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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

McCoy Tyner - "Extensions" (1972)

 

“Quem trouxer uma boa ação terá uma dezena como esta”. 
Corão, 6:161

A ideia que move o homem é a da perpetuação. Da espécie, da genealogia, das relações. E o homem desde as cavernas escolheu a forma mais elevada de expressar essa perpetuação: a arte. Embora a antiguidade da relação do ser humano com a arte, pode-se dizer que 60 anos é tempo suficiente para se verificar se um trabalho artístico conseguiu dar continuidade a algo que o motivou. “Extensions”, do pianista de jazz norte-americano McCoy Tyner, que não leva este nome à toa, é uma realização desta magnitude. 

Poucos anos após assimilar a morte do mestre John Coltrane, com quem havia se tornado um músico profissional, Tyner realiza uma viagem para dentro de si mesmo. Já havia intentado isso em “The Real McCoy”, de 1967, mas seguiu em busca do seu verdadeiro “eu”, explorando, descobrindo, expandindo-se. Por isso, a noção de extensibilidade proposta por Tyner vai além de um mero produto sonoro-musical, pois atinge num só tempo dimensões altamente profundas, como a da raça, da espiritualidade e da ancestralidade. Em “Extensions”, Tyner vai à gênese.

Coltrane, aliás, abridor de portas do spiritual jazz e da vanguarda jazzística, é fundamental para essa procura existencial e espiritual. Afora a própria influência do saxofonista mais cultuado do jazz para Tyner e toda uma geração, o pianista reúne figuras não apenas devotas ao autor de “Giant Steps” como ainda vai além. Estão com ele Elvin Jones, companheiro do “quarteto clássico” que acompanhou por cinco anos Trane em suas principais obras; o versátil Ron Carter, cujo baixo é capaz de apoderar-se do mais profundo intimismo; Wayne Shorter, um dos mais ilustres herdeiros do saxofone mágico da linhagem de Coltrane; Gary Bartz, cujo sax alto conversa igualmente com o extracorpóreo; e para fechar, ninguém menos que a esposa dele: a pianista e harpista Alice Coltrane, grandiosa compositora e arranjadora, que dividiu a vida, os estúdios e os palcos com o marido e que substituiu, justamente, o próprio Tyner, em 1966. Tê-la neste disco significava para Tyner não apenas um resgate para com ela, mãe de Ravi Coltrane, fruto do casal e músico talentoso como os pais, como uma reconexão com quem, mesmo não mais vivo, fora-lhe tão importante.

Independente do que tocassem, só o fato de se reunir essa estelar turma já seria suficiente. Mas Tyner estava imbuído de pretensões mais elevadas neste projeto. Queria puxar o fio do novelo que lhe trouxera até ali como artista, como ser social e como pertencente de uma raça. Queria perscrutar a “extensão” de sua existência. A fonte para isso? A África. Muçulmano devoto, Tyner buscava invariavelmente nas raízes antepassadas a inspiração para sua música. No entanto, naquele momento de vida, calhava-lhe reunir os ecos do spiritual jazz – proclamado por Coltrane e muito bem progredido por outros músicos, como Albert Ayler, Pharoah Sanders e a própria Alice –, do bop e do modal com o legado dos ritmos africanos. A riqueza continental da África lhe oferecia a dimensão espacial perfeita para o autorreconhecimento, mas também para o do jazz e de toda a música moderna. A capa não deixa dúvidas ao mostrar a realeza negra com suas vestes islâmicas típicas.

O disco começa mandando uma mensagem vinda do rio que banha toda a África Continente e as áfricas imaginárias pelo mundo: o Nilo. Os mais de 12 minutos da faixa de abertura dimensionam a exuberância de um tema em homenagem ao maior – e mais histórico – rio do mundo. ”Message From The Nile”, com um início transbordante como uma nascente, abre ao som cintilante da harpa de Alice. Denso, o tema diz a que veio: variações de ritmo e textura da percussão, um piano lírico e consciente de seu papel central; e a dupla de sax, formando um só corpo – melódico e astral. Essencial para o desenvolvimento de civilizações milenares, como a egípcia, a grega e a hebraica, o Nilo recebe de volta Tyner em suas águas sagradas para um novo batismo. Essa é a mensagem. Tyner, Bartz e Shorter, padrinhos, parecem colocar a música a alguns metros do chão com seus improvisos, enquanto a harpa de Alice, última a solar, vem para, definitivamente, selar a sensação de elevação.  

Tyner com o mestre e amigo John Coltrane à época do
"quarteto clássico": inspiração espiritual

Estava muito clara a visão do band leader. Em uma época em que vários músicos do jazz, inclusive muitos contemporâneos de Tyner, se rendiam ao fascínio pop do jazz fusion, absorvendo com facilidade elementos do rock e da soul music, o pianista, convicto com seu Corão debaixo do braço, mantinha-se ainda mais fiel às raízes. Embora se abrisse para o matiz africano como os ultramodernos, fazia-o muito mais como contrição do que experimento ou frivolidade. “The Wanderer”, que vem na sequência, forjada no hard-bop ao qual ele e toda a banda se formaram, capta a ideia da “extensão” ao reafirmar aquilo que a música da África levou para o outro lado do Atlântico, como se a mensagem enviada do Nilo fosse justamente essa: o jazz puro e essencial. Como em todo o álbum, o autor prova que é a verdadeira ponte entre a tradição e o moderno.

Por falar em essência, o que é mais essencial para a música afro-americana do que o blues? “Survival Blues”, novamente faz uma ode aos ancestrais, mas localizando-os na América. O tema inicia com farfalhar de notas miúdas das mãos esquerda e direita de Tyner para, aos poucos e dissonantemente, formar um esboço melódico. É, sim, um blues, mas como o próprio título sugere, que necessita brigar por sua “sobrevivência”. As notas e acordes, como seres tirados de suas terras para servir de escravo por séculos num território que não era seu, travam uma batalha com o espaço sonoro para existirem, para ocuparem aquilo que lhes pertence. Jones, especialmente inspirado, está em casa: livre para exercitar sua verve polirrítmica. O blues, assim, como lamento e redenção, como música de trabalho dos trabalhadores escravizados, cumpre sua função sincrética, quase religiosa. Torna-se mais “espiritual” do que os mestres precursores jamais supuseram.

