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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O Adeus ao Bispo

“Quando olho para trás na minha vida, eu vejo todos os meus amigos que já partiram para outra jornada, então é hora de fazer tudo que posso.”
Solomon Burke (1940-2010)


Nesta última semana morreu, aos 70 anos, um dos principais cantores da música americana e um dos criadores da soul music, difundida aos quatro cantos do planeta a partir dos anos 50. Trata-se de Solomon Burke, o ex-pastor que saiu do altar das igrejas para demarcar seu lugar no showbizz, considerado pelo produtor musical Jerry Wexler como o "o melhor cantor de soul de todos os tempos". Vitimado por causas naturais, o Bispo, como era conhecido, partiu desta para melhor depois de chegar ao aeroporto Schipol, em Amsterdã. Além de músicas, deixou na Terra 21 filhos, 90 netos e 19 bisnetos. Poxa!...
Burke morreu menos conhecido que outras lendas do rythm’ n’ blues, como Otis Reding, James Brown, Ray Charles e Sam Cooke, todos de grande sucesso e até idolatria. Com seu barítono romântico cheio de groove e carregado de tradição gospel, embora de importância inegável para a música pop, não foi um campeão de hits como seus contemporâneos. Seu maior sucesso nas paradas foi “Just Out of Reach”, de 1961. Depois disso, teve outras de impacto ora bom ora mediano, como “The Price”, inspirada em um sermão, e “Cry to Me”, uma das duas músicas de seu repertório gravada pelos já antenados Rolling Stones no primeiro disco da banda, de 1964. A outra, “Everybody Needs Somebody to Love”, além da versão dos ingleses, também aparece cantada por John Belushi e Dan Akroyd no divertido filme-homenagem à soul music "Irmãos Cara-de-Pau" , de 1980.
Há muito Burke vinha produzindo bastante, porém sem vendagens significativas. Até que Deus interveio. O Todo-Poderoso não poderia deixar de dar, em vida, uma graça a um filho tão talentoso – ainda mais a um que O propagandeou tão bem como líder religioso fora e dentro dos palcos. Em 2002, já aos 62 anos, a independente Fat Possum Records, aproveitando de sua boa saúde – principalmente vocal –, resolveu prestar-lhe uma grata homenagem. Resgatando-o do ostracismo e oferecendo-lhe um aparato técnico de qualidade, a gravadora produziu um CD onde o Bispo interpreta canções de outros compositores, todas inéditas e feitas especialmente para aquela ocasião. O disco chama-se “Don’t Give Up to Me” (“Não desista de mim”, título bem apropriado).
Olhem só o time de feras chamado para este serviço: Bob Dylan, Van Morrison, Tom Waits, Elvis Costello, Brian Wilson, entre outros. O resultado não poderia ser diferente: um discaço! Não tenho muita noção de outros discos de carreira de Burke, mas provavelmente este é seu melhor trabalho. De produção cuidadosa, valoriza sua voz ao mesmo tempo em que imprime uma sonoridade entre o retrô e o moderno, transpassando a ideia não só de resgate da cultura negra americana mas, também, do quanto aquele Solomon Burke ainda era potente, vivo, às novas gerações. “Don’t Give...” deu-lhe, enfim, o primeiro grande reconhecimento: o prêmio Grammy, em 2003.
Deste disco, destaco a sensível “Diamonds in Your Mind” (de Waits), a lindíssima faixa-título – cartão de visita ao abrir em clima de balada a la Atlantic Records dos anos 50/60 – e o bluesão “Stepchild”, de Dylan, que parece tê-la escrito e dito (naquele seu jeitão presunçosamente carinhoso): “Toma aí, velho: manda ver!”.
Mas a obra-prima mesmo é “Fast Train”, uma das duas compostas por Van Morrison (a outra é “Only a Dream”). Uma balada arrasadora: amor, vida, morte, passagem do tempo; tudo está nela. Pincelada por agudas frases de órgão típico das igrejas negras nas quais Burke tanto pregou, e interpretada com intensidade na sua voz levemente envelhecida mas incrivelmente vigorosa, “Fast.Train” – como toda boa balada – começa calma e prossegue num crescendo de emoção. Vão se adicionando aos poucos um coro feminino, e os elementos sonoros se intensificam até o clímax, quando começa a decrescer lentamente, diminuindo e subtraindo cada um dos sons, como se já saciado e feliz. Como se aquele “rápido trem” tivesse, enfim, chegado á estação final, até sumir no horizonte com um último – e afinadíssimo – sopro de voz do Bispo-cantor.

