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quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

************

50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 19 de setembro de 2022

cotidianas #770 - Fui, então, trabalhar... vagabundo


 
Recentemente, a política de cotas nas universidades públicas brasileiras completou 10 anos com êxito na inclusão reparatória de pessoas negras à educação superior. Fico feliz de, com todas as dificuldades que ainda serão superadas, presenciar um importante momento como este. Entretanto, eu mesmo não sou fruto do sistema de cotas, pois minha formação, do início dos anos 2000, é anterior a este marco. Lembro que, na faculdade, privada, era um dos únicos negros que começaram o curso e dos pouquíssimos que o concluíram, realidade que se modificou muito de lá para cá em virtude das cotas, ainda que não suficientemente.

E se eram raros os meus pares na universidade, imagine-se as referências. Em quem se espelhar? Dilema comum aos negros de minha geração a das anteriores. Para mim, contudo, essa questão estava desde sempre apaziguada por causa de minha família. Base de minha formação humana e ética. Aprendi em casa que qualquer trabalho se faz com dedicação, persistência e amor, e isso se basta para muita coisa preconceituosa ou não. Tanto não me sentia menor em nada, que me aventurei, já no primeiro semestre da faculdade de Comunicação, como poucos de meus colegas ousariam ou se sentiriam capazes, a buscar um estágio em uma empresa da área. 

Consegui. No almoxarifado. Era uma das principais agências de Publicidade de Porto Alegre à época e, mesmo não sendo exatamente no Jornalismo, valia-me a pena pela experiência. Mas embora meu inconsciente ato de ocupação e resistência, estava, sim, num ambiente majoritariamente branco e brancocentrado. Eu era, diante dos privilegiados, sensatos ou não, no fim das contas e para além de minha consciência, o guri negro do almoxarifado - e eles, meus colegas, os detentores do espaço social. 
Quantas ocasiões que aquele limiar entre preconceito e mal-entendido não deve ter ocorrido sem eu notar... Um deles, no entanto, me marcou e que hoje consigo não apenas ressignificá-lo como, igualmente, tirar-lhe a essência. Descia eu com uma pilha de jornais nos braços pelo elevador quando um dos jovens publicitários pegou carona. Descontraído, o rapaz loiro me olhou executando aquele leve trabalho braçal e, do alto de suas tarefas altamente desenvolvidas e criativas, inventou de cantar para mim os versos de uma música:

"Vai trabalhar, vagabundo
Vai trabalhar, criatura..."

Era a letra de "Vai Trabalhar, Vagabundo", de Chico Buarque, da trilha sonora do filme homônimo de Hugo Carvana, de 1976. E eu sabia disso. Lembram da minha falta de noção diante de possíveis situações de racismo que me referi anteriormente? Eu poderia ter me enfezado, mas tomei aquela provocação como um mero embate intelectual. E me chamar para uma disputa com Chico Buarque no meio foi um grande erro estratégico que ele cometeu! Logo a mim, amante e colecionador de música e conhecedor de cinema desde a infância! Era pedir para ser derrotado. Foi então que, sem perder o tempo do compasso, complementei a deixa cantando-lhe os versos seguintes:

"Deus permite a todo mundo
Uma loucura
Passa o domingo em família
Segunda-feira, beleza
Embarca com alegria
Na correnteza..."

A expressão de embasbacamento dele foi tão visível que, para arrematar, sem perdão ainda deu tempo de lhe comentar antes de a porta se abrir que "Construção" era o melhor disco de Chico e que (capciosamente) entre suas melhores músicas estavam "Apesar de Você" e "Tire as Mãos de Mim". Foi como uma goleada de 7 x 1 entre Alemanha e Brasil, só que ao contrário. Se na hora achei que vencia uma disputa de egos, hoje vejo que ali, ainda que para com um estagiário tanto quanto eu, demarcava o espaço sociopolítico que me pertence. O espaço do saber, da cultura, da resistência. Naquele momento eu fazia minha (desavisada) ocupação. 

Passados os anos e ocupando hoje um raríssimo cargo para um negro de coordenador no segmento de Comunicação Corporativa no Rio Grande do Sul, é possível dizer que houve evolução. Mas, infelizmente, não tanta. Refletindo sobre aquele episódio do passado, consigo enxergá-lo com o criticismo da maturidade, mas também com uma doçura renovadora. Se por um lado a minha ingenuidade de jovem protegido pela família tapava-me a visão para uma séria questão a qual me depararia diariamente em uma sociedade arraigada em preceitos escravagistas como a brasileira, por outro minha reação diante de um obstáculo sociopolítico foi talvez a melhor resposta que eu poderia ter dado. 

Não avançamos tanto quanto poderíamos? Mas vamos avançar, com certeza. Trabalho, dedicação e resiliência não faltam a nós negros. Os espaços, seja por políticas ou enfrentamentos pessoais, é que precisam ser cavados para termos uma efetiva diversidade. Parafraseando a mesma canção de Chico Buarque novamente, posso dizer:

"Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento".