Se foi breve o passeio pela África, com certeza foi profundo. Por isso, não poderia deixar de se encerrar pedindo a bênção – seja de Alá ou dos orixás, que saíram da mesma África para jogar seus encantos na ponta sul da América. Mais spiritual jazz impossível, “His Blessings”  pega emprestada a atmosfera de Coltrane, principalmente, em seu maior canto divino, “A Love Supreme”, de 1964, em que Tyner foi um importante colaborador e Alice uma fundamental encorajadora. Com esparsas percussões (pratos ou rolos de tímpano), o tema tem na força dos sopros de Shorter e Bartz sua alma, suas vozes. Carter, outro fundamental para a construção harmônica, lança o arco para fazer de seu baixo uma flecha, como o caçador Oxóssi. A arpa de Alice desenha todo o espectro sonoro, atribuindo ares do Oriente egípcio, caldeu e fenício enraizado na civilização moderna. Já Tyner, dono e autor da canção, impregna-a de motivos oníricos e devotos, louvores urgentes de serem ditos.

Se Tyner já vinha de um tempo cogitando autodescobrir-se, em “Extensions” ele realiza justo o que o termo propõe: extensões deste significado. Afinal, não é um descobrir apenas de si, mas de seu povo, de sua raça, de sua gente. A civilização negra, seja da África, das Américas ou de onde quer que seja, está representada em seus acordes. Todos eles guardam no coração, inequivocamente, os sons que a Mãe-África lhes legou. E a arte, aqui respaldada pela linguagem da música, é capaz de manter vivas suas origens, de aproximá-la, de colá-la novamente à porção meridional ocidental, hoje chamada América e dividida por um imenso oceano, mas que um dia formou uma só terra.

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Gravado pelo selo Blue Note,, em fevereiro de 1970, no Van Gelder Studio, em Englewood Cliffs, New Jersey, “Extensions” foi lançado somente dois anos depois, em 1972, pela United Artists Records.

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FAIXAS:
1. “Message From The Nile” - 12:10
2. “The Wanderer” - 7:35
3. “Survival Blues” - 13:02
4. “His Blessings” - 6:41
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner.

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 26 de março de 2020

McCoy Tyner - "The Real McCoy" (1967)



"Sabe, acabei de ouvir 'The Real McCoy', talvez pela primeira vez desde que o fiz. Eu ainda tinha o álbum original embrulhado em celofane. Mas alguém estava me dizendo que esse era um dos melhores discos, então tirei o celofane e o ouvi. Fiquei surpreso. Uau! Nós realmente chegamos lá". 
Ron Carter, em entrevista de 2007

É interessante perceber como McCoy Tyner, morto recentemente, é recorrentemente mais lembrado por sua participação no lendário “quarteto mágico” de John Coltrane do que pela própria carreira solo. Motivo há, uma vez que a fase em que tocou por seis anos juntamente com Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo) para o autor de “A Love Supreme” é tão marcante não apenas para o jazz, mas para a música do século XX, que se faz inevitável a associação. Porém, Tyner é, seguramente, mais do que isso. Mesmo que para a maioria dos músicos seja mais do que suficiente ter feito parte de gravações épicas como as dos discos “Giant Steps”, “Crescent” e o próprio “A Love...”, Tyner, obteve, para além disso, o feito de ser considerado em vida o mais influente pianista do jazz ao lado de Bill Evans. E com merecimento próprio.

Se este reconhecimento veio por conta também da contribuição ao grupo de Coltrane, com quem teve sua primeira experiência importante como músico na primeira metade dos anos 60, muito mais se deve àquilo que ele inovou e legou a todos os pianistas que lhe sucederam. Seu estilo, que une técnica e classicismo à intuição criativa do blues, o fez dar um passo à frente de sua geração. Se Evans foi centro harmônico para a invenção do jazz modal, Tyner concebeu uma nova forma de estruturá-lo. Nas ambiências dada à escala modal, nas quartas justas ou aumentadas na mão esquerda, típicas suas, ou o uso do cromatismo nos improvisos e os famosos voicings, em que brincava com os espaçamentos e duplicações de notas. E o fazia lindamente através de seu dedilhado sensível e preciso. Coração e mente em plena integração com a música.

Além das participações em bandas outros ilustres jazzistas, como Wayne Shorter, Grant Green, Lee Morgan e Bobby Hutcherson, Tyner construiu, ao longo de quase 60 anos, uma discografia invejável, pautada, desde o início, pela maturidade musical. “Inception”, de 1962, seu primeiro solo, é uma prova clara disso. Nos anos seguintes, grava outros álbuns mas mantendo-se, em paralelo, no quarteto de Trane, com quem não apenas gravava em estúdio como excursionava para shows. Porém, foi no mesmo ano em que o amigo saxofonista morreria, em julho, que o cúmplice Tyner deu a si, dois meses antes, como que pressentindo a impermanência da vida, a abertura para algo realmente próprio e descolado da figura mítica de Coltrane. Era a sua mais bem acabada obra até então: o corretamente intitulado “The Real McCoy”. Experiente e sob uma nova perspectiva como band leader, ele junta-se aos craques Ron Carter (baixo), Lou Donaldson (sax alto) e novamente a Jones para dizer ao mundo quem, de fato, era aquele pianista por trás das maravilhas coltraneanas.

O autorreconhecimento de Tyner começa com a liberdade bop de "Passion Dance", tomada, como o nome diz, de amores intensos e ritmo. Tyner convoca o time com astúcia e intensidade, mantendo a vibração lá no alto. Mas nessa é o parceiro Jones, insano na bateria, quem mais se destaca, tanto que é ele quem revela o solo mais impressionante da música.

Seguindo a linha de buscar um olhar interior, nada mais adequado que recorrer à “contemplação”. Mas “Contemplation”, faixa seguinte, é mais do que só a sugestão do título: são 9 minutos de conexão com o reconhecimento da beleza que se tem dentro de si. Que elegância assombrosa! As baquetas mantendo o tempo no prato; o piano, em tremolos e encadeamentos, ambientando sobre uma escala modal; o sax desfilando vivacidade; e o baixo desenhando blues algo dissonante, sem contar com o vaporoso improviso mais para o final da faixa. E o solo do piano, então!? É como se dois pianistas, um severo e outro sonhador, tocassem juntos e ao mesmo tempo. Mas ambos são McCoy Tyner. Um blues enebriado e, ao mesmo tempo, enigmático e sensual, que explica porque o pianista foi o preferido do gênio Coltrane.

