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quinta-feira, 5 de novembro de 2015

COTIDIANAS ESPECIAL nº400 - A Lenda do Assubiadô



ilustração: Cly Reis
Lá é lugá de gente, mas gente de tudo qui’é feitio: gente rúim, gente humirde, trabaiadô, coroné, garimpêro, jagunço, caboclo, curandêro, ticunã, bandido, moça-da-vida. Gente do bem e otros... nem tanto. Gente viva, muito da viva, e gente que não tem nem onde caí morta, porque quando morre nem tem direito à terra pra descansá, que já não tem mais valia pra nada mêmo. E como morre gente! Ara! Gente cumo a gente que é de lá, entende, seu moço? Incrusive esse tar que o sinhô me pede pra falá. É: lá é terra de gente anssim grossêra quinem eu anssim, me adescurpe meu jeito. Gente cumo o sinhô, estudado nas estranja, conhecedô desse mundão aí fora, deve de achá inté estranho. Deve de achá que a gente é quase bicho, né? E se não é mêmo?! Anssim, quinem bicho, a gente se ‘custumô a sê tratado. Quem trabaia amarrado inté definhá pra cumê um quase-nada por dia é o quê?
Mas é terra bonita, sim sinhô! Ô, se é! Verde que não acaba mais, terra boa de se plantá. Toda a sementêra que se joga, a terra prenha. É só oiá lá as fazenda tudo. E tem de montão aquilo que os ôme mais cubiça: os ôro. Por isso, graça ao Nosso Bão Sinhô e a São Binidito, trabaio nunca fartô. Os patrão mandavo trazê gente de tudo qui’é lugá com as caçamba pra trabaiá, gente de monte quinem boiada, quinem furmiguêro, tudo amuntuado. Nem percisava de tê os dois braço. Miguelino, lá da terra do Tamborão, que diga: bão de garimpo só com uma braçada por vêiz. Será que já não definhô o pobre do Miguelino?...
Mas que bão que o sinhô me indaga essas cosa. Gosto de prosá. Anssim, a gente espanta as cosa rúim que fica grudada nos interno da gente. Não sô de protesto, não, sinhô. Ganho o meu unzinho na páiz do meu Bão Deus e na certidão que minha finada mãe me ensinô. Hoje, véio anssim, posso descansá. Mas o sinhô, vivido e entendedô, deve de sabê cumé qui’é vida de quem não tem mobral: trabaio, de bastante; mas prata, qui’é bão e de direito, um quase-nada. Por isso, lá, os trabaiadô trabaiavo tudo de cara fechada, no siso, ‘cabrunhado. Eles trabaio ainda anssim lá. Tudo brigão: se mexê, fáiz quinem carcará: bisa sem reza nem conversa. Desde de sempre foi anssim. E se não fáiz as obrigação, toma no lombo. Muita judiação, sabe, seu sinhô... Chibatada, tronco, laço de faca, de vara, taio de adaga, isso quando não é uma chupada de bala mêmo. Cosa feia de se vê. Teve um, uma vêiz, que fêiz umas marcriação e ficô dois dia no tempo dipindurado num cajueiro com os peito lambuzado de mér doce. O sinhô deve de imaginá o que as abeia fêiz com ele... Cosa do Chico Diabo, o jagunço mais marvado de lá. Ara, que esse tinha o capa-verde com ele! Mas não só ele, não! Tinha o Côsa-Feia, o Ambrosino, o Delcino Mete Bala, o Manuelzinho Bulhento, o João Tição: tudo com mardade nus’óio. Tudo cosa-rúim, tudo mafarrico, excumungado. Fêiz quarqué cosinha fora do acertado, era castigo nas carne!
Inté que um dia, um dia quarqué desses tanto, deu de aparecê pelas banda de lá um tar de Assubiadô, esse que o sinhô me apergunta. Roto, pôca carne, c’as rôpa tudo escangaiada. Cariboca feio didadó! Não prosava com ninguém. Tumbém: não sabia dizê um “ai”! Só assubiá. Nem cumê direito cumia: era só pro de si mantê di’pé e tê fortidão pra assubiá. E fazia isso com contento, sim, sinhô! A gente oiava pr’ele e ele tava com as feição dum santinho, ‘bençoado, assubiando aqueles estribio. A cara era tar a páiz de Jesuis. Ele apertava os beiço, dava um segundinho... e sortava. Um som nem fino nem grosso. Era só... bonito de se ouvi. E não digo só eu, não: todo o garimpo gostava, fosse gente ou fosse bicho. O passaredo tudo se vinha pra junto dele quando ele assubiava: aracuã, sapucaia, mutum-poranga, painho, fura-bucho, caraúna, coró-coró. Tudo, tudo se vinha pra cima das árvre cantá junto.
Fáiz muito tempo isso, seu moço. Ô, se fáiz! De primêro, ele se chegô cumo se não quisesse nada. E não queria nada mêmo. Só foi ficando pelos garimpo, ficando, assentado numa pedra, numa árvre, no mato ralo, num cabeço, assubiando. Era só o que queria. Às vêiz, usava uma fôia verde pra fazê apitá, e não é que aí era mais boniteza ainda!? Cumo não fazia mar pra ninguém – era só oiá pras feição dele que se via que não era de rinha – fôro deixando ficá ali, de garimpo em garimpo, assubiando. Quando mais qu’isso, ganhava um prato montado com os resto dus’otro. E não se quexava: cumia com gosto e com cara de ‘gradicido.
Quando o tar assubiava era cumo o canto do uirapuru no matagão fechado. Bonito cumo o cér. A gente, que vivia de cabeça quente, pela lida forçada e pela mira das espingarda, ia ouvindo aquele assubio e desmanchava um bucado da raiva, sabe? A gente ia se acarmando, acarmando, via que era milhó fazê o afazê, que se não a gente ia tá morrendo toda hora, a gente que não tinha arma de fogo e tinha poca fortidão contra os jagunço, esses, forte e gordo, que cumia as cumida boa que o patrão dava. Com o assubio do Assubiadô nos ouvido, a gente trabaiava milhó, inté com gosto, porque o tempo passava num estalo.
Mas o sinhô, seu moço, sabe que tem sempre os que não ‘guenta domá o fogo que tem no bucho, né? Pois não é que teve um jagunço que cismô com o Assubiadô? Ele, que não fazia mar pra um ramo de mureré! Isso foi logo dispois que ele se achegô por lá, e quem fêiz isso foi o Bilico Come-Dorme, jagunço do Nhô Bandêra, um gordalhão priguiçoso que só sabia cumê, durmi e inticá cuns’otro. Ele viu aquele ôme assubiando encostado no pé de um pinheiro-manso, qu’ele gostava, se achegô e foi logo destacando o punhar. “Que tu qué aqui, seu disgracento!?”, falô, arto que todo mundo escuitô. Os garimpêro tudo pararo de trabaiá; é que ninguém queria que ele morresse anssim, de faca. E dispois, ele não tava fazendo um nada! Só tava ali, assubiando cumo se nasceu nessa vida só pra fazê. Mas não é que com o punhar de fronte pr’ele o Assubiadô seguiu assubiando, carmo, na paz de Jesuis? De mó’de que ele não parô a cantiga, o capataz vortô a perguntá: “Qual tua graça? Hein, diz: qual tua graça? Não sabe fazê mais nada se não assubiá, bicho burro? Deve de sê mêmo muito burro mêmo!”, se rindo todo do Assubiadô, mas tava mêmo era com raiva dele, que não ‘parentava medo ninhum no sembrante. Cumo ele não movia uma paia, o Bilico se desgostô todo e caiu na ameaça braba: “Ah, tu não vai falá!? Qué morrê, disgracento dus’inferno?!”
Aí foi o que se assucedeu o que o sinhô quiçá nem ‘credite, que decerto só pra gente de cabeça pôca que nem a gente. É, ‘quilo foi um milagre, sim, meu sinhô, adescurpe se lhe conto o que parece troça. Mas não é, não! Por essa lúiz que me alumia! Quando o prevalecido do Bilico Come-Dorme ia lhe passá o punhar nas tripa, o Assubiadô virô os óio pr’ele, na mêma carma e... assubiô. Só assubiô. Na minha ‘gnorânça de ôme de fora, eu firmo: foi uma maravía do Nosso Sinhô. Foi cumo se o Divino que chegô naquele assopro de cantiga pro desvairido do Bilico. Não teve punhalada, nem carne rasgada. Nem mais prosa. O jagunço baixô a arma e ficô oiando nus’óio do Assubiadô, ‘dmirado. Decerto, tentando entendê o que tava se assucedendo lá no de dentro dele mêmo. Dispois, foi s’imbora pé por pé, ‘sustado, e os garimpêro, eu, ‘crusive, tudo começaro a se ri baxinho, mas que deu pra escuitá. O ôme saiu com o rabo no meio das perna, cumo se tivesse tomado uns para-te-queto do patrão!
Ô, que eu me rio todo dessas história! É bão lembrá... Só sei que dispois daquele ocurrido o tar do Bilico Come-Dorme nunca mais judiô de ninguém. Não buliu mais com ninhum trabaiadô, de móde que Nhô Bandêra lhe mandô pra imbora do garimpo pra nunca mais, que não lhe servia de nada jagunço com “modo de moça”. Foi o que me disséro – isso anos dispois –, que o Bilico tinha entrado pra igreja, e ajuda o padre numa paroquinha d’otra paragem não muito disiguar de lá. Que Deus o conduza, né mêmo, seu moço? O que eu sei é que tar do Assubiadô era um pobre que não sabia nem o seu pra-quê na vida, mas assubiava bonito as música inventada dele, e isso fazia um bem danado pros trabaiadô tudo.
E aí que começa a verdadera história desse desinfeliz de bão coração, o Assubuiadô, que o sinhô me veio de pronto indagá quem foi. Antão que chegô tão longe anssim a lenda do Assubiadô, inté lá pra suas banda, foi? Ara! Valei-me São Binidito! Foi dispois desse ocurrido com o Bilico que ele passô mêmo a sê mais um de nóis, e foi daí que ele passô a vivê com a gente, ora numa terra, ora nôtra, se ‘comodando ca’gente nas estalage, sempre assubiando seu assubio, ajudando os trabiadô a trabaiá com mais gosto. Na hora da lida, era só ele passá um meio-dia com nóis, soprando o vento pra fazê cantiga, que tudo se corria na maió das tranquilidade.
