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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mundo Livre S/A - "Samba Esquema Noise" (1994)


"Se a Terra é um rádio
Qual é a música?
Manguebit"



Cavaquinhos envenenados, frevos rasgados, guitarras distorcidas, batucadas explosivas, sambas ácidos... Com estes elementos, letras bem sacadas, composições complexas, crítica social e irreverência, o Mundo Livre S/A no seu mix de cultura brasileira e elementos pop e eletrônicos nos apresentava um dos discos mais legais e interessantes que a música brasileira já viu.
Em "Samba Esquema Noise" (1994) tem lugar para tudo: um frevo invade naturalmente um ska ("Manguebit"); uma levada de cavaquinho de repente dá lugar a uma explosão de guitarra distorcida ("Livre Iniciativa"); um berimbau se confunde com a guitarra num reggae sinuoso e serpenteante como em "Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives"; ou ainda simplesmente predominam experimentações eletrônicas, samples e efeitos como no caso de "Sob o Calçamento (Se Espumar é Gente)".
O disco é cheio de tiradas inteligentes e antenadas com referências tecnológicas, filosóficas e literárias que vão de Kafka a Homero, sem contudo, ficar chato ou pedante, sem falar das inúmeras referências a Jorge Ben, uma espécie de mentor espiritual da banda. A começar pelo nome do álbum inspirado no "Samba Esquema Novo" primeiro trabalho de Jorge Ben, as referências passam, por exemplo, pelo samba alucinado "O Rapaz do B... Preto", aludindo à canção "O Homem da Gravata Florida" do disco "A Tábua de Esmeraldas"; ou mesmo meramente pela sonoridade dominante em toda a obra que vai completamente ao encontro do conceito que o inspirador já desenvolvia lá em 1963.
Uma das minhas prediletas, "Musa da Ilha Grande", é uma samba-rock de primeira, também bem ao estilo Babulina, com uma participação vocal mínima de Malu Mader, mas que é suficiente para conferir todo um toque de sensualidade. Gosto muito também de "Terra Escura", um samba chapado cantado quase sem forças acompanhado por um surdo alto e vibrado; "Cidade Estuário", muito soul e cheia de metais, também é das mais bacanas; "Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives" traz a percussão preciosa de Naná Vasconcelos; "Sob o Calçamento" vem com a participação do vocal poderoso de Sérgio Boneka; e o álbum encerra com a faixa que lhe dá nome, ainda que a expressão "Samba Esquema Noise" não seja cantada nela e sim na faixa "Livre Iniciativa" , e que esta curiosamente não tenha barulho algum, tratando-se de um lamento acústico lento e pessimista sobre as oportunidades na vida.
Disco notável da banda que divide com a Nação Zumbi de Chico Science, a honra de terem promovido, como já falei no post sobre o "Da Lama ao Caos", o último grande movimento musical relevante no Brasil.

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FAIXAS:
1.Manguebit
2.A Bola do Jogo
3.Livre Iniciativa
4.Terra Escura
5.Saldo de Aratú
6.Uma Mulher com W... Maiúsculo
7.Homero, o Junkie
8.Rios (Smart Dugs), Pontes & Overdrives
9.Musa da Ilha Grande
10.Cidade Estuário
11.O Rapaz do B... Preto
12.Sob o Calçamento (se Espumar é Gente)
13.Samba Esquema Noise

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Ouça:
Mundo Livre SA Samba Esquema Noise





Cly Reis

quinta-feira, 1 de maio de 2014

cotidianas nº 290 Especial Dia do Trabalhador - A Bola do Jogo



Olha, olha, olha
Olha, meu olhar mais fundo
Entra, entra, entra
Senta, bem vinda ao novo mundo
Minhas pernas são bastantes fortes
Como de todo trabalhador
Os meu braços são de aço
Como os de todo operário
Mas como já dizia um velho casca
A merda dos trabalhadores é sua alma inútil
Eu tenho uma alma que é feita de sonhos
Mas como já dizia um velho casca
A alma de um trabalhador
É como um carro velho só dá trabalho
Tira, tira, tira
Deixa, não apaga o meu fogo
Suba, suba, suba
Gira, gira linda
É a bola do jogo
A bola do jogo
Sou um trabalhador sou sim,
Eu tenho uma alma que dseja e sonha
Deseja e sonha
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"A Bola do Jogo"
mundo livre S/A

(letra: Fred Zero Quatro)


Ouça:
Mundo Livre S.A. - "A Bola do Jogo"

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

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FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

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OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues

terça-feira, 20 de maio de 2014

Copa do Mundo Legião Urbana - Grande Campeão


Como já diria o filósofo contemporâneo, Jardel, ex-atacante do Grêmio, "Clássico é clássico e vice-versa". Pois é. Deu jogaço na decisão. Duas grandes equipes, duas grandes músicas e a nossa bancada legionista, integrada por Luan Pires, Christian Ordoque, Daniel RodriguesCly Reis e Jowilton Amaral da Costa, ajudada pelos amigos no facebook, decidiram qual o grande vencedor desta competição que mexeu com os fãs da LEGIÃO URBANA.
Pois então, vamos lá, um a um, vamos descortinar os votos, os comentários e o andamento da partida segundo cada um dos integrantes:







HÁ TEMPOS x TEMPO PERDIDO



Luan Pires
É um jogo sem favoritos. Duas torcidas fanáticas. Dois times bem estruturados, maduros, objetivos. Duas letras inteligentes, maduras, sem filosofar demais, sem filosofar de menos. Melodias marcadas, que crescem, que explodem. Jogo épico. Jogo respeitoso. Nada de muitos gols. Empate até os momentos finais. Até que um lance desequilibra tudo. Um único lance que vem da motivação. É que Há Tempos sempre me pareceu uma música de constatação, de aceitação, de doce amargor, de conformidade nua e crua. Já em Tempo Perdido sinto uma fagulha de otismo, de querer mudança, de não ter desistido. Para outros, os sentidos podem ser diferentes e até contrários. Mas Tempo Perdido, pra mim, reflete alguém que ainda tem fé. Tempo Perdido não desiste, da vida, do mundo, do jogo. Um digno jogo pra marcar histórias, dividir opiniões e alimentar rodas de conversa por muito tempo ainda. Mas a vitória só pode ir para um: Tempo Perdido ganha com um gol feio, esparramado, nos minutos finais.
Porque acho que música é um pouco isso: não desistir de mudar as coisas, jamais
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Christian Ordoque
Tempo Perdido e Há Tempos têm uma conexão cronológica e de conteúdo muito interessante. Por elas terem chegado às finais fico muito contente. Tempo Perdido tem o mérito de ser uma boa música pop smithiana com estrutura de verso e refrão. É o Satisfaction da Legião Urbana. Sempre achei muito mal mixada com ‘esses’ muito sibilantes. Tempo Perdido passa uma mensagem positiva de esperança de jovem que se acha dono do mundo e por isso padece de soberba. Inebriado pelo primeiro amor como todo jovem fica e por isso se julga eterno. E todo jovem é eterno. Até que a realidade bate à sua porta ou algumas vezes a coloca abaixo. Nesse momento, ele se dá conta que não tem mais todo o tempo do mundo e que não terá nem mais nem seu próprio tempo. O mundo o oprime ou na melhor das hipóteses o sujeita, o submete. No verso: Não tenho medo do escuro, Mas deixe as luzes acesas agora, O que foi escondido é o que se escondeu, E o que foi prometido, Ninguém prometeu é onde essa nova realidade do amadurecer aparece. E a partir daí, desse momento de crueza do mundo ante o idealismo juvenil e da certeza da morte que começa Há Tempos. Com mensagem mais pé no chão que diz maisoumenos o seguinte: “Ok, foste jovem, mas a maior parte da tua vida será como adulto”. Fazendo uma relação com a Tempo Perdido seria a frase: “Há tempos tive um sonho, não me lembro, não me lembro” a ponte de contato entre o que pensávamos quando jovens e que agora ficou mais longe ?
Quantas vezes andando de carro isolado e pressionado por problemas das mais diferentes ordens explodi gritando ao volante para aliviar a pressão ? Doença muito cedo, aos 18 anos “Há tempos são os jovens que adoecem”, a volta dela dez anos depois aos 28 e ficar sempre a monitorando como uma sombra na existência. Enfim, tratar a vida como ela é, sabendo de tuas limitações do teu tamanho e que em última instância tu não podes com ela, não tens a ilusão da juventude e já tiveste vários amores de olhos castanhos, verdes e azuis. Não tenho mais todo o tempo do mundo, tenho menos tempo pela frente do que o tempo que já passou. E no último verso fica o ensinamento da música e da vida: Disciplina é liberdade Compaixão é fortaleza, Ter bondade é ter coragem. Por mostrar a vida real de adulto e não a ideal de jovem que meu voto para melhor música da Legião Urbana vai para Há Tempos.


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Daniel Rodrigues
Se Santos e São Paulo é o Clássico dos Santos, porque não poderia ter o Clássico dos Tempos? Pois é: “Há tempos” e “Tempo Perdido”, também Clássico dos Pares (discos “Dois” e “Quatro Estações”). Pois, como dizia aquele jogador extremamente lógico e filosófico: “clássico e clássico”. Tanta expectativa posta em cima de cada equipe deu num jogo truncado, cheio de faltas no primeiro tempo. Galera chegando junto. Mas todo mundo estava decidido a ganhar, afinal, são, em tese, as duas melhores da Legião. No segundo tempo, então, os times vieram determinados a fazer gol. “Há tempos” abre o placar logo aos 3 min com um gol de bicicleta! Que catêga, hein? Mas o lance bonito não assustou “Tempo perdido”, cuja máxima futebolística vocês já conhecem: “sempre em frente, não temos tempo a perder”. Time ofensivista esse! Tanto que, aos 12 min, num chute na entrada da área, empatam. “Tempo perdido” se empolga, vai pra frente de novo e quase amplia. Mas “Há tempos” não tava morta e mete uma no ângulo que o goleiro faz milagre e põe pra escanteio. E esse escanteio foi o ponto-chave do jogo. Aos 40 min, lateral esquerdo cobrou, o atacante, que foi lá defende. Ele tira de cabeça e a bola vai parar no pé do meia armador, que estava fora da área só esperando ela sobrar. Contra-ataque. Fulminante. Depois de 12 toques na bola, a jogada é concluída pelo mesmo atacante, que percorreu todo o campo para ir lá na frente só escorar de cabeça e por a bola pra dentro. “Tempo perdido”: 2 x 1 e, com o perdão da redundância, não há mais tempo pra nada. "Há tempos" ainda leva o resultado para o tapetão, alegando que "Tempo perdido" jogou o campeonato inteiro com um jogador a mais (aquele finalzinho acústico valeria, segundo o adversário, como outra música, e que “Tempo Perdido” teria tirado vantagem com isso). Mas a Confederação analisou as súmulas e tava tudo certinho. Tempo Perdido campeã!

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Jowilton Amaral da Costa
Há tempos x Tempo Perdido. E chegou a grande final, um grande jogo sem dúvida. Ainda assim, acho que diante das finalistas “Índios” é a melhor, mas, o choro é livre no futebol, todo mundo sabe disso. Bem, aproveito para agradecer ao Daniel pelo convite para participar como comentarista e ao Cly pela aceitação. Muito obrigado, me diverti a vera. Voltei a ouvir músicas que há um bom tempo eu não escutava, e isso foi uma boa viagem. Agradecer também ao outros comentaristas, o Luan e o Christian. Valeu pela companhia e pelos comentários sempre criativos, emocionados e, sobretudo, especializados. Valeu mesmo galera. Contudo, vou dar uma cornetadinha que ninguém é de ferro, né? Senti falta de Geração Coca-cola, Eduardo e Mônica, Faroeste Caboclo e Metal Contras as Nuvens nas fases finais. Mas está de bom tamanho. As finalistas são grandes canções de dois belos discos. Não vou me alongar nos comentários propriamente ditos. Neste jogo para mim ganha Tempo Perdido de 2 a 1.
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Cly Reis
Pelas mesmas virtudes que a fizeram eliminar Índios, aquele riff inicial matador, a letra repleta de figuras de linguagem utilizadas de maneira poética e perfeita, o ímpeto final a partir do "então me abraça forte..." e aquele somos tão jovens que, mais que um verso transformou-se numa espécie de epígrafe da banda, sem falar na, profundidade, na permanência e na dimensão do sucesso alcançado, Tempo Perdido derruba a ótima Há Tempos, que também tem grandes virtudes, muitas até parecidas, mas que não são páreo para as da oponente. Tempo Perdido faz 2x0. Mas não um 2x0 fácil. É aquele de um gol no primeiro tempo quando o jogo estava equilibrado e o segundo só lá pelas tantas depois de quase ter sofrido o empate por diversas vezes. Pra mi, Tempo Perdido é a campeã.



TEMPO PERDIDO CAMPEà


vídeo de Tempo Perdido - Legião Urbana

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

cotidianas #605 - Musa da Ilha Grande




Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água
Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água
Eu não vou sair daqui sem ver você sair, não vou gostosa...

Ela entrou de biquíni branco
Deixou a blusinha na areia
Jogou um sorriso pra trás
Me deixou com a cabeça cheia...
De ideia

Lá em casa tão chiando, onde é que o mané se meteu?
Disse que voltava logo
Será que o burro se perdeu?
O almoço ta esfriando, sei que já perdi a hora
Mas hoje eu não saio daqui antes de ela ir embora

Mas nem fudendo...

Eu não vou sair daqui...
Eu não vou sair daqui...

Ela entrou de biquíni branco
Deixou a blusinha na areia
Jogou um sorriso pra trás
Me deixou com a cabeça cheia...

Não saio não...
De biquíni branco...

Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água
Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água

Não saio não...
Não saio não...
Não saio não...

Eu não vou sair daqui
Eu não vou sair daqui

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"Musa da Ilha Grande"
Mundo Livre S/A
(letra: Fred Zero Quatro)

Ouça:
"Musa da Ilha Grande" - Mundo Livre S/A

sábado, 29 de dezembro de 2018

CLAQUETE ESPECIAL DE 10 ANOS DO CLYBLOG - "Tinta Bruta", de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon (2018), por Cleiton Echeveste



"Tinta Bruta"
por Cleiton Echeveste


Mesmo tendo assistido a “Tinta Bruta” há vários dias, os personagens e a história do filme seguem comigo. E a sensação que eu tenho é de que eles vão continuar me acompanhando ainda por um bom tempo. Em meio aos lançamentos de final de ano nos cinemas (entre eles tantos blockbusters, filmes descerebrados com personalidades de mídia e filmes desconectados de quaisquer questões humanas, e ainda alguns poucos que visam algo mais do que a arrecadação da bilheteria ou os prêmios da temporada), provavelmente “Tinta Bruta” tenha passado despercebido pela grande maioria. Ainda assim, o prêmio Teddy no Festival de Berlim e a distribuição (limitada, porém valiosa) da Vitrine Petrobras, a partir do seu sucesso no Festival de Cinema do Rio, sinalizam que há olhares atentos e – ainda, felizmente – caminhos para a distribuição do cinema independente de qualidade feito no país.
Depois de “Beira-mar” (disponível no Netflix), este é o segundo longa de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, que também assinam o roteiro do filme. Pedro (Shico Menegat) é um jovem com escassos vínculos afetivos. Sua mãe já morreu. Do pai, não teve mais notícias. Sua única irmã está de mudança para outro estado e sua avó mora no interior. Abandonou a faculdade por questões relacionadas ao bullying do qual é vitima e que foram a causa do processo criminal ao qual responde. A internet representa pra ele uma espécie de refúgio, onde assume a identidade de GarotoNeon, em performances eróticas nas quais pinta seu corpo com tinta fosforescente. Assim como tantos jovens, Pedro recorre ao imaginário, através do mundo virtual, para tenta dar algum sentido à vida. O mundo real, em contraponto, é uma Porto Alegre fria, sombria e opressiva, representada por silhuetas nas janelas, olhares que espreitam e que são testemunhas/espectadores de uma realidade pela qual não se permitem afetar. Um mundo nem um pouco propício para encontros ou trocas afetivas. Essas imagens são o epítome da sociedade contemporânea do espetáculo, em um viés conservador e decadente.
Na minha relação com a arte, busco ser o menos analítico possível ao vivenciá-la, esteja eu no lugar de criação ou de fruição. A análise é fria e requer distanciamento, e foi exatamente o contrário disso que “Tinta Bruta” me proporcionou: a vivência da minha humanidade, da minha falibilidade, de dores que são também minhas e que são, por isso, plenamente identificáveis. Se “Tinta Bruta” não é um marco no cinema brasileiro que aborda histórias de personagens LGBTIQ+, o filme, no entanto, significa, sem dúvida, um gesto forte e marcante, indispensável em um Brasil que, em boa parte, nega sua diversidade, sua memória e sua própria história, que criminaliza a arte e a cultura, e que diariamente mata (real ou simbolicamente) quem ousa conduzir sua vida de uma forma mais livre, sem a adesão a regras que, de tão podres, já não se sustentam.
Neste texto refaço um caminho particular por aquilo que me marcou no filme e que dialoga tão diretamente com questões muito definidoras da minha própria existência. Esta revisão, entretanto, é duplamente parcial, afinal “Tinta Bruta” é um filme que apresenta tantas camadas que uma resenha apenas não daria conta de abordá-las todas satisfatoriamente. É um filme difícil de ser definido ou enquadrado. É denso, chocante, assustador, mas também delicado e profundamente humano. Um tipo bastante raro de filme que se impõe pela consistência da sua estrutura.  São questões humanas que potencialmente atravessam todo e qualquer espectador. Por isso, dizer que se trata de um filme de gueto seria limitador.
Leo e Pedro  e sua geração que ainda busca
as tintas certas para colorir o seu mundo.
Talvez seja necessário dizer que “Tinta Bruta” não é um filme perfeito. Há falhas no roteiro, mais precisamente nos diálogos, vejo questões na direção de atores, na qualidade técnica, especialmente do som. E isso é bom, muito bom! Porque eu entendo que, ainda que pese a questão da limitação orçamentária, o filme não se pretende perfeito e acabado, até pelo próprio universo em (des)/(re)construção que ele nos apresenta e pelo que representa na trajetória de seus jovens criadores. E, ainda assim, são tantos os acertos e tão importante o impacto que ele gera no espectador, que os seus eventuais “defeitos” podem e devem ser relevados. Há um bem muito maior em questão e este bem é precioso.
A trajetória de Pedro é uma autêntica jornada rumo ao entendimento: o entendimento de si mesmo e do mundo que nos cerca, com suas idiossincrasias, sua crueldade, sua frieza, mas também com sua beleza, sua luz, sua poesia. Nesse sentido, é encantador acompanhar o encontro de Pedro e de Leo. Do atrito inicial, provocado por uma disputa sobre quem tem o direito de usar tinta fosforescente (num sentido literal, a tinta bruta a que o título alude) em suas performances na internet, a relação dos dois evolui para um encontro autêntico entre dois seres de uma geração que não vê muito sentido no mundo como ele se apresenta. São existências em ebulição, em transformação, seres potencialmente revolucionários. Ambos parecem estar em permanente tensão, em busca de um ponto de escape. Essas buscas são compartilhadas com o espectador, através de uma narrativa que tem o ritmo e o tempo certos. Na verdade, personagens e narrativa nos seduzem, nos envolvendo não como quem olha pelo buraco da fechadura, mas como quem compartilha o mesmo espaço, o mesmo ambiente incerto e sufocante. A questão que de início contrapõe Pedro e Leo não é pequena pra nenhum dos dois: pra Pedro suas performances representam sua única fonte de renda e, principalmente, elas são seu único elo com o mundo “real” – ainda que ele se dê exclusivamente pela via virtual; e para Leo, elas são a possibilidade de juntar dinheiro para uma desejada viagem de estudos ao exterior. Bailarino, Leo ganhou uma bolsa para estudar na Argentina, e promete a Pedro que sua concorrência tem prazo de validade. Mas aquele que aparenta ser um concorrente acaba por se tornar um parceiro. A certa altura esse prazo cai, mas isso se dá num momento em que Pedro e Leo já estão de tal maneira envolvidos afetiva e profissionalmente que, na prática, nada significa.
Apesar dos cíclicos reveses (culturais, históricos, econômicos, naturais), “Tinta Bruta” sinaliza que o sentido da vida é a evolução. Como a planta, nós também buscamos a luz. E a água e o alimento, material e espiritual. E pra que isso aconteça agimos como a planta – afinal somos também natureza – que ultrapassa obstáculos, transpõe limites, supera a si mesma, em alguma medida heroicamente, mas sempre demonstrando resiliência. “Tinta Bruta” nos faz lembrar que essa batalha é combatida individualmente, ainda que na eventual companhia do outro. E esse outro – cuja presença é ironicamente fundamental à nossa jornada – também trava suas próprias lutas, cotidianas e, muitas vezes, invisíveis aos olhos alheios. Os reveses na vida de Pedro são inúmeros. A vida nele, no entanto, pulsa.
A cena final do filme, sem palavras e plena de significados, até hoje me assombra e me comove. Me faz lembrar de algumas vezes em que uma única cena concentrou tamanha potência dramática e carga poética. Consigo lembrar de dois filmes que, aliás, também podem ser colocados sob o grande guarda-chuva de “cinema LGBTIQ+”, mas que igualmente transcendem esse rótulo: “O segredo de Brokeback Mountain” (2005) e “Me chame pelo seu nome” (2016). A pungência dos acontecimentos relacionados aos personagens centrais destes filmes e a força das imagens encontradas por seus diretores para expressá-las é algo que não se digere com facilidade. São vivenciais que saltam da tela e nos atingem por sua força e inevitabilidade. Em “Tinta Bruta”, no entanto, esse recurso alcança um efeito mais visceral. Se nos dois exemplos citados a dor que dilacera está relacionada à perda irreparável de um amor, aqui a dor é a dor do crescimento, do lançar-se ao mundo. Como num rito de passagem, a cena final significa uma mudança de eixo tão arrebatadora pra Pedro que um novo filme poderia começar ali. É a vida mesma que se insurge, se esgueirando por uma brecha, em busca da luz e que, determinada, vigorosa, doída e bela, redefine e recompõe uma existência. Para o espectador, é uma rasteira tão grande em quem eventualmente lesse o filme de uma maneira convencional, ou em quem esperasse uma habitual – e hipócrita – redenção pelo viés judaico-cristão de culpa e castigo, que ficamos afundados na poltrona do cinema, olhos vidrados e lágrimas escorrendo, estarrecidos com a força vital com que a tela se enche.
Se a vida pressupõe confrontação e, mais do que nunca, resistência, a arte se torna grande, imensa, quando nos oferece a oportunidade – assim como faz “Tinta Bruta” – de fortalecermos nossa confiança de que, sim, a vida vale a pena. Bravo!

Frente a frente, Leo, o GarotoNeon, e Pedro, o Guri, 25.


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Cleiton Echeveste é ator, dramaturgo e diretor de teatro, graduado em Artes Cênicas (UFRGS), onde também estudou Letras. É um dos criadores da Pandorga Cia. de Teatro, na qual é autor e diretor de O Menino que Brincava de Ser (indicação ao 2º Prêmio CBTIJ de Teatro para Crianças) e Cabeça de Vento (ganhador de prêmios de melhor texto nos festivais de Ponta Grossa/PR e Duque de Caxias/RJ). Com a Pandorga, criou Juvenal, Pita e o Velocípede (ganhador do 10º Prêmio Zilka Sallaberry de Teatro Infantil, categoria texto). Único dramaturgo latino-americano no festival de dramaturgia New Visions/New Voices 2014 (Washington, D.C./EUA). Em 2016, na Casa de la Literatura Peruana, em Lima, participou do VI Congreso de Literatura Infantil y Juvenil e do 1er. Festival del Libro y las Ideas, com mesas-redondas, conferências e oficina de processo colaborativo. Atualmente é o presidente do Conselho de Administração do Centro Brasileiro de Teatro de Teatro para Infância e a Juventude – CBTIJ/ASSITEJ Brasil. Site: https://pandorgaciadeteatro.wordpress.com/   

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Coluna dEle #19


E aí, filharada, como é que tão as coisas?
Bom, Eu que devia saber, né? Eu que comando toda essa bagunça.
A propósito, o mundo tá como o Diabo gosta. Vocês não tomam vergonha nessas caras, mesmo, hein! Só Me fazem merda!
Pra quê que Eu fui criar o tal do Livre-arbítrio!!!

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Andei afastado, aí, uns tempos, porque afinal de contas a Gente é dono dessa merda e tem que tomar conta do tal do Mundo. Se bem que às vezes dá vontade de pedir as contas!
Mas infelizmente não dá. É cargo vitalício. Fui inventar de criar  mundo, universo, e pepepé, agora segura a bomba, otário!

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Por falar em cargo e segurar o rojão, fiquei sabendo que vocês aí no Brasil escolheram uma mulher pra presidente! Tão de brincadeira, né? Bom, cada um com seu cada um, mas só brasileiro mesmo pra optar por ser mandado por mulher (hehehe).
(Boa sorte...)
Aqui em cima não tem dessas de eleição, não! O 'pepino' é eternamente Meu. Escolhi Meu ministério há muito tempo atrás e assim vamos seguindo: é o Jorginho no Ministério da Guerra, o Tadeu no das Causas Impossíveis, a Clara nas Telecomunicações, o Toninho no da União Civil e assim por diante. Só mexo nisso se for muito necessário.
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É, Eu falo, falo mas na verdade aqui em cima é bem aquela história da última palavra ser sempre Minha: “Tá bom , meu bem”, “Claro, amor”, “Como não, benzinho”.
A primeira-dama aqui é forte!

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Cara, falando nisso, agora que Eu lembrei que tamo perto do aniversário do Meu guri.
2010 anos, hein! Quem diria! Mas continua com aquela carinha de 33.
É aniversário dEle mas na verdade tem que comprar presente pra todo mundo. Olha só no que vocês transformaram a data. A Dona Encrenca, por exemplo, já falou que quer um sofá novo; que o nosso tá um lixo, que o gato arranhou todo, que tá cheio de farelos nos cantos e que eu derramo cerveja... já viu, né: vou dançar com uma bela duma grana.

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Andei acompanhando pela TV esses lances todos que aconteceram no Rio.
Tenho uma simpatia toda especial pelo Rio de Janeiro. Dei uma caprichada no visual aí: fiz aqueles morros, as praias e tudo mais, mas o quanto esse pessoalzinho se esforça pra dasmoralizar Minha obra de arte, não é brincadeira! Tem até uma estátua maneiríssima do Meu guri aí e tal. Pô, curto de montão! Mas essas paradas de atentado, tiroteio pra todo lado me deixam meio puto com vocês.
Vam’ dá um jeito nisso aí, porra!

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E ainda, por falar em Rio de Janeiro: o Nelsinho, aqui, (o Nélson Rodrigues, sabe?) tem Me enchido tanto o saco com Tricolor pra cá, Tricolor pra lá, que eu e o pessoal do Ministério dos Esportes resolvemos que... tá bom, tá bom. Esse ano é de vocês.

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Bom, vou vazar!
Tem um monte de coisas pra resolver e tentar deixar esse mundo um pouco mais ajeitadinho até o Ano-Novo pra ver se a gente começa um 2011 mais na moral.
Passei a régua e fechei a conta.Como diria a Carla Perez: F – O – I. Fui!

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pedidos de Natal de Ano-Novo, parabenizações pro meu filhote, cartas pra minha esposa ou pros meus ministros, para o e-mail:
god@voxdei.gov

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

"Histórias Reais", de David Byrne (1988)

 

O Olho de Fora

Não é de hoje que, às vezes, a visão do estrangeiro me diz mais do que a do nativo. Ofuscado pela cotidianidade, o vivente local comumente não se apercebe de elementos básicos daquilo que ele mesmo é. “Cego de tanto vê-la”, como disse o poeta. O forasteiro, como uma folha em branco, está livre para ser escrito, rabiscado, rasurado, e sem que se trace por cima de escritas já grafadas. Tal como as tatuagens de Nagiko, de “O Livro de Cabeceira”, de Peter Greenaway (1996), seu corpo serve, agora, de página para algo novo que se inscreva, em letras de novíssimos significados. Essa visão de fora, no cinema, é, igualmente, a ferramenta para que algumas obras incomuns sejam criadas. É o caso de “Histórias Reais” (True Stories, EUA-1988), a bem sucedida experiência audiovisual do músico – e estrangeiro – David Byrne.

O escritor e viajante francês François Chateaubrinad, em seu “Voyage en Italie”, disse que “cada homem traz em si um mundo composto de tudo o que viu e amou, e onde ele entra em permanência, ao mesmo tempo em que percorre e parece habitar um mundo estrangeiro”.  Tão peregrino quanto, o escocês David Byrne escreveu e conduziu “Histórias Reais”, um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas, na verdade, carregado de perspicácia. E essa visão própria está diretamente ligada à relação emocional do autor com o seu lugar, daquilo “tudo o que viu e amou.”

Byrne: narrador e personagem quebrando a "4ª parede"

Na obra de Byrne, o cenário ideológico representa mais do que uma cidade, mas os Estados Unidos como um todo, país que lhe acolheu e com o qual é tão identificado desde os tempos da geração punk nova-iorquina dos anos 70, da qual ele foi um dos principais atores à frente da lendária banda Talking Heads.  A solução encontrada por ele para representar a amplitude de uma nação toda em um único espaço físico foi a de inventar uma cidade fictícia, a extravagante Virgil, onde a história transcorre. Nela, o diretor-viajante (Narrador, como é chamado), encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter esta localidade do Texas em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde encontra diversos personagens hilários, entre eles a Mulher Mais Preguiçosa do Mundo e o solteirão Louis Fyne (o sempre excelente John Goodman) à procura de casamento e da realização como artista.

Figurinos e cenários kitsch:
o americano médio no centro
No filme, há dois enfoques que se complementam. O primeiro deles é um simpático mundo de fantasia, o que ironiza o próprio título. Byrne lança um olhar generoso sobre atitudes e pensares do povo daquele país que, talvez, para outro mais enfezado, seriam abertamente criticáveis, como o excesso de imagens publicitárias, o deslumbramento com os avanços tecnológicos ou a intenção de serem, eles, os “americanos”, espelho para o planeta. Cenas lúdicas, como as atrações de palco, o ventríloquo e os grupos de dança reforçam essa percepção. O figurino, de maquiagens carregadas, cabelos volumosos de laquê e as roupas e os cenários kitsch, explorando formas e cores berrantes, mostram o quanto a arte cenográfica, assinada por Lucinda Cowell, foi trabalhada para realçar esses aspectos.

Por outro lado, o filme revela belezas escondidas. E o faz muito bem. Com um olho atilado e sensível, Byrne enxerga, por exemplo, as tradicionais casas ao estilo norte-americano (tão comumente filmadas em centenas de outros filmes) nos planos gerais em travelling, aqui enquadrados não só com a câmera, mas também com a alma. A cena final na estrada de terra que se perde ao infinito, igualmente, é de pura poesia, visual e conceitualmente.

A emocionante cena das casas sob o olhar do estrangeiro Byrne

A fotografia do competente Ed Lachman (que se tornaria diretor mais tarde, fazendo, entre outros títulos, o ótimo “Ken Park”, de 2002) se encaixa na medida certa para as intenções do filme, tanto nas composições propositadamente artificiais, nas cenas em que Byrne aparece dirigindo pela estrada ou no vídeo de “Love For Sale” (que funcionou perfeitamente como clipe na MTV), como nas imagens naturais, a ver os lindos enquadramentos em grande plano da paisagem horizontalizada do deserto norte-americano, lembrando, sem medo da comparação, “Paris, Texas” (Win Wenders, ALE-EUA, 1984). Lachman também acerta no tom da exacerbação cenográfica proposta por Byrne, quando capta, dentro daquele emaranhado de imagens publicitárias, diversos formatos e tipos de telas de vídeo, provocando uma interessante profusão de superenquadramentos. Ideia esta, assim como as tonalidades cromáticas fortes, visivelmente aprendida por Byrne com o cinema novo alemão (movimento do qual Wenders  originou-se) e do cineasta americano Jonatham Demme, diretor de vários clipes do Talking Heads.

Superrnquadramento de "Histórias...", à esq., e de "Paris, Texas" ao lado: Byrne se inspira em Wenders

Filme de músico, “Histórias Reais” tem ótimas músicas, é costurado por música, mas não é, a rigor, um musical. Conceitual, “Histórias Reais” é um dos produtos de um projeto multimídia – pouco comum à indústria de entretenimento naqueles anos 80 – lançado simultaneamente em outros dois formatos: livro, um book de trabalhos fotográficos com imagens captadas para o filme, e LP, um dos melhores do Talking Heads.  Aliás, na minha percepção de fã da banda, “True Stories”, o disco, de princípio, mesmo com os grandes hits “Love for Sale” e “Wild Wild Life”, não me impressionava tanto quanto outros do grupo. Porém, sua audição passou a me fazer mais sentido e, consequentemente, a gostá-lo mais, depois de assistir a sua “versão” audiovisual.

Pelo viés da música, Byrne – já premiado anteriormente como diretor de videoclipes de sua banda – mostra domínio ao explorar todos os níveis narrativos de um filme musical. Ele se utiliza da trilha diegética, como na divertida cena de “Wild Wild Life”, expediente bastante usado nos musicais em que a música e a dança provocam um distanciamento da realidade para criar um universo próprio dentro daquele instante em que ocorre a performance. Em outro momento, usa também a não-diegese, como na apresentação na igreja em que há uma banda inteira executando a peça como se fosse ao vivo, integrando totalmente a música ao ato narrativo. Byrne também se vale da mistura dos dois extremos, como na sequência das crianças percutindo latas e cantando na rua a caribenha “Hey Now”.

O clássico clipe de "Wild Wild Life": cinema, a TV e a vídeo-arte

“Histórias Reais”, contudo, intenta ir além do musical. E vai. A constatação é um tanto preconceituosa, confesso, mas resisto um pouco a este gênero. Claro que existem grandes realizações nesse estilo ao longo da história do cinema; estão aí para provar “O Mágico de Oz” (Victor Fleming, EUA-1939) e o balé “Sapatinhos Vermelhos” (Michael Powell e Emeric Pressburger, ING-1948). Mas em geral incomoda-me aquela artificialidade da transição diálogo-performance, nem sempre justificável, nem sempre coerente. E até me irrita, em alguns casos, a forçada conversão do texto em canto quando a mesma poderia funcionar muito bem em uma simples fala coloquial. Pergunto-me: para que todo aquele contorcionismo para dizer um corriqueiro “bom dia”? “Hair” (Milos Forman, EUA-1979), por exemplo, me enjoa. Os que mais me agradam nesta linha são, justamente, aqueles que, de alguma forma, burlam o padrão do musical de Aistaire ou Kelly. De atmosfera onírica, cada um a seu modo, “Dançando no Escuro” (Lars von Trier, DIN/FRA/EUA -2000) e "Brasil Ano 2000" (Walter Lima Jr., BRA-1969) são exemplos felizes de reapropriação do elemento música dentro do contexto fílmico.

Não tão radical, “Histórias Reais” se situa entre um estilo – o clássico hollywoodiano – e outro – o do cinema moderno –, visto que é bastante palatável como o cinema comercial, porém, agregando aspectos de outras linguagens, como a publicidade e a vídeo-arte. 

Fotografia valorizando o esverdeado
luminoso, típico dos filmes de Demme
e do cinema novo alemão
Entretanto, o que se destaca mesmo é o seu caráter documental. Byrne faz as vezes de um antropólogo, de um Chateaubriand, sendo objeto e observador ao mesmo tempo. Sua narração, com sentenças didáticas e engraçadas de tão óbvias, parece pretender relatar o que todo mundo sabe: que os Estados Unidos têm uma gente feliz; que são altamente tecnológicos; que o capitalismo triunfou; que vivemos imersos na era da informação e da imagem. Parece um roteiro extraído de um livro que se chamaria “United States for Dummies”. Porém, é na aparente obviedade que está a sacada: nunca ninguém (pelo menos, não um americano) se atreveu a (ou pensou em) mostrar os Estados Unidos tão cruamente, o que faz o espectador, pelo choque provocado, refletir dada a simplicidade (até simploriedade!) de como as coisas são mostradas. Leva-nos a questionar a veracidade desses mitos difundidos mundo afora, principalmente após a II Guerra. Não fosse o lado estrangeiro de Byrne, esse distanciamento crítico não seria possível. Às vezes, só a visão de fora consegue captar o que está dentro. Tanto que, no início do filme, há uma cena em que, antes de começar a história em si, ele, Narrador, entra na tela, reforçando essa ideia.

A era pós-11 de Setembro evidenciou ao mundo a crise moral e política a qual os Estados Unidos vinham alimentando há décadas, a começar pelo período de governo Reagan, da época em que "Histórias Reais" foi rodado. Mas e os dentes brancos da propaganda do creme dental? E as admiráveis engenhocas da tecnologia moderna? Ainda nos dizem alguma coisa? O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi no alvo quando escreveu: “esta grande civilização ocidental, criadora das maravilhas de que desfrutamos, certamente não conseguiu produzi-las sem contrapartida”. A ilusão que o filme de Byrne quase carinhosamente identificava sem apontar o dedo, a geração de cineastas como Michael Moore e Charles Ferguson cresceu para poder, hoje, com propriedade e direito, arregaçar as próprias feridas. De fato, parte da sociedade descobriu, um tanto tarde, que o Super-Homem jamais existiu a não ser nos quadrinhos, e que todos são de carne e osso, eles e os outros. “People Like Us”, sintetiza uma das músicas da trilha. Como diz naquele texto de Caetano Veloso: “Americanos não são americanos. São os velhos homens humanos chegando, passando, atravessando. São tipicamente americanos.”

"People Like Us", da Talking Heads: uma tradução do filme


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Chico Science & Nação Zumbi - "Afrociberdelia" (1996)




"Afrociberdelia de África,
o ponto de fusão do maracatu,
da cibernética e da psicodelia.
Afrociberdelia é um comportamento,
é um estado de espírito, é uma ficção,
é a continuação de 'Da Lama Ao Casos'.
Afrociberdelia é tudo isso. Que mais?
É o nosso novo disco."
Chico Science





"Da Lama ao Caos"  de 1994 já havia sido uma sensação, algo impressionante, incrível, notável, "Afrociberdelia" (1996), seu sucessor era a lapidação perfeita da ideia do anterior.
Então com mais tranquilidade,maturidade, liberdade e autonomia a Nação Zumbi liderada por sua cabeça pensante Chico Science ia adiante nos conceitos e princípios de sua música. Balanço, funk, peso, regionalismo, tecnologia eram levados um passo adiante no novo álbum. A banda desta vez mais livre e com crédito da gravadora abusava dos samples e dos recursos de estúdio mas de uma maneira muito sóbria e inteligente, sem fazer com que seu som se tornasse meramente um monte de colagens sem personalidade. "Afrociberdelia" como o nome, em cada um de seus radicais, tenta sugerir une a africanidade musical, a cibernética, o espaço, o futuro e as sensações sonoras possíveis de mexer com a mente.
E nesse emaranhado de música, folclore, tradição e tecnologia, o computador da Nação Zumbi dá o 'Enter' e "Afrociberdelia" se inicializa com Mateus, personagem do maracatu que apresenta o disco: Uma breve vinheta de introdução que parece já vir disposta a derrubar tudo com uma guitarra ruidosa e pesada, disparada à ordem do verso "Eu vim com a Nação Zumbi/ ao seu ouvido falar" chamada "Mateus Enter" começa a dar o recado encaminhar um grande disco.
Quase sem pausa, praticamente emendada, "Cidadão do Mundo" quebra a violência sonora com um funk cadenciado, de ritmo gostoso extremamente bem produzido, cheio de variações rítmicas e alternativas sonoras.
A ótima "Etnia", numa das principais características da banda mescla peso com a brasilidade de forma brilhante, entremeada por samples espertíssimos e bem sacados.
"Macô", com participação de Gilberto Gil, uma das tradicionais crônicas urbanas da turma de Chico Science, foi na verdade, minha primeira mostra do então futuro trabalho numa apresentação no Vídeo Music Awards da MTV Brasil com a presença de Gil no palco, á deixando-me ótima impressão e expectativa desde então. Uma daquelas tradicionais crônicas urbanas e de costumes das áreas pobres de Recife que Chico Science e sua turma tornaram tão características em pouco tempo, embalada por um ritmo extremamente convidativo e com um toque valioso da musicalidade de Gilberto Gil. Uma das melhores do álbum.
Por mais qualidades que tenha a original de Jorge Mautner, "Maracatu Atômico" ganhava sua versão definitiva nas mãos da Nação Zumbi, nume releitura inteligentíssima de alta sensibilidade musical, que transformava, por exemplo, o violino de Mautner num refrão pop altamente sonoro e contagiante, isso sem falar que o título parece ter sido feito sob encomenda para uma grupo musical que funde ritmos regionais com tecnologia. A gravadora enfiou no disco e goela abaixo da banda três remixes de gosto duvidoso e que, mais do que isso, comprometiam um pouco a ideia de álbum, o formato e o conceito, mas a gravação original, a pretendida pela banda, a do disco mesmo é um primor e uma das melhores coisas que fizeram, ouso dizer até, respeitosamente, que, de tão perfeita "Maracatu Atômico" passou a ser mais de Chico Science do que de Jorge Mautner.
Outra das melhores do disco e da banda e que igualmente obteve boa resposta comercial e de execução pública é a embalada "Manguetown", composição brilhante de cabo a rabo, desde o conceito, a letra sobre os catadores de caranguejo nos mangues imundos, a base de baixo, a percussão mais requintada, a guitarra discreta mas eficiente, os samples, o refrão, tudo! Sonzaço!
A segue "Um Satélite na Cabeça" com sua guitarra repetida e agressiva; "Baião Ambiental', mesmo guardando características do ritmo que lhe dá nome, é mais um ponto de umbanda pontuado por um baixo distorcido. Genial!
Provavelmente a mais violenta do disco, em todos os sentidos, "Sangue de Bairro" é um metal impiedoso em que visceralmente Chico enumera os integrantes do grupo de Lampião e descreve de forma cinematográfica sua decapitação ("Quando degolaram minha cabeça passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo")
Depois da porradaria, a vinheta "Interlude Zumbi" com sua profusão de berimbaus, tocados e sampleados encaminha um momento mais lento do disco com a agradável "Amor de Muito" e a boa "Crianças de Domingo" do ex-Fellini, Cadão Volapato, que faz menção ao belíssimo filme do mesmo nome, dirigido pelo filho de Ingmar Bergman;
"Samidarish" que seria o final do álbum segundo a banda, traz um instrumental psicodélico de tons orientais com uma guitarra viajante e no final um curto segmento onde Chico declama versos sobre uma batida tímida.
Tirando as versões de "Maracatu Atômico" que vinham depois, ali acabava um dos álbuns mais importantes da música brasileira. Uma das últimas vezes que se fez algo realmente relevante, criativo e original no Brasil. Nós brasileiros temos na maioria das vezes a tendência de subestimar o que se produz aqui e nessa síndrome de vira-lata não conseguimos enxergar muitas vezes a extensão de uma obra como esta. O que Chico Science e a Nação Zumbi faziam naquele momento era talvez o que de mais criativo e inovador houvesse na música mundial mas o ranço tupiniquim não permite que se veja e se reconheça algo assim.
Infelizmente a trajetória da banda com Chico Science que era inegavelmente o cérebro eletrônico do projeto foi abreviada com um acidente automobilístico e, com ele, a banda produziu apenas dois álbuns. Mesmo com os demais integrantes tendo continuado e tendo feito bons trabalhos depois, fica evidente que a genialidade, a visão, a ousadia de Chico fazem falta e mesmo o melhor da Nação Zumbi sem ele, não chega nem perto do que eles fizeram e de onde poderiam chegar. A vantagem, se é que se pode ver pelo lado bom, é que em pouco tempo de vida Chico Science nos proporcionou nada mais nada menos do que duas das maiores obras do rock nacional... e internacional, por que não?

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FAIXAS:
1. Mateus Enter (Chico Science & Nação Zumbi)
2. O Cidadão do Mundo (Chico Science/ Nação Zumbi/ Eduardo BID)
3. Etnia (Chico Science/ Lucio Maia)
4. Quilombo Groove (instrumental)
5. Macô (Chico Science/ Jorge du Peixe/ Eduardo BID)
6. Um Passeio no Mundo Livre (Chico Science & Nação Zumbi)
7. Samba do lado (Chico Science & Nação Zumbi)
8. Maracatu Atômico (Jorge Mautner / Nelson Jacobina)
9. O Encontro de Issac Assimov com Santos Dumond no céu (Chico Science / Jorge Du Peixe/ H.D. Mabuse)
10. Corpo de Lama (Chico Science / Jorge Du Peixe/ Lucio Maia / Dengue)
11. Sobremesa (Chico Science & Nação Zumbi / Renato L.)
12. Manguetown (Chico Science / Lucio Maia / Dengue)
13. Um satélite na cabeça (Chico Science & Nação Zumbi)
14. Baião Ambiental (instrumental)
15. Sangue de Bairro (Chico Science & Nação Zumbi)
16. Enquanto o Mundo explode (Chico Science & Nação Zumbi)
17. Interlude Zumbi (Chico Science / Gilmar Bolla 8 / Gira / Toca Ogan)
18. Criança de Domingo (Cadão Volpato / Ricardo Salvagni)
19. Amor de Muito (Chico Science & Nação Zumbi)
20. Samidarish (instrumental)
21. Maracatu Atômico (Atomic Version)
22. Maracatu Atômico(Ragga Mix Version)
23. Maracatu Atômico (Trip Hop)


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Ouça:
Chico Science & Nação Zumbi Afrociberdelia



Cly Reis