Já "Four by Five" começa com Handerson desafiando as notas em busca do improviso perfeito. Se ele não consegue, talvez chegue perto. Mas Tyner e Jones não ficam para trás no virtuosismo e explosão amparados pelo entendimento quase transversal de Carter. Na sequência, o contrabaixo começa lançando um efeito ondulante e sinestésico, enquanto o piano de Tyner polvilha notas soltas e oníricas, que anunciam a introspectiva “Search For Peace”, mais uma busca ao “eu” interior de seu autor. O sax, incrivelmente belo em um tom bastante alto, soa como um trompete, lembrando a economia cool de Miles Davis. Mas Tyner, claro, é quem chama para si o protagonismo, desafiando os limites entre o neo-romantismo e o lirismo melancólico do blues. Carter, na sua, dá um show de andamento, ao seu estilo trastejante.

“Blues on the Corner”, bluesy, levemente dissonante, é praticamente uma síntese do Tyner, o artista e a pessoa,  uma vez que remonta à tradição da música negra norte-americana adicionando-lhe uma visão de modernidade.

Múltiplo, mas a seu modo, Tyner ainda experimentaria o post-bop, o afro-jazz, o jazz fusion, a world  e até a soul. No entanto, sempre enraizado em sua natureza. Ele era o toque inconfundível que seus dedos transmitia, como a união do divino e do mundano, do céu e do inferno, da vida e da morte. Sempre e a todo o momento aquilo que realmente lhe dá nome: piano.

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FAIXAS:
1. "Passion Dance" – 8:47
2. "Contemplation" – 9:12
3. "Four by Five" – 6:37
4. "Search for Peace" – 6:32
5. "Blues on the Corner" – 5:58
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Wayne Shorter - "JuJu" (1965)



“Quando escrevi a música 'JuJu', 
estava pensando na África. 
Sua estrutura é um pouco reminiscente da simplicidade de um canto africano”. 
Wayne Shorter


A cultuada banda formada pelo pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e contrabaixista Jimmy Garrison ficou conhecida como o trio que acompanhou John Coltrane no seu período áureo por quase cinco anos. Mas, na prática, embora o êxito desse encontro e o longo período de parceria com o saxofonista autor de “A Love Supreme”, as coisas não eram assim tão exclusivas. Se e a afinidade musical fazia com que ganhassem essa marca junto a Coltrane, a mesma qualidade lhes garantia sucesso em outros projetos. Afinal, o período, primeira metade dos anos 60, era o de maior fertilidade do jazz pós-bop e, além do mais, os músicos da época conviviam e se trocavam sadiamente. Tanto que, praticamente a mesma banda, com ocasionais substituições, é responsável por discos como “Matador”, do guitarrista Grant Green (1964), “McCoy Tyner Plays Ellington”, de Tyner (1963), e outro magnífico álbum da época: “JuJu”, em que o grupo apoia outro mestre do sax alto: Wayne Shorter.

Com o mesmo vigor e brilhantismo que os faz ostentar a aura de melhor quarteto de todos os tempos do jazz, Tyner e Jones, desta feita acompanhados por outra fera do baixo, Reggie Workman, montam o palco ideal para a exibição de Shorter em “JuJu”. Numa estrutura parecida com seu disco imediatamente anterior, a obra-prima “Night Dreamer” (1964), que contava com esse mesmo time de músicos, “JuJu” inicia, assim como na abertura do outro disco, com uma intensa faixa-título. Trata-se de um bop modal em que ninguém fica para trás, nem band leader nem seus acompanhantes. O trio da “cozinha” não poupa, esbanjando inventividade nas variações sobre a escala. Tyner solta ataques abertos nas teclas brancas; Jones, polirrítmico, engendra um compasso 3/6 cheio de variantes; Workman, por sua vez, desliza os dedos em impulsos constantes sobre as cordas. Mas tudo, claro, a serviço do sopro de Shorter. Majestoso. Altivo. Carregado. Inspirado nos ritos religiosos da África ancestral (o ritual “voodoo” é a versão para “juju” no Haiti), é ele quem – com exceção do solo de Jones no meio do número – preenche do início ao fim a faixa unindo lirismo e ferocidade, disciplina e instinto.

O toque fugidio e aparentemente impreciso da abertura de “Deluge”, o tema seguinte, revela, assim que a melodia se define, que aqueles acordes eram, sim, sua assinatura. Jazz elegante e bluesy, tem um dos mais bonitos riffs criados por Shorter, exímio melodista autor de boa parte de seu próprio repertório e cujas músicas foram gravadas por vários outros artistas, de Miles Davis a Chick Corea. Assim como "Oriental Folk Song", também uma segunda faixa, no caso, no referencial “Night...”, “Deluge” guarda certo exotismo e mistério. Por contar apenas com o sax de Shorter como metal, assim como ocorre em todo o disco, a canção traz a marca forte do seu autor, que tem liberdade para desenvolver os improvisos sem “dividir” o tempo/espaço com outro solista (como em “Night...”, onde o trompete de Lee Morgan faz o segundo sopro). É Shorter brilhando livre com o rico amparo da estelar banda.

Caso da romântica “House of Jade", daquelas baladas dilacerantes de Shorter tal qual “Virgo”, igualmente terceiro número do disco anterior e cujo sentimentalismo é tão arrebatador quanto. Tyner está especialmente clássico, mostrando o quanto ele e outro genial pianista contemporâneo seu, Herbie Hancock, dialogavam. Nota-se Gershwin e Rachmaninoff no seu dedilhar onírico e inteligente, sabendo preencher o espectro sonoro com delicada precisão. Jones, capaz de oscilar da intempestividade à doçura, arrasta e bate a escovinha de leve, quando não solta a baqueta com mais intensidade nos pratos e na caixa. Workman, por sua vez, impecável ao extrair um blues triste do baixo, quase choroso. E Shorter, então?! Quanta beleza! Sopradas lânguidas, macias mas bem pronunciadas, variando das mais inventivas formas o tema central. A 3min30’, uma ligeira guinada para um blues mais embalado, quando se acelera levemente o compasso. Não o suficiente, contudo, para tirar-lhe o caráter lírico. Tyner, a pouco menos de 5min, ensaia um breve solo para, então, Shorter retornar e fechar com a mesma carga sentimental que rege “House of Jade".

Caso também de "Mahjong". Nesta, é a bateria que dá o tom, abrindo a faixa com variações de tan-tan e prato num ritmo sincopado, exótico. Tyner entra com um 3/2 modal como é sua especialidade. Aí, novamente, aparece a lindeza do riff de Shorter, em que as sonoridades orientais, tanto da Índia quanto do Extremo Oriente, se revelam mais presentes, igual o fez em "Charcoal Blues" de “Night...”. Após a abertura, Tyner, num dos momentos mais célebres do disco, engendra um solo de mão direita intrincado, enquanto sustenta com a esquerda a base. Parecem dois pianistas tocando – mas não é. Para responder a tal maravilha no mesmo nível, Shorter volta à carga para hipnotizar o ouvinte. Encadeamentos sobre uma escala de apenas 5 notas se dão em profusão, os quais vão se intensificando em figuras ora dissonantes, ora espirais. Totalmente a ver com a inspiração do tema, uma vez que o “mahjong”, um jogo de mesa de origem chinesa, tem peças que envolvem, justamente, imagens circulares.

