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segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Samuel Rosa & Simjazz Orquestra - Vivo Música - Parque Harmonia - Porto Alegre/RS (03/12/2023)

 

Há 30 anos, a revista Bizz, a mais importante publicação sobre música no Brasil dos anos 80 e 90, “lacrava” sobre os quatro principais nomes daquilo que chamavam de “a nova cara da música pop brasileira”. Dois eram equívoco evidentes: Cherry, a vocalista da inexpressiva e rapidamente esquecida banda Okotô, e Edu K, que, erroneamente, já era influência para a música pop há mais tempo de que todos ali por meio de sua referencial De Falla. Quanto aos outros dois “novatos”, pode-se dizer que foram mais assertivos, embora com algum porém. Um deles era Carlinhos Brown, que, assim como Edu K, não se tratava de nenhum iniciante, visto que àquela altura já gravara nos Estados Unidos com Sérgio Mendes, liderava trio elétrico na Bahia e influía diretamente na música de Caetano Veloso. Mas como o Tribalista não havia ainda se lançado em carreira solo (seu debut, “Alfagamabetizado”, sairia apenas três anos depois), até passava a classificação como “promessa” devido a isso. 

O único acerto efetivo dos editores da Bizz da naquela reportagem foi, de fato, Samuel Rosa. O líder da Skank, então em seu primeiro disco dos 15 que lançou em 30 anos de estrada, não apenas atingiria o estrelato, como se consolidaria como um dos mais importantes autores da música brasileira.

A prova daquela profecia pode ser conferida no saboroso show gratuito que o artista mineiro fez em Porto Alegre para o Vivo Música. Acompanhado de sua ótima banda e em alguns números da competente Simjazz Orquestra, Samuel, em começo de vida solo com o consensual fim da Skank, desfilou um cancioneiro tomado de hits, como “Garota Nacional”, “Jackie Tequila”, “Ainda Gosto Dela” e “Sutilmente”. Mas não só isso. Afinal, “chicletes de ouvido” são relativamente fáceis de se fazer a um músico com mínimas habilidades, visto que obedecem a uma construção melódica padrão, que formata um produto musical eficiente, mas nem sempre dotado de emoção. Samuel Rosa, desde aqueles idos de 1993, quando destacado pela Bizz, soube evoluir em sua musicalidade para unir estes dos espectros: o gosto popular e a sofisticação, o pop e o melodioso. De reggaes relativamente pobres, Samuel, principal compositor, evoluiu a olhos vistos para referências a Beatles, à turma de Minas Gerais e sons mais modernos, que o transformara num dos cinco principais compositores da música brasileira destas últimas três décadas.

Com uma sinergia incrível com o público, ao qual agradeceu pela fidelidade de não arredar pé mesmo com a chuva, foram só sucessos do início ao final do show. Algumas, que levantaram a galera, que cantou e dançou junto sem dar bola para a chuva que ia a voltava. A embalada versão da Skank para “Vamos Fugir”, de Gilberto Gil, foi uma delas, assim como “Acima do Sol”, “Vou Deixar” e “Saideira”. Só alegria. São músicas tão embrenhadas no emocional do público, que as pessoas cantam a letra completa mesmo sem saber que as sabiam de cor. Que brasileiro, afinal, não sabe cantarolar “Amores Imperfeitos”, “Tão Seu” ou “Te Ver”, por exemplo? Além destas, tiveram surpresas. Com um Samuel menos atido só ao repertório da Skank, teve cover da beatle “Lady Madonna” com “I Can See Clearly Now”, de Jimmy Cliff, uma homenagem à gaúcha Cachorro Grande, banda coirmã da Skank, com a balada “Sinceramente”, e uma esfuziante “Lourinha Bombril”, da Paralamas do Sucesso, coautoria dele com Herbert Vianna.

