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sexta-feira, 11 de agosto de 2017

cotidianas #521 - A Sala dos Fundos



Anderson era novo na empresa mas já estava se acostumando com alguns hábitos do lugar. Um deles era o cafezinho das três da tarde quando os homens do escritório se reuniam na copa para, sob o pretexto de tomar um café, botar os assuntos em dia. Os resultados da rodada, o capítulo da série de TV, uma piada de marido e mulher, comentários sobre a nova ascensorista bonitinha, qualquer coisa. E naquele dia um dos assuntos foi a ausência do Max, que costumava encontrar-se ali para a tradicional sagrada reuniãozinha de cada dia com os colegas. Foi o novato Alan quem deu falta do colega:
- E o Max? Não veio hoje?
- Parece que foi chamado ontem na salinha dos fundos. - respondeu Daniel em tom desconfiado abaixando a xícara da boca pra responder.
Os outros se entreolharam.
- Salinha dos fundos? Que sala? - quis saber o novo funcionário.
- Sabe aquela sala lá no fundo do corredor? A oito? - começou a explicar Daniel - Quem é chamado lá, não volta.
- É demitido? - concluiu Anderson.
- Não! Eu disse que NÃO VOLTA. - explicou Daniel dando especial ênfase às palavras finais.
- Como assim? - quis saber Anderson verdadeiramente intrigado.
Desta vez foi William quem se antecipou e falou:
- Tinha um funcionário aqui, o Lucas, um dia anunciaram pelo alto-falante para que ele comparecesse à sala, a dos fundos. Ele foi lá. Entrou e nunca mais foi visto.
- Ah, vocês é que não viram. Deve ter saído enquanto vocês trabalhavam, enquanto estavam aqui no café. Vai ver ficou constrangido por ter sido demitido e nem quis se despedir de ninguém. - explicou Anderson tentando ser lógico.
- Pensamos nisso também, num primeiro instante. Mas as coisas dele ficaram aqui, ninguém veio buscar até que um dia veio o pessoal da limpeza, recolheu tudo e levou em uma caixa de papelão.
- Devem ter levado para entregar pra ele. - argumentou o rapaz tentando ser ponderado novamente.
- Ok, mas aí outro dia, alguns meses depois foi o Alan. Também... Foi chamado lá, foi até a salinha, entrou e não saiu. Como já estávamos intrigados pela primeira vez, prestamos toda atenção do mundo. Nada! Nos prestamos a ficar depois do expediente para ver se ele saía e nada. Chegou uma hora que cansamos e fomos embora. - acabou de relatar William dando mais um gole no café.
- Deve ter saído por outra porta. Algum de vocês já entrou lá, por acaso?
- É óbvio que não. Ninguém sai. - replicou Max
- Ali não tem outra saída. Não percebe? - argumentou Daniel - De um lado fica o depósito de lixo e do outro é rua. A sala fica na esquina do prédio. Estamos no vigésimo terceiro...
- Deve ter alguma explicação. Pode ter sido chamado para alguma tarefa que durasse muito tempo e vai ver só saiu de madrugada...
- Você acha que não pensamos nisso? Tentamos todas as explicações possíveis. Quando o Diego foi chamado lá, não só esperamos ele sair e ficamos depois do expediente até mais tarde do que da primeira vez, como ainda demos um jeito do porteiro nos mostrar a gravação do circuito interno da noite anterior. Ninguém deixou o prédio de madrugada! - relatava exaltado Daniel.
- Estranho mesmo. - admitiu pela primeira vez o novato.
Dera a hora. Acabara o horário do cafezinho e cada um voltava para sua respectiva estação de trabalho.
Agora Anderson agora não conseguia deixar de pensar naquilo. Mal conseguira trabalhar direito pelo restante do expediente com os pensamentos girando em torno do assunto. Ainda especulava possibilidades sobre os chamados, os sumiços, a sala, quando ali pelo final da tarde, suas divagações foram subitamente interrompidas. Uma voz feminina, ao mesmo tempo sexy e fria, fluía docemente do alto-falante colocado no forro do escritório.
- Sr. Anderson, comparecer imediatamente à sala oito no final do corredor.



Cly Reis


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Eric Clapton - "Me and Mr. Johnson" (2004)



"É uma coisa significativa minha vida ter sido
conduzida e influenciada pelo trabalho de um homem (Robert Johnson)"

"(A música de Johnson) É a melhor música que já ouvi."
Eric Clapton


Disco de discípulo homenageando mestre. Eric Clapton, confesso amante do blues e que já dedicara vários momentos de sua carreira a gravações no gênero, resolvia então depois de muito tempo fazer um álbum inteiro somente com canções do homem que é por muitos considerado o maior nome da história do blues, Robert Johnson. O projeto, no entanto, nasceu meio que por acaso, uma vez que Clapton tinha o compromisso com a gravadora de lançar um novo álbum mas, de repente, vira-se sem tempo hábil para apresentar novas composições. Assim, a solução foi partir para um repertório que conheciam bem e que tirariam de letra. Clapton pediu para que a banda tocasse como se estivesse num bar de beira de estrada e o resultado é um disco extremamente leve, gostoso e solto.
Fora a diferença de tocar com uma banda completa ao passo que, na maioria das veze a única companhia de Johnson era o próprio violão, as canções mantêm suas estruturas e características originais, sem maiores ousadias. "When You Got a Good Friend", "Me and the Devil Blues" e "Kindheart Woman Blues" são praticamente puras, preservando ao máximo a atmosfera original das canções, mas é lógico que um músico talentoso como Clapton dá seus toques pessoais a muitas delas e aseja em solos destruidores e altamente originais mesmo em composições tão consagradas, seja em diferenças sutis nos arranjos. "Last Fair Deal Gone Down", por exemplo, tem uma versão alucinada sendo possivelmente a que mais se distancia da original. "Traveling Riverside Blues" por sua vez sofre uma certa desaceleração e ganha uma mixagem mais trabalhada que a diferencia das demais nesse sentido; "32-20 Blues" carrega no piano; "They're Red Hot" abre mão do ritmo frenético imposto por Johnson; "Hellhound on My Trial" tem um ritmo quebrado, bateria marcante e guitarras surgindo de todos os lados; e "Milkow's Calf Blues" ganha peso lembrando os tempos de Cream e seus blues envenenados.
Um tributo tardio segundo o próprio Clapton que já manifestara o desejo de gravar a obra deste cantor, uma homenagem quase sem querer dadas as circunstâncias, mas que nós, fãs de blues e de boa musica, somos gratos por ter acontecido. Uma justa celebração do blues que carrega, curiosamente, uma estranha ironia, considerando a alcunha pela qual Clapton ficou conhecido e a lenda em torno de Robert Johnson: "Me and Mr. Johnson" seria, por assim dizer, uma homenagem de Deus para o Diabo. 

Cly Reis

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FAIXAS:
1."When You Got a Good Friend" (3:20)
2."Little Queen of Spades" (4:57)
3."They're Red Hot" (3:25)
4."Me and the Devil Blues" (2:56)
5."Traveling Riverside Blues" (4:31)
6."Last Fair Deal Gone Down" (2:35)
7."Stop Breakin' Down Blues" (2:30)
8."Milkcow's Calf Blues" (3:18)
9."Kind Hearted Woman Blues" (4:06)
10."Come on in My Kitchen" (3:35)
11."If I Had Possession Over Judgement Day" (3:27)
12."Love in Vain" (4:02)
13."32-20 Blues" (2:58)
14."Hell Hound on My Trail" (3:51)

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Ouça:
Eric Clapton - Me and Mr. Johnson

terça-feira, 8 de agosto de 2017

sábado, 5 de agosto de 2017

"Personal Shopper", de Olivier Assayas (2016)


Ainda estou entendendo o filme. "Personal Shopper" surpreende apesar de ser tão indefinido. Não sei se essa confusão será positiva para todo mundo, mas particularmente gostei. O brincar com sobrenatural sempre me assusta mas quando feito de maneira inteligente, me cativa. Mas, não, o longa não é essa coisa de horror que você está pensando.
Maureen (Kristen Stewart) é uma jovem que mora em Paris e trabalha como “personal shopper” para uma celebridade local. Ela tem uma capacidade especial para se comunicar com o mundo dos mortos e dividia esse dom com seu irmão, recém-falecido, que parece estar querendo enviar uma mensagem para o mundo dos vivos.
É uma obra muito bem pensada mas sua execução acaba tropeça em alguns pontos. Tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo sem trabalhar bem suas ideias e suas construções. Quer ser um thriller de suspense mas acaba sendo raso, tenta ser uma obra com teor sobrenatural, até inicia bem neste sentido, cria expectativas, mas não as atinge. Sim, entendo que a parte de fantasmas é mais psicológica do que sobrenatural mas isso não fica claro e acaba não sendo explorado pois quado isso pode acontecer, surge um assassinato e a busca do assassino muda o foco do filme.
Sim, ela é uma ótima atriz.
(Me nota, crush!)
Kristen Stewart, está espetacular, assim como estava em “Acima das Nuvens” em sua parceira anterior com o diretor Olivier Assayas. É um papel melancólico, perturbado, de uma atuação física espetacular. O drama psicológico da personagem também é muito bem entregue. Olha! Essa atriz me surpreende a cada dia. A fotografia do longa merece um destaque, sempre puxando para tons mais escuros, ambientes com pouca luz, o que só aumenta nossa tensão em algumas cenas (o popular cagaço).
Apesar de indeciso, o que o torna um tanto arrastando, “Personal Shopper”, consegue entregar um produto agradável fazendo o espectador refletir sobre ele, principalmente em seus 10 minutos finais. Temos uma protagonista que apesar de viver num mundo de futilidade, se mostra totalmente o aposto disso, completamente desapegada. Ao mesmo tempo tem uma vontade ser diferente, nem que seja por alguns minutos pertencer "àquele" mundo. Esse drama/dilema, de estar dividida entre mundos; glamour-desapego, vivo-morto; que se passa na cabeça de Maureen, apesar de confuso é interessante de se assistir. Os momentos em que “Personal Shopper” brinca com terror, no início com a casa abandonada, e o suspense na sequência de troca de mensagens por celular, são incríveis. O filme apenas se perde em querer mostrar muita coisa e não explorar nenhuma por completo. No entanto, prepare-se para ficar pelo menos uma noite pensando neste filme.
O que são essas mensagens no celular? "Mano do céu!"


por Vagner Rodrigues