Os sim-sinhô, dono dos garimpo e das terra – o seu moço deve de imaginá –, de primêro estranharo aquilo. Querío tudo sabê quem era esse tar, por que assubiava, por que não prosava, donde saiu, essas cosa de gente desconfiada e dona dus’otro. Só que era tão meió quando ele tava, e dispois do ‘currido com o Bilico curria nos ovido que ele não bulia com ninguém, que inté os patrão não se importaro de dexá. Só ele que pudia andá por tudo, que não tinha amarração no pé quinem nóis, pro sinhô vê. Adispois, os ôme começaro a enxergá que quando o Assubiadô tava lá, assubiando enquanto os garimpêro garimpava, o trabaio rendia mais. Aí é que os patrão, que sabe ganhá as prata e usá o trabaio dus’otro, não quiséro mais que o Assubiadô fosse s’imbora.
Era tão bão quando o Assubiadô tava que os garimpo começaro a querê ele sempre, sem deixá us’otro aproveitá tumbém. Tivéro inté que se reuni o Nhô Bandêra mais o Nhô Quim, Nhô Tião, coroné Vaca-Brava, coroné Vilêga e coroné Salustiano pra mó’de organizá cada dia que o Assubiadô ia tá em que garimpo. Tudindim batido no relójo. Os jagunço já ficava esperando de banda, e quando batia a hora, pegavo o Assubiadô e levavo pr’otro garimpo. E anssim era o dia todo, zanzando pr’um e pr’otro. “E ele?”, o sinhô me apergunta? Não se desgostava. Deixavo ele assubiá, antão tava mais de bão pr’ele. Decerto, nem atinava que passô a sê mais um trabaiadô cumo nóis. Só que ao invéis de trabaiá com os braço e mercúro nas mão, ele só usava os beiço. Nem percisava de mais nada.
Anssim foi por um bão dum tempo. Foi o tempo mais bão que teve por lá, isso é acertado. Os garimpêro passaro a trabaiá mais e meió, e anssim passaro a rendê mais prata pros patrão. Os patrão, anssim, começaro a de tê mais prata que já tinho, e pra móde de não perdê o que já tava bão, passaro a dá mais prata tumbém pros garimpêro. Época boa ‘quela, seu moço! Ô, se foi! Época de pogresso. Os garimpêro não trabaiava mais de fuça cerrada, río trabaiando e fazío as cosa com gosto. Teve inté uns que queria bamburrá iguar aos patrão! Todo mundo teve menos moléstia; tomavo agora água limpa; os bodeguêro vendío muito mais quebra-goela e di-cumê. Inté as ramêra tínho mais criente pra fazê ‘quilo que os ôme e as muié gosta de fazê.
E o assubio do Assubiadô voziando tudo a gente todos dia.
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A vida de todo mundo miorô, e parecia que as cosa ío ficá daquele jeito bão que tava. Mas o sinhô sabe, né, seu moço, que nesse mundão erva má depressa cresce. Não se ademorô muito prus´ôme começá a se disintendê. Foi só o coroné Vilêga, um que falava todo ‘revezado, se apercebê que os garimpo do Nhô Quim e do Nhô Tião tava dando mais riqueza, e que os estrangêro tava começando a comprá mais deles, que as brigaiada começaro tudo de novo. Adispois, ‘inda por cima o Nhô Bandêra enfiô na cabeça que o coroné Salustiano tava mandando os garimpêro dele tirá ôro das terra que era de seu pertence. E isso era desverdade, seu sinhô. Valei-me São Benidito se eu tivé dizendo cosa errada! É que o Nhô Bandêra, sempre de ôio nas cosa dus’otro, não gostava do Salustiano, e isso era briga antiga das famía. Mas como o povo diz: “Em tempo de guerra, mintira é cumo terra”. Aí foi que se desintendêro tudo. Promessavam de morte, pararo de dá as prata boa pros garimpêro e inté as corrente vortaro pra prendê os trabaiadô. O Assubiadô, que nem sabia o que tava se assucedendo, paricia fole de oito-baxo: ia pra lá, ia pra cá. Não tinha mais paradêro. Tudo os patrão querío ele e não tinha mais combinação de relójo. Só pra móde tirá vantage um d’outro. Era a hora que eles querío e pronto!
A cosa toda foi de um jeito que se estragô o que tava bão. Ninguém trabaiava mais cum gosto nem podia comprá mais pinga nem aporveitá as noite no meretriço. Tudo vortô a sê cumo era de antes do Assubiadô chegá: cara triste, vida sofrida, tóchico, bibida, morte de arma, judiação, desatino de cabeça por causa dos mercúro. Nem o assubio dele ajudava mais os garimpêro, porque os jagunço pegavo ele toda hora toda hora. Mar dexavo ele ficá num garimpo só, e os garimpêro nem conseguia mais escuitá as cantiga de assubio dele.
Me adescurpe do que eu vô lhe falá, seu moço, mas é verdade verdadera: o bicho ôme não sabe arresorvê as cosa dotro móde que não na rinha. Foi anssim que o coroné Vaca-Brava, ôme marvado por demais, arresorveu o embaraço: se não era ele a tirá vantage, ninhum dus’otro patrão igual ele que ia tirá. Ele mandô o Chico Diabo mais trêis capanga ‘traiz do Assubiadô, tudo de cospe-fogo na mão. Não foi difícer de achá o Assubiadô. Tava ele lá, encostado no pinheiro-manso que ele gostava de se encostá pra assubiá pro ar. Não fêiz movimento ninhum quando oiô o camionetão do coroné Vaca-Brava enfreá de pertinho dele, de móde que a puêra se foi toda pra cima dele. Os capanga – gente tisnada, que Deus me aperdoe! –, descêro no depressa cumo se o pobre do Assubiadô fôsse corrê ou ameaçá eles. Óia só o sinhô, que desabsurdo! O Chico Diabo, esse sim com o cão-tinhoso por de dentro, veio carmo, mas ‘quela carma de quem tá seco pra metê bala, se lambendo, que gostava duma morte matada.
Foi antão que o Chico Diabo escarrô no chão um cuspe grosso e disse pro Assubiadô: “Vai ‘subiá pro diabo ‘agora, seu desinfeliz!”. O Assubiadô ficô só parado, sem medo ninhum, nem raiva paricia sintí. Antes de se ouvi o estampido, diz que ele esticô o braço na direção do Chico Diabo ‘ferecendo a fôia verde qu’ele fazia as música. Se fêiz ‘quele clarão. Tar um sor que se nasce e logo em siguidinha ‘noitece...
Mas o fío do tisnado do Chico Diabo não se contava cunh’essa: com a espingarda mirada, ele oiô de banda, pra que nenhum garimpêro se bobiasse em querê se provalecê ou desforrá por causa do Assubiadô. Só que quando foi oiá de novo pro cadáve... quedê? O Assubiadô: quedê? Estranhô tanto o jagunço e os ôme dele que se alevantaram tudo as arma de novo, ‘sustado que ficaro. Os garimpêro tudo parado, sem se mexê, sem dizê um “ai”, que quarqué cosinha cumia bala de novo cun’sôme naquele nervoso que tava. Foi antão que se tornô a ouvi um assubio. E era o assubio... tar e quar do Assubiadô! E vinha da árvre ‘quele som. Será que era dos passarim? Será qu’ele tava lá escundido?
Todo mundo se arvoroçô, sem ninhum entedimento, e foi aí que o Chico Diabo virô diabo mêmo! Só que de raiva. Ele cuspiu fogo pra riba, e um passarim saiu vuando do meio da copada, ‘sustadinho. Só que o assubio não parô. O Chico Diabo, sem sabê o que fazê, falô arto: “É tu que tá iscundido, disgracento?! ‘Parece! ‘Parece aqui, que eu vô te metê bala no teu bucho de novo!” Brabo que tava. O sinhô sabe qual foi o retruco? O assubio. Que continuô lindo daquele jeito que só o Assubiadô fazia. E não parava, e não parava. O Chico Diabo se vortô pra oiá se não era ninhum garimpêro que tava se engraçando em ‘remedá o assubio do Assubiadô. Mas não era, não: tava tudo de bico fechado, cun’beiço pregado de vexado que tava tudo. Devia de pensá o Chico Diabo: cumé que podia o disgracento fugi se tinha ele certidão que tinha metido bala no desinfeliz? Foi antão que o Chico Diabo, pra móde não passá vergonha na frente dos trabaiadô que ele bulia, pegô os ôme dele no ligêro e se foi-se ‘imbora no camionetão do coroné Vaca-Brava cuspindo fogo pelas venta.
Ficô tudo mundo estaqueado, sem entendê o assucedido. E o assubio do Assubiadô cismava nus’ovido da gente. Ou era os passarim das árvre que fazia? Ficô uns achando disconfiado que fosse sempre o gogó dos bichinho que assubiava, e não o Assubiadô. Pudia. Mas pudia sê tumbém que o espetro daquele ôme tivesse ido pra árvre, aquele pinhêro-manso qu’ele tanto gostava, que já era quase iguar a ele mêmo: árvre e gente. Teve inté um que disse: “É o espríto dele, cês não enxerga?” Eu, seu moço, posso lhe dizê que eu não vi espríto ninhum. Mas vai sabê se não era mêmo? Otros, inda achava que era o Assubiadô mêmo, que tava já lá no cér essas hora encostado num travissêro de núve assubiando pros lá no chão, se rindo, gracejado.
Ninguém sôbe dizê donde foi pará o cadáve do Assubiadô. Se fugiu, se saiu avoando, se entrô pra dentro da árvre. Era tão minguado o judiado que, no acertado, um tiro só serviu pra fazê ele sumi todinho duma vêiz só! Só sei lhe dizê que não que dispois desse ocurrido ninguém mais enxergô o Assubiadô, nem lá nem em lugá ninhum paricido ou desparicido c’aquele.

Quero não tê ‘borrecido o sinhô cué’ssa história toda. Foi não? Bão! Me dá sastisfação de sabê. Inda mais hoje, que vivo aqui, tão longe de lá d’onde passei tanto tempo da vida. E adispois é o sinhô que tá me fiando, o sinhô, sujeito letrado, conhecedô das cosa boa desse mundão aí. Decerto, deve de tê mêmo nessa história ‘cabrunhada que lhe prosei cosa boa tumbém, né? E adescurpre se distraí dalgum bucadim de história. Cabeça de gente véia quinem eu dêxa passá as cosa. É que já fáiz tanto tempo isso tudo! Ara, se fáiz! Me arrecordo bem sim é de quando foi esse ocurrido: otubro de doismilequinze.


A Lenda do Assubiadô
a partir do argumento original de Lucio Agacê
ilustração de Cly Reis

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Fotos da Minha "Casa"





"Espaçonave Barroca"






por Daniel Rodrigues



Vasculhando meus alfarrábios, deparei-me com fotos produzidas por mim, provavelmente em 2001, na Casa de Cultura Mário Quintana, um dos principais centros culturais de Porto Alegre, que, mesmo com o advento de novos espaços de cultura nos últimos tempos na cidade, não perdeu em charme nem importância. Foi anunciado recentemente, inclusive, que o espaço será totalmente revitalizado, com previsão de conclusão em março de 2014.
CCMQ fundamental na minha formação intelectual e com a qual mantenho uma relação especial desde a infância. Guardo-lhe ótimas lembranças. Das talvez centenas de filmes assistidos, entre eles “Apocalipse Now Redux” do Coppola, “Acossado” do Godard e “Verdes Anos” do Gerbase e do Giba. Lá conheci o cinema de alguns diretores que hoje admiro como Eric Rhomer, Yasujiro Ozu e Max Ophuls. Casa de exposições maravilhosas, como a das fotos panorâmicas do cineasta Win Wenders, em 1999, feitas no deserto de Paris (Texas!), e a recente do fotógrafo-artista Gui Bourdin , que tive o prazer de presenciar este ano. Os bate-papos com personalidades, como o em comemoração aos 40 anos do Tropicalismo, em 1998, com  Tom Zé, Capinam e Luiz Tatit. E shows! Aquele inesquecível de Jards Macalé cantando só Noel Rosa, em 2001, por exemplo, foi lá! Os vários encontros com amigos... ih, CCMQ de muitas histórias.
Não recordava deste meu trabalho fotográfico, feito para uma das cadeiras da faculdade de Jornalismo, e surpreendi-me positivamente com o resultado quando revi, pois me considero limitado tecnicamente para fotografia. Mas sempre acreditei no meu olho, e acho que foi isso que (reforçado pela necessidade de tirar uma boa nota) me impulsionou a produzir boas imagens deste cartão-postal da capital dos gaúchos. Devem alguma coisa em técnica às de um profissional, sei; mas que lhes há poesia, há. Confiram:

"Stalker"

"A Alma" ou "Um passa, outro para"

"Tango do Passaredo"

"Jazida"

"Olhos e Boca" ou "A CCMQ me olhando"


terça-feira, 23 de abril de 2013

Adriana Partimpim - "Partimpim Tlês" (2012)


Ganhei de presente de minha amada Leocádia Costa o último CD do projeto Partimpim, de Adriana Calcanhoto: o “Partimpim Tlês” (isso mesmo, três com “L”, bem queridinho e infantil). Como esperado, um encanto de disco. Assim como os dois primeiros, o já fundamental “Adriana Partimpim”, de 2004, e “Partimpim 2”, lançado somente cinco anos depois, o novo da série traz canções infantis (ou não) para crianças (ou não) com muita poesia e numa roupagem ao mesmo tempo lúdica e arrojada, tendo em vista os arranjos primorosos que vão do intimismo à vanguarda. 

Tudo é muito artesanal, mas não que se exima de usar toda uma parafernália tecnológica e uma produção caprichadíssima. A banda, por exemplo, conta com nada menos que craques como Kassin, Moreno Veloso, Domenico e Berna Ceppas. Enfim, um projeto que já dura nove anos e que tem como diferencial não subestimar a inteligência dos pequenos. A instrumentação rebuscada, o primor das harmonias, o alto nível dos autores e parceiros (que vão desde Augusto de Campos e Ferreira Gullar até Péricles Cavalcanti e Arnaldo Antunes, tudo mostra o quanto este público merece, sim, não só Xuxa ou coisa pior.

Mas o disco? Repleto de pérolas do cancioneiro infantil ou, melhor ainda, identificadas com muita sensibilidade por Adriana como sendo também música que criança pode ouvir. Por que não? É o caso da sacada de “Taj Mahal”, de Jorge Ben compositor cujas letras, de fato, sempre tiveram um quê de infantil. Também é o que acontece com a ecológica “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime, e a mais surpreendente e brilhante delas: “Lindo Lago do Amor”, hit de Gonzaguinha nos anos 80 mas que nunca havia sido identificada como podendo ser também para os pequenos ouvintes. Tem ainda, ao contrário do primeiro da série, que só continha músicas de outros compositores, canções próprias de Adriana – tal como já ocorrera a partir do segundo volume. Destas, “Salada Russa”, parceria com Paula Toller, é um verdadeiro barato com sua letra inteligente que brinca com divertidas e inteligentes antífrases (despertando, inclusive, a curiosidade nas crianças sobre as figuras de linguagem).

Das inéditas, também tem a graciosa “Criança Crionça”, do poeta concretista Augusto de Campos e seu filho, o compositor Cid Campos – que conta com a participação especialíssima nos créditos do ronronar da gatinha de Adriana, a Sofia; a poética e etérea “Por que os Peixes Falam Francês?”; e a fofa canção-de-ninar “Também Vocês”, feita, como diz na dedicatória, para Lucinda Verissimo cantar para seu avô (Luís Fernando Veríssimo).