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Dos registros antigos, certamente o melhor deles está compilado no CD “The Very Best of Solomon Burke”, de 1998. Como sempre, a caprichada edição do selo Rhino remasterizou as matrizes originais e traz todos os principais hits do cara.
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Coincidentemente, comentaram-me esta semana (por um outro motivo) sobre o filme “Alta Fidelidade”, que conta a história de um dono de uma loja de música à beira da falência (interpretado por John Cusack), um profundo conhecedor da música pop e fiel aos discos de vinil. Mas a referência a Burke está no livro ao qual o filme é inspirado, que tem "Got to Get You (Off My Mind)" como tema-chave.

Ouça o disco:
Solomon Burke Don't Give Up On Me

postado por Daniel Rodrigues

terça-feira, 31 de julho de 2012

Stevie Wonder - "Innervisions" (1973)



Ou isso é uma visão em minha mente?
verso da canção “Visions”



Quando vi  Paul McCartney ao vivo chorei praticamente do início ao fim do show. Eu já previa que isso ia ocorrer, tendo em vista meu sentimento por sua obra, tão formativa quanto vital para a história da arte moderna – e até porque o podia fazer sem constrangimento, já que todo o estádio fazia igual a mim. Porém quando assisti pela TV Stevie Wonder no Rock in Rio 2011 eu não esperava que o mesmo acontecesse. E aconteceu... via satélite. Chorei música atrás de música, tanto nas lentas quanto nas agitadas – o que virou motivo de chacota entre os amigos. Mesmo já tendo boa parte da discografia dele há muito tempo, essa reação me surpreendeu, pois eu mesmo não tinha noção do quanto a obra mágica deste gênio (e isso eu já sabia) tinha tanto a ver comigo e que estava tão impregnada em minha alma. Mas se todas as músicas me tocavam, parei para pensar naquela hora, entre soluços e uma felicidade imbecil, com qual disco eu mais me identificava, uma vez que gosto de todos. A resposta veio como numa visão: “Innervisions”.
A escolha só podia ser de cunho emocional, pois TODA a discografia de Stevie Wonder dos anos 70 até o início dos 80 é fundamental. Assim como o lindo  "Talking Book"  (1972), já resenhado aqui, o exuberante “Songs in the Key of Life” (1976) ou a magnífica trilha sonora “Journey Through the  Secret Life of Plants” (1979), “Innervisions” é item obrigatório na prateleira de qualquer diletante. Um marco da black music considerado pelos críticos um dos melhores da música pop de todos os tempos. Mas o que para mim o diferencia e lhe dá um significado ainda maior é a relação estreita com universo onírico e figurativo de um artista que, cego desde a infância, é capaz de produzir uma arte absolutamente fulgurante, cristalina, repleta de verdade e sentimentos genuínos. Sua música vai no fundo do fundo do fundo.
“Innervisions” é o auge criativo de Stevie Wonder. A estas alturas, 1973, ele já não era mais o Little Stevie de quando surgira, aos 16 anos, como um prodígio; mas, sim, o consagrado Stevie Wonder, sucessor de uma linhagem que vem de Sam Cooke, Solomon Burke, Ray Charles, James Brown e que vai parar nos criativíssimos artistas negros da gravadora Motown como ele. Compositor nato, multi-instrumentista e dono de uma voz potente e deliciosa, capaz de ir de uma escala à outra sem esforço, Stevie já era nesta época um artista planetário que vendia milhões de discos. Mas, mais do que isso, “Innervisions”, Grammy de Melhor Álbum do Ano em 1974, é o resultado de um autoacolhimento pessoal, de um sentimento muito íntimo e definitivo de reconhecimento dele mesmo enquanto portador de uma deficiência. Não é à toa que a obra se refere justamente ao sentido que ele não possui: a visão (e será que não possui mesmo?...). Ali Stevie está pleno de si, fazendo com que o problema da falta de visão não seja um problema, mas, pelo contrário, um canal sensitivo que o fez se tornar alguém tão sensível que suas percepções se afinam a tal ponto de não precisar mais enxergar. Prova maior disso é que ele compõe, toca, canta, arranja e produz todo o disco. Até (pasmem!) a capa é concebida por ele: um desenho bastante simbólico em que a energia produzida por seus olhos ganha a atmosfera e a amplidão.