Por falar em chuva, que ameaçava desabar a qualquer momento, Samuel, um doce de educação e simpatia, confessou que haviam reduzido um pouco o set-list no meio da apresentação com medo de que isso ocorresse. Mas como durante o show foram, por sorte, apenas algumas pancadas leves, ele mesmo fez questão de alterar a ordem dos números e tocou todas as que haviam se programado. Isso fez com que os principais clássicos estivessem lá. O que dizer de “Resposta”, dele e de Nando Reis, uma das mais belas baladas do cancioneiro brasileiro? E “Dois Rios”, também com Nando e contando com o toque “Clube da Esquina” do conterrâneo Lô Borges? Para fechar, no bis, não uma escolha garantida de algum outro sucesso da Skank, mas, sim, uma versão de “Wonderwall”, da Oasis, pois, como Samuel justificou, o Rio Grande do Sul é terra de roqueiro, então todos ali entenderiam o porquê. 

Passados todos estes anos desde que aquela revista previa que Samuel Rosa se tornaria um pilar da música pop brasileira, fica muito claro que isso realmente aconteceu. Parceiro de alguns dos mais importantes nomes da música nacional, como Nando Reis, Erasmo Carlos, Lô Borges, Chico Amaral e Fernanda Takai, pode-se dizer que, por alto, Samuel é responsável por cerca de 20% dos grandes sucessos da música no Brasil dos anos 90 para cá. Curiosamente, a adoção definitiva do nome próprio e a dissociação direta da Skank fazem com que, de certa forma, Samuel Rosa se reinvente e renasça, como se, novamente, estivesse começando. Então: vida longa a este “velho novato”. Que venham mais 30 anos de maravilhas pop e canções que tocam o coração do Brasil.

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Confira alguns momentos:

Samuel e a Simjazz começando o show


Detalhe do telão

Público atento e interagindo


Samuel em sintonia com a galera

Os dois de rosa pra ver Samuel Rosa: coincidência



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“Filme sobre um Bom Fim”, de Boca Migotto (2014)






Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter assistido ao documentário “Filme sobre um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal. Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”. Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia cultural recente da cidade.

Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional, cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno deste.

Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80.
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de 1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super 8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80, quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana. Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler, João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).

Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda), embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita, mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti, Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto, deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).

Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade.
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes, o hardcore d’Os Replicantes ou o pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil, que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.

E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”, “desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do município, e isso por causa de muita insistência. 

Peninha, ferino e hilário.
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um momento tão efervescente e interessante na cidade.

Sabemos que não se repetirá.

A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola. Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente, não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo, na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade. Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.

No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”, a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto Alegre de uma forma ou de outra como eu.

Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em 2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.


trailer de "Filme sobre um Bom Fim"



segunda-feira, 5 de outubro de 2015

“Rock Grande do Sul: 30 Anos”, de Lucio Brancato e Fabrício Almeida (2015)



Capa da coletânea de 1985
Não venho falando que o bairro Bom Fim e sua história andam recorrentes pra mim? Pois pouco tempo depois de ter assistido a "Filme Sobre um Bom Fim" e visitado a Lancheria do Parque nas vésperas da despedida do garçom Ildo, ambos assuntos que me motivaram a escrever aqui para o blog, outro acontecimento envolvendo o bairro me impele a falar a respeito do Bonfa de novo. É o documentário “Rock Grande do Sul: 30 Anos”, para o qual tivemos a honra de sermos convidados para a pré-estreia por um de seus diretores, meu amigo e jornalista Lucio Brancato, o que aconteceu no simpático Panama Estudio Pub, na Cidade Baixa, numa (mais uma!) noite chuvoso de setembro na capital.
Dentre os que assistiram, estavam o codiretor e também jornalista Fabrício Almeida, os colegas de Grupo RBS Alexandre Lucchese e Porã Bernardes, que ajudaram na pesquisa e entrevistas, e um dos protagonistas do filme, o DJ e produtor musical Claudinho Pereira, responsável pelos contatos que fizeram com que Rock Grande do Sul acontecesse 30 anos atrás. O disco impulsionou as bandas gaúchas dos anos 80, as quais já mobilizavam multidões por aqui, mas ainda não tinham projeção nacional. A trajetória começa em setembro de 1985 com um show no Gigantinho, o “Rock Unificado”, que reuniu pela primeira vez somente bandas locais e um público de mais de 10 mil pessoas. Disso, culmina com a escolha de cinco desses conjuntos para participarem de uma coletânea, engendrada por Claudinho junto a Tadeu Valério, executivo da RCA Victor, que veio a seu convite como olheiro assistir ao espetáculo. Convencido por Claudinho, se valesse a pena, Valério os lançaria um disco. Valeu. Assim, gravariam pela primeira vez em um LP nacional TNT, Garotos da Rua, Engenheiros do HawaiiOs Replicantes e DeFalla (este último, que não participou do tal show no Gigantinho, mas era visivelmente um destaque na cena pela sonoridade, visual e postura).
Antes da avant-première
Vendo o filme, impossível não compará-lo a “Filme sobre Um Bom Fim”, tendo em vista a quase simultaneidade em que foram lançados. A temática, que faz ambos passarem necessariamente pelo bairro e pela cena cultural da época, os une numa leva de realizações que se completa com outro documentário desde ano, “Sobre Amanhã”, de Diego de Godoy e Rodrigo Pesavento, a respeito da banda DeFalla, lançado também faz pouco, em agosto, no Festival de Gramado. Vários entrevistados são, obviamente, os mesmos, visto que nomes como Biba Meira, Carlos Gerbase, Carlos Eduardo Miranda, Claudinho e Edu K, por exemplo, são essenciais para a história dessa efervescência cultural vivida por Porto Alegre num passado recente.
Conversei sobre isso com Lucio, que me revelou ter sido, de fato, apenas um feliz acaso. As semelhanças existem, tanto que tiveram que evitar de usar imagens e vídeos repetidos em uma obra e outra. Mas a ideia de “Rock...” surgira entre seus idealizadores há pouco tempo, quando Porã se dera conta do aniversário do disco, sendo que o projeto de “Filme...”, consideravelmente maior, já vinha sendo tenteado há uma década. E é aí que as coisas começam a se diferenciar. Por tratar de um tema menos complexo, o lançamento do disco e suas consequências (“Filme...” remonta parte da história e vivências do Bom Fim e arredores em mais de duas décadas), “Rock...” exige um menor número de entrevistados (menos de 20 ao todo) e recortes temporal e narrativo idem.
Começando a projeção.
Talvez por esses fatores, “Rock...” tenha ficado tão agradável e lúdico. Não que “Filme...” também não o seja; mas a complexidade que seu tema central levanta, bem como os vários desvelamentos que não se pode deixar de fazer (política, cultura, boemia, história, antropologia, comunicação, literatura, cinema, arquitetura histórica, urbanismo, etc.), lhe dão necessariamente um caráter mais denso – desafio este que o diretor Boca Migotto cumpre muito bem, diga-se. No caso de “Rock...”, essa exigência é menor, pois os caminhos para dissecar o assunto tornam-se naturalmente menos intrincados, ajudando, inclusive a detectar com mais facilidade os pontos a serem destacados no decorrer da narrativa. Dá até para fazer “firulas”. É o que acontece, por exemplo, na hora em que King Jim, d’Os Garotos da Rua, levemente “desmemoriado”, recorda que até havia plateia no Gigantinho na fatídica noite de 11 de setembro de 1985, depoimento imediatamente reconsiderado por Charles Master, do TNT, a quem era óbvio que havia um grande público. Momento engraçado e bem construído pela montagem.