Destaques ainda para “De Onde Vem o Baião”, de Gilberto Gil (feita originalmente para Gal Costa que a gravou em 1978), e o clássico da bossa-nova “O Pato”, que há tempos estava caindo de maduro para Adriana gravar no Patimpim.

O CD desfecha em tom leve e quase “soninho” com Dorival Caymmi e sua “Acalanto”, autor que também mereceu outra homenagem com a maravilhosa “Tia Nastácia”, feita originalmente para a trilha sonora do Sítio do Pica-Pau Amarelo da Globo, nos anos 70. Esse é o melhor exemplo de que Adriana Calcanhoto, que assumiu o sobrenome Partimpim até nos créditos, pegou pra si a responsabilidade de seguir adiante com a tradição de trilhas para criança inteligentes como se fizera tempo atrás em obras referenciais como "Plunct Plact Zum!!!", “O Grande Circo Místico” ou “Arca de Noé” mas que, em tempos de progressiva imbecilidade da sociedade, vinha se estabelecendo. Ainda bem que a Adriana (a Partimpim!) está aqui para salvar a nós e à criançada. Longa vida a Adriana, seja a Partimpim ou a Calcanhoto.

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Captain Beefheart and His Magic Band - "Trout Mask Replica" (1969)



“Um dos mais criativos e corajosos álbuns de todos os tempos, décadas à frente do resto da música rock.
É, acima de tudo, uma colagem de pinturas abstratas, cada uma diferente da outra em intensidade, cor e contraste, mas todas homogêneas em sua ‘abstração’ ”
Piero Scaruffi


Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. Sim, estamos nos referindo a Don Van Vliet e seu “Trout Mask Replica”, o primoroso terceiro LP da Captain Beefheart and His Magic Band, de 1969. Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira “obra de arte”, considerado pelo crítico musical italiano Piero Scaruffi como o melhor álbum de rock de todos os tempos e um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.

Com produção do maestro-maluco Frank Zappa, do qual Van Vliet (vulgo Captain Beefheart) é discípulo, “Trout Mask Replica” é de difícil assimilação, quase indecifrável: atonal, dissonante, polirrítmico, abstrato, desconexo. Lembra ora a música aleatória de John Cage, ora o “passaredo” farfalhante de Messiaen, ora os borrões de um quadro de Jackson Pollock, ora um filme experimental de Derek Jarman. Altamente influenciado pela vanguarda erudita, pelo free-jazz de Ornette Coleman e pelo blues do Mississipi, Van Vliet criou um disco que aponta para infinitas direções que não só musicais, mas também plásticas, cênicas e literárias, haja vista a loucura e a irracionalidade poética que suscita. Ele desmembra o estilo blues, base do rock ‘n roll, desestruturando ritmo, harmonia, tom e melodia, remontando depois as peças, ”algo entre o caos orquestral de Charles Ives e audácia de John Cage”, definiu Scaruffi.

Oblíquas e sem uma linha melódica estável, as músicas de “Trout...” são rocks sem riff. Tudo numa roupagem seca dada pela produção. É assim que começa o álbum, com “Frownlands”: toda descompassada, parecendo estar se desmontando. A voz rouca e rasgada de Van Vliet cospe versos enquanto os sons se debatem, tentando se encontrar em uma harmonia, o que nunca acontece – ou melhor, acontece de forma diferente do que se está acostumado a ouvir no rock. O arranjo, elaborado por Beefheart a quatro mãos com o baterista da banda (!), John French, é tão primoroso que a sonoridade do instrumento que originou as melodias se adéqua perfeitamente à nova instrumentação, dando a impressão de que tudo foi improvisado – e a ponto de tornar o piano dispensável no resultado final. Mas tudo, do início ao fim, está dentro de uma geometria composicional criada pela louca e excêntrica cabeça de Van Vliet, movida à base de muito LSD. O repretório foi composto por ele em apenas oito horas, porém, os ensaios levaram exaustivos meses de isolamento de todos os músicos até a gravação que, de tanta repetição, foi captada praticamente todo de uma vez só.

 Mutáveis e caóticas, as músicas vão se recriando dentro de si próprias através de novas células sonoras. "Moonlight on Vermont", “The Blimp” e “Dachau Blues”, das minhas preferidas, são exemplos claros dessa metalinguagem. A poética dadaísta das letras é outro ponto peculiar, pois não são mais do que meros esboços non-sense, neologismos imbecis (“fast ‘n bulbs”, “semen ‘n syrup ‘n serum”, "hobo chang ba") que servem apenas para apontar para o ouvinte o caminho – errado. Vê-se já no título sem sentido da tribal “Ella Guru”, outra genial, que traz vozes em falsete, síncopes incoerentes, hinos guturais e um riff de baixo hesitante.

 “Hair Pie”, “bakes” 1 e 2, são suítes instrumentais fabulosas, a ver a primeira, um jazz com uma longa introdução de dois sax alto que se retorcem e se entrecruzam um sobre o outro através de dissonâncias, muito ao estilo de Albert Ayler e Anthony Braxton. O blues, elemento base do disco, é tão desestruturado que chega ao ponto de... inexistir! É o caso de “The Dust Blows Forward 'n the Dust Blows Back" e "Orange Claw Hammer", à capela e montadas em estúdio por picotes colados em sequência, em que apenas se supõe o ritmo. Apreciáveis também: a excelente “China Pig”, um blues bruto; “Dali’s Car”, espécie de suíte para duas guitarras; e "When Big Joan Sets Up", constantemente variante dentro de si mesma, como uma pequena sinfonia em 4 atos rápidos.

O disco termina com "Veteran's Day Poppy", que dá a impressão de desfechar, enfim, do modo consonante e agradável da tradição clássica até que, depois de um breve fade out/fade in, a música retorna consonante, mas... peraí! Está numa notação totalmente enviesada, dando a impressão de que está sendo executada ao contrário! Um final magistral para um disco que, bastante influenciador do rock alternativo (Tom Waits, Meat Loaf, Residents, Jah Wobble) e do pós-punk (P.I.L.Gang of Four , Polyrock e Sonic Youth que não me deixam mentir), continua, quase 45 anos de seu lançamento, uma audição desafiadora e instigante. Propositadamente desconfortável, desacomoda positivamente nossos ouvidos já tão saturados da métrica em três tempos da música pop, criticando, em decorrência, toda a sociedade moderna e seus padrões massificadores há muito esgotados.

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 FAIXAS:
1. "Frownland" - 1:41
2. "The Dust Blows Forward 'n the Dust Blows Back" - 1:53
3. "Dachau Blues" - 2:21
4. "Ella Guru" - 2:26
5. "Hair Pie: Bake 1" - 4:58
6. "Moonlight on Vermont" - 3:59
7. "Pachuco Cadaver" - 4:40
8. "Bills Corpse" - 1:48
9. "Sweet Sweet Bulbs" - 2:21
10. "Neon Meate Dream of a Octafish" - 2:25
11. "China Pig" - 4:02
12. "My Human Gets Me Blues" - 2:46
13. "Dali's Car" - 1:26
14. "Hair Pie: Bake 2" - 2:23
15. "Pena" - 2:33
16. "Well" - 2:07
17. "When Big Joan Sets Up" - 5:18
18. "Fallin' Ditch" - 2:08
19. "Sugar 'n Spikes" - 2:30
20. "Ant Man Bee" - 3:57
21. "Orange Claw Hammer" - 3:34
22. "Wild Life" - 3:09
23. "She's Too Much for My Mirror" - 1:40
24. "Hobo Chang Ba" - 2:02
25. "The Blimp (mousetrapreplica)" - 2:04
26. "Steal Softly thru Snow" - 2:18
27. "Old Fart at Play" - 1:51
28. "Veteran's Day Poppy" - 4:31

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Ouça:
Captain Beefheart and His Magic Band Trout Mask Replica



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Chico Buarque - "Meus Caros Amigos" (1976)



“O que será que será/ Que todos os avisos não vão evitar/
Porque todos os risos vão desafiar/ Porque todos os sinos irão repicar/ 
Porque todos os hinos irão consagrar/ E todos os meninos vão desembestar/ 
E todos os destinos irão se encontrar/ E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá/
 Olhando aquele inferno, vai abençoar/ O que não tem governo, nem nunca terá/
O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
trecho de
“O que será? (À Flor da Terra)”



“Hoje o inimigo veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ Mas eu não quebro porque sou macio, viu”. Estes versos, da canção "Querido Diário", de 2011, bem que poderiam ter sido escritas por seu autor, Chico Buarque, 40 anos antes, nos famigerados anos de Regime Militar no Brasil. Um dos artistas mais perseguidos pela censura, Chico foi preso, se exilou, voltou ao país, travou diálogos constrangedores com os censores, burlou-os por vezes e, mesmo escrevendo duplos sentidos não alcançados pelo baixo QI dos avaliadores, teve diversas músicas vetadas. Em meados dos anos 70, cada vez mais cerceado pelos milicos em relação a seu trabalho, chegou um ponto em que compor um disco inteiro, com início meio e fim, virou-lhe tarefa quase impossível. “Quase” em se tratando do “macio” Chico Buarque, talvez o maior nome da música brasileira de todos os tempos. Se não dava para fazer do jeito ideal, criatividade e coragem não lha faltam para passar o recado da maneira que desse. Uma dessas provas de resistência é “Meus Caros Amigos”, de 1976, a materialização possível diante daquela situação de repressão. O que não lhe impediu de cunhar uma obra-prima da MPB.