E as músicas, o que dizer? Somente nove faixas, perfeitas em tudo: melodia, harmonia, execução, arranjo, canto, edição de áudio. Clássicos do cancioneiro norte-americano e mundial, marcos do que de mais sofisticado e criativo se fez em música pop no século XX. O álbum abre mandando ver com “Too High”, um funk-jazz fusion cheio de um suingue tão contagiante que isso chega a exalar por sua voz e por todos os sons que emanam. Moderníssima em sonoridade e texturas, é tudo o que músicos cool de hoje gostariam de fazer mas não conseguem atingir. “Too fine”!
Se o clima começa animado e dançante, “Visions”, uma melancólica balada tocada em guitarra base, baixo acústico e guitarra-ponto entra delicada mas dizendo a que veio. De arrepiar. Cantada com extremo lirismo, sua letra fala de igualdade entre os homens e de um princípio natural capaz de promover paz para todos. A lei nunca foi aprovada/ Mas de alguma forma todos os homens sentem que estão verdadeiramente livres finalmente/ Será que realmente fomos tão longe no espaço e no tempo/ Ou isso é uma visão em minha mente?”.
Não seria exagero se Stevie quisesse acabar o disco já na segunda faixa, que é daquelas canções definitivas. Mas o bom é que não acaba!, e na sequência vêm o arrebatador tema-denúncia “Living for the City”, show de vocais e sintetizadores que aborda a opressão aos negros, e “Golden Lady”, um soul romântico e suingado tão belo que chega a reluzir. Sempre colando uma faixa à outra – como é característico de seus discos –, o astral leve de “Golden Lady” dá lugar ao funkão pesado de “Higher Ground”, tão rock em concepção que não precisou muito para que o Red Hot Chilli Peppers  a regravasse anos depois com mais distorção mas sem grande alteração no arranjo. Os versos: People keep on learnin'/ Soldiers keep on warrin'” (“As pessoas continuam aprendendo/ Os soldados continuam lutando”), viraram clássicos. Incrível, incrível.
Outra de deixar de o queixo caído é “Jesus Children of America”, soul cantado em escala decrescente, mas que, do meio para o fim, aumenta um tom, o que faz Stevie soltar, em várias vozes sobrepostas, seu afinado e cintilante falsete. O clima cai novamente, agora para uma suíte romântica ao piano de fazer qualquer casal brigado reatar: “All in Love is Fair”, típica balada Motown, com sua levada carregada de sentimento e um refrão que explode em emoção. Nessa Stevie dá uma verdadeira aula de canto. De chorar, ainda mais no fim em que bateria, voz e piano dão os suspiros finais.
Mas  se Stevie é hábil nas lentas, também possui o mesmo talento para fazer mexer o esqueleto. “Don’t  You Worry ‘bout a Thing”, que vem logo em seguida, é uma rumba marcada no piano e nos chocalhos que faz enxugar as lágrimas e levantar o astral de novo. Usada mais de uma vez no cinema, como na comédia “Hitch” (a cena do passeio de Jet-ski pelo rio Hudson de Nova Iorque), é daquelas músicas tão alegres que remetem diretamente ao colorido alegórico da cultura africana, influência sempre tão presente e hibridizada na obra de Stevie. O disco encerra na atmosfera melódica e gostosa de “He’s Misstra Know-it-all”, com seus bongôs acompanhando a bateria e o piano num andamento suave e suingado que, ao final, vai sumindo devagarzinho enquanto Stevie improvisa nos vocais.
Essas cores e esse brilho estavam no palco quando vi Stevie pela TV no Rock in Rio. Aos 70 anos, toda aquela verdade e prazer de produzir uma arte pura e elevada podia ainda ser percebida. Não tinha como não ficar tocado. Reouvi “Innervisions” dias depois do show, ainda sob efeito da apresentação. Mas não chorei mais, pois me dei conta de definitivamente se tratar de um dos artistas mais importantes para a minha vida. Ele, que eu já sabia ser um dos maiores de todos os tempos, como Mozart, Ravel , Coltrane , Chico  e o próprio MacCartney. Pode colocá-lo tranquilamente nesta fila, que aqui pra mim o altar dele já está reservado.