A embalada “Yes or Not” já diz a que veio quando o sax Shorter larga soltando o riff. Depois, são quase 6min só de improviso, em que ele explora com agilidade escalas de tons inteiros formando relações diversas. No embalo, Tyner improvisa com igual desenvoltura valendo-se das mesmas premissas construtivas.

A talvez menos “espelhada” em relação a “Night...” seja, justamente, a música que encerra o álbum. Enquanto "Armageddon" finaliza aquele disco carregando na atmosfera avant-garde com dissonâncias e arroubos, a charmosa "Twelve More Bars to Go" é, como o próprio título diz, um passeio fagueiro pelas ruas de Nova York atrás de (mais 12) bares para se tomar um bourbon e ouvir um jazz. Bonito detalhe são os lances em que Shorter, na empolgação do improviso, acaba afastando o bocal do sax do microfone, gerando redução no volume da captação. O engenheiro de som, Rudy Van Gelder, com a habilidade e sensibilidade incomum que tinha, sabiamente não “corrige” a diferença nem durante a execução e nem depois. O que para muitos seria uma falha, nas mãos de Van Gelder vira um acerto divino.

Até mesmo a sonoridade límpida e equalizada dada por Van Gelder e a mais uma vez impecável arte de Reid Miles se repetem de “Night...” para “JuJu”, mostrando o quanto Shorter acertara neste conceito de obra, sua primeira pelo renomado selo Blue Note, o qual carrega toda a bagagem do hard-bop e que serviria de modelo para outros trabalhos igualmente inesquecíveis do artista logo em seguida, como “Speak no Evil”, “Etcetera” (ambos de 1965) e “Schizophrenia” (1967). No entanto, “JuJu”, tão mítico quanto estes, é, acima de tudo, um álbum único, haja vista todas essas suas qualidades, que o fazem chegar, bem dizer, à perfeição.

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FAIXAS:
1. "JuJu" - 8:28
2. "Deluge" - 6:49
3. "House Of Jade" - 6:49
4. "Mahjong" - 7:40
5. "Yes Or No" - 6:35
6. "Twelve More Bars To Go" - 5:26
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 9 de março de 2020

A eternidade lhe pertence


"Junto com Bill Evans, Tyner foi o pianista mais influente do jazz nos últimos 50 anos, com suas voicings de acordes sendo adotadas e utilizadas por praticamente todos os pianistas mais jovens."
Scott Yanow, crítico e historiador de jazz norte-americano

Certa vez, Leocádia Costa e eu, conversando com um amante de música como nós na saudosa livraria Arlequim, no Centro do Rio, falei de minha preferência por McCoy Tyner entre os pianistas do jazz. Idolatro Hancock e Corea. Louvo Thelonious, Donato, Red, Bruback, Silver, Evans, Hermeto. Admiro Toshiko, Jarrett, Tristano, Sonny. São muitos os mestres do instrumento, mas Tyner, morto no último dia 6 de março, me é tudo. Todos eles. Coração e técnica, simplicidade e complexidade, intensidade e leveza.

Afora isso, tem o fator subjetivo. Gosto de seu toque, de suas ambiências, de seus improvisos com mais passionalidade do que os de outros. Simplesmente. As quartas justas ou aumentadas na mão esquerda, as quintas, o cromatismo, os voicings, o pentatonismo. É como se seus dedos se comunicassem diretamente com meus ouvidos. E assim é.

E ainda, como se não bastasse, ele é o piano de, entre inúmeras gravações e discos históricos do jazz moderno, do quarteto mágico de John Coltrane ao lado de Elvin e Garrison/Davis. Até este último dia 6 de março, o único sobrevivente daquele time eternizado. Agora, a eternidade é que lhes pertence.

Talvez devesse ser regra, assim como em alguns esportes, quando um grande ídolo morre e se aposenta a sua camiseta. Para um pianista que se vai deveriam, em sua homenagem, arrancar uma tecla do piano que o represente e nunca mais usá-la. A tecla de Tyner podia ser um Fá ou um Dó como os que ele usava quando tocava intervalos de quinta na mão esquerda, uma de suas assinaturas. Ficaria decretado, por consentimento e aclamação: ninguém mais estaria autorizado a tocá-la, a tecla eternizada por e para McCoy Tyner.

MCCOY TYNER
(1938-2020)



Daniel Rodrigues

domingo, 27 de outubro de 2013

Grant Green - "Matador" (1964)


Acima, a capa original de 1964,
seguida da capa da reedição em CD
“Grant Green merece uma medalha por gravar o hit
‘My Favourite Things’ de [John Col]Trane
com o mesmo conjunto.
Mas embora o grupo se aproxime da canção
com o mesmo estilo 6/8
e da forma como Coltrane a sentia,
não a reduzem aos essenciais acordes básicos”.
Michael Cuscuna


O jornalista e crítico musical Márcio Pinheiro uma vez afirmou, com toda propriedade, que tudo o que os grandes nomes da MPB (Maria Bethânia, Caetano VelosoGilberto GilChico BuarqueGal Costa, João Donato, entre outros) produziram nos anos 70 é de ótima qualidade. É só pegar qualquer disco daquela época e ouvir que não tem erro. Infalível. Tudo favorecia para que tanta coisa boa acontecesse ao mesmo tempo e com um nível altíssimo de qualidade, o que ocorre de tempos em tempos conforme o cenário cultural, político, histórico e social de determinado local. Isso se aplica à produção de jazz norte-americana dos anos 40 a 60. Na época, gênios estavam a pleno (Miles Davis, Dizzie Gillespie, Charles Mingus, Duke Ellington), outros se estabeleciam rumo ao Olimpo (John Coltrane, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ornette Coleman) e, além destes, igualmente talentosos e sintonizados com aquela onda (Kenny Dorham, Joe Henderson, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Sonny Rollins e mais centenas e centenas), não ficavam para trás em maestria e qualidade. Tudo conspirava a favor: retomada da sociedade civil no pós-Guerra; surgimento de uma nova classe afrodescendente e latina em fase de transformação sociopolítica; produções de várias lugares que se complementavam e se somavam; centros urbanos (Chicago, Nova York, Filadélfia, Los Angeles) suportando técnica e economicamente este contingente; encorpo da indústria cultural; e, o mais importante: o resultado de toda uma tradição musical, artística e antropológica trazida pelos negros da África e ressignificada na América que, agora, confluía de diversas formas e em quantidades amazônicas.