Só não perde a razão.


Daniel Rodrigues
Texto originalmente publicado no site Coletiva.net

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Cinema Marginal #4 - "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane (1969)



Desta vez trago para vocês um filme mais "simples": "O Anjo Nasceu", de Júlio Bressane, de 1969. A historia é bem descomplicada e sua narrativa é bastante linear, mas é claro que seus personagens são cheios de alegorias e o espectador deve estar preparado para mais uma obra amoral (ou nem tanto).
Dois bandidos saem pela cidade cometendo atos de violência. Santamaria (Hugo Carvana), místico que acredita que com seus atos está se aproximando de um anjo que lhe limpará a alma; e Urtiga (Milton Gonçalves), um marginal ingênuo que segue os passos do amigo acreditando também, por sua ingenuidade, no anjo da salvação.
Qual a chance de salvação 
destes dois marginais?
Não é a primeira vez nem a ultima vez que falo isso sobre os filmes marginais mas não é um filme que vá agradar todo mundo. Há cenas de violência bem fortes, violência contra mulher, violência contra homossexuais, existe toda uma crítica religiosa e dependendo de como você receber o filme tudo isso pode não soar muito legal. A qualidade da imagem e som também são fatores que se deve superar ao assistir o filme mas essa era exatamente a proposta estética do cinema marginal.
As cenas do sequestro são bastante fortes bem como  as atuações
dos atores principais. Esse momento, especificamente, é fabuloso.
Apesar de ser uma quase antiestética, ela é muito bem utilizada por Bressane e seus planos longos (ou exageradamente longos) funcionam bem criando grande dramaticidade uma tensão nas cenas. É uma obra bem silenciosa mas em muitos momentos deste silêncio que muita coisa é dita.  A brincadeira visual que o filme faz com as placas que aparecem "incidentalmente" é genial em muitos momentos, como por exemplo, próximo ao final, quando os bandidos estão em um circo e ao fundo pode ver-se uma placa com dizeres "O encontro com a morte", e também no momento onde vão até um cinematógrafo e a câmera permanece durante algum tempo, uns vários segundos em close na placa "Cinematographo". Genial essa brincadeira toda. A crítica mais evidente do filme é a pessoas que cometem atos brutais buscando uma suposta salvação de suas almas, que buscam na religião a desculpa para seus atos e independente da crença, seita, doutrina ou seja lá o que for, isso fica claro no longa.
A minha cena favorita no filme é quando os dois bandidos, Urtiga e Santamaria,  estão comendo na mesa juntamente com a dona da casa ondes estão se escondendo, quando Santamaria expõe para a dona da casa sua maneira de pensar que é na verdade um perfeito resumo da proposta do filme e de certa forma, por extensão, do cinema marginal, "O que está certo é o errado... E o que está errado, pra mim é o certo".
Uma obra fantástica pela maneira como foi feita e pela ideia que transmite, tudo com muita criatividade utilizando bem as técnicas cinematográficas para, mesmo com pouco recurso, fazer muita coisa. Sua ambição claramente não era grandiosa mas vê-se as ferramentas cinematográficas sendo usadas de uma maneira tão inteligente que o exagero teatral dos personagens acabam fazendo sentido e tornando-se necessários, tamanho a grandiosidade artística da obra, que é forte, crua e real.
A placa ao fundo "Encontro com a morte".



segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

“Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr. (2015)



Estão sempre tentando pegar Chico Buarque. Acusações por apoio ao PT, pela não-defesa das biografias não-autorizadas, por trair a ex-mulher, por ser um tiozão que “pega” meninas, pela linhagem nobre dos Buarque de Holanda, por ser “esquerda caviar”, por usar a fama como músico para vender-se como escritor. Até culpá-lo por ter olhos azuis já ouvi algo do tipo. Parece-me salutar e pertinente que, justamente no momento em que se lança o já sucesso de bilheteria “Chico: Artista Brasileiro”, de Miguel Faria Jr., aconteça mais um episódio do tipo: a tão noticiada discussão do artista com um passante cujo motivo junta às imbecilidades mencionadas acima mais uma delas: a de Chico ter um apartamento em Paris (!...).

Essa manifestação raivosa e incontida dessa direita burguesa, invejosa e preconceituosa – que, como diz Eric Nepomuceno, saiu do armário, e isso desde os protestos de 2013 –, é mais um dos casos em que se tenta enquadrar Chico e ele sai, se não ileso, íntegro. O filme passa isso: a integridade de um artista cujas bases e conceitos estão profundamente ligadas ao Brasil mais expressivo, seja em suas belezas ou moléstias. Com uma narrativa que intercala depoimentos de amigos e admiradores com as do próprio Chico de dentro de seu maravilhoso AP no Alto Leblon (mais longas que as falas dos outros), traz ricas imagens de arquivo entre fotos e vídeos, algumas surpreendentes pois muito raras, como um trecho da histórica apresentação de “Cotidiano” dele com Caetano Veloso no Teatro Castro Alves (presente no disco ao vivo da dupla de 1972). Igualmente surpresa é o depoimento de Vinícius de Moraes – ao qual eu pelo menos não conhecia – dizendo que o amigo era alguém acima da média.

Chico em um dos depoimentos do filme.
O recorte do documentário é muito bem pensado, pois delimita tanto a quantidade de entrevistados quanto a função narrativa dos mesmos. E olha que teria muita gente interessante para falar sobre Chico! A única parente a depor, por exemplo, é a irmã Miúcha. E chega por aí. Nada de filhos, sobrinhos, genros, outros irmãos. No máximo, os netos, que aparecem tocando com ele sem entrevistas. Afinal, o contexto familiar e a importância da hereditariedade já estão devidamente representados e inseridos. De Marieta Severo – provavelmente convidada e que teve a sensibilidade de não expor a ela e nem ao ex-marido, mas que autorizou que lhe referissem – os próprios registros documentais a trazem naturalmente, seja no encontro com Chico, nos anos 60 (contado pelo saudoso Hugo Carvana), seja nos vídeos e fotos antigos. Ela também é indiretamente mencionada quando Chico fala com franqueza e descomplicarão sobre a solidão dos tempos atuais, embora revele que jamais pensara viver sozinho (“Saí de um casamento de anos achando que virando a esquina ia me casar de novo”, confessa).

Os assuntos, entremeados entre si mas recorrentemente redirecionados à questão da família, são profundos, mas conduzidos pela serenidade de Chico. Ele passa a impressão de literalmente não dever nada a ninguém. Ou melhor, deve, mas a si mesmo, uma vez que o próprio diz que sempre cai na encruzilhada de não se repetir, por mais consagrado que seja aquilo que realizou até então. O negócio dele é se experimentar, aprender, inovar-se – um dos motivos pelos quais caiu tão de cabeça na literatura dos anos 90 para cá. Entra-se, igualmente, em assuntos como política, censura, fracasso, sucesso, memória, Brasil, morte, futebol e paixões. Tudo dito por ele e seus parceiros (Edu LoboTom JobimMaria BethâniaRuy Guerra, entre outros) com leveza e sinceridade, sem superdimensionar nada, porém sabendo-se da grandeza da vida e obra do autor de incontáveis clássicos do cancioneiro brasileiro como “Olhos nos Olhos”, “Cálice” e “Roda Viva”.

Outro elemento interessante do filme, característico dos documentários de Faria Jr., são as apresentações em estúdio com músicas do autor. Além de muito bem cenografadas e iluminadas, trazem duas com o próprio Chico cantando (“Sinhá”, no começo, e “Paratodos”, no fim) e outras com artistas convidados, como Milton Nascimento, Carminho, Adriana Calcanhoto e Mart’nália. Esses momentos musicais, que provocam obrigatoriamente pausas no fluxo narrativo, não o quebram, entretanto. O que para muitos foi danoso no documentário que o diretor fizera sobre o poetinha (“Vinicius”, 2005), pois incorria justamente nessa instabilidade (quando o expectador estava engrenando na história, vinha uma declamação duvidosa da Camila Morgado pra chatear), em “Chico...” funciona bem, pois os números se integram de algum modo à narrativa. É o que acontece quando Chico está falando sobre a complexidade inconsciente de alguns temas que compôs e, na sequência, vem, na voz de Mônica Salmaso, “Mar e Lua”, canção que explora temas espinhosos como homossexualismo e suicídio. Afora isso, todas as apresentações são muito boas: Milton e a portuguesa Carminho juntos (um arraso em “Sobre todas as coisas”); Calcanhoto e Mart’nália, em um dueto ótimo (“Biscate”); Ney Matogrosso (“As vitrines”), impecável como de costume; Moyseis Marques (“Mambembe”), lindo, uma revelação para mim; e até o “pagodeiro” Péricles (“Estação Derradeira”) mandando bem sobre o especial arranjo do diretor musical do filme e do próprio Chico, Luiz Cláudio Ramos.

Até Péricles se saiu bem interpretando Chico.
Porém, o que realmente conduz todo o filme – sem que o expectador perceba isso de início – é a busca pela essência a que Chico se impõe. Tendo como mote seu último romance, "O Irmão Alemão", no qual ele como protagonista vai à procura das pistas de um filho que seu pai tivera na Alemanha nos anos 30 antes de voltar ao Brasil e se casar com sua mãe, Chico se mostra, chegado à terceira idade, com a consciência daquilo que lhe pertence como indivíduo. Nisso, claro, ao longo do filme, vão se acessando questões da sua hereditariedade e, principalmente, as que se referem a seu pai, como a convivência, a distância emocional e a influência (positiva e negativa) que este exercera sobre ele como pessoa e artista.

A caça a essa “nova velha” história do irmão da Europa, uma reconstrução tão hipotética quanto passivelmente improvável (haja vista que, jogado na aventura da descoberta, poderia não achar nada significativo que lhe fornecesse nexo suficiente), dá um toque muito especial ao longa. Tal como é comum mais na ficção, Faria Jr. (um bom ficcionista) joga com os três níveis básicos do cinema: interno, externo e espectatorial, uma vez que esse elemento, a figura/ideia do irmão (o qual podemos classificar como “interno”) é desconhecido tanto do “protagonista” (Chico, no caso), quanto do espectador, configurando-se num “gancho” gerador de curiosidade e suspense a todos, dentro e fora da tela. Como o grande documentarista Eduardo Coutinho tão bem fizera no clássico “Cabra Marcado para Morrer” (1984), em que a busca aos atores de seu filme interrompido nos anos de Ditadura Militar serve de motivo para uma ressignificação metalinguística cuja aleatoriedade imputa-lhe o teor crítico almejado.

Saborosamente biográfico, “Chico...” já seria bom por vários outros fatores – as canções, as histórias engraçadas, a reverência dos colegas e amigos, as identificações que se têm com alguém tão admirável como ele –, mas o “elemento-irmão” é a cereja do bolo. Mal comparando, traz uma sensação semelhante a que tive com o desfecho que Martin Scorsese forjou em “No Direction Home”, sobre Bob Dylan (2005), naquela cena em que se esquece a câmera ligada apontando para o teto no fatídico show no Manchester Free Trade Hall, em 1966. Qualquer ser minimamente normal excluiria aquilo como sendo um erro de gravação. Scorsese, não: com atenção e sensibilidade, resgatou-a e compôs com aquilo o significado mais expressivo e simbólico do filme.

Em respeito aos que ainda não assistiram a “Chico...”, claro, não vou contar exatamente a que me refiro para não estragar a surpresa. Independente disso, contudo, só o fato de contar a história de alguém vivo e em atividade, tanto quanto o de expô-la com sensibilidade e critério, já vale a sessão. O que se confirma é a coerência da obra de Chico, sempre afinada com seu íntimo e consciência, seja na música, no teatro, no cinema ou na literatura. Uma dignidade admirável jamais abalável por um mero ataque verbal nas calçadas da vida. Chico Buarque, o grande artista brasileiro e mundial, é muito maior que essas más-resoluções do brasileiro ignorante e “vira-lata”, o que, sem precisar forçar, o filme deixa muito claro.


trailer oficial "Chico: Um Artista Brasileiro"



terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

15 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 70


Seguimos com a listagem de filmes essenciais para entender o cinema brasileiro das décadas de 60, 70 e 80. Começamos com os gloriosos e revolucionários anos 60, do qual extraímos, de um universo numeroso e profícuo, 20 joias. Agora, no entanto, como diz a gíria popular, “o buraco é mais embaixo”. Nos anos de chumbo, com o afunilamento dos direitos sociais e políticos advindos com o AI-5, de 1968, o cerco fechou para qualquer cidadão que quisesse se expressar ou simplesmente dar-se ao direto de pensar diferente do sistema vigente. Torturas, desaparecimentos e perseguições aumentaram. E claro que a classe artística, incluindo quem fazia cinema, foi uma das maiores prejudicadas nos anos 70. Toda a geração de cineastas e autores advindos com a explosão criativa dos 50/60, acuados ou exilados, mal conseguiam levantar recursos para produzir aquilo que pensavam – claro, se aquilo que pensavam não concordava com o que os militares queriam.

Resultado? Perda de espaço para o cinema norte-americano e europeu e, no próprio mercado interno, para as famigeradas “pornochanchadas”, as malditas produções baratas e mal-acabadas financiadas pelo governo não eram nem pornôs nem chanchadas e que serviam basicamente para entreter o povo com o que ele mais gosta e odeia em si: a malandragem e a sacanagem.

O minguamento do cinema de autor foi perceptível: nos anos 70, a grande cabaça do moderno cinema brasileiro, Glauber Rocha, produziu na Espanha, Itália, Cuba, Portugal e Congo, menos no Brasil. Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Paulo César Saraceni e vários outros não conseguiam estabilizar um nível de produção digno, oscilando entre filmes ótimos a fracos. E pior: às vezes, faziam filmes até bons, mas cuja qualidade técnica comprometia tanto que restaram inviáveis de se assistir.

No entanto, era muito talento e coragem para que nada desse certo. De tudo que se produziu na década, 15 longas podem ser considerados, cada um por um motivo, obras essenciais para o, àquela época, ainda mais combalido e combativo cinema brasileiro no século XX. Tanto é verdade de que foram cineastas vitoriosos que todos os títulos elencados são obras de nomes da geração anterior. Nota-se um aperfeiçoamento da linguagem metafórica do Cinema Novo e um amadurecimento do cinema popular, bem escrito e com olhos para todos os públicos. Em contrapartida, há um adensamento da linguagem transgressora do cinema marginal e que o coloca ainda mais à margem do mercado. Então, entre mortos e feridos (literalmente), os 15 filmes essenciais para entender o que é cinema brasileiro nos anos 70:



1 - “Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (70) – O cinema underground do Sganzerla avança brutalmente neste filme altamente transgressor e simbólico, onde ele mistura metáforas do terceiro mundo, chanchada, rádio Nacional e cinema de poesia. Anárquico, louco e ainda assim engraçado por conta do maravilhoso Jorge Loredo como Zé Bonitinho, que “ancora” toda a (não)história. Memorável sequência com Luis Gonzaga tocando enquanto Helena Ignez e Loredo encenam.







2 - “Copacabana Moun Amour”, Rogério Sganzerla (70) – O cara tava tão inspirado que fez dois filmes essenciais em apenas 365 dias. Devaneio intelectual na Rio de Janeiro em época de ditadura, numa referência metafórica ao fim da civilização, à nouvelle vague (principalmente Resnais de “Hiroshima Moun Amour”) e, claro, ao cenário político brasileiro. E a trilha é algo de genial, composta especialmente por Gilberto Gil, que a mandou do exílio em Londres, e que virou um disco clássico da carreira do baiano.







3 - “São Bernardo”, Leon Hirszman (71) – Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E o Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária.







4 - “O Doce Esporte do Sexo”, Zelito Viana (71) – Filme de episódios com ninguém menos que Chico Anysio, na época, no auge de sua criatividade como ator e escritor. Dirigido por seu irmão, Zelito, é um bom exemplo de que já se faziam comédias mesmo numa época de produções pobres como foi os anos 70, considerando que hoje se faz esse gênero às pencas no Brasil com ótimas produções mas nem de perto com a qualidade de texto de “O Doce Esporte...”.







5 - “Como Era Gostoso o Meu Francês”, Nelson Pereira dos Santos (71) – Nelson Pereira teve dificuldades nos 70 de produzir com a qualidade técnica que ele sabe, mas esse aqui saiu perfeito. Comédia bizarra sobre antropofagia cultural e canibal. Uma fantasia que põe Hans Staden em cores modernistas e que evidencia uma série de lacunas de nossas cultura e civilização. Ganhou Brasília e foi indicado ao Urso de Ouro em Berlim. Engraçado e profundo.








6 - “Vai Trabalhar, Vagabundo”, Hugo Carvana (73) – Outra ótima comédia, primeiro filme do Carvana atrás das câmeras – que se pôs na frente também, pois ele mesmo faz o hilário Secundino Meireles, personagem principal que retrata o brasileiro consciente com a situação do País mas de saco cheio com a miséria moral e política. Trama inteligente, crônica da sociedade da época. Venceu Gramado. Trilha original linda do Chico Buarque. Um barato.








7 - “O Marginal”, Carlos Manga (74). O Manga produziu pouca coisa pra cinema depois dos 60. Esse é o único de ficção dele dos anos 70, mas toda sua experiência de cenas de aventuras nas várias chanchadas que dirigiu desde os anos 40 estão aqui, adicionado a um teor psicológico superconvincente e bem conduzido. Música original de autoria de Roberto e Erasmo, um luxo. E o Tarcisão tá ótimo.






8 - “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (76) – Provavelmente a melhor adaptação de Jorge Amado para a tela grande e o melhor brasileiro da década. Por 34 anos foi recordista de público no cinema brasileiro, levando mais 10 milhões de espectadores às salas de exibição. Fotografia, roteiro, trilha e atuações memoráveis. Cheio de cenas inesquecíveis, como a da morte do Vadinho e os diálogos entre Wilker e Sônia Braga. Um clássico vencedor de Gramado e indicado ao Globo de Ouro de Filme Estrangeiro.






9 - “Xica da Silva”, Cacá Diegues (76) – Também sucesso de bilheteria. Cacá emendou uma sequência de ótimas produções nos anos 70, talvez o cineasta que melhor tenha produzido de todos os remanescentes do Cinema Novo. Este é um “épico à brasileira”. Zezé Mota encarnou super bem Xica, o grande papel dela no cinema. Mais uma vez, a trilha do filme do Cacá se destaca: a música original é do Jorge Ben.








10 - “A Queda”, Ruy Guerra e Nelson Xavier (76) – Ruy Guerra, outro comunista irrefreável como o Leon, co-dirige com o também ator Xavier um pequeno episódio de um operário que morre na queda de um andaime, história que usa pra gerar toda uma crítica político-social. Trilha do cineasta (que também era compositor) em parceria com ninguém menos que Milton Nascimento. Urso de Prata em Berlim e Margarida de Prata pela CNBB.








11 - “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (76) – Quer filme mais “marginal” do que um com cara de documentário anárquico, rodado com câmera na mão, usando vários atores amadores nativos, Pereio cheirado e fumado até as guampa, proibido pela censura e que só foi exibido pós-Abertura, 6 anos depois de finalizado? Filme que inspirou muito Fernando Meirelles. Palavras dele.







12 - “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco (76) – Lembro que assisti esse filme pequeno e me deixou com medo, de tão tenso que é. Policial bem realista, com Reginaldo Faria estupendo no papel do assaltante de bancos em crise de identidade, mas que não tem como sair daquele círculo vicioso. Forte pra caralho. Melhor Filme na Mostra Internacional de Cinema São Paulo, além de levar vários Kikitos em Gramado (Ator, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição).







13 - “Chuvas de Verão”, Cacá Diegues (78) – Filme pequeno com cara de conto. Delicado e atípico em tema, pois aborda o amor na terceira idade. Interessantes as ligações com a vida social brasileira e do choque de culturas do velho e do novo. Uma joia que levou prêmios em Brasília, Rio e São Paulo.










14 - “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (78) – Embora não goste do Jabor, pretensioso e “intelectualóide” reacionário, esse aqui é muito legal. Durante a obra de uma antiga casa no subúrbio carioca, a sociedade brasileira (a qual se transformaria na classe média atual) aparece como uma “fauna”: caricata, preconceituosa, mal-resolvida. Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo geniais.





15 - “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (79) – Demarca o fim da segunda fase de Cacá, com referências do Cinema Novo mas mais amadurecido. Ao mesmo tempo que reflete com crueza a vida de pessoas pobres e sem perspectivas, também ressalta a beleza e a magia intuitiva de artistas mambembes. Daqueles filmes feitos na hora certa e pela pessoa certa. Um registro sociocultural e político de um Brasil florescendo e que veio a dar naquilo que somos hoje. Destaque de novo pra trilha, não só as músicas originais do Chico Buarque mas também os “bregas”, que tocam aqui e ali e funcionam tri ambientais.







segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Chico Buarque - "Meus Caros Amigos" (1976)



“O que será que será/ Que todos os avisos não vão evitar/
Porque todos os risos vão desafiar/ Porque todos os sinos irão repicar/ 
Porque todos os hinos irão consagrar/ E todos os meninos vão desembestar/ 
E todos os destinos irão se encontrar/ E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá/
 Olhando aquele inferno, vai abençoar/ O que não tem governo, nem nunca terá/
O que não tem vergonha, nem nunca terá/ O que não tem juízo”.
trecho de
“O que será? (À Flor da Terra)”



“Hoje o inimigo veio me espreitar/ Armou tocaia lá na curva do rio/ Trouxe um porrete a mó de me quebrar/ Mas eu não quebro porque sou macio, viu”. Estes versos, da canção "Querido Diário", de 2011, bem que poderiam ter sido escritas por seu autor, Chico Buarque, 40 anos antes, nos famigerados anos de Regime Militar no Brasil. Um dos artistas mais perseguidos pela censura, Chico foi preso, se exilou, voltou ao país, travou diálogos constrangedores com os censores, burlou-os por vezes e, mesmo escrevendo duplos sentidos não alcançados pelo baixo QI dos avaliadores, teve diversas músicas vetadas. Em meados dos anos 70, cada vez mais cerceado pelos milicos em relação a seu trabalho, chegou um ponto em que compor um disco inteiro, com início meio e fim, virou-lhe tarefa quase impossível. “Quase” em se tratando do “macio” Chico Buarque, talvez o maior nome da música brasileira de todos os tempos. Se não dava para fazer do jeito ideal, criatividade e coragem não lha faltam para passar o recado da maneira que desse. Uma dessas provas de resistência é “Meus Caros Amigos”, de 1976, a materialização possível diante daquela situação de repressão. O que não lhe impediu de cunhar uma obra-prima da MPB.

Como todos os outros discos que fizera durante os anos de chumbo, “Meus...” é um Frankenstein sonoro. Diante da impossibilidade de escrever 10 ou 12 canções novas, pois sabia que a maioria seria proibida pelo simples fato de serem de sua autoria, a solução era ir pescando obras feitas para outros projetos. Homem não só da música, mas de teatro, cinema e da literatura, Chico construíra desde os seus primeiros anos uma carreira em que sua música dialogava com as outras artes. Naquele meio de anos 70, em seu auge criativo, este importante papel que desempenhava na cultura nacional estava totalmente estabelecido. É aí que aparecem os “caros amigos”. Companheiros de luta como Ruy Guerra, Augusto Boal, família Barreto e Hugo Carvana, igualmente opositores ao Governo Militar, sabiam que podiam contar com seus “versos e trovas”. Assim, “Meus...” constituía-se como um aleijão, sim, mas não qualquer aleijão. Com apenas duas canções novas escritas para o disco, por ação desta confluência de ideologias e atitudes constam nele algumas das mais emblemáticas obras da história do cancioneiro nacional.

Uma dessas joias é a que abre o disco: “O que será? (À Flor da Terra)”, escrita para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Melodia incrível e acachapante, que no cinema teve a voz da cantora Simone, aqui Chico divide os vocais com outro mestre da nossa música, Milton Nascimento. Bituca ajuda a dar uma interpretação toda diferenciada ao número, dramática e incisiva. A brilhante letra, crítica e reflexiva, traz, a partir de uma urgente pergunta (“O que será, que será?), versos inesquecíveis como: “Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas/ Que anda nas cabeças, anda nas bocas/ Que andam acendendo velas nos becos/ Que estão falando alto pelos botecos/ Que gritam nos mercados, que com certeza; Está na natureza, será que será...”.

Em seguida, mais uma puxada de outro projeto – e mais uma obra-prima –: “Mulheres de Atenas”. Encomendada para a peça “Lisa, a Mulher Libertadora”, de Boal, é um canto feminista que se vale da ironia e da inversão para expor a crítica da condição feminina não necessariamente na Grécia mitológica, mas no Brasil da era moderna: “Mirem-se no exemplo/ Daquelas mulheres de Atenas/ Geram pros seus maridos/ Os novos filhos de Atenas / Elas não têm gosto ou vontade/ Nem defeito, nem qualidade/ Têm medo apenas...”.

Também extraída de outro projeto para o álbum é a clássica balada “Olhos nos Olhos”, feita originalmente para Maria Bethânia, que a gravara pouco antes e estourara nas rádios naquele ano. Talvez a melhor música em primeira voz feminina já escrita por um homem, expressa a profundidade da alma de uma mulher que, após uma desilusão amorosa, vive um momento de autodescoberta. “Quando você me deixou, meu bem/ Me disse pra ser feliz e passar bem/ Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci/ Mas depois, como era de costume, obedeci”. Ela quer vingar-se do ex que a deixou mostrando que agora não precisa mais dele. “Quando você me quiser rever/ Já vai me encontrar refeita, pode crer/ Olhos nos olhos, quero ver o que você faz/ Ao sentir que sem você eu passo bem demais”. Talvez não tão bem assim, afinal, se fosse totalmente verdade, não precisaria jogar-lhe na cara. Afora a riqueza da melodia e da poesia, essa é uma das sutilezas da sensível “Olhos...”, uma das maiores criações de Chico em toda sua carreira.

De “Calabar, O Elogio da Traição”, peça coassinada por Ruy Guerra e proibida pela censura em 1973, vem a rumba romântica “Você Vai me Seguir”, que conta com lindo arranjo vocal da MPB-4. Fora do contexto da montagem, não apresentava perigo político, então estava liberada pela censura. Igualmente oriunda de uma fonte externa, a engraçada mas não menos ácida "Vai Trabalhar, Vagabundo" é da trilha do filme homônimo do camarada Carvana. Com arranjo assinado por Francis Hime diferente do feito para o longa, é um embalado samba com impagáveis passagens como: “Passa o domingo sozinho/ Segunda-feira a desgraça/ Sem pai nem mãe, sem vizinho/ Em plena praça/ Vai terminar moribundo/ Com um pouco de paciência/ No fim da fila do fundo/ Da previdência...”

Com arranjo de Perinho Albuquerque, uma das duas únicas escritas para o repertório é o divertido samba “Corrente”, cujos versos, como se destaca no encarte, “podem ser dispostos livremente”, pois “uma mesma corrente tanto pode ser lida para frente quanto para trás”. É bem essa brincadeira musical que Chico propõe. Enquanto os versos, corridos, metalinguisticamente dizem: “Eu hoje fiz um samba bem pra frente/ Dizendo realmente o que é que eu acho/ Eu acho que o meu samba é uma corrente...”, a segunda parte, num tom abaixo, começa do trecho que diz: “Isso me deixa triste e cabisbaixo”. Os versos se misturam em cantos simultâneos, contrastando o “pra frente” com o “pra baixo”, tanto em letra quanto em melodia. Uma construção vanguardista em conceito num samba agradável e popular.

A safra comprometida fez com que Chico buscasse mais duas já usadas no cinema para completar o repertório. A bela “A Noiva da Cidade”, a primeira delas, é o tema do filme de Alex Vianni. Misto de samba-canção com cantiga de ninar (“Ai, quanto descuido o dessa moça/ Que papai tá lá na roça/ E mamãe foi passear/ E todo marmanjo da cidade/ Quer entrar/ Nos versos da cantiga de ninar/ Pra ser um Tutu-Marambá”), faz situar-se entre o amor pueril e a sensualidade, trazendo como um dos elementos narrativos a atmosfera do folclore brasileiro e das lendas da infância de antigamente.

A segunda é outro clássico do cancioneiro de Chico: “Passaredo”. Com toques do pop rural ao estilo Sá & Guarabyra, esta canção semi-infantil também do longa de Vianni – aproveitada ainda na trilha sonora do programa “Sítio do Pica-Pau Amarelo” em versão da MPB-4 –, tornou-se um marco da música brasileira à época. Primeiro, por sua leitura mais imediata, pois levanta a bandeira da preservação ambiental tão pouco falada então. “Some, coleiro/ Anda, trigueiro/ Te esconde colibri/ Voa, macuco/ Voa, viúva/ Utiariti/ Bico calado/ Toma cuidado/ Que o homem vem aí...”. Pois esse “homem” ameaçador, que mata sem dó em meio à “floresta”, sustenta justamente a outra leitura que a letra tem: a da denúncia às perseguições, torturas e assassinatos da Ditadura. Aparentemente inofensiva e voltada para crianças (vai ver até achavam que Chico havia inventado aqueles nomes esquisitos de aves...), passou pela censura sem terem percebido. Bem feito.

Das mais belas músicas de Chico mas não tão reconhecida, a romântica “Basta um Dia”, toda sobre piano e o delicado arranjo de cordas de Francis, como não poderia ser diferente também provém de uma obra externa: a peça “Gota D’água”, de Chico e Paulo Pontes e originalmente escrita para a voz de Bibi Ferreira. A rica melodia, de sinuosidades muito bem elaboradas, acompanha o tratamento literário de Chico na letra: “Pra mim/ Basta um dia/ Não mais que um dia/ Um meio dia/ Me dá/ Só um dia/ E eu faço desatar/ A minha fantasia...”.

Por fim, a segunda e última composta para o disco. E que música! A lenda diz que Chico precisava compor somente mais uma faixa para completar o tempo mínimo do LP. Ele então se senta no próprio estúdio e escreve a punho a letra para a melodia de Francis deste choro pessoal e cronístico, uma das obras que mais bem dão a noção do que o Brasil vivia naqueles ferozes tempos. Com o luxuoso piano de Francis e a flauta mágica do craque Altamiro Carrilho, encerra a mensagem-chave do álbum numa carta a um amigo exilado. Tal como propusera em “Sabiá”, de 1968, em que fala de saudades da terra natal sem estar fora dela, “Meu Caro Amigo” é um canto de exílio às avessas. “Meu caro amigo, me perdoe, por favor/ Se eu não lhe faço uma visita/ Mas como agora apareceu um portador/ Mando notícias nessa fita.” E explica, com bom humor e realismo, como estava a situação no Brasil: “Aqui na terra tão jogando futebol/ Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll/ Uns dias chove, noutros dias bate o sol/ Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta/ Muita mutreta pra levar a situação/ Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça/ E a gente vai tomando que também sem a cachaça/ Ninguém segura esse rojão“.

Precisou-se segurar o rojão ainda por muitos anos até a democracia vir. Chico, assim como vários de seus parceiros, venceu a luta contra o inimigo. “Apesar de você”, o amanhã virou “outro dia”. De fato foi necessário que Chico adicionasse à sua autoatribuída maciez muita teimosia, pirraça e cachaça. “Meus...” é a prova disso: tinha tudo para resultar numa colcha de retalhos sem sentido, mas, com o apoio imprescindível dos amigos, unidos por uma causa maior, saiu um dos mais autênticos libelos que um artista popular poderia compor. Nem mesmo todos os empecilhos que foram impostos fizeram com que o disco perdesse a coesão. Ao contrário: aumentaram-lhe a mensagem de subversão e lhe deram personalidade e sobrevida. Afinal, mais de 40 anos depois, o disco continua uma referência tanto na obra de seu autor quanto da música brasileira e da história recente do Brasil enquanto sociedade.

Pode parecer contraditório, mas que nunca mais seja preciso criar discos como este. Oxalá a musicalidade, a poesia e a beleza atingidas por Chico em “Meus...” ande apenas restrita ao passado: nas cabeças e nas bocas. E na memória.

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FAIXAS
1. O que será (À flor da terra) – Participação especial: Milton Nascimento
2. Mulheres de Atenas (Augusto Boal/ Chico Buarque)
3. Olhos nos olhos         
4. Você vai me seguir (Ruy Guerra/ Chico) – Participação especial: MPB-4
5. Vai trabalhar vagabundo        
6. Corrente       
7. A noiva da cidade (Francis Hime/ Chico)
8. Passaredo (Francis/ Chico)
9. Basta um dia
10. Meu caro amigo (Francis/ Chico)

todas as composições de Chico Buarque, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO





por Daniel Rodrigues