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FAIXAS:

1. "Too High"  Stevie Wonder 4:36
2. "Visions"  Wonder 5:23
3. "Living For The City"  Wonder 7:23
4. "Golden Lady"  Wonder 4:58
5. "Higher Ground"  Wonder 3:43
6. "Jesus Children Of America"  Wonder 4:10
7. "All In Love Is Fair"  Wonder 3:42
8. "Don't You Worry 'bout a Thing"  Wonder 4:45
9. "He's Misstra Know-It-All"  Wonder 5:35


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Ouça:
Stevie Wonder Innervisions



segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Lee Morgan – “The Sidewinder” (1964)





“Quando a melodia de ‘The Sidewinder’
me veio à mente,
não estava pensando naquele tipo de cobra,
mas sim num cara mau”.

Lee Morgan



O trompetista norte-americano Lee Morgan é um dos maiores nomes da história do jazz, inegavelmente. Porém, seu caminho poderia ter sido ainda mais frutífero não fossem essas coisas inexoráveis da vida. No caso dele, a morte. Porém, durante os 36 anos em que esteve no planeta Terra iluminando-o com sua música, o período entre 1963 e 1964 lhe é especialmente relevante. Foi quando ele produziu algumas de suas mais significativas obras. Poderia muito bem falar aqui do hard bop “The Gigolo”, com sua explosão soul de “Yes I Can, No You Can't”, que lançou, em 1965, com uma afinadíssima banda (Harold Mabern, piano; Bob Cranshaw, baixo; Billy Higgins, bateria; e o mestre Wayne Shorter, no sax tenor). Podia, igualmente, voltando dois anos no tempo, exaltar o brilhante “Search for the New Land”, cuja faixa-título é dos colossos do jazz mundial mas que, para além disso, é inteiramente radioso, contando com os mesmos Higgins e Shorter e mais as luxuosas adições de Reggie Workman, no baixo, e os dedos mágicos de Grant Green na guitarra e de Herbie Hancock ao piano. Ainda caberia trazer o obscuro bop modal “Tom Cat”, em que Morgan se juntara, logo depois, às feras Jackie McLean (sax alto), Curtis Fuller (trombone), McCoy Tyner (piano), Cranshaw (baixo) e seu “padrinho” Art Blakey (bateria).
Porém, a fase era tão produtiva que Morgan não ficou apenas nesses grandes feitos. Outro deles pode ser considerado ainda mais revolucionário e esplendoroso: “The Sidewinder”. Juntamente com o já resenhado aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS "Empyrean Isles", de Hancock, compõe o duo de discos que lançaram, há exatos 50 anos, as bases do jazz-funk, inspirando toda uma geração de jazzistas (Vince GuaraldiMiles Davis, Green, Henri Mancini, João Donato, Don Salvador) além da soul music e do pop-rock. Foram os discos que fizeram o jazz sair do chão. A beleza formal dos acordes complexos ganha aqui ainda mais malícia, gingado, groove.
Nascido na Filadélfia, o prodígio Edward Lee Morgan começou pré-adolescente a soprar seu instrumento inspirado em Miles, Clifford Brown – seu ídolo – e Dizzy Gillespie, com quem tocara no início da carreira. Em 1956, aos 19 anos, tem a chance de integrar a The Jazz Massangers de Blakey, mesmo ano em que assina pela primeira vez com o selo Blue Note, do qual saiu quatro anos e sete discos depois. Nessa época já se via o virtuosismo, a fluência e o vigor de seu toque, destacando os poderosos registros agudos, estilo que foi aperfeiçoando ao longo dos anos (inclusive, na célebre participação como sideman em “Blue Train”, memorável álbum de John Coltrane de 1957). Até que, após passagens por gravadoras menores, em 1963 retorna à “casa” e, com a mão Rudy Van Gelder na mesa de som e produção de Alfred Lion (além da sempre linda arte de Reid Miles na capa), leva ao estúdio da Blue Note, em Nova York, os camaradas Cranshaw e Higgins juntamente com as feras Joe Henderson, no sax alto, e a Barry Harris, no piano, para registrar “The Sidewinder”.