As gravadoras de jazz mantinham em seus portfólios artistas de primeira linha, mas, em especial, o Blue Note, principalmente no final dos 50 aos 60, era, esta sim, infalível. Tudo muito bom, sem exceção. A este selo pertenciam vários dos melhores jazzistas da época, e um deles era o guitarrista Grant Green. Com forte base no rhythm'n blues e com extremo domínio do bebop, além de ser também um espetacular solista em baladas, ele se junta, por força do destino, a McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, bateria, e Bob Cranshaw, baixo – ou seja, trocando-se Chanshaw por Jimmy Garrison, dá a “cozinha” que gravou com Coltrane o antológico “A Love Supreme”, a segunda melhor banda de jazz de todos os tempos depois do quinteto de Miles dos anos 50, que tinha o próprio Coltrane na formação.  Com eles, lança, em 1964, um disco cuja alcunha fala por si: “Matador”. Em apenas duas sessões (uma em maio e outra e junho, apenas cinco meses antes da gravação de “A Love Supreme”), conta, além da maestria desses músicos, com a mão apurada de Rudy Van Gelder na técnica, o alemão responsável pela operação de estúdio de 90% das históricas gravações de jazz da época, que afina a mesa de som de “Matador”. Igualmente, na arte da capa – mais uma particularidade dos selos de jazz, inclusive o Blue Note, que a valorizavam tanto quanto o conteúdo –, quem empresta seus traços em um desenho a nanquim de um esboço de Green empunhando a guitarra é ninguém menos que Andy Warhol.

Se fosse só isso, já seria legal. Mas aí vem o que interessa: música. Na faixa-título, Green abre o disco fazendo soar seu tom característico de dedilhado muito limpo ao ouvido, em que desliga os graves e agudos do amplificador e dá ganho nos alto-falantes. Ele exercita seu estilo técnico e habilidoso do R&B, porém colocando sempre a expressividade acima da perícia. Isso fica claro na linda escalada progressiva dedilhada com a suavidade do blues e em todo o enredo, desenvolvido com segurança e alma pelo quarteto. Aqui já se nota a predileção pelas quartas de Tyner, que dá saltos de três intervalos maiores acima da tônica da melodia, o que surpreende e mexe com o ouvinte. Também, tem a marcação balanceada e cheia de groove de Jones. Todos cobertos pelo baixo competente de Cranshaw. Soul-jazz da melhor qualidade.

Aí, preparem-se, leitores-ouvintes, pois vem uma das peças mais lindas que o abençoado jazz já cunhou. E a ligação de Green com Coltrane aqui se faz inequívoca. Não é apenas pela parceria com seus músicos de fé nem só pela contemporaneidade de ambos (naquele início de anos 60, o saxofonista era já uma lenda e talvez o maior astro de jazz vivo então), mas também de repertório e espírito. Tanto é que Green pinçou justamente o maior sucesso comercial de
Coltrane para uma gravação baseada não na original canção popular natalina de Hammerstein II e Rodgers, mas na versão marcadamente modal e particular criada por Coltrane: a obra-prima "My Favourite Things". Retomando a estrutura e o clima da faixa que Trane gravara quatro anos antes, Green simplesmente arrasa. Tyner e Jones, que compunham a banda de Coltrane na histórica sessão de 1960 (junto com Steve Davis, no baixo), aqui, sabem exatamente o que fazer. O piano, elegante e preciso no seu jogo modal em três tempos (meio tom acima que na versão clássica e em compasso ligeiramente mais acelerado); a bateria, puro ritmo em ataques sincopados da baqueta na caixa, rolos engenhosos e combinação constantemente diferenciada de pratos/bumbo/caixa. E Green... Ah! Este exala inspiração das cordas de sua Gibson em construções ágeis e luminosas não de modo a imitar Coltrane, mas, sim, de homenageá-lo. Os três, junto com Cranshaw, alternam lances de liberdade dissonante e politonalismo que atinge por vezes um epicismo quase sinfônico tamanha a sintonia. Não é exagero dizer que esta “My Favourite Things” só não é melhor que a de Coltrane – o que, convenhamos, é quase impossível, uma vez que se está falando de algo comparável ao "Bolero", a “For no One”, à Cavalgada d’"As Valquírias” e obras desse porte.

Green, por mais apurado que seja, é muito coração, pois sua técnica está sempre a serviço de uma música o mais pura possível, como um bom blues ou gospel. Tal qual Coltrane, ele evita os clichês, flutuando com expressividade dentro das escalas. “Green Jeans” é assim. Neste hard bop modal, a ágil e criativa mão esquerda de Tyner impressiona por seu lirismo, enquanto a direita modula e mantém a tônica. Jones faz a “cama”, dando ênfase na consistência do ritmo e na continuidade através dos pratos. Mas é Green quem brilha. Apreciador de jazzistas não apenas do seu instrumento, como Charlie Christian e Jimmy Raney, mas, principalmente, dos de sopro como Coltrane, refletia diretamente em seu fraseado o estilo reed style de tocar como os mestres Miles e Charlie Parker, a quem admirava especialmente. “Green Jeans” mostra bem isso, pois há momentos em que até parece que o solo está saindo de um sax alto ágil e suingado e não de uma guitarra. Mas é. Ao invés do stacatto (quando cada nota aparece destacada da seguinte), muito usado pelos guitarristas, usa o legato, ligando as notas de suas frases à maneira de um saxofonista.

“Badouin”, repleta de enlevos, traz as influências folclóricas que faziam a cabeça dos jazzistas da época. Seu riff carrega toques orientais, árabes e africanos num uníssono agudo de guitarra e piano, enquanto a bateria marca um ritmo tribal. Era o show de Elvin Jones só começando... A manutenção Tyner com o baterista é impecável, na medida certa, jogando a luz sobre o solista, mas sem se ausentarem do foco. Green, assim, improvisa acordes circulares e, às vezes, até repetitivos e hipnóticos, como os de um encantador de serpentes. O solo de Tyner é cheio de expressividade e classe. Já a marcação pontuada de Jones nos pratos e nos ataques de baqueta à caixa, ora fortes, ora suaves, antecipam seu único solo no disco. Mas que solo! Imponente, Jones vale-se de todo seu arsenal polirrítmico, dobrando compassos, variando volumes e extensões, combinando as texturas, salpicando sonoridades africanas e latinas. Um espetáculo. Depois, só restava mesmo voltar ao chorus e encerrar a faixa.

Finalizando o disco, num compasso um pouco mais ligeiro que uma balada tradicional, “Wives and Lovers”, clássico de Burt Bacharach, que ganha a sua talvez mais radiosa e definitiva versão no jazz. Longe do standart pop cantado por Frank Sinatra (lindamente, diga-se de passagem), “Wives...” recebe aqui outra roupagem, o que lhe dá uma nova vida. É um prazer inenarrável ouvir Grant Green executando o riff com toda aquela singeleza, movimento e sensualidade, num controle total de tempos e durações. Seu improviso traz lances de redemoinhos sonoros que enredam o ouvinte e que, logo, se resolvem numa nova e engenhosa solução, fazendo a música evoluir para um hard bop não menos romântico. Tyner, impecável como sempre; Chanshaw, escalonando com elegância; e Jones, mais uma vez inteligente e fluido, segura o ritmo no chipô e na vassourinha arrastando no couro da caixa, adensando o clima sensual e etéreo.

Apenas quatro faixas (considerando que “Wives...” foi incluída na edição em CD), mas que carregam todos os predicados do alto nível do jazz que a Blue Note produziu naquela fase de ouro. E mais do que isso: um disco coirmão da obra-prima “A Love Supreme”, quase que, junto a “Crescent”, do próprio Coltrane e também daquele mesmo ano, um ensaio de luxo para o que o gênio do saxofone iria revelar meses depois e com praticamente o mesmo time na retaguarda. O que dizer, então, deste disco de Grant Green? Numa palavra: “Matador.

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FAIXAS:
1. "Matador" (Green) – 10:51
2. "My Favorite Things" (Oscar Hammerstein II, Richard Rodgers) – 10:23
3. "Green Jeans" (Green) – 9:10
4. "Bedouin" (Pearson) – 11:41
5. "Wives and Lovers" (Bacharach, David) – 9:01


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Ouça:
Grant Green Matador




segunda-feira, 12 de abril de 2021

John Coltrane Quartet - "Crescent" (1964)



“Em vários aspectos, ‘Crescent’ é um rascunho da tela concebida por inteiro em ‘A Love Supreme’”. 
Ashley Kahn, jornalista de música, autor de “A Love Supreme: A Criação do Álbum Clássico de John Coltrane”

“Considerei ‘A Love Supreme’ pelo que era, mas esse disco nunca atingiu minha alma do mesmo jeito que ‘Crescent’”.
Michael Cuscina, produtor de jazz

Grandes obras da arte dificilmente acontecem da noite pro dia. Seja na literatura, no cinema, nas artes visuais ou na música, não raro há alguma obra antecedente ou mais que abriram caminho para que aquela ideia se concretizasse e a consagrada obra, enfim, fosse concebida. O que seria do estilo próprio de Pablo Picasso não fossem os quadros das fases azul e cubista? Ou as fotos do jovem Stanley Kubrick para a revista Look, nos anos 40, que apuraram seu senso fotográfico para o cinema anos depois? É o mesmo caso com outro gênio da arte do século XX: John Coltrane. Como uma Guernica de Picasso ou um filme como “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick, é difícil alguém não conhecer pelo menos de ouvir falar no seu mais famoso e definitivo disco, “A Love Supreme”, de 1965. 

Mas o que talvez nem todos se atentem é que Coltrane vinha construindo, juntamente com seu quarteto clássico, já de alguns anos aquilo que resultaria em sua obra-prima. Construção esta que passa, aliás, por outros grandes discos, sendo o que mais se aproxime desta sublimação é “Crescent”, de 1964. Dotado de características que unem com absoluta propriedade a sonoridade dos trabalhos anteriores do artista, o disco aponta indubitavelmente para o que viria logo a seguir na carreira de Coltrane, e que marcaria a vida e a obra tanto dele e de seus músicos, quanto de toda a história do jazz e da música moderna.

Já considerado um mito no meio jazz desde suas participações na banda de Miles Davis, nos anos 50, e na carreira solo, desde o início marcante, foi em Elvin Jones (bateria), McCoy Tyner (piano) e Jimmy Garrison (baixo) que Trane achava a química certa para elevar a sua música a patamares antes não atingidos. “Era uma banda de verdade. Eles sabiam completar a frase um do outro”, diz Ravi Coltrane, filho do artista e também talentoso saxofonista e compositor como o pai. Já para outro ilustre músico do jazz, o igualmente saxofonista Joshua Redman, o jazz se baseia na noção de relaxamento e tensão, e o quarteto de Coltrane representa o ápice deste conceito.

A entrada de “Crescent” é algo peculiar, mas que já vinha sendo amadurecido no estilo de Coltrane: spiritual jazz. Absoluta magia perfaz a faixa-título, cujo enigma já está nas notas soltas com delicadeza mas sem hesitação pelos quatro integrantes, como que se não precisassem se “acompanhar” para formar a matéria-som (ou a alma, como preferir). O tema revela seu lado bluesy depois da longa abertura de mais de 1min 30', quando o sax do autor, então, resolve voar. Digressões, rubatos, ciclos, saltos tanto de escala e quanto quânticos. Tudo se expande, cresce. Mescla de paixão e força. Via-se nascer um Coltrane que deixava para trás de vez a fúria e a impaciência para um outro tipo de urgência, mais contemplativa e circunspecta. Há, contudo, uma reminiscência romântica impregnada na melodia de “Crescent”, por vezes repousante, que, embora preveja o misticismo da seguinte e definitiva fase do artista, mantém uma ligação com a tradição bop, como que invocando em novas cores baladas como “Naima” e “I'm Old Fashioned”, dos seminais “Giant Steps” e “Blue Train”, respectivamente.

A delicadeza não só não se encerra como se agiganta. Queriam tema 100% romântico? Pois ganhem, então, “Wise One”. Tyner com seu piano acende uma vela de chama suave e solene, que faz iluminar a entrada dos pratos de Jones e o baixo introvertido de Garrison. Mas não só, obviamente. Sob aquela luz natural e apenas suficiente, a alma de Coltrane sopra solfejos que, em círculos magistrais, mágicos, fazem como se se retomasse ao início do sonho. Uma, duas, três vezes. Até que o sonho, enfim, começa. Leve aceleração no ritmo, mas ainda dormente, mesmo padrão de “Acknowlegement”, de “A Love...”. Além dos pratos, Jones incorpora agora estampidos de baquetas na borda da caixa e leves e secas batidas nos tom-tons. Nesta altura, sono profundo, quem está solando é Tyner, com seu tocante domínio da escala: poético, ousado, econômico em impulsividade, mas nunca em emoção. Coltrane, elevando um pouco mais a “anima”, impõe um batimento cardíaco mais passional, mas ainda sem acordar, ainda sobrevoando uma noite encantada. No final, a melodia torna à feição que lhe originou, o que faz com que se percebe agora sê-la mais spiritual do que se suspeitava. Nova batida à porta de “A Love...”.

Aí, vem um hard-bop como os mestres ensinaram e aprenderam. “Bessie's Blues” é Dex, é Cannonball, é Monk. É Miles, é Shorter, é Rollins, é Dolphy. Mas é também algo que se veria em “Resolution”, de “A Love...”, principalmente em seu balanço 4/4. Time solto, entrosado, à vontade como que inebriados pela fumaça dos night clubs nos quais se apresentavam quase todas as noites. É tanta perfeição, que talvez até escape a percepção de que esta pode manifestar-se em um breve blues, a menor faixa de um disco disposto a celebrar tudo aquilo que cresce dentro dos corações. 

Em quantas direções mais haveriam de crescer? Não precisa recorrer ao ápice de “A Love...” para encontrar a resposta a esta retórica pergunta, pois ela está cristalizada não muito longe dali. Aliás, bem perto, na faixa seguinte: “Lonnie's Lament”. Assim como “Crescent”, novamente a abertura insinua uma melodia completa. São quase 2 min de um lamento tristonho e poético, vaporoso, vagaroso. Isso para depois entrarem em um jazz modal, mais uma vez, retrazendo aquilo que erigiram juntos a partir do exemplo de “Kind of Blue”, de Miles, de 1959, em que Coltrane é um dos nobres coadjuvantes, e praticado com destreza pelo quarteto nos anos seguintes, principalmente, a partir de “My Favourite Things”, de 1961. Tyner se encarrega de um longo improviso, dedilhando suas mágicas quartas justas ou aumentadas e os voicings, tudo em redor da tônica em Dó. Quem também ganha espaço é Garrison, com a deferência de todos os colegas calarem os respectivos instrumentos para seu solo. Ao final desta entrega do baixista, torna a vaporosidade da abertura, aquela que havia deixado com impressão de tratar-se de uma melodia final. E é ela, sim, que finaliza o lamento. Impossível não lembrar de “Presuance”, do clássico “A Love...”, prenunciada pela ideia do solo de baixo.

Talvez a mais distinta música de todo o repertório é também a mais parecida com o que Coltrane e seu grupo trariam no emblemático disco procedente a “Crescent”. A semelhança com a faixa “Psalm”, do álbum de 1965, é inconteste. Com uma percussão tribal e monorritimca, usando apenas tímpano e pratos, Jones marca o andamento com constância. É “The Drum Thing”, que, como o título indica, concentra-se na percussão – elemento altamente ligado à cultura e à religiosidade africana, que Coltrane tão bem resgata ao desenvolver o spiritual jazz. O ritualístico se manifesta nos sons percutidos, sobrando para o sax de Coltrane, geralmente protagonista, apenas sutis pronúncias da melodia ao início e ao final. Jones, afinal, é quem domina a faixa de cabo a rabo, engendrando um solo impressionante de aproximadamente 4 min e quando se vê sua habilidade incomum de variações rítmicas, de timbres e o fraseado "legato", límpido. Não poderia haver maneira peculiar e exata de encerrar o álbum.

Mesmo com toda a reverência e inegável influência de "A Love..." para o jazz e para a música moderna, não são poucos os que consideram “Crescent” o melhor trabalho de John Coltrane. Frank Lowe, Dave Liebman e Michael Cuscina são três grandes conhecedores de sua obra e da discografia jazz que defendem esta tese. Interposto entre a gênese de seu estilo spiritual e a exaltação deste, que desembocaria “A Love...”, "Ascension" e outros discos da fase final do artista antes de morrer, em 1966, este disco marca um momento ímpar na história de Coltrane e do jazz. Um instante imediatamente anterior a uma revolução. Por isso, “Crescent” é mais do que um disco: é a ligação entre passado e futuro, a união dos tempos - ou sua dissolução. Ao ouvi-lo, mesmo quase 60 anos depois de sua gravação, tudo vira presente, tudo está vivo. Para isso, tanto quanto para se chegar ao amor supremo, a uma Guernica ou um “2001”, é essencial passar por fases anteriores.  É essencial antes ter sabido crescer.


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FAIXAS:
1. "Crescent" – 8:41
2. "Wise One" – 9:00
3. "Bessie's Blues" – 3:22
4. "Lonnie's Lament" – 11:45
5. "The Drum Thing" – 7:22
Todas as músicas de autoria de John Coltrane

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OUÇA:
John Coltrane - "Crescent"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

todas as composições de John Coltrane









segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Joe Henderson - “Inner Urge” (1964)

 

“Uma das marcas da estatura constantemente crescente de Joe Henderson é que ele não pode ser categorizado de maneira ordenada. Por um lado, está entre os jovens exploradores de novas formas de expandir as linguagens do jazz. Por outro lado, ele pode ser igualmente convincente como um blues groover e como um mestre personalizador de baladas na tradição vintage dos tenores do jazz ultratonal. Este álbum ilustra ainda mais o alcance e a profundidade de Henderson.”
Nat Hantoff, do texto da contracapa original de “Inner Urge”

“Na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras. É a hora em que o Espírito Criativo (que também se pode designar como Espírito Abstrato) encontra um caminho para a alma, depois para outras almas, e provoca um anseio, um desejo interior.”
Wassily Kandinsky, de “Sobre o problema da forma", 1912

Todo amante de jazz tem motivos para reverenciar o ano de 1964. Assim como o igualmente rico 1959, em que pelo menos dois discos revolucionários para o gênero foram concebidos – “Kind of Blue”, de Miles Davis, e “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman - o quarto ano da década de 1960, em que a abismal leva de grandes músicos surgidos no pós-Guerra encontrava-se em plena forma, impressiona pela quantidade de obras da mais fina estampa. De Wayne Shorter a Albert Ayler, de Lee Morgan a Sun Ra, vários dos “feras” do jazz deixaram sua marca em 1964. Quem também o fez com igual competência e qualidade foi Joe Henderson. A obra em questão é “Inner Urge”, em que o saxofonista tenor norte-americano está acompanhado de um estelar time: Bob Cranshaw, baixo, Elvin Jones, bateria, e McCoy Tyner, piano. Praticamente, o trio que acompanhava John Coltrane havia anos (afora Cranshaw, que tinha no lugar Jimmy Garrison) e que, poucos meses dali, gravaria com este o talvez maior feito não somente daquele fatídico ano, mas de toda a história do jazz: “A Love Supreme”.