Como todos os outros discos que fizera durante os anos de chumbo, “Meus...” é um Frankenstein sonoro. Diante da impossibilidade de escrever 10 ou 12 canções novas, pois sabia que a maioria seria proibida pelo simples fato de serem de sua autoria, a solução era ir pescando obras feitas para outros projetos. Homem não só da música, mas de teatro, cinema e da literatura, Chico construíra desde os seus primeiros anos uma carreira em que sua música dialogava com as outras artes. Naquele meio de anos 70, em seu auge criativo, este importante papel que desempenhava na cultura nacional estava totalmente estabelecido. É aí que aparecem os “caros amigos”. Companheiros de luta como Ruy Guerra, Augusto Boal, família Barreto e Hugo Carvana, igualmente opositores ao Governo Militar, sabiam que podiam contar com seus “versos e trovas”. Assim, “Meus...” constituía-se como um aleijão, sim, mas não qualquer aleijão. Com apenas duas canções novas escritas para o disco, por ação desta confluência de ideologias e atitudes constam nele algumas das mais emblemáticas obras da história do cancioneiro nacional.

Uma dessas joias é a que abre o disco: “O que será? (À Flor da Terra)”, escrita para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Melodia incrível e acachapante, que no cinema teve a voz da cantora Simone, aqui Chico divide os vocais com outro mestre da nossa música, Milton Nascimento. Bituca ajuda a dar uma interpretação toda diferenciada ao número, dramática e incisiva. A brilhante letra, crítica e reflexiva, traz, a partir de uma urgente pergunta (“O que será, que será?), versos inesquecíveis como: “Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas/ Que anda nas cabeças, anda nas bocas/ Que andam acendendo velas nos becos/ Que estão falando alto pelos botecos/ Que gritam nos mercados, que com certeza; Está na natureza, será que será...”.

Em seguida, mais uma puxada de outro projeto – e mais uma obra-prima –: “Mulheres de Atenas”. Encomendada para a peça “Lisa, a Mulher Libertadora”, de Boal, é um canto feminista que se vale da ironia e da inversão para expor a crítica da condição feminina não necessariamente na Grécia mitológica, mas no Brasil da era moderna: “Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Geram pros seus maridos/ Os novos filhos de Atenas / Elas não têm gosto ou vontade/ Nem defeito, nem qualidade/ Têm medo apenas...”.

Também extraída de outro projeto para o álbum é a clássica balada “Olhos nos Olhos”, feita originalmente para Maria Bethânia, que a gravara pouco antes e estourara nas rádios naquele ano. Talvez a melhor música em primeira voz feminina já escrita por um homem, expressa a profundidade da alma de uma mulher que, após uma desilusão amorosa, vive um momento de autodescoberta. “Quando você me deixou, meu bem/ Me disse pra ser feliz e passar bem/ Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ Mas depois, como era de costume, obedeci”. Ela quer vingar-se do ex que a deixou mostrando que agora não precisa mais dele. “Quando você me quiser rever/ Já vai me encontrar refeita, pode crer/ Olhos nos olhos, quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”. Talvez não tão bem assim, afinal, se fosse totalmente verdade, não precisaria jogar-lhe na cara. Afora a riqueza da melodia e da poesia, essa é uma das sutilezas da sensível “Olhos...”, uma das maiores criações de Chico em toda sua carreira.

De “Calabar, O Elogio da Traição”, peça coassinada por Ruy Guerra e proibida pela censura em 1973, vem a rumba romântica “Você Vai me Seguir”, que conta com lindo arranjo vocal da MPB-4. Fora do contexto da montagem, não apresentava perigo político, então estava liberada pela censura. Igualmente oriunda de uma fonte externa, a engraçada mas não menos ácida "Vai Trabalhar, Vagabundo" é da trilha do filme homônimo do camarada Carvana. Com arranjo assinado por Francis Hime diferente do feito para o longa, é um embalado samba com impagáveis passagens como: “Passa o domingo sozinho/ Segunda-feira a desgraça/ Sem pai nem mãe, sem vizinho/ Em plena praça/ Vai terminar moribundo/ Com um pouco de paciência/ No fim da fila do fundo/ Da previdência...”

Com arranjo de Perinho Albuquerque, uma das duas únicas escritas para o repertório é o divertido samba “Corrente”, cujos versos, como se destaca no encarte, “podem ser dispostos livremente”, pois “uma mesma corrente tanto pode ser lida para frente quanto para trás”. É bem essa brincadeira musical que Chico propõe. Enquanto os versos, corridos, metalinguisticamente dizem: “Eu hoje fiz um samba bem pra frente/ Dizendo realmente o que é que eu acho/ Eu acho que o meu samba é uma corrente...”, a segunda parte, num tom abaixo, começa do trecho que diz: “Isso me deixa triste e cabisbaixo”. Os versos se misturam em cantos simultâneos, contrastando o “pra frente” com o “pra baixo”, tanto em letra quanto em melodia. Uma construção vanguardista em conceito num samba agradável e popular.

A safra comprometida fez com que Chico buscasse mais duas já usadas no cinema para completar o repertório. A bela “A Noiva da Cidade”, a primeira delas, é o tema do filme de Alex Vianni. Misto de samba-canção com cantiga de ninar (“Ai, quanto descuido o dessa moça/ Que papai tá lá na roça/ E mamãe foi passear/ E todo marmanjo da cidade/ Quer entrar/ Nos versos da cantiga de ninar/ Pra ser um Tutu-Marambá”), faz situar-se entre o amor pueril e a sensualidade, trazendo como um dos elementos narrativos a atmosfera do folclore brasileiro e das lendas da infância de antigamente.

A segunda é outro clássico do cancioneiro de Chico: “Passaredo”. Com toques do pop rural ao estilo Sá & Guarabyra, esta canção semi-infantil também do longa de Vianni – aproveitada ainda na trilha sonora do programa “Sítio do Pica-Pau Amarelo” em versão da MPB-4 –, tornou-se um marco da música brasileira à época. Primeiro, por sua leitura mais imediata, pois levanta a bandeira da preservação ambiental tão pouco falada então. “Some, coleiro/ Anda, trigueiro/ Te esconde colibri/ Voa, macuco/ Voa, viúva/ Utiariti/ Bico calado/ Toma cuidado/ Que o homem vem aí...”. Pois esse “homem” ameaçador, que mata sem dó em meio à “floresta”, sustenta justamente a outra leitura que a letra tem: a da denúncia às perseguições, torturas e assassinatos da Ditadura. Aparentemente inofensiva e voltada para crianças (vai ver até achavam que Chico havia inventado aqueles nomes esquisitos de aves...), passou pela censura sem terem percebido. Bem feito.

Das mais belas músicas de Chico mas não tão reconhecida, a romântica “Basta um Dia”, toda sobre piano e o delicado arranjo de cordas de Francis, como não poderia ser diferente também provém de uma obra externa: a peça “Gota D’água”, de Chico e Paulo Pontes e originalmente escrita para a voz de Bibi Ferreira. A rica melodia, de sinuosidades muito bem elaboradas, acompanha o tratamento literário de Chico na letra: “Pra mim/ Basta um dia/ Não mais que um dia/ Um meio dia/ Me dá/ Só um dia/ E eu faço desatar/ A minha fantasia...”.

Por fim, a segunda e última composta para o disco. E que música! A lenda diz que Chico precisava compor somente mais uma faixa para completar o tempo mínimo do LP. Ele então se senta no próprio estúdio e escreve a punho a letra para a melodia de Francis deste choro pessoal e cronístico, uma das obras que mais bem dão a noção do que o Brasil vivia naqueles ferozes tempos. Com o luxuoso piano de Francis e a flauta mágica do craque Altamiro Carrilho, encerra a mensagem-chave do álbum numa carta a um amigo exilado. Tal como propusera em “Sabiá”, de 1968, em que fala de saudades da terra natal sem estar fora dela, “Meu Caro Amigo” é um canto de exílio às avessas. “Meu caro amigo, me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita.” E explica, com bom humor e realismo, como estava a situação no Brasil: “Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll/ Uns dias chove, noutros dias bate o sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta/ Muita mutreta pra levar a situação/ Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça/ E a gente vai tomando que também sem a cachaça/ Ninguém segura esse rojão“.

Precisou-se segurar o rojão ainda por muitos anos até a democracia vir. Chico, assim como vários de seus parceiros, venceu a luta contra o inimigo. “Apesar de você”, o amanhã virou “outro dia”. De fato foi necessário que Chico adicionasse à sua autoatribuída maciez muita teimosia, pirraça e cachaça. “Meus...” é a prova disso: tinha tudo para resultar numa colcha de retalhos sem sentido, mas, com o apoio imprescindível dos amigos, unidos por uma causa maior, saiu um dos mais autênticos libelos que um artista popular poderia compor. Nem mesmo todos os empecilhos que foram impostos fizeram com que o disco perdesse a coesão. Ao contrário: aumentaram-lhe a mensagem de subversão e lhe deram personalidade e sobrevida. Afinal, mais de 40 anos depois, o disco continua uma referência tanto na obra de seu autor quanto da música brasileira e da história recente do Brasil enquanto sociedade.

Pode parecer contraditório, mas que nunca mais seja preciso criar discos como este. Oxalá a musicalidade, a poesia e a beleza atingidas por Chico em “Meus...” ande apenas restrita ao passado: nas cabeças e nas bocas. E na memória.

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FAIXAS
1. O que será (À flor da terra) – Participação especial: Milton Nascimento
2. Mulheres de Atenas (Augusto Boal/ Chico Buarque)
3. Olhos nos olhos         
4. Você vai me seguir (Ruy Guerra/ Chico) – Participação especial: MPB-4
5. Vai trabalhar vagabundo        
6. Corrente       
7. A noiva da cidade (Francis Hime/ Chico)
8. Passaredo (Francis/ Chico)
9. Basta um dia
10. Meu caro amigo (Francis/ Chico)

todas as composições de Chico Buarque, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO





por Daniel Rodrigues



quinta-feira, 12 de outubro de 2017

“Sítio do Picapau Amarelo” - Trilha Sonora - Vários Artistas (1977)



"Monteiro Lobato e aquele mundo louco da minha infância, minha avó na cozinha e a gente lendo aquilo. Dori, esbocei alguma coisa. Fala de cada um, mas é o sítio, aquele lugar mítico, aquela música saltitante".  Gilberto Gil, na ligação que fez a Dori Caymmi logo após compor a música-tema da série

"Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupa suja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a música de sempre — tloc! pluf! nhoc..." - Trecho de "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato

Parece mentira de adulto pra valorizar a própria infância, mas foi a 40 anos que a música feita para crianças mudou completamente o rumo da música popular feita no Brasil. A Rede Globo, percebendo um filão pouco explorado, o público televisivo infantil, resolveu investir em teledramaturgia para este e, na esteira, numa “ferramenta” que atingia as mentes e corações dos baixinhos: a música. Da cabeça de Guto Graça Melo, diretor musical da emissora à época, e do talentosíssimo compositor e arranjador Dori Caymmi, veio a missão de musicar um especial baseado no universo de Monteiro Lobato que começaria a ser rodado. Mas não apenas dar sonoridade ao vídeo como, principalmente, criar uma atmosfera que transmitisse aquilo que a mágica obra literária oferecia. Assim, surgiu a trilha sonora de “Sítio do Picapau Amarelo”, um sucesso nas telas e nas vitrolas que inspiraria artistas de todas as gerações seguintes.

A fórmula parecia óbvia: chamar os talentos da MPB da época para ilustrarem musicalmente os elementos narrativos. Entre estes, João Bosco, Jards Macalé, Ivan Lins, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, entre outros. Entretanto, muitas vezes o resultado saía – saudavelmente – complexo e até intrincado. E assim ficava. Afinal, Guto e Dori partiam do pressuposto de não subestimar a inteligência do público, mesmo sendo o infantil, postura que, por si, foi uma revolução de linguagem. Caso claro da dissonante “Peixe”, dos Doces Bárbaros, e da mística e intensa “Tio Barnabé”, em que Jards divide autoria e microfones com a talentosíssima Marlui Miranda (“Oi, nessa mata tem flores/ Os olhos do Saci/ Pula com suas dores/ Gentis com seus amores/ Os cantos da caapora/ Os orixás que nos acudam e nos valham nessa hora”). Ambas as faixas aparentemente jamais poderiam integrar uma seleção de músicas para crianças. Mas, aqui, entraram e fizeram muito significado.

O desbunde, contudo, já se dá na faixa que intitula a série. Mais do que isso: o tema passou a representar a já antiga obra de Lobato (datada dos anos 20) não só através das letras e ilustrações das páginas dos livros, mas também pelos sons. A canção que Gil cria sobre a simples sinopse dada a ele por Dori para se inspirar se transforma numa lúdica e colorida canção – e com referência a Beatles, como Caetano bem identificou no livro “Verdade Tropical”. Leitor dos contos fantasiosos de Lobato na infância, Gil resgata sua memória afetiva e praticamente a sintetiza em poucos versos, demonstrando uma familiaridade ímpar com o mundo lobatiano. “Marmelada de banana, bananada de goiaba/ Goiabada de marmelo [...]/ Boneca de pano é gente, sabugo de milho é gente/ O sol nascente é tão belo [...]/ Rios de prata, pirata, voo sideral na mata/ Universo paralelo [...]/ No país da fantasia, num estado de euforia/ Cidade polichinelo”. A estrutura melódica faz com que tudo termine rimando com aquilo que lhe é originário e inequívoco: “Sítio do Picapau Amarelo”. Genial.

Mesmo as canções mais palatáveis são de uma complexidade harmônica invejável – muito pela mão de Dori nos arranjos e orquestrações. “Narizinho”, doce canção de Ivan Lins cantada por sua então esposa, Lucinha, mostra bem isso. Outro mestre da MPB chamado para dar sua contribuição é Paulo César Pinheiro. Ele não economiza na carga poética e brasilianismo, o que faz em duas faixas, ambas parcerias com Dori: a divertida “Ploquet Pluft Nhoque" (“Jaboticaba”), cantada pelo grupo vocal Papo de Anjo (“Olha o bando/ que acode com o baque/ que bate no galho/ que faz pinque ploque...”), e “Pedrinho”, tema do corajoso personagem Pedro Encerrabodes de Oliveira, lindamente interpretada pelo grupo Aquarius.

O capricho desta trilha passa também por excelentes instrumentais, caso de “Saci”, autoria de Guto e brilhantemente arranjada por Dori e com as vozes da Aquarius fazendo vocalizes. Tema denso como a mitologia que tematiza, porém muito bem equilibrado harmonicamente pela instrumentalização utilizada, que dá “alívios” à tensão. É a primeira canção dedicada à lenda do Saci-Pererê de um especial infantil. Depois desta, vieram outras semelhantes cujo tema central é a alegoria de origens indígenas e africanas que representa o folclore brasileiro: duas diferentes assinadas por Jorge Ben (uma delas para o também especial infantil “Pirilimpimpim”, de 1982), e uma de Gil para a Black Rio (de 1980).

O elenco da série da Globo estreada em 1977: um marco
na tevê brasileira
Ivan Lins, em ótima fase, vem com outra, agora para a querida “Dona Benta” (vivida pela atriz Zilka Salaberry), cantada por Zé Luiz Mazziotti. Melodia jobiniana e jazzística comandada no Fender Rhodes. Ronaldo Malta interpreta outra bela composição, “Arraial dos Tucanos”, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando. O início melodioso dá lugar, logo em seguida, a um baião de notas abertas, expansivo como os pássaros cantados na letra: “Arraial dos tucanos/ Até quando o homem/ Que da terra vive/ E que da vida arranca/ O pão diário/ Vai ter tua paz/ Paz/ Aparentemente paz”. Igual questionamento faz a também “ecológica” (termo que ainda não era moda naqueles idos) “Passaredo”, de Chico Buarque e Francis Hime. Entoada com absoluta perfeição pela MPB-4, a clássica canção, após enumerar diversos nomes da abundante variedade de espécies da fauna brasileira, avisa: “Bico calado/Toma cuidado/ O homem vem aí” – seja este o caçador sem escrúpulos ou o soldado daquele Brasil de Ditadura Militar. Duas faixas lúdicas, mas altamente reflexivas, que chamavam os baixinhos a pensar.