O tempo recorde em que foi produzido – desde a concepção do roteiro, entrevistas, decupagem e montagem levou-se apenas sete semanas (algo como menos de dois meses), conforme Lucio, impressionado com o próprio feito, me relatou – não prejudicou o resultado final. Muito pela experiência dos realizadores, talhados nas várias mídias do jornalismo (tevê, jornal, rádio, etc.), “Rock...” ganhou agilidade e fluência, contando desde o surgimento das bandas e o furor da cena gaúcha dos anos 80, passando pelo “Rock Unificado”, os bastidores da assinatura do contrato com a RCA e o sentimento dos protagonistas quanto àquela conquista. Além disso, remonta o que aconteceu dois anos depois da coletânea como resultado: a gravação do disco de cada uma das cinco bandas que integraram a “Rock Grande do Sul”, dentre estes os clássicos “Papaparty”, da DeFalla, "O Futuro É Vortex" (1987), d’Os Replicantes, e o LP homônimo da TNT.
Bem interessante esse momento do filme, em que contam sobre a aventura de ir para o Rio de Janeiro para gravarem os discos, o que rende histórias engraçadas e com sabor nostálgico. Charles fala da reação “jeca” dos rapazes da TNT ao se depararem com o rico aparato do estúdio e, logo em seguida, voltarem ao hotel onde estavam hospedados e esconderem os seus instrumentos de vergonha que ficaram. Ou das sacanagens que Os Garotos da Rua, suburbanos também no jeito de ser, faziam no quarto do hotel dos membros do Engenheiros do Hawaii, que, universitários intelectualizados, respondiam às brincadeiras testando-lhes o conhecimento, tal como relataram Jim e Humberto Gessinger. Eu, que sou especialmente fã de Replicantes, adorei saber das condições que a banda de Gerbase impôs à gravadora. Punks cientes – e orgulhosos – de sua inaptidão técnica como músicos, embora extremamente criativos e donos de uma música inteligente e pungente, tinham critérios desde a escolha do repertório até o método de gravação, em que a banda tocava junta (sem overdub) e escolhiam, ao final, o take “menos pior”, como relatara engenheiro de som que os apadrinhara, o Barriga.
Master, Gessinger e Gerbase,
três das figuras centrais do filme.
Detalhes cuidadosos estabelecem o ritmo da montagem, da fotografia e locações, mantendo tempos regulares e bem conduzidos das falas – um exemplo simples mas que denota essa delicadeza é o lettering que credita cada entrevistado, o qual aparece apenas depois da primeira ideia dita por estes. Ao final, fica um sabor de “quero mais”, e não pela sensação de ter sido pouco, pois, mesmo sendo um curta, o filme supera esse fator uma vez que conta muito bem a história. Fica, sim, o sentimento de “que pena, passou tão rápido!”
O filme desfecha com uma rodada de percepções de vários dos entrevistados sobre o que a coletânea “Rock Grande do Sul” representava para eles hoje. Com o a capa do vinil na mão, num exercício psicológico tátil, cada um dá seu depoimento que vai do orgulho ao carinho. Olhando-os nessa sequência, hoje todos mais velhos de quando realizaram a obra, fica a sensação de que parece ter passado pouco tempo de lá para cá, o que é imediatamente contrariado pelo fator cronológico, o qual relembra serem caprichosas três décadas. Não é pouco, de fato. A sensibilidade dos diretores e o carinho com que trataram do tema é provada no desfecho: percebendo essa atmosfera nostálgica que permeia a psique coletiva, o que se escuta no final não é "Segurança", "Entra Nessa" ou “Surfista Calhorda”, faixas do disco que automaticamente são ligadas a este – e com as quais seria óbvio demais encerrar. Ouve-se, sim, apenas o chiado da agulha no sulco do vinil, metáfora de uma obra que não inicia, pois seus ecos, na verdade, ainda não terminaram.
Afora isso, foi saboroso assistir a esse tributo a um dos discos que foi um dos principais responsáveis por fazer a mim e a meu irmão a gostarmos de rock e pelo qual guardo um sentimento especial até hoje. Pelo visto, não só eu.

trailer "Rock Grande do Sul: 30 anos" 




segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Chico Science & Nação Zumbi - Usina do Gasômetro - Porto Alegre/RS (1994)


O talentoso Chico Science no palco: única
vinda a Porto Alegre
Os anos 1990 foi uma década encantada para Porto Alegre. Várias capitais sentiam os primeiros sabores da democracia após mais de 20 anos de ditadura, e a minha cidade aproveitou bem isso. Um ainda embrionário Partido dos Trabalhadores conquistava sua primeira prefeitura no Brasil em 1989 através Olívio Dutra, cujo revolucionário mandato estenderia seus efeitos benéficos nas administrações de Tarso Genro (1993 a 1997) e Raul Pont (1997 a 2001). Os ares de modernidade e de administração pública pensada para o cidadão diferia de tudo o que estávamos acostumados em política (mal-acostumados, na verdade). Não se administrava para o povo e nem com o povo até então, mas a prefeitura do PT trazia, entre outras novidades, o Orçamento Participativo, o Fórum Social Mundial, a Bienal do Mercosul e diversas outras atividades que, não raro, privilegiavam a cultura. Foi assim que assisti, entre outras atrações, shows antológicos de Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Jorge Ben Jor em praça pública. E de graça.

Contando assim hoje, em que o país vem de anos de crises econômica, política e social e massacre à cultura, parece até mentira que se teve coisas assim numa Porto Alegre não muito distante. Tanto é que para alguns é difícil acreditar quando digo que assisti, em 1994, a Chico Science & Nação Zumbi com a formação original. Sim, com Chico à frente e o como ele falecido Gira. Em plena Usina do Gasômetro, em praça pública, e de graça. E isso quando a banda ainda não era ainda idolatrada mundo afora. Os não muitos dos presentes como eu que estiveram na apresentação daquele sábado à noite certamente conheciam a banda muito por conta da Rádio Ipanema, que desde cedo identificava o mangue beat como a nova revolução da música pop brasileira.

A Nação, que cedo ganhou este apelido, já era reconhecida no centro do país e, principalmente, em sua Recife, onde reinavam na cena musical de então, a qual contava com vários outros talentos, como os coirmãos mundo livre s/a, a Devotos do Ódio, a Querosene Jacaré, a Sheik Tosado, a Mestre Ambrósio, entre outros. Mas no Rio Grande do Sul as coisas funcionavam ainda sem a velocidade que a internet ainda passaria a impor, e as informações demoravam ainda para chegar por estes pagos. O que talvez explique o porquê do público fiel mas acanhado que presenciou aquele show histórico, que registrava o primeiro disco da banda, “Da Lama ao Caos”, lançado aquele ano e que tinha produção do craque Liminha. Era o começo da carreira deles, e Porto Alegre era uma das primeiras cidades a presenciar aquele som revolucionário que mesclava rock, funk, rap, reggae, eletrônica e afro beat com maracatu, embolada, samba de roda e baião. Tudo com muita psicodelia e originalidade.

Antes da entrada dos pernambucanos no palco, teve pelo menos uma apresentação que me lembro com vivacidade: a célebre De Falla. Show bem rock ‘n’ roll com cara de anos 50/60, quando Edu K já havia passado pela fase funk-rock de “Kingzobullshitbackinfulleffect92”. Showzaço, aliás. Mas estava lá para ver mesmo a CS&NZ. A iniciante banda trouxe no repertório basicamente as faixas do seu disco de estreia, o que foi suficiente para uma apresentação memorável. Praticamente na sequência do álbum, começaram com "Monólogo ao Pé do Ouvido", em que os três tambores de maracatu, Gira, Bola 8 e o ainda percussionista Jorge Du Peixe, postavam-se à frente do palco enfileirados marcando o ritmo forte. Chico entra com o magistral texto-manifesto:

Modernizar o passado é uma evolução musical
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos
O medo da origem é o mal
O homem coletivo sente a necessidade de mudar
O orgulho, a arrogância, a glória enchem a imaginação de domínio
São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade
Viiva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi!
Antônio Conselheiro! 
Todos os Panteras Negras!
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia!

Aí, como no disco, que eu já tinha e ouvia direto, entra "Banditismo por Uma Questão de Classe", a direta crítica social que fez a galera enlouquecer com as guitarreiras de Lúcio Maia, que soavam pela primeira na atmosfera de Porto Alegre, cidade a qual a banda voltaria outras vezes, sendo nenhuma mais com Chico, que morreria precocemente num acidente de carro, em fevereiro de 1997.

Seguiram-se "Rios, Pontes & Overdrives" e o sucesso “A Cidade”, que incendiou o público, assim como “A Praieira”, a qual tocava direto na Ipanema e era já adorada pelos fãs. O peso do heavy-maracatu “Da Lama ao Caos” dava a certeza àqueles gatos pingados indies como eu que estávamos diante da maior revolução do rock desde o grunge. Os batuques nordestinos de alfaia, que carregam toda uma cultura regional dos caboclos-de-lança e dos ritos folclóricos, misturavam-se, como jamais se havia ousado (ou pensado) com o rock pesado e os samplers herdados do rap. E o jeito de cantar único de Chico, um verdadeiro mangue boy com “Pernambuco embaixo dos pés” e a “mente na imensidão” - como diz a letra de "Mateus Enter", do disco seguinte deles, "Afrociberdelia".

Na sequência, entre outras, tocam a impressionante instrumental “Lixo do Mangue”, que ganharia um registro ao vivo no póstumo a Chico “CZNZ”, de 1998, dando a ideia do que foi ouvi-la sendo tocada naquela ocasião. Também, "Computadores Fazem Arte", de autoria do parceiro de mangue beat Fred Zero Quatro, foram outras que movimentaram o público, formado essencialmente de fãs daquela que foi a grande banda da geração 90 – o que, aliás, já identificávamos sem que a mídia precisasse nos dizer.

Após a psicodélica “Coco Dub”, última faixa do disco que dava origem ao show, Chico Science e seus caranguejos musicais tocariam o que no bis? Novamente, “A Cidade”! Bem coisa de grupo iniciante ainda sem repertório além do próprio primeiro disco. Mas foi muito legal, pois a turma curtiu uma vez que sintonizada com aquele clima de banda ainda “não-profissional”. Eles, visivelmente em casa, pareciam estar num Abril Pro Rock em Recife, pois sabiam que tocavam para uma galera que os curtia. O bis teve ainda uma surpresa: Jorge Du Peixe cantando “Rise”, da Public Image Ltd. Ele, que se tornaria o vocalista da banda após, prenunciava, ali, naquela apresentação despretensiosa mas muito empolgada, o que viria a acontecer na história da banda depois que Chico deixou-a por motivos de força maior.

Haja vista que se trata de um resgate da época pré-internet no Brasil, esses registros são basicamente fruto da minha memória. Buscando em arquivos históricos físicos certamente encontraria, mas seria desnecessariamente trabalhoso para uma singela matéria como esta e até inviável neste momento de pandemia. O que me impressiona, na verdade, é que não se encontre nada sobre esta apresentação em sites e afins, nem na imprensa, nem em blogs, nem em lembranças de possíveis fãs. Nada. Sequer em matérias de veículos locais que registraram, sim, vindas mais recentes da Nação Zumbi à capital. Ou seja: ninguém se prestou, nestes anos todos transcorridos de 1994 para cá, a perguntar aos atuais integrantes sobre a ligação deles com Porto Alegre. Sobre aquele histórico show na capital numa fase romântica da carreira da banda e que marcou a única performance de Chico no Rio Grande do Sul. Se se tivessem dado conta de questionar, bairrista como se é por aqui, certamente estaria escrito em algum lugar.

Talvez, como disse no início do texto, isso seja reflexo da tal depreciação a que a cidade de Porto Alegre vem sofrendo há aproximadamente duas décadas para cá. Não se assistem mais programações artísticas como este show da CS&NZ e outros aos quais citei faz muito tempo em Porto Alegre, seja por falta de grana, iniciativa, capacidade e até bom gosto. Se naquela noite no Gasômetro já não éramos muitos, hoje parece que existimos apenas nas memórias.

Show da CS&NZ em Recife, em 1994 (parte 1 e 2)
 


Daniel Rodrigues