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domingo, 18 de março de 2018

"Pantera Negra", de Ryan Coogler (2018)



Não faz muito tempo, a atriz e diretora Jodie Foster declarou que os filmes de super-heróis estariam acabando com o cinema, declaração com a qual, mesmo sendo um colecionador de quadrinhos e apreciador de filmes do tipo, não posso deixar de concordar em parte uma vez que os filmes do gênero, feitos nos últimos tempos em espantosa agilidade e quantidade na maioria das vezes, com exceção da parte técnica, são obras bastante pobres, rasas, de personagens superficiais e andamentos previsíveis, completamente dispensáveis do ponto de vista artístico ou reflexivo. O público, cada vez menos exigente no que diz respeito a conteúdo, roteiro, diálogos, atuações, se satisfaz com meia dúzia de efeitos especiais em 3D e fisgado pela sanha consumista induzida pela indústria do cinema, mal sai de uma sala de projeção onde curtiu a aventura de um herói e já espera pela sequência que, por sinal já tem até data marcada para estrear.
No entanto, mais ou menos na mesma época da entrevista de Jodie Foster, um filme desta linha veio a contrariar a declaração da atriz. "Pantera Negra", filme sensação mundial que tem batido sucessivos recordes de bilheteria é um filme de super-herói necessário e o fato de ser de super-herói, neste caso, é um aspecto importante. Um herói negro destemido, carismático, líder em uma nação negra orgulhosa, autossuficiente, desenvolvida tecnologicamente mas que não deixa de lado suas mais remotas tradições, e onde as mulheres atuam em todas as áreas com a naturalidade que qualquer sociedade deveria zelar, faz com que, como poucas vezes na história da sétima arte, segmentos menos favorecidos na sociedade, em especial é claro, negros e mulheres, vejam-se representados no cinema de uma forma digna e honrosa e identifiquem-se com o que estão vendo na tela.
Mulheres guerreiras, políticas, espiãs, cientistas,
além da questão racial, o filme toca também
na questão do feminismo.
Vi, li, ouvi algumas críticas e contestações, até de negros mesmo, sobre o fato de que teria sido necessário um filme deste porte para despertar o orgulho que o negro sempre deveria carregar consigo. Na verdade, realmente, não deveria precisar de "tão pouco", mas visto que o negro é constantemente relegado, caricaturado, estereotipado todos os dias em todos os segmentos, o fato de nos se ver numa situação de protagonismo e com a respeitabilidade que sempre ambicionou faz, sim, com que a identificação seja inevitável e que seja acesa aquela chama de orgulho que sempre esteve ali presente mas que parecia adormecida.
"Pantera Negra" é muito mais um filme válido e importante do que propriamente um grande filme. Embora tenha uma trama meio shakesperiana no que diz respeito à sucessão real e seus envolvimentos tais como traições, fratricídio, exílio, vingança, o filme do diretor Ryan Coogler traz muitos daqueles defeitos que enumerei anteriormente, como tratamento superficial de personagens (como no caso do bom vilão Killmonger), roteiro deficiente, soluções apressadas e dramatizações excessivas, todos problemas comuns a filmes de heróis que exigem uma certa agilidade e absorção rápida do público, mas no seu caso todos estes defeitos, além de não o tornarem menor do que qualquer outro do gênero, são secundários em relação a todo o simbolismo que ele carrega em si. "Pantera Negra" é um clássico imediato e tem desde já seu lugar garantido na história do cinema como o filme que fez o negro ver a si mesmo como alguém capaz e poderoso; lembrar que seus antepassados tinham tradições belas e ricas; enxergar seu continente de origem, historicamente saqueado e frequentemente desvalorizado, como uma terra de belezas, riquezas e histórias; e sobretudo, a partir destes elementos, propôr uma reflexão e um revalorização do próprio negro em relação a suas origens, seu passado e seu futuro. A fictícia Wakanda, do Rei T'Challa, de contrastes entre disputas tribais e roupas típicas com sua riqueza mineral e tecnologia, de certa forma nos fez imaginar como, talvez, teria sido a África se não tivesse sido saqueada, se seu povo não tivesse sido escravizado e enfraquecido, e se tivéssemos tido a oportunidade de construir uma sociedade dentro do nosso continente de origem. "Pantera Negra" é um grande convite à reflexão histórica e social e, se na sua maioria os filmes de personagens de HQ são descartáveis, neste caso específico, nunca um filme de super-herói foi tão relevante.


trailer "Pantera Negra"



Cly Reis

Berinjela Beligerante

sexta-feira, 16 de março de 2018

cotidianas #557 - Sumir em meio à bagunça




"Você ainda vai sumir no meio dessa bagunça", era o que sempre dizia a mãe do Aristides ao entrar no escritório do filho para levar um lanchinho ou algo do tipo e, não vou fazer suspense aqui, a previsão da dona Laura um dia se confirmou.
Sempre que entrava no escritório, dona Laura tinha que desviar das pilhas de livros, revistas, polígrafos, encadernações, pastas, arquivos, alfarrábios que, tendo excedido há muito tempo os espaços das estantes, se acumulavam altas desde o chão criando uma sinuosa e imprecisa trilha até a mesa de trabalho do filho.
Aristides, por sua vez, leitor incontrolável, um estudioso, um interessado, um curioso, praticamente não saía daquela saleta afundado em suas publicações absorvido em estudos, histórias ou anotações.
Certa tarde, dona Laura bateu de leve na porta, como sempre fazia e foi entrando, tomando cuidado para não esbarrar nas pilhas tão altas que sequer lhe permitiam ver a mesa do filho no outro lado da sala. "Você ainda vai sumir no meio dessa bagunça", voltou a exclamar, como o fazia praticamente todos os dias. Se esgueirando por aquele labirinto de papel, com uma bandeja de lanche nas mãos ela finalmente chegou à escrivaninha de Aristides. Curiosamente o rapaz não estava lá. Achou estranho e curiosa aproximou-se da escrivaninha onde o filho sempre trabalhava. Deixou a bandeja em cima de mesa com cuidado para que não amassasse ou sujasse os livros e escritos ali espalhados e movida por uma incontrolável curiosidade e por uma sensação que ali estaria uma explicação para o sumiço do filho, resolveu dar um espiada no livro que jazia aberto diante da cadeira. Na página aberta dizia: "Entrou no escritório tomado com uma bandeja na mão. Não encontrando o amo no meio daquela confusão de livros, revistas, apostilas, pepeis velhos, antigas publicações e pergaminhos, dirigiu-se até a mesa onde o professor costumava trabalhar. Acomodou a bandeja sobre a mesa com cuidado para não danificar nenhum dos documentos e publicações ali dispostos e deparando-se com um livro aberto exatamente diante da cadeira do leitor, movida por uma incontrolável curiosidade e tendo a sensação inexplicável de que aquele livro poderia conter a resposta sobre o paradeiro do seu senhor, pôs-se a ler a página aberta.".


Cly Reis

quinta-feira, 15 de março de 2018

"Lou", de Cordula Kablitz-Post (2016)


São vários os filmes sobre mulheres de atuação política importante para a história da sociedade moderna. Rosa Luxemburgo, Frida Kahlo, Maud Watts, Norma Rea, Violeta Parra, Alice Paul e as brasileiras Pagu e Zuzu Angel já foram retratadas nas telas. Entretanto, se comparado às cinebiografias sobre figuras masculinas, ainda há uma grande lacuna. Mary Wollstonecraft, Ada Byron, Alexandra Kollontai e Maria Firmina dos Reis, por exemplo, nunca receberam esse reconhecimento. Entre estas, faltava, igualmente, uma obra que abordasse a vida de outra dessas figuras libertárias para a questão feminina: a escritora, filósofa e psicanalista Lou Andreas-Salomé (1861-1937). Feito muito bem realizado pela cineasta alemã Cordula Kablitz-Post no longa “Lou”. Equilibrando os aspectos emocionais e biográficos da personagem com momentos históricos dos quais ela foi criadora e criatura, o filme traz à luz uma história fundamental de ser conhecida, principalmente em dias de empoderamento e nova consciência da mulher como os atuais.

No fim do século XIX, Salomé vive de forma livre e contestadora. Suas ideias e atitudes seduzem as mentes mais brilhantes da sua época, como os filósofos Paul Rée e Friedrich Nietzsche, o psicanalista Sigmund Freud e o poeta Rainer Maria Rilke, além do jovem filólogo Ernst Pfeiffer. Pfeiffer a ajuda a escrever as suas memórias aos 72 anos, quando Salomé passa a relembrar sua juventude em meio à comunidade alemã de São Petersburgo, os anos em Zurique, Roma e Berlim e, claro, as ricas e invariavelmente conturbadas convivências com os intelectuais da época.

Interpretada muito bem pelas atrizes Nicole Heesters, que a faz mais velha, e Katharina Lorenz, quando jovem (e também por Liv Lisa Fries, na fase adolescente, embora com menos aparição), Salomé é daquelas pessoas que, para se tornar o ícone que hoje é, precisaram sustentar uma sobrecarga sobre as costas. Sua renúncia ao casamento formal e a recusa à maternidade – levada ao extremo do aborto intencional –, traçam um preocupante paralelo com a realidade de muitas mulheres ainda hoje, quase 100 anos depois do seu nascimento.