Como todo bom jazzista, Morgan é altamente ligado ao blues. Entretanto, ele injeta ao rhythm’n’blues uma carga ainda inédita do funk oriundo das ruas dos guetos urbanos, que tinham, desde os anos 50, na figura de James Brown, Otis Redding, Solomon Burke e Aretha Franklin seus principais representantes. A química foi infalível. A faixa-título faz as honras de abertura, mostrando como se faz jazz com inteligência, apuro técnico e alma soul. Cranshaw dedilha um acorde de quatro notas que desencadeia uma explosão de groove, com Higgns, brilhante, metendo swing na caixa e no prato; Harris, segurando tudo num gostoso tempo 2 x 2; e os sopros, que mandam ver no chorus. Impossível não balançar o esqueleto! Tão lindos quanto o improviso de Morgan, de Harris e de Henderson – músico experiente como Morgan que de cara já diz a que veio –, o de Cranshaw, atrevido, fecha a sequência de solos, quando a banda retoma inteira para concluir o número. Para coroar o feito de Morgan, ninguém menos que uma de suas principais inspirações, James Brown, regravou a faixa menos de um ano depois. O Godfather of Soul gostou tanto da homenagem que pôs a The James Brown Band a executar uma mais acelerada versão de “The Sidewinder” em “James Brown Plays James Brown: Yesterday and Today”, com nada menos que um naipe de cinco metais à frente.
“Totem Pole”, com base de acordes circulares do baixo, traz uma estrutura mais tradicional do hard bop. Porém, os solos são de uma malemolência inquestionável. Morgan arranja o seu numa combinação orgânica com o piano de Harris, que dialoga com o trompete durante todo o improviso. Nesta, Handerson, que já havia soltado as garras na anterior, realiza um de seus mais memoráveis solos. Capaz de unir a bossa-nova e o be-bop a um virtuosismo de cores parkerianas, ele incrementa a música com seu estilo particular.
“Gary's Notebook” traz ainda mais embalo e um riff complexo, tocado com simetria pelos sopros. De encher os olhos. Morgan mais uma vez se dá o direito de iniciar os improvisos, ditando um toque fluente e variante que Henderson e Harris seguem com desenvoltura. Na mesma linha e ritmo, "Boy, What A Night" é mais uma de impressionar pela sincronia de toda a banda, seja no chorus ou nos momentos de realce dos instrumentos. Desta vez, é o sax de Henderson que inicia os trabalhos, num conceito interessante em que ele estende as notas, criando intervalos diferenciados e elásticos. Que Morgan é sempre um espetáculo é sabido; mas nesta Harris não fica para trás, seja na marcação swingada da base, seja no solo, certamente o destaque da faixa. Tomada de blues, a improvisação do piano bem poderia figurar em qualquer rock de Little Richard ou Jerry Lee Lewis.
Colorida, “Hocus Pocus” fecha o álbum em alto astral. Morgan eleva a escala, num tocar radiante. Van Gelder inteligentemente deixa o microfone captar ao fundo a empolgação de algum dos músicos, que acompanha com a voz algumas frases dos instrumentos (provavelmente o próprio band leader) – o que faz lembrar Charles Mingus em sua ode ao blues “Oh Yeah”, de 1962. Henderson e Harris mantêm o clima e a qualidade indiscutível. Perto do final, Higgns, dos principais responsáveis pelo conceito do álbum, uma vez que o amarra de ponta a ponta com um ritmo gingado e bluesy, ganha seus momentos de improviso também, conversando com o trompete de Morgan. Este, por sua vez, também não deixa terminar a gravação sem emitir suas peculiares notas agudas, que surpreendem o ouvido e o deliciam ao mesmo tempo.
“The Sidewinder” entrou para a história como o maior sucesso de Lee Morgan, atingindo o 10º lugar na categoria R&B da Billboard. Os anos subsequentes iriam alçar o músico cada vez mais ao posto de um dos grandes do jazz universal, ao lado de craques da sua geração como Sonny Rollins, Hancock, Shorter, Henderson, Cannonball Adderley, Ornette Coleman e Coltrane. Porém, como havia ocorrido com este último em 1967, vitimado por um câncer, os céus tinham outros planos para Lee Morgan. Todo aquele talento foi bruscamente ceifado por um brutal assassinato pelas mãos da própria esposa, de quem recebeu um tiro no coração quando tocava num clube em Nova York em 1972. O motivo? Não se sabe. O crime ainda hoje é mal explicado. O que a levou a cometer tal ato? Será que, domesticamente, Morgan encarnava o tal “cara mau” a quem o próprio se referiu? Não se sabe – e nem importa. Resta, sim, sua obra, que somente um cara com uma boa dose de “maldade” podia ter criado. Uma maldade no sentido de “malícia”. Afinal, não há males que vêm para bem?
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FAIXAS:
1 - The Sidewinder – 10:25
2 - Totem Pole – 10:11
3 - Gary's Notebook – 6:03
4 - Boy, What a Night – 7:30
5 - Hocus Pocus – 6:21
todas as composições de Lee Morgan


Lee Morgan  - "The Sidewinder"




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OUÇA O DISCO: