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sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Duelo - com José Eugenio Guimarães






Nosso primeiro colaborador da série Duelo, de entrevistas sobre cinema western e clássicos da sétima arte, é o capixaba e morador de Niterói, José Eugenio Guimarães. Zootecnista, Cientista Social e professor universitário de profissão. Cinéfilo de coração, o cara é dono do ótimo Blog Eugenio em filmes. Além de escrever em sua page diversos textos sobre várias fases do cinema, ele é um assíduo colaborador de muitas páginas culturais e sobre o tema na internet. Eugenio, que veio de uma família de cinéfilos, assistiu seu primeiro filme bem precocemente, aos dois anos de idade e que depois não parou mais. Ele mantém aquele costume voraz dos aficionados por cinema de rever uma grande produção muitas e muitas vezes. Conta que assistiu “No Tempo das Diligências”, mais de 200! O western é só mais uma de suas grandes paixões. Nosso entrevistado é também um profundo conhecedor de cinema independente e um fã declarado do cineasta brasileiro Glauber Rocha. É com ele que vou ter o imenso prazer de bater um papo cinéfilo nestas linhas cheias de intensidade e paixão real pelo cinema.



BINO: José Eugenio, não posso deixar de fugir de uma pergunta meio clichê: qual foi o primeiro grande filme que te impactou, aquele que vem à tua memória sempre num flash rápido?
John Ford
JOSÉ EUGENIO: Impacto, mesmo, senti ao ver “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach”, 1939), em 1963, aos sete anos. Meu pai, cinéfilo, era assumidamente fordiano. E, certamente, herdei dele essa paixão pelo cinema de John Ford. Muito antes eu já o ouvia, enquanto fazia a barba ou tomava banho, rememorar diálogos inteiros de “Como era verde o meu vale” (“How green was my valley”, 1941), o filme que ele mais preferia do diretor. Mas a experiência de ver “No tempo das diligências” em tela de cinema, ainda menino, foi algo que jamais esquecerei. Antes de irmos ao Cine Odeon de Viçosa/MG, no qual foi exibido, o velho, como bom pai, começou a preparar o meu espírito para o que eu iria ver. E tudo correspondeu às expectativas. Pareceu que eu estava sonhando. Durante muito tempo “No tempo das diligências” foi o meu filme preferido de John Ford. Só fui revê-lo no cinema, pela última vez, em Belo Horizonte, em 1977, quando entrei na sessão das 14h e só saí ao fim da sessão das 22h, quase à meia-noite. Então, também o vi nas sessões das 16, 18 e 20h. Cinco sessões ao todo, enfileiradas. Saí do cinema meio tonto, mas totalmente em paz comigo mesmo. Já vi “No tempo das diligências” mais de 200 vezes. Também já ultrapassei esse número com “Rastros de ódio” (“The searchers”, 1956) e “O homem que matou o facínora” (“The man who shot Liberty Valance”, 1962), ambos também de Ford. São filmes que sempre revejo, nos quais sempre descubro coisas novas.

B: O primeiro filme que a gente assiste no cinema é como a primeira transa, algo marcante. Que lembranças tens dessa época?
JE: Comigo até que não dá para fazer essa relação. Pois o primeiro filme que vi no cinema foi em 1958. Estava com dois anos. Minha mãe queria ver “Marcelino Pão e Vinho” (“Marcelino Pan y Vino”, 1955), de Ladislao Vajda, e não tinha com quem me deixar. Levou-me junto. Segundo ela, fiquei o tempo todo com os olhos arregalados colados na tela, do começo ao fim. Evidentemente, não guardo lembranças desse meu batismo no cinema. O que ficou dessa ocasião foram as canções do filme, usadas por minha mãe para embalar o meu sono enquanto fui criança de colo. “Marcelino Pão e Vinho” só fui rever em BH, em um relançamento, quando estava com 21 ou 22 anos. Valeu como experiência afetiva, afinal estava tendo a oportunidade de ver o filme que inaugurou a minha cinefilia e que me fez fazer incontáveis birras para voltar ao cinema. Mas o filme mesmo é decepcionante, muito carola e moralista, uma produção típica da Espanha franquista afundada num catolicismo tão retrógrado como medieval.

B: Sobre tuas preferências no cinema em geral, quais escolas tu mais admiras? Fale um pouco delas.
JE: Há muitas "escolas". Prefiro chamar de movimentos. Mas as que fizeram a minha cabeça ou ampliaram os meus horizontes na cinefilia são, principalmente, o Cinema Revolucionário Russo, a Avant Gard Francesa, o Realismo Poético Francês, o Free Cinema Inglês, o Expressionismo Alemão, o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague Francesa e o Cinema Novo Brasileiro.
Falar um pouco delas... Vamos lá. Tentarei ser breve.
O Cinema Revolucionário Russo, por ter sido uma experiência que, ao menos por curtíssimo tempo, uniu o cinema a um projeto de mudança política e social. Era o cinema no compasso da revolução, inserido na construção de novos homem e tempo. Infelizmente, Stálin acabou com tudo isso.
A famosa cena do olho de "Um Cão Andaluz",
de Buñuel e Dalí
A Avant Gard Francesa, por trazer a abstração, o universo da subjetividade para o cinema, contaminando-o de poesia, aproximando-o das outras esferas da criação. Poucas vezes o cinema esteve tão perto do sublime e da ousadia, do rompimento de convenções, como neste breve período circunscrito aos anos 20.
O Realismo Poético Francês por investir no lirismo, transitando do otimismo à tragédia em tão pouco tempo. Praticamente foi um movimento que antecipou a tragédia europeia instalada com o Nazismo, incorporando, principalmente em seu momento de auge, a desesperança e o fatalismo.
O Neorrealismo Italiano por mostrar o melhor do humanismo num momento cravado na destruição provocada pela Segunda Grande Guerra. Câmeras nas ruas e becos, sob a realidade do sol ou da noite, acompanhando gente praticamente real, vivenciando problemas comuns, cotidianos, principalmente os que dizem respeito à sobrevivência. Então, é um cinema aliado ao exercício da objetividade, mas sem se esquecer de expressar o que passa em cada particularidade dos seres em cena.
Já o Expressionismo Alemão apreende a realidade num momento de incerteza e dissolução. A Alemanha derrotada na Primeira Guerra entrou numa crise profunda, não apenas econômica como moral, política e social. A mistura de tudo isso gerou perplexidade. O fantástico, inclusive o terror, dominaram a cena. Personagens dementes ou próximas disso davam o tom às narrativas e ações. Não havia explicações plausíveis para os atos. Quase tudo encontrava motivação numa ordem transcendental, inatingível, etérea, inexplicável. A poesia, a psicanálise, a escultura, a pintura eram fortes aliadas da composição cênica. É como se o cinema se tornasse total, ao englobar todos os demais meios de expressão e sem esquecer os rumos incertos que a sociedade vinha tomando. Mas tudo prenunciava o pior, como sabemos.
A Nouvelle Vague, por sua vez, foi o cinema do NÃO. Não a qualquer convenção, a qualquer dependência do cinema à literatura e aos estúdios. A liberdade criativa, a juventude, o espírito de rebeldia dominaram o movimento, que falava principalmente ao ser e às questões da contemporaneidade. Havia uma autonomia autoral sem precedentes. As produções eram baratas, filmava-se onde era possível, o glamour pouco importava. Um espírito de espontaneidade dava a tônica, algo que Jean-Luc Godard ainda hoje preserva em seus ensaios fílmicos.

cena de "Acossado" de Jean-luc Godard

O Free Cinema Inglês é praticamente paralelo e parecido à Nouvelle Vague, mas era menos etéreo, mais centrado nas questões concretas e prementes da existência. Dava para sentir os personagens pulsando de forma mais vigorosa e intensa.
No Brasil, o Cinema Novo, tão radical, com tantos nomes importantes e a vontade de revelar o país além dos grandes centros, também de maneira independente dos esquemas industriais, sem muitas preocupações às fórmulas, mas criando outras. Glauber, maior nome do movimento, era praticamente um cineasta que se reinventava de filme para filme, até chegar na desconstrução plena da narrativa em seu esforço tão pouco compreendido de emancipar o olhar. É um provocador que faz falta à mesmice de agora.

B: Em relação ao western, qual foi a grande contribuição desse gênero para o cinema mundial?
Antônio das Mortes, personagem de Glauber
inspirado em Ford
JE: Ao cinema mundial, não sei. Mundial é muita coisa. O que se sabe de concreto é: o western, por mais que muitos lhe torçam o nariz, foi o gênero que apresentou um tipo de homem que podem ser caracterizado como o indivíduo em sua forma mais bem acabada, sociologicamente falando. O cowboy ou seus similares estavam apoiados única e exclusivamente em suas determinações, desejos e vontades. É algo específico de uma determinada cultura. Historicamente, não há precedentes ao tipo em nenhum outro local do mundo. Geralmente as pessoas estavam vinculadas a alguma estrutura, a uma ordem. O cowboy, não. Goza de uma margem de autonomia sem precedentes. Isso encantou principalmente as plateias fincadas em organizações sociais mais tradicionais. Nisso, de certa forma, o modelo inspirou cineastas japoneses, principalmente Kurosawa. No Brasil, Glauber Rocha, principalmente em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", tem no personagem Antonio das Mortes uma extensão. Aliás, sabe-se claramente que o desenho do personagem está inspirado em Ethan Edwards (John Wayne), de “Rastros de ódio”. Esses filmes de Glauber buscam inspiração nos westerns de Ford, mas sob a capa de um Eisenstein. E há a Itália, país que sempre valorizou o gênero, tanto que inventou uma variante. Outras formas de narrativa heroicas contaminadas pelo western pode ser encontradas no cinema popular chinês, por exemplo. No Brasil, também há os filmes de cangaço, há muito tempo em baixa, com suas estruturas narrativas também herdadas dos westerns, principalmente pelo uso do cavalo pelos cangaceiros, algo que não resiste à menor análise junto à realidade, pois cangaceiro se locomovia a pé. Mas o cowboy, mesmo, é uma experiência única, ímpar, puramente estadunidense. É o indivíduo moldado naquilo que Weber chamou de ética protestante – do puritanismo: alguém que apenas presta contas às suas determinações e vontades.

B: "O Portal do Paraíso" é considerado o filme que matou o western americano, tudo por seu grande desastre comercial. O western spaghetti também passou por seu período turbulento e, após os anos 70, também não teve mais o brilho da era do ouro dos Sergio's e companhia. Com todo esse hiato, raras produções western tiveram destaque no cinema. Um exemplo é “Dança Com Lobos” e "Os Imperdoáveis", que ganharam muitos Oscar e foram muito bem recebidos pela crítica. Poucos estúdios e diretores apostam nesse tipo de produção. Porque você acha que este gênero está tão em baixa nos últimos tempos?
JE: O western é vítima de vários fatores. Há primeiro a televisão, que o banalizou com um punhado de séries familiares e telefilmes de consumo imediato. Também há o politicamente correto. Além do fato de que os estadunidenses em geral têm certa dificuldade de confrontar um passado de conquista que não se afigura tão glorioso para a História, dados os custos humanos do empreendimento. Ainda é muito complicado, para eles, discutir o genocídio dos índios. É um tema praticamente encoberto de tabu. É uma pena, pois se há um gênero que pode ser chamado de genuinamente nacional em se tratando de Estados Unidos, é o western. Quer queira quer não, mostra como o país foi conquistado e unificado. À medida que os EUA foram se urbanizando e se industrializando, ficado mais cosmopolitas, o western foi se tornado um gênero ultrapassado, uma narrativa que não combina mais com a realidade, principalmente por revelar uma etapa que se quer esquecer.

B: Tarantino e os irmãos Ethan e Joel Coen parecem ter apostado no western, cada um a seu estilo. Como você vê a estética e os filmes destes diretores?
Francamente, em termos estéticos não saberia como responder. Sei que são recicladores, cada qual à sua moda. São cineastas que têm um modo próprio de expressão mas sem abrir mão das dívidas a pagar com a tradição. Tanto que seus filmes podem ser sérias releituras ou, dependendo do momento, também podem ser meros pastiches. O que me irrita, hoje, é o extremo valor que se dá a esses nomes. Não tanto os Irmãos Coen, que são brilhantes. Mas faço reservas a Tarantino, não tanto a ele, que é bom cineasta, mas por ser visto, principalmente pelos setores mais jovens, como um valor totalmente original. Não é, mesmo. Pode ser mais barulhento, mas estiloso, mais midiático, mas é também um manipulador em causa própria, um bom marqueteiro de si mesmo. Em todo caso, vamos ver. Não estou dizendo que o abomino, muito ao contrário. Apenas revelo o que para mim desponta como limitações.

B: Se tu tivesses que fazer uma lista de 10 grandes e definitivos westerns de todos os tempos, quais seriam?
Esse negócio de listar "grandes e definitivos" é problemático. Mas, vamos lá, com todo o meu perdão às injustiças que certamente cometerei:
1 - No tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford (1939)

2 - Paixão dos fortes (My Darling Clementine), de John Ford (1946)
3 - Rio Vermelho (Red River), de Howard Hawks (1948)
4 - O preço de um homem (The Naked Spur), de Anthony Mann (1953)
5 - Os brutos também amam (Shane), de George Stevens (1953)
6 - Rastros de ódio (The Searchers), de John Ford (1956)
O Duke, John Wayne,
em cena de "Rastros de Ódio"










7 - Galante e sanguinário (3:10 to Yuma), de Delmer Daves (1957)
8 - Onde começa o inferno (Rio Bravo), de Howard Hawks (1959)
9 - O homem que matou o facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), de John Ford (1962)
10 - Meu ódio será sua herança (The Wild Bunch), de Sam Peckinpah (1969)
Puxa, apenas 10 títulos! Acabei de excluir cerca de 16 outros, que considero essenciais, da lista. Parece que acabo de cometer pecado mortal.

B: Agora mudando o rumo da conversa. Quando Redford quando criou Sundance queria dar oportunidade ao cinema independente. Muitos diretores e produtores beberam nessa fonte que Cassavetes catapultou anos antes. Que tu acha desse tipo de cinema não tão mainstream? Algum filme ou diretor te chamou atenção nestes últimos anos?
JE: Esse tipo de cinema, à margem, é essencial. E aí que vamos encontrar os germes de renovação, as criatividades. Cinema é indústria e indústria é algo formatado, que pode ser reproduzido em grande escala. O cinema independente está à margem disso, pode se afastar das convenções, investir em pesquisas estéticas, formais, autorais; pode correr riscos com mais facilidade. Pode ousar. Pena que todo sopro de independência, de rebeldia, acaba, com o tempo — e são raras as exceções —se incorporando ao mainstream, ainda mais no cinema americano. Gosto de citar um caso extremo: John Waters, com seu cinema de guerrilha. Já significou mau gosto. Vide “Pink Flamingos”. Hoje, é encenado na Broadway. Seus exercícios autorais, fétidos, imorais e amorais já foram incorporados à industria e refilmados segundo os grandes esquemas. Vivemos tempos cada vez mais perigosos ao autoral e ao independente. O capitalismo incorpora tudo, até o que lhe é contrário. Basta ser domesticado, esquematizado e, claro, dar lucro.
Sobre quem está chamando a minha atenção nos últimos anos: Sophie Deraspe, Martin Laroche, XAvier Dolan, Stéphane Lafleur, Robert Morin, Denis Villeneuve, Alexandro Avranas, Rosario Garcia-Montero, Petra Costa, Peter Webber... deve ter mais alguém.

B: E sobre as produções Brasileiras e Latino-Americanas o que você tem a dizer?
JE: Bom... O cinema brasileiro sempre me interessou, desde que me habituei a vê-lo já na fase final das comédias da Atlântida. Nós temos um cinema muito bom, diferente, com valorosos cineastas. No tempo do Cinema Novo éramos uma das cinematografias mais desafiadores. O cinema brasileiro foi recordista mundial de prêmios em mostras e festivais internacionais nos anos 70. Penas que os contextos políticos não ajudaram.
Já vi muitos filmes mexicanos. Eram exibidos facilmente no Brasil até o começo dos anos 70. Havia aqui uma representação da PelMex – Películas Mexicanas –, que fazia a distribuição do que veio a ser conhecido como Cinema de Lágrimas. O cinema cubano também teve melhores dias entre nós, principalmente o Novo Cinema Cubano (já velho), dos anos imediatamente posteriores à Revolução.
Pouco conhecemos das produção dos nossos vizinhos, excluída, atualmente, a Argentina, que vive um contagiante momento de euforia. Quanto a nós, agora, parece que estamos prisioneiros do formato ditado pela Globo Filmes. Mesmo assim, não podemos reclamar, pois temos Jorge Furtado, Fernando Coimbra, Karim Aïnouz, Cláudio Assis e gente mais velha que ainda está na ativa apesar de todas as dificuldades.

B: O que tu achas do cinema como ferramenta de inclusão social?
As contribuições seriam exatamente a de levar o cinema à população. Tentativa que não é nova e era praticada em tempos mais generosos e mais fartos de filmes com temáticas populares e de acesso mais facilitado ao público em geral, principalmente ao carente de cinema. Nos anos 60 e 70 os cineclubes faziam essa ponte, levando o cinema à população que nunca o teve. Inclusive estimulando-o a tomar a câmera como exercício de criação própria. Cheguei a participar um pouco dessa fase, em meus dias de cineclubismo.

B: Para finalizar, se você se definisse como pessoa em um filme, qual seria ele, e por quê?
JE: Ah! Não sei. Certamente seria alguém semelhante aos personagens interpretados pelo Wilson Grey, pelo Hank Worden, pelo Henry Calvin. Nunca me preocupei com isso. Mas alguém heroico é que não seria. Estou mais perto do perfil dos perdedores. Se tivesse que ser um cowboy, encontraria afinidades com o Monte Walsh vivido pelo Lee Marvin em “Um homem difícil de matar” (Monte Walsh, 1970), de William Fraker.


sexta-feira, 31 de julho de 2015

“Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas”, de Arthur Penn (1967)



Quando assistir a um grande filme dos anos 60 e 70, agradeça a Warren Beatty
por Francisco Bino




Poster original de 
"Bonnie e Clyde"
Depois do período turbulento e da quebra de alguns dos grandes estúdios nos anos 50, o cinema yanquee enfrentava uma péssima fase. Ninguém queria saber mais de Rock Hudson, épicos e filmes bíblicos. As salas de cinema esvaziaram e as brilhantes produções europeias e japonesas eram cada vez mais tratadas como salvação do cinema mundial. Os baby boom, a geração dos anos 60, queriam coisas novas e voltaram rapidamente seus olhos para o outro lado do Atlântico. Esse foi o primeiro sinal vermelho. Os grandes chefões tinham perdido muito dinheiro com produções catastróficas e estavam dispostos a baixar um pouco a guarda para ter seus públicos de volta e recuperar suas cifras. Mas ainda não tinham entendido bem o recado de que agora as coisas não seriam do jeito deles.
Faye e Beatty antevendo a revolução sexual
e social da sociedade moderna
Uma geração renegada da TV, teatro e cinema independente estava se preparando para assumir o controle nas produções. Diretores, produtores e atores iam dar início a um movimento chamado "New Hollywood" a mais autoral e criativa da história do cinema daquele país. Mas, obviamente, ainda enfrentariam uma dura resistência. O filme “Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas”, de Arthur Penn, de 1967, seria o marco inicial de toda essa geração. Tudo graças a Warren Beatty, que brigou com os estúdios para ter seu projeto financiado e sob seu controle, longe do pitaco dos chefões. “Bonnie & Clyde” acabou sendo um sucesso em público, prêmios e crítica. A toda poderosa Pauline Kael fez enormes elogios ao filme de Beatty, Robert Towne e Arthur Penn e, de quebra, chamou a Warner de conservadora demais, pois eles subestimaram a produção. Esse foi o segundo sinal vermelho. Mais tarde os executivos entenderiam o recado.
Mesmo assim, o filme gerou enormes polêmicas e não foi tão bem aceito por parte da comunidade de Hollywood, que ainda não estava preparada para este tipo de produção. Pois “Bonnie & Clyde” era freudiano, revolucionário e trazia consigo a mensagem da liberação sexual de uma era que estava chegando. E ao mesmo tempo debochava dos filmes de gângsteres dos antigos estúdios – suas tomadas de tiroteios em Keystone Kops ao estilo das comédias mudas eram uma provocação dizendo: "nos podemos fazer melhor seus ultrapassados". A violência do filme era uma outra metáfora: o Vietnã inflamava com o "cheiro de Napalm pela manhã" e corpos de US Marines crivados de bala na TV. E Beatty, pela primeira vez na história, mostrava os efeitos dos tiros em um corpo e o sangue jorrando nas telas de cinema. Vários diretores beberam dessa fonte estética violenta. Sam Peckinpah seria um deles e a usaria em seu grande filme, "Meu Ódio Será Sua Herança". O crítico Peter Biskind disse: "Se os filmes de James Bond legitimavam a violência dos governos, e os de Sergio Leone legitimavam a violência dos vingadores solitários, ‘Bonnie & Clyde’ legitimava a violência contra o sistema, a mesma que ardia nos corações e mentes de centenas de milhares de oponentes frustrados da Guerra do Vietnã."
Gene Hackman, Blanche Parson,
Beatty, Faye e Michael Pollard
Depois de “Bonnie & Clyde” a porta estava mais aberta, “Sem Destino” seria concebido por hippies doidões; renegados e nerds se juntariam a eles para exteriorizar em criação aquilo que tinham na alma e eram reprimidos pelo sistema conservador dos estúdios que, agora de guarda baixa, tinha sua porta arrombada. A New Hollywood estremeceria os anos 60 e 70 ao som de rock, drogas, sexo, brigas e na produção dos melhores filmes da história do cinema norte-americano. Muitos deles de forma "we made", cinema puro, visceral e sem efeitos especiais. O fenômeno teria um fim, é claro, no início dos anos 80, com “Touro Indomável”, que encerraria tudo. Ciclo que pouco antes já era decretado como morto por causa de “O Portal do Paraíso”, considerado o filme que matou o gênero Western e ainda quebrou a United Artists, a grande companhia independente e financiadora dos projetos da New Hollywood.
Nos anos 80, os estúdios assumiriam o controle outra vez, com normas e uma série de regras para as produções e orçamentos. Os diretores seriam meros instrumentos nas mãos de chefões e estúdios, que somente visavam quantias bilionárias e despejavam superproduções cheias de efeitos especiais e roteiros "step by step" vazios. Aquilo que ainda é visto no "cinema" nos dias de hoje. A geração New Hollywood morreu e os estúdios por hora venceram a batalha. Sepultada, não sei, mas nada foi em vão, já que eles deixaram uma marca criativa jamais superada por outras gerações que as sucederam. Por isso tudo, quando você assistir a um grande filme destas duas décadas, 60 e 70, agradeça a um sujeito chamado Warren Beatty e a um time de párias, errantes e loucos que construíram com inteligência e autoria o melhor momento do cinema mundial.