Cabe ao inventivo Sérgio Ricardo o tema de uma das personagens mais queridas da história, a boneca de pano “Emília”. Habilidoso, ele elabora uma melodia que remete aos violeiros do sertão e que em alguns momentos lembra a musicalidade e o fraseado de Geraldo Vandré, Dorival Caymmi e Alceu Valença. Igualmente hábeis são João Bosco e Aldir Blanc, a parceria clássica de tantos hinos da MPB daquela época. Aqui, os autores de “O Bêbado e a Equilibrista” e “O Cavaleiro e os Moinhos” valem-se de suas mentes privilegiadas para dar mote a Visconde de Sabugosa, o fascinante boneco feito de sabugo de milho, cuja sabedoria obteve através dos livros da estante de Dona Benta. Samba sincopado típico da dupla e com as características tiradas vocais de Bosco a la Clementina de Jesus. Na letra, Aldir dá um show: “Sábio sabugo/ Filho de ninguém/ Espiga de milho/ Bobo sabido/ Doido varrido/ Nobre de vintém”.

Como se não bastasse, para arrematar, Dori, com o acesso que somente ele podia ter, chama ninguém menos que o pai, o gênio Dorival Caymmi. Este, por sua vez, escreve uma joia para “Tia Nastácia”. E não podia ser para outra personagem, haja vista a identificação do velho Caymmi com a cultura afro-brasileira: ela, uma preta velha bondosa e sábia, típica negra filha recente da abolição da escravatura. Traduzida em versos pelo mestre baiano, Tia Nastácia, interpretada pela atriz Jacyra Sampaio na série, sai assim: “Na hora em que o sol se esconde/ E o sono chega/ O sinhôzinho vai procurar/ A velha de colo quente/ Que canta quadras e conta histórias/ Para ninar”.

Esta histórica trilha sonora abriu portas para uma série de outras semelhantes de especiais infantis da tevê nos anos seguintes, como “A Arca de Noé I e II”, “Pirilimpimpim”, “Plunct-Plact Zum”, "Casa de Brinquedos" e “O Grande Circo Místico”, todas bastante baseadas na questão musical. Havia dado certo a fórmula. Juntamente com a peça “Os Saltimbancos”, que Chico Buarque escrevera junto com Sergio Bardotti e Luis Bacalov também em 1977, “Sítio...”, assim, inaugura a entrada dos grandes talentos da música brasileira no universo sonoro e afetivo das crianças. Em tempos de pré-abertura, impossibilidade de diálogo e de esgotamento das ideologias, os artistas pensaram: “Já que os adultos estão tão saturados, por que não produzirmos para os pequenos?”. Pensaram certo e o fizeram muito bem, abrindo um paradigma na cultura de massas no Brasil sem precedente no mundo da música.

Aí, quando os pais de hoje dizem que o conteúdo do que eles tinham nas suas infâncias era muito melhor do que o de hoje, não se trata de mentira e nem de saudosismo. É a mais pura verdade.

Vídeo de abertura de "Sítio do Picapau Amarelo" (1977)




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FAIXAS

01. Narizinho (Ivan Lins – Vitor Martins) - Lucinha Lins
02. "Ploquet Pluft Nhoque" (Jaboticaba) (Dory Caymmi – Paulo César Pinheiro) - Papo de Anjo
03. Peixe (Caetano Veloso) - Doces Bárbaros
04 . Saci (Guto Graça Mello) - Papo de Anjo
05. Visconde de Sabugosa (João Bosco – Aldir Blanc) - João Bosco
06. Dona Benta (Ivan Lins – Vitor Martins) - José Luís (Zé Luiz Mazziotti)
07. Sítio do Picapau Amarelo (Gilberto Gil) - Gilberto Gil
08. Pedrinho (Dory Caymmi – Paulo César Pinheiro) - Aquarius
09. Arraial dos Tucanos (Geraldo Azevedo – Carlos Fernando) - Ronaldo Malta
10. Tia Nastácia (Dorival Caymmi) - Dorival Caymmi
11. Passaredo (Francis Hime – Chico Buarque de Hollanda) - Mpb4
12. Emília (Sergio Ricardo) - Sérgio Ricardo
13. Tio Barnabé (Marlui Miranda – Jards Macalé – Xico Chaves) - Marlui Miranda e Jards Macalé

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OUÇA

por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

“Pequeno Cidadão” - Arnaldo Antunes, Antonio Pinto, Edgar Scandurra e Ticiana Barros (2009)




“É sinal de educação
Fazer sua obrigação
Para ter o seu direito
de pequeno cidadão”.
refrão da música "Pequeno Cidadão"




Por um bom tempo, parecia que os memoráveis especiais de música infantil da Globo, os quais geralmente viravam LP’s de grande sucesso de público e vendas, tinham terminado. Do final dos anos 80 até a entrada do século XXI, estes ricos especiais como "A Arca de Noé" ou “Pirlimpimpim” sumiram das telas e das lojas – à exceção de “Castelo Rá-Tim-Bum”, único resistente dos anos 90. No mesmo período, não tão coincidentemente assim, os pequenos passaram a ficar cada vez mais emburrecidos pela computadorização limitadora do conteúdo educativo-cultural, desassistidos pelo desleixo das escolas e perdidos entre a superproteção e o desinteresse da “nova família” brasileira de classe média. Espaço para a criatividade, para o exercício do lúdico, para a valorização das coisas bonitas da vida – amigos, família, natureza, arte – restaram escanteados. Para que lançar produtos que elevam essas coisas “do passado”, já que não tem consumidor para tal? Resultado: desvalorização e consequente idiotização da criança.

A salvação veio a pouco mais de 10 anos pelas mãos dos paulistas da geração anos 80 – alguns dos responsáveis por, na minha infância/adolescência, fazerem-me aprender a gostar de música. São eles os criadores de um dos melhores exemplos de uma nova visão da condição infantil: “Pequeno Cidadão”. Desde este primeiro CD do conjunto, lançado em 2009, reúnem pais músicos e “mais um monte de filhos”, como eles mesmos dizem. Os protagonistas são alguns dos principais nomes da música brasileira daquela década para cá: o ex-Titã Arnaldo Antunes, o cabeça do Ira! Edgar Scandurra, a ex-Gang 90 Ticiana Barros e o multi-instrumentista Antonio Pinto (autor de várias e ótimas trilhas sonoras de filmes como “Cidade de Deus”, “Central do Brasil” e “Colateral”).

O grupo faz um som baseado no rock mas que investe também na psicodelia e nos ritmos brasileiros, passando pelo pop, funk e eletrônico. Conceitualmente, “Pequeno Cidadão” encerra a ideia de uma educação infanto-juvenil comprometida com o ser humano e com o planeta, sem perder o lado legal da brincadeira e da modernidade – ou seja, sem deixar esse “comprometimento” virar uma coisa chata e somente pró-forma. As músicas trazem como temas coisas normais (ou que deveriam ser normais) do universo infantil: alegrias, dúvidas, bichos, desafios, tristezas e aquilo que move a todos (ou deveria mover): amor. Afinal, criança não precisa de música bobinha: ela pode muito bem curtir um rock ‘n’ roll com poesia que lhe faça pensar. Multiplataforma e ativo, “Pequeno Cidadão” é, no entanto, mais do que apenas só música: o projeto conta com um segundo CD (2012), um precioso DVD de animações de todas as faixas do primeiro volume e quatro livros temáticos, além de jornal online e várias ações culturais que promovem em São Paulo. Tudo com ilustrações de Jimmy Leroy, que dá uma assinatura plástica muito peculiar em todos os materiais.

Uma das lindas artes de Jimmy Leroy.
Pontapé inicial do projeto, este CD começa pela faixa que lhe dá nome e que, de certa forma, o sintetiza, pois expressa a ideia de formar uma criança com responsabilidades mas a deixando ser aquilo que ela é: criança. E como Vinícius de Moraes ensinou: não duvidando da inteligência delas. Arnaldo, acostumado a escrever para esse público desde os Titãs, pratica isso se valendo de figuras de linguagem como anáforas, repetições no início de cada frase, e, principalmente, de anástrofes – e aí está já uma das sacadas pedagógicas da turma: mostrar para a criança a riqueza da língua portuguesa. A anástrofe é um caso especial dentro de nossa gramática, pois usa a inversão de maneira incomum: trocando sujeito e predicado, surpreende com a lógica que forma. Na letra, tudo que é brincadeira vira dever e vice-versa, estabelecendo uma dialética de correlação e não de condicionamento entre ambos. Por exemplo, o verso “Agora pode fazer a lição” ganha sentido de um consenso entre pais e filhos e não de obrigação como geralmente se entende daquilo que não é diversão. Em contrapartida, “Agora tem que jogar videogame” passa a ter a ideia de um convite à brincadeira, rejeitando o famigerado “tenke” imposto pelos mais velhos. Além de tudo, a música é um rock embalado e pegajoso, cujo gostoso refrão o resume clara e brilhantemente: “É sinal de educação/ Fazer sua obrigação/ Para ter o seu direito de pequeno cidadão”.

Antonio Pinto, coautor da primeira faixa, assina com Ticiana uma das mais lindas canções (infantis? De amor? Da música brasileira deste século?) do álbum: “O Sol e a Lua”. A música emociona a mim e a muitas pessoas que conheço, sejam crianças ou adultos. É um pop-rock cantado por ele e por um dos meninos, além do coro das crianças no refrão e das recitações na voz grave de Arnaldo. Voltada para os mais crescidinhos, fala sobre um acontecimento que ocorre com todo mundo na pré-adolescência: o amor não retribuído, aqui personificando nos dois astros. Apaixonado, o Sol pediu a Lua em casamento e disse que lhe amava há muito tempo, mas a Lua respondeu que seu coração não pertencia a ninguém, pois ela só servia para inspirar os casais, “dos grandes poetas aos mais normais”. O Astro-Rei, claro, ficou na fossa. Desesperado, foi pedir ajuda até para o Vento, que, apressado, nem parou para lhe escutar. Foi então que: “O Sol sem saber mais o que fazer/ Tanto amor pra dar/ E começou a chorar/ E a derreter/ E começou a chover, e a molhar/ E a escurecer”. E não é assim mesmo que nos sentimos quando ficamos tristes por amor: derretidos e sem brilho? No final, o consolo dito na delicadeza da voz infantil: “Se a Lua não te quer, tudo bem/ Você é lindo, cara/ E seu brilho vai muito mais além/ Um dia você vai encontrar alguém que com certeza vai te amar também”. Poesia da maior singeleza.

A doce canção de ninar “Meu Anjinho”, de Ticiana (“E aqui dentro/ no escurinho/ nos braços desta canção/ vou te ninar...”), se alinha à outra das ótimas do disco, o gostoso xote “Leitinho”, a qual traz a mensagem de que “um leitinho é muito bom” pro bebê e pros pais, pois, depois, vem aquele compensador “soninho” que descansa toda a família. Impossível não lembrar-me de uma vez com minha sobrinha Luna ainda pequena, com pouco mais de um ano, quando cantei essa música para ela, sabendo que gostava e que seu pai, meu irmão, costumava cantar-lhe e pô-la para ouvirem. A surpresa pura que ela ficou quando identificou que era a mesma música que o papai cantava foi engraçado e emocionante.

A funkeada “O ‘X’” e a agitada “Sobe Desce” são pura diversão, duas brincadeiras com palavras, letras e suas sonoridades. Mais pedagógica e profunda é “Tchau, Chupeta” (de Ticiana e Arnaldo), que versa sobre uma das maiores revoluções pessoais pela qual o passamos na infância: o momento de largar o bico. O complexo tema, que especialistas há muito discutem – os limites da chamada “fase oral” e a troca (nem sempre exitosa) de um substituto simbólico do seio materno –, é colocado de uma forma absolutamente poética e lúdica, propondo à criança nesse necessário rompimento o desapego em nome de uma nova fase de vida. “Todo mundo tem seu tempo de mamar”, diz um dos versos. Graciosa, a letra lança várias suposições de forma a demonstrar à criança que a chupeta não combina mais com alguém que não é mais neném: “Já pensou uma mãe chupando chupeta?/ Já pensou um pai chupando chupeta?/ E uma vó de bobs e chupeta?/ E um vovô de bengala e chupeta?”. E a proposta para deixar a tal peta? Libertar-se dela jogando-a no mar para, enfim, poder cantar “sem uma tampa de borracha pra atrapalhar”. O assunto é tão importante e passível de desdobramentos que virou um dos livros do projeto, de 2011 (Ed. Leya).
A banda Pequeno Cidadão, com os grandes e os baixinhos.

O tom educativo segue de outras formas. Tem as ecológicas “O Uirapuru”, bossa-nova que remete à “Passaredo”, de Chico Buarque, e a “Passarim”, de Tom Jobim, revelando a beleza linguística quase despercebida pelos brasileiros do tupi-guarani; e “Sapo-Boi”, um divertido rock ‘n’ roll urbano de Scandurra cantado por seu filho Lucas: “Se eu fosse o prefeito aqui da capital/ Pegava o sapo-boi e espalhava pela marginal (...)/ A dengue não passa de um mês/ pois o mosquito é o prato da vez”. Por falar em bichos, a punk-rock “Larga a Lagartixa”, além de ser mais uma quebra de paradigma – afinal, é saudável criança também gostar de barulho –, é igualmente educativa, uma vez que a frase principal, dita da forma acelerada para acompanhar o ritmo frenético, torna-se um trava-línguas, bom exercício para a garotada treinar a dicção.

Outra das mais queridas do disco é "Bonequinha do Papai", a qual minha sobrinha Luna gosta até hoje. Tecno bem dançante, põe a meninada na pista! Alem do mais, seu premiado videoclipe, algo como um retrô-futurista com desenhos estilo anos 20 (mas com uma animação dinâmica e moderna), é uma verdadeira obra-de-arte, o qual assisti pela primeira vez no Dia Internacional da Animação, em 2010.

Mas, claro, não podia faltar o futebol, esporte tão gostado no Brasil e praticado por meninos e meninas. Identifico-me com as duas faixas que tratam desse tema por trazerem-me lembranças de tempos passados. A primeira é mais uma bossa-nova: “Futezinho na Escola”, motivadora de outro dos livros do projeto, “1 drible, 2 dribles, 3 dribles — A história do futebol e outras informações interessantes”, de Marcelo Rubens Paiva (Companhia das Letrinhas, 2014). Nela, Scandurra aborda o que a mim era um corriqueiro hábito no 1º Grau: bater uma bola com os colegas na cancha da escola antes de começar os estudos. A letra descreve com muita sensibilidade as sensações e a dinâmica de um jogo: “O último lance, vâmo logo, passa a bola/ Recebi, quase perdi pro ladrão que eu nem vi/ Chegou primeiro pedalei e passei/ Chegou o segundo e eu também driblei/ Veio o terceiro e eu fiz uma tabela/ Tô livre parceiro, vou chutar de trivela/ É gol!”. Mas tem a hora do divertimento e a do dever. Acaba-se o jogo rapidinho, pois agora é preciso correr para ir a outro compromisso: a aula de português.

Tratando ainda do esporte bretão e fechando o disco, "Carrinho por Trás" é mais uma de Scandurra e novamente um samba. Neste caso, um partido-alto. Com uma pegada carioca e eletrônica, faz-me recordar de outra época, esta, da adolescência, quando jogávamos nos campos de várzea com nosso time de amigos, a Juventus. O universo das peladas é muito bem captado pelo compositor, que pega como mote um dos polêmicos lances que acontecem nas partidas: o carrinho (segundo a definição de Rubens Paiva, extraída do livro: “o jogador se lança no gramado e, deslizando pelo chão, tenta tirar a bola do adversário, arremessando os pés na direção dele.”). Como pode acarretar em uma jogada violenta, o carrinho é mal visto, ainda mais que nem todo jogador tem boas intenções e nem todo zagueiro tem habilidade para executá-lo. Eu, da posição, tenho lá minhas dificuldades, confesso. Porém, a canção fala sobre um defensor que entende do negócio: “O carrinho é perigoso/ No mínimo um tanto suspeito/ Mas se você acerta na bola/ É aplaudido com muito respeito”. João Nogueira merecia estar vivo para gravar essa música. Como extra, ainda tem “Pererê”, com participação do cartunista e escritor Ziraldo declamando um texto seu.

Ao escutar uma obra como essa, fica a sensação de que nem tudo está perdido no que se refere a conteúdo cultural para criança. Afora “Pequeno Cidadão”, outro projeto da mesma época, Adriana Partimpim, da cantora e compositora Adriana Calcanhoto, também teve continuidade e conquistou o público. No meu círculo, percebo, inclusive, que não são poucas as crianças que gostam de um ou de outro, desde Luna até outros pequenos que conheço como Bento, Dora e Gabriel. Bom sinal. Sinal de que há uma geraçãozinha aí antenada e bem orientada. Além disso, de que existe uma consciência do valor das coisas importantes da vida (muitas vezes, as simples), que não se resumem a consumo e tecnologia. Iniciativas como estas se mostram sintonizadas com tal mentalidade. E neste Dia das Crianças, é um alento perceber gente consciente de que, para se exercer a cidadania no mundo de hoje, começa-se desde cedo.
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FAIXAS:
1. Pequeno Cidadão
2. O Sol e a Lua
3. Meu Anjinho
4. Futezinho na Escola
5. O ´x´
6. Tchau Chupeta
7. Sapo-boi
8. Leitinho
9. Larga a Lagartixa
10. O Uirapuru
11. Sobe Desce
12. Bonequinha do Papai
13. Carrinho Por Trás
14. Pererê (extra)

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OUÇA O DISCO E VEJA OS CLIPES: