o, literalmente, cair na armadilha. Neste ponto, há um ABISMO de diferença na parte tática entre o time do Rei Leônidas e o do Rei Xerxes. E lá atrás então, não tem jeito de furar o bloqueio! Parece time do Mourinho quando "estaciona o ônibus" na frente do gol, só que no caso dos 300 de Snyder, é uma pilha de corpos que bloqueia a entrada. "Aqui não, queridinho!", É o recado de Leônidas para Xerxes que, apesar de toda sua altura, um gigante de mais de três metros, não consegue ganhar nem na jogada aérea, com o chuveirinho de flechas lançadas sobre a área adversária.
Uma mostra do quanto o remake é fiel à HQ.
Na cena, o time espartano sai em bloco e
empurra o adversário contra seu próprio campo.
Na refilmagem, Leônidas tenta ganhar o jogo com uma bela jogada ensaiada, na qual um companheiro o ajuda a abrir o ângulo para a finalização, mas, um pouco mais distante do que gostaria, acaba desperdiçando a chance que, literalmente, passa raspando. Mas se os espartanos não conseguiram ganhar o jogo contra os persas na História e em nenhuma das duas versões cinematográficas, contra os espartanos de Rudolph Maté, o time de Zack Snyder se impõe e com muita garra e jogadas ensaiadas, triunfa sem maiores dificuldades. A fotografia, com cenários digitalizados fiéis à HQ de Frank Miiller, é o primeiro gol dos comandados de Zack Snyder. O time combativo e pegador que não desiste de nenhuma bola, marca o segundo por conta das cenas de luta. Uma jogada combinada entre as cenas do precipício, a da parede de corpos e a da chuva de flechas, garante o 3 x 0 para o "300", de 2006. E com uma jogada espetacular de seu ponta de lança, o Leônidas mais vibrante e protagonista que o da primeira versão, recebe na cara do gol, só empurra pro fundo: 4x0. O craque, conhecido como Diamante Grego, vai na frente da torcida adversária e grita, "Isso é Esparta, porra!!!". Leva um amarelinho pela provocação, mas tá valendo pela festa.

Cutucou e guardou!
Vai buscar no fundoooo.
Rodrigo Santoro como um Xerxes andrógino, agigantado digitalmente e com uma voz dublada, é tão ruim que praticamente entrega um gol para o adversário, mas o time antigo não se aproveita do vacilo e com um Xerxes tão ruim quanto, hesitante e inexpressivo, o contra-ataque não resulta em nada e nesse quesito, ficam (H)ellas por (H)ellas. No entanto, a introdução da resistência naval pelo exército grego, comandado por Temístocles, e a intervenção de Artemísia junto à Xerxes para a batalha naval, elementos históricos que só virão a aparecer com mais consistência no filme sequencia de "300", o fraco "A Ascensão do Império", garante um gol de honra para o bom time de 1964 que dá mais ênfase a esse meandro da história.
Placar final: 4 x 1 para o remake. Vitória de um time muito bem trienado, um time que não aceita a derrota, um time que não se entrega nunca, um time que, se precisar, luta até a morte.

Um líder mais vibrante e sanguíneo, um time mais compacto e organizado,
muita luta e entrega até o fim. Isso é Esparta!!!
O time de 2006 mostra mais armas que o adversário e vence  a
Batalha das Termópilas.


Fazer um filme épico, histórico, mitológico, até dá pra fazer,
 mas ganhar de um que, praticamente, revolucionou o estilo,
 são outros quinhentos,
 ou melhor, outros trezentos.






por Cly Reis

terça-feira, 16 de setembro de 2014

"Marlon Brando - A face sombria da beleza", de François Forestier – Ed. Objetiva (2014)


"O horror! O horror!"





Acabo de ler "Marlon Brando - A face sombria da beleza", do jornalista francês François Forestier, que já biografou JFK e Marilyn Monroe. O presentaço veio do amigo Francisco Bino, que, na dedicatória, fez uma previsão um tanto cômica: "Che, tu vai ler tão rápido que vai parecer ejaculação precoce - desse mal Brando não sofria". Na verdade, acho que foi o único mal do qual esse puta ator não padeceu.

Brando teve infinitas personalidades. Ora anjo, ora monstro. Mais monstro do que anjo, diga-se. Na arte dramática, soube ser Midas; na vida real, foi Medusa. Único, rebelde, encantador, arrogante, trágico. Ao mesmo tempo em que conquistava todos à sua volta, fazia-se repugnante. Antes de filmar algumas cenas de "Uma rua chamada pecado", praticava um ritual que começava por uma leve masturbação, depois molhava a calça jeans e, por fim, abria a braguilha. Pronto, agora Stanley Kowalski poderia se exibir aos colegas - em especial, à Blanche DuBois-Vivien Leigh.

Desdenhava a profissão. Não lia roteiros, não decorava falas. Improvisava e tomava conta dos sets como se fosse o dono de estúdio - havia exceções, como com John Houston e Francis Ford Coppola, por exemplo. Ainda no teatro, quando fazia "Um bonde chamado desejo", tinha como hobby "brincar de boxe" com figurantes e atores substitutos. Certo dia, levou um direto no rosto que quebrou seu nariz. O autor da proeza: um jovem desconhecido chamado Jack Palance, que se orgulharia a vida inteira do feito. Sua grande diversão era chocar, chamar a atenção. E conseguiu. Todas as mulheres do universo, de Hollywood ao Taiti, do México às Filipinas, caíram em tentação. Entre as que sucumbiram, Ava Gardner (então namorada de Frank Sinatra, que mandou capangas darem um "recado" a Brando envolvendo a palavra "castração"), Marilyn Monroe (a quem ele não dava bola - "era muito bunduda") e Vivien Leigh (então esposa de Laurence Olivier, bissexual e grande referência para Brando, tanto no cinema quanto no teatro).


Na adolescência como
protagonista de
"O Selvagem"
O homem que virou rei de Hollywood, que defendeu indígenas e panteras negras, nunca escondeu a sexualidade aflorada, intransigente, desafiadora, inquietante. Gostava de mulheres exóticas - Rita Moreno, Movita Castañeda, Katy Jurado, Tarita Teririipaia. E de homens, também. Entre eles, os parceiros de toda vida: Wally Cox e Christian Marquand. Brando nunca negou sua bissexualidade. Bernardo Bertolucci teria se apaixonado por ele, incutindo sua obsessão nas transgressões entre Brando e Maria Schneider em "O último tango em Paris". O ator gostava tanto de gente quanto de Russel, seu guaxinim. Teimava, no entanto, em não gostar de si. Ainda que não bebesse ou consumisse drogas (influência pela vida errante levada pela mãe, Dodie), Brando maltratava o próprio corpo comendo desenfreadamente. A grande paixão? Sorvete. Potes e mais potes, que o faziam engordar quilos de um dia para o outro. Aos 30 anos, por estar "muito rechonchudo", quase perdeu o papel de "O selvagem" para Montgomery Clift - que fazia sombra a Brando desde "Uma rua chamada pecado", sendo, na época, um dos grandes queridinhos de Hollywood. Monty era bonito, educado, inteligente e homossexual. Ainda que tomasse conta de qualquer ambiente, Brando baixou a bola para um colega de "O selvagem". Um ex-fuzileiro naval mal-encarado chamado Lee Marvin fazia-no tremer. Para Marvin, aquele motoqueiro falso requebrava um pouco além da conta. "Maricão", dizia. "Não passa de um monte de merda".

Dali em diante, entre péssimos filmes e parcas boas exceções, como o genial "Sindicato de Ladrões" (novamente de Kazan), Brando via seu peso aumentar na mesma medida em que as confusões sucediam em sua vida pessoal - sempre envolvendo mulheres. No começo dos anos 70, foi parar em "O Poderoso Chefão", já gordo e decadente, com 58 anos, depois que o papel fora recusado por Laurence Olivier e George C. Scott. Brando estava desacreditado, assim como o filme, negado por vários diretores até parar nas mãos de um jovem de 31 anos chamado Francis Ford Coppola. Sem dinheiro e credibilidade, Brando trocou 5% de participação na bilheteria por U$ 100 mil. Deixou de ganhar, por baixo, U$ 10 milhões. Mas recuperou a estima, a aura que havia ido pelo ralo. Depois dos primeiros dias de filmagem, quando quiseram trocar Coppola pelo velho mestre de Brando, um dedo-duro do Macartismo chamado Elia Kazan, Don Corleone acariciou um gatinho e bateu pé: "se tirarem Coppola, também saio". Assim, Coppola ficou. Ficando, fez uma obra-prima. Ficou rico e conseguiu dinheiro e renome suficiente para realizar seu maior sonho, uma insanidade chamada "Apocalipse Now". Tão insano quanto os 125 quilos com os quais Brando chegou às locações, nas Filipinas.

Brando encarnando o célebre
Cel. Kutz em "Apocalypse Now"
Sobre "Apocalipse Now", Forestier escreve: "As filmagens seriam afetadas por um furacão, que destrói os cenários; o ator principal, Harvey Keitel, não podia ser mais irritante. É pior que Brando, no estilo Actors Studio. A cada saleiro depositado na mesa, Keitel pergunta: ‘Mas por quê? Desde quando? Qual a história desse saleiro? E dessa mesa?’. Coppola o manda embora. O substituto, Martin Sheen, é satisfatório, mas... sofre um ataque cardíaco, de cansaço. Passam-se os dias. A película prende nas câmeras, por causa da umidade. Os técnicos fumam, se drogam, contraem doenças desconhecidas. Os mosquitos atacam os brancos. Os bifes importados dos Estados Unidos chegam descongelados, ou mesmo podres. Encantadoras figurantes incitam os atores e maquinistas a se entregarem a atos imorais - mas saborosos. O próprio Coppola cede aos encantos das coelhinhas da Playboy que participam das filmagens. O exército filipino recusa-se a emprestar helicópteros. Brando raspa a cabeça. Dennis Hopper, o bad boy de ‘Sem Destino’, chega. Drogado até o pescoço, recusa-se a tomar banho. Passada uma semana, ninguém mais lhe dirige a palavra - exceto por telefone. Ao fim de 40 dias, passa a ter direito a um ônibus particular: ninguém mais quer entrar na condução com ele. Brando desaparece na selva."

Em 2004, aos 80 anos, Marlon Brando morreu. Apesar de ter tido o mundo ao seu dispor, pereceu sozinho, assistindo uma comédia sem graça de Abbot & Costello. Talvez comendo um McDonald´s daqueles que eram jogados por cima do muro por um funcionário da lancheria mais próxima de sua casa, em Mulholand Drive. Partiu não sem antes ter vivido uma sequência de tragédias que, se fosse transformada roteiro de cinema, perderia credibilidade - tamanho surrealismo. Em 1990, seu filho Christian Brando, um drogado problemático de QI abaixo da média, dá um tiro na cabeça do cunhado, Drag Dollet, na sala da casa do ator. Brando presencia os momentos seguintes e procura inocentar o filho "atuando" no tribunal. Cheyenne, a filha viúva, é outra problemática. Viciada em drogas e remédios, estava grávida do agora finado namorado. Depois de inúmeras tentativas de suicídio, a garota conseguiu se enforcar (“com sucesso”) em 1995, aos 24 anos.

Entre a sedução de Kowalski, a luta de Zapata, a ingenuidade de Terry Malloy e a sagacidade de Vito, fico com a insanidade de Kurtz. Ou de Brando, tanto faz. Ao fim e ao cabo, this will never be the end.


por Ricardo Lacerda





Ricardo Lacerda é jornalista, chato e curioso. Desde que se conhece por gente, vê filmes e escuta música de “gente velha” – como diziam os amigos do colégio. É aficionado por folclore latino-americano, curte Paulo Leminski e Pedro Juan Gutierrez – entre doses de Salinger e Hesse. Na tela, aceita quase tudo – salvo exceções. Foi editor da revista APLAUSO. Formado pela PUC, tem especialização em Relações Internacionais pela ESPM e é sócio da República – Agência de Conteúdo, de onde escreve para publicações como Superinteressante, AMANHÃ, Voto e Jornal do Comércio.












terça-feira, 26 de setembro de 2017

Carlos Dafé - “Pra que Vou Recordar” (1977)



“A refavela/ Revela o passo/ 
Com que caminha a geração/ 
Do black jovem/ Do Black Rio/ 
Da nova dança no salão”. 
Gilberto Gil, da letra de "Refavela", de 1977

O ano de 1977 foi cheio para a Banda Black Rio. Formada a não muito da fusão de músicos de diferentes origens – os conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição –, eles eram os reis dos bailes black da Zona Norte carioca, que eclodiram nos anos 70. Além das festas,  começaram a ser bastante requisitados para outros projetos. Só entre janeiro e março, gravaram todo o primeiro disco e foram até tema de novela da Globo, Locomotivas. Era o momento deles. Junto com nomes como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo, Hyldon, Toni Tornado, Dom Mita e outros, a Black Rio não só representava como levava o nome da onda sociocultural que mobilizava milhares de negros excluídos pela sociedade. Eram jovens oriundos das "refavelas" em recente processo de ascensão social num Brasil de Ditadura Militar, que passavam agora a demonstrar seu orgulho pela raça, pelo cabelo crespo, pela dança, pela cor da pele, pelo sotaque, pela linguagem. E pelo seu som: brasileiro, mas universal.

Todos da Black Rio eram músicos excepcionais, mas nenhum sabia (pelo menos, ainda) cantar. E para incendiar a galera dos passinhos durante os bailes tinha que ter alguém chamando nos microfones e com presença de palco. Mais do que um crooner. A voz feminina a banda de Oberdan Magalhães achara: uma jovem cantora de voz rouca e potente digna das melhores da black music norte-americana chamada Sandra Sá. Porém, precisava de um gogó masculino também, o que coube perfeitamente a Carlos Dafé.

Cantor de elegância e gingado, Dafé é compositor e multi-instrumentista, capaz de mandar ver no violão, guitarra, baixo, piano, acordeão e vibrafone. Nascido no subúrbio de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, teve no pai (José de Sousa, um funcionário público tocador de chorinho) e na mãe (Conceição Gonçalves, poetisa) o incentivo à musicalidade. Tanto que, aos 11 anos, já estudava no Conservatório de Música e, na fase do serviço militar, fez turnê com o grupo Fuzi 9, do Corpo de Fuzileiros Naval. Toda essa bagagem deixava evidente que Dafé era a figura perfeita para acompanhar a Black Rio. Tanto que não ficou apenas restrito aos bailes. Assim como ocorrera com a própria banda naquele início de 1977, eles correram para o estúdio, quando se concebeu o brilhante “Pra que Vou Recordar”. Igualmente a “Maria Fumaça”, a também estreia da Black Rio, o disco de Dafé completa 40 anos de lançamento em 2017, formando o mais célebre duo de discos da soul music brasileira de todos os tempos.

A lendária Banda Black Rio: grupo de apoio de Dafé em sua estreia
Dançante mas altamente sofisticado, o álbum abre com uma das maiores canções pop já escritas no Brasil: a irrepreensível “De Alegria Raiou o Dia”. Parceria dele com outro craque da soul, Dom Mita, é um arraso em execução, timbres, sonoridade, ritmo. Que tabelinha de Luis Carlos na bateria e Jamil Joanes no baixo! Adicionado a isso, o Fender Rhodes de Cristóvão Bastos, a levada de guitarra de Claudio Stevenson, os sopros: tudo perfeito, encaixado, sonoro, musical. Mesmo sendo seu primeiro registro fonográfico, o já experiente Dafé mostra de largada toda a habilidade como compositor e cantor. A voz rasgada e de pronúncia aberta é, sobretudo, símbolo da afirmação daquela negritude adormecida e, agora, autovalorizada. O fraseado malandro, que opera propositais supressões de fonemas e adiciona ginga noutros, é de visível inspiração a nomes consagrados da música brasileira, como Seu Jorge e Criolo. Como se não bastasse o funk irresistível, na segunda parte, a “cozinha” entra com um samba-rock que, convenhamos, não tem ninguém que saiba, faça ou entenda como um músico brasileiro – quanto mais se tratando de Black Rio. Também nisso o disco de Dafé guarda semelhança com o debut do conjunto carioca, haja vista que as duas faixas de abertura trazem essa fusão dos ritmos típicos norte-americano e brasileiro como proposta conceitual.

“Tudo Era Lindo” (“Era lindo vagar, me perder de amor/ Correndo a enfrentar um mundo de loucos”) e “A Cruz” (“Se existe uma barreira/ Entre os nossos corações/ Não ligue pra essas coisas/ O importante somos nós”) dão a devida diminuída no ritmo em duas balada cheia de suingue e romantismo. Afinal, todo baile funk pede também aquela hora de dançar de rosto colado! A empolgação volta para homenagear o genial autor de “Superstition” com “Hello Mr. Wonder”, mas a um modo bem brasileiro: soul com muita carga de samba, assim como já haviam apresentado em “De Alegria...”.

Voltando para a pista, “Bem Querer” une a elegância do jazz soul com pitadas de samba, ou seja, tudo o que a turma domina. O coro feminino faz uma tabela perfeita com a voz de Dafé, enquanto Oberdan “apavora” num solo de sax. Merece ainda realce o baixo sempre incrível de Jamil, que não se restringe a simplesmente manter uma base, e, sim, desenhar linhas harmônicas sobre a escala.

A faixa-título (adicionada do complemento “o que chorei”), outro clássico do disco e da black music brasileira, faz jus ao mito. Além de trazer aquele clima das baladas dos mestres “gringos”, como Marvin Gaye e Bobby Womack, ainda adiciona-lhe a “cadência bonita do samba”. E mais uma interpretação impecável de Dafé, cheia de sentimento. Destaque para a levada de Luis Carlos e a guitarra solada de Claudio Stevenson.

“Zé Marmita” começa somente com Cristóvão ao piano elétrico e Dafé introduzindo os primeiros versos para, logo em seguida, cair num novo samba, agora bem suingado. A letra fala de um brasileiro pobre e trabalhador que se deixa levar pela alegria do Carnaval sem pensar que tem que pegar no batente no dia seguinte: “Cantando na avenida, você nem vê que amanheceu/ Esquece até da vida/ Pensa que o mundo agora é seu/ Quero só ver quando a festa acabar/ Coragem pra trabalhar”.

Ainda mais especial é “Bichos e Crianças”, que intercala uma doce melodia (“Dia de domingo/ Quem vai passear?/ Bichos e crianças vão”) com uma disco animada e lúdica cujo ritmo a Black Rio repetiria a dose na trilha do filme “Sábado Alucinante”, de 1979. Já “O Metrô”, última faixa, é o característico funk temperado com pitadas de brasilidade. A timbrística da Black Rio é algo realmente impressionante e improvável: une a sonoridade da Motown, com o padrão Steely Dan, recupera o samba telecoteco de Miltinho e o samba-rock da turma da Tijuca para chegar àquilo que eles mesmos se autodenominam: Black Rio. Ainda, é claro, a qualidade do band leader nos microfones. Um final com o que havia de melhor na cena. Em "Pra que...", Dafé e o time de Oberdan atingem um nível de musicalidade poucas vezes visto no mundo, haja vista que passa pelo funk, pela soul e pelos ritmos brasileiros em constante namoro com o jazz fusion, mas sem ser pedante nem difícil. Pelo contrário: é pop e sofisticado ao mesmo tempo.

Se 1977 ainda era tempo de Ditadura, é de se imaginar que, se a repressão recaía fortemente sobre adolescentes universitários de classe média, imagina se não iria exercer a mesma força a jovens negros da periferia? Bastou os bailes começarem a mobilizar muito mais gente que o esperado e, ainda por cima, ganhar espaço também na “branca” Zona Sul do Rio, que se resolveu dar um basta. Essa coisa de “movimento Black Rio” ou “Black o que fosse” estava começando a ficar perigosa para o governo. Então, para que os donos de equipes de som e artistas começassem a ir para o DOPS foi um passo.“Quando viram aqueles caras dançando junto, com aquelas roupas e cabelos, os militares perceberam que se nasce um líder ali no meio ia dar uma grande merda para o governo”, conta DJ Marlboro, que presenciou a cena. O movimento se tornava, da noite para o dia, subversivo.

A onda Black, pelo menos naquele momento, se esvaziara. Seguiram-se, nos anos seguintes, a última década de Governo Militar, a redemocratização, a era Collor, a ascensão do PT. Paralelamente, entretanto, o grito da periferia não se calara. Vieram o hip-hop, o break, o melô, o funk carioca, o charme, o punkadão. Se a qualidade das manifestações culturais da negritude não acompanhou aquele embrião animador e altamente musical, paciência. A bandeira pela liberdade dos negros havia sido hasteada. Dafé, Black Rio e Cia. cumpriram o papel daquilo que Gilberto Gil captara naquele sociologicamente fatídico 1977 para o Brasil negro: conceber um “samba paradoxal. Algo que só nossa “escola” é capaz. Ou seja: “Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional”.

**********************************
FAIXAS:
1. “De Alegria Raiou o Dia” (Carlos Dafé/Dom Mita) - 3:40
2. “Tudo Era Lindo” (Dafé/Jomari) - 3:34
3. “A Cruz” (Dafé/Tânia Maria Reis) - 5:52
4. “Hello Mr. Wonder” (Dafé/Claudio Stevenson/Luiz Carlos dos Santos) - 3:44
5. “Bem Querer” (Dafé/Lucio Flavio/Tião da Vila) - 3:11
6. “Pra Que Vou Recordar o que Chorei” (Dafé) - 3:46
7. “Zé Marmita” (Dafé/Vandenberg) - 3:34
8. “Bichos e Crianças” – (Dafé/Marilda Barcelos) - 2:45
9. “O Metrô” (Dafé/Lucio Flavio/Oberdan) - 2:58

**********************************

OUÇA

por Daniel Rodrigues