Nicole Heesters muito bem como Salomé na fase final de vida
O que movia Salomé como mulher era uma busca por aquilo que ela acreditava, não pelo que a sociedade estabelecia. Internamente, no entanto, as motivações disso eram mais intrincadas. Como bem levantou o psiquiatra Luiz Carlos Mabilde em uma sessão comentada do filme ocorrida no GNC Cinemas do Praia de Belas Shopping, em Porto Alegre, dentro do projeto “Cinepsiquiatria” (promovido pelo Centro de Estudos Cyro Martins, Associação Brasileira de Psiquiatria e Associação Psiquiátrica da América Latina), a base do conflito pessoal de Salomé estava na figura da mãe. Autoritária e repressiva e, por isso, masculinizada em termos de padrão de comportamento, a imagem da mãe contrastava com a do pai, a quem tivera somente até a puberdade, mas que lhe era afetuoso e protetor, algo “feminino” num contexto tradicional. Isso se refletiu em todos os relacionamentos amorosos dela: quanto mais a encurralavam com sentimentos de paixão viril, como fizeram Nietzsche, Rée e Hendrik Gillot, mais ela recuava. Mesmo Rilke, com quem, depois de anos de autocastração, se entregara em momentos de ardor, foi recusado no momento em que transferira para ela toda a responsabilidade pela existência dele mesmo. Na cena em que, em meio à simbólica vegetação, um descontrolado e atormentado Rilke roga pela mão de Salomé, que lhe responde: “Mas você já tem a mim". 

Realmente, o que chama atenção na personalidade de Salomé são suas convicções. Aquilo que sentia e buscava, mesmo de modo tão espontâneo e explosivo, é o fato de parecer não haver conflito interno entre pensar e agir. A despeito do excessivo racionalismo, seus embates pareciam ser de natureza íntima, mas, sim, exclusivamente com o que a oprimia externamente, o que não a deixava ser o que queria ser: a família tradicional, a Igreja, a autocracia, o sexismo, os preconceitos. A sociedade é que não estava preparada para ela, e não o contrário.

A histórica e polêmica foto de Salomé açoitando Nietzsche e Rée
reproduzida no filme e a original, de 1882
Em sua narrativa bem amarrada e delineada, a diretora, também co-roteirista, consegue estabelecer aquilo que se encontra nas boas cinebiografias: equilibrar uma evidência documental ao sabor da admiração à reluzente personagem que foi Salomé. E com toda a razão, visto que é impossível estabelecer apenas um distanciamento racional uma vez que na própria escolha do objeto biografado já está sinalizada essa admiração – sem que isso, contudo, exclua as impressões críticas sobre o mesmo. O filme tem cenas muito bem montadas, como o momento da célebre foto, que escandalizou a sociedade europeia à época, com Nietzsche e Rée amarrados como animais e ela com um chicote pronta para fustigá-los tal cavalos de tração. Igualmente, a incomum sessão de psicanálise com Freud, assim como as criativas fusões sobre fotos históricas somente com Salomé em movimento. Além disso, Cordula conduz as atuações dos atores com muita competência e sensibilidade, unindo substrato documental com a detecção de elementos emocionais peculiares do que cada personagem quer "dizer".

Não é por coincidência que a maioria dos filmes destas personagens históricas tão essenciais para a emancipação da mulher na sociedade sejam dirigidos, justamente, por mulheres. A própria Salomé já tinha sido tema do filme "Para além de bem e mal", de 1977, também dirigido por uma mulher, a italiana Liliana Cavani, que centrava-se na relação com Nietzsche e Rée. Se elas ainda não são a maioria por trás das telas ou não lhes seja dado o mesmo valor que os homens – basta ver qualquer premiação cinematográfica no mundo, que os mais premiados ainda continuam sendo homens –, ao menos têm cabido às cineastas o fundamental papel de valer-se da arte cinematográfica para desaguar essas histórias. Com as armas que dispõem, a ideologia, essas mulheres do presente são as que hoje dão continuidade à trilha aberta por pioneiras do passado como foi Lou Andreas-Salomé.

Assista ao trailer de "Lou"


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 14 de março de 2018

Música da Cabeça - Programa #50



E chegamos ao Música da Cabeça de nº 50! Para celebrar, a gente traz uma série de coisas legais no programa que vai ao ar hoje. A começar pela entrevista exclusiva com o músico, jornalista, escritor e ilustrador Cadão Volpato. Sim, ele mesmo, da banda Fellini, do antigo programa Metrópolis, da TV Cultura, da Funziona Senza Vapore, dos livros, das ilustrações. Um cara multifacetado que falou com a gente para o quadro “Uma Palavra”. Igualmente especial estará o set-list, que contará com Lincoln Olivetti & Robson Jorge, Caetano Veloso, The Beatles, Sly & The Family Stone e mais. Se não ouvir, não será por falta de aviso, hein? É hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://radioeletrica.com.br/