Quarto disco de Henderson tanto como band leader quanto pela Blue Note, sua primeira gravadora e que o havia contratado um ano antes, carrega, como o título diz, o sincero “desejo interior” de um jovem artista em plena atividade. Em menos de dois anos, o produtivo Henderson estava com sangue nos olhos, visto que já tinha emendado outros três álbuns, sendo um deles o memorável “In ‘Out”, daquele mesmo milagroso 1964. Motivos havia, contudo, para que estivesse com todo esse gás. Embora fosse recente a carreira solo, sua trilha na música já vinha de pelo menos 15 anos antes. Dono de um estilo que oscila entre o austero e o onírico com a mesma naturalidade que seu sax salta de escala, Henderson sempre foi um “cabeção”. Estudou flauta, baixo e saxofone na Wayne State University e, mais tarde, composição no Kentucky State College, não raro destacando-se pela criatividade e aplicação, Dotado da rara habilidade de “ouvido absoluto”, era capaz de emular com perfeição seus mestres Charlie Parker, Dexter Gordon e Yusef Lateef só ao escutá-los. Nem a passagem pelo exército norte-americano, entre 1960 e 1962, foi capaz de freá-lo, visto que não parou com a música neste tempo e até ganhou prêmios tocando para os colegas soldados. Ao sair das forças armadas, sua arma passou a ser seu instrumento e o território a conquistar seria o centro nervoso do jazz, Nova York, para onde se mudou imediatamente após a baixa. 

As experiências vividas e a sensibilidade musical de Henderson lhe legaram uma visão artística  naturalmente abrangente, que o condicionaram a transitar do classicismo do be-bop à ousadia da avant-garde ou à complexidade harmônica da bossa nova num passo. Em “Inner”, esta ânsia de um “espírito abstrato”, como classificou o artista visual russo Wassily Kandinsky, referência da arte abstrata, está cristalina na multiplicidade e no ecletismo dos números musicais que o compõem. A perfeita engenharia sonora de Rudy Van Gelder e a produção invariavelmente caprichada de Alfred Lion estendem o tapete para a entrada da impecável faixa-título, melodiosa e instigante. São 12 minutos de passeio modal de uma turma acostumada com esse expediente desde que Miles e Dave Bruback o cunharam poucos anos antes. A alta química entre os integrantes da banda propiciam a Henderson o exercício de seus aforismos sonoros com liberdade. Enquanto Tyner dedilha notas líricas e dissonantes, Cranshaw espalha os tons graves com sabedoria e Jones... bem, Jones arrasa do início ao fim na combinação caixa/pratos e, em especial, no magnífico solo que executa quase ao final, quando não deixa o ouvinte respirar. 

“Isotope”, na sequência, mantém o clima suspenso, porém agora num hard-bop colorido, suingado, que contrasta com o abstratismo da faixa inicial. Decréscimo nenhum, contudo. Espelhando-se na elegância de Dex Gordon, Henderson volta às raízes bop. Em seguida, um novo tema e uma nova guinada. As influências hispânicas, que tanto agradavam os jazzistas desde os anos 50 (a se ver pelo “Jazz Flamenco”, de Lionel Hampton, ou “Sketches of Spain”, de Miles) dominam a excelente “El Barrio”. Traços, no entanto, desenhados com os pincéis abstratos do autor, que a impregna de estilo e personalidade. A começar pelos acordes iniciais, quando as notas graves do sax de Henderson emanam caracteres típicos das terras madrilenhas. Jones, atinado, articula um compasso sincopado, enquanto o piano de Tyner e o baixo de Cranshaw insinuam movimentos airosos. Lá pelas tantas, de tão absorvido, Henderson, ao lançar um forte solfejo, chega a afastar-se do microfone, diminuindo a captação do som, o que sabiamente não foi “corrigido” por Van Gelder. Afinal, como no flamenco, é assim que “El Barrio” tinha que soar: orgânica. Tema absolutamente sensual e acachapante. 

Não é exagero dizer que “You Know I Care”, versão para a canção de Duke Pearson, é das mais belas baladas do cancioneiro jazz – ao menos, do abastado ano de 1964 com certeza. Mudando totalmente de estilo – ou melhor, recorrendo a mais uma de suas facetas –, Henderson encarna o mais romântico dos jazzistas e faz ouvirem-se Coleman Hawkins, Lester Young, Gordon e... Joe Handerson também, é claro. Para um disco que, mesmo em apenas cinco faixas, não cansa de surpreender, não é de se estranhar que até o standart “Night and Day” venha igualmente cheio de originalidade. A leitura post-bop de Henderson e sua banda para o clássico de Cole Porter lhe dá um caráter sinuoso, que ora percorre os acordes-base com elegância, ora lhe acentua dissonâncias e modernidade modal. Uma reestruturação melódica que contribuiu para um olhar totalmente diferente deste popular song dos anos 30.

Por cinco anos, desde que entrara para a Blue Note, um ano antes de realizar “Inner”, até 1968, Joe Henderson apareceu em quase 30 álbuns do selo, sendo apenas cinco lançados sob o seu nome. Independentemente da assinatura, o que importava mesmo era espraiar a sua arte por tanto tempo restrita apenas aos conservatórios, aos palcos e até às trincheiras. Porém, de toda esta larga produção, “Inner” é o trabalho que melhor define sua alma exploratória e inquieta. Se "na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras" aos "espíritos criativos", Henderson deu um jeito de não perdê-la. Por isso, por algum motivo mágico, 1964 parecia mobilizá-lo especialmente, assim como a outros de seus pares. Tanto é que, além deste e de “In ‘Out” – um lançado em abril e outro em novembro –, Henderson também integra os grupos de outros 10 projetos dentro daqueles 12 inesquecíveis meses, a maioria clássicos como ”Song for My Father", de Horace Silver, ou “The Sidewinder”, de Morgan. Pena que, tanto para Henderson quanto para todos os músicos e amantes do jazz, inexoravelmente 1º de janeiro de 1965 um dia chegou.


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FAIXAS:
1. “Inner Urge” - 12:00
2. “Isotope” - 9:10
3. “El Barrio” - 7:10
4. “You Know I Care” (Duke Pierson) - 7:15
5. “Night And Day” (Cole Porter) - 7:00
Todas as composições de autoria de Joe Henderson, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues