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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese (2023)


INDICADO A
MELHOR FILME
MELHOR DIREÇÃO
MELHOR ATRIZ
MELHOR ATOR COADJUNVANTE
MELHOR TRILHA SONORA
MELHOR CANÇÃO ORIGINAL
MELHOR DESIGN DE PRODUÇÃO
MELHOR MONTAGEM
MELHOR FOTOGRAFIA
MELHOR FIGURINO
 

Assisto Martin Scorsese no cinema há mais de 30 anos. Desde o célebre “Os Bons Companheiros”, em 1990, até hoje, acompanho a filmografia do cineasta nova-iorquino a cada lançamento, tendo perdido assim, na tela grande, talvez apenas uns dois nesse período. Vi desde produções menos empolgantes, como “Vivendo no Limite” e “O Irlandês” até obras-primas como “Os Bons...”, “Cabo do Medo” e “O Lobo de Wall Street”. Agora, em 2023, posso afirmar que presenciei mais uma de suas grandes realizações: “Assassinos da Lua das Flores”. Estrelado pelos dois atores favoritos do diretor, Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, reúne pela primeira vez, por incrível que pareça, ambos em um filme sob suas lentes, celebrando o encontro de duas gerações de atores/parceiros da longa carreira.

O filme se passa no ano de 1920, na região norte-americana de Oklahoma, rica em petróleo, onde misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage. A série de ocorridos violentos desencadeia uma grande investigação envolvendo o recém-criado FBI, que passa a investigar um esquema maquinado pelo ganancioso pecuarista William Hale (De Niro), que convence seu sobrinho Ernest Burkhart (Di Caprio) a se casar com Mollie Kile (Lily Gladstone) para tirar-lhe as preciosas terras.

Llly no papel da rica indígena Mollie:
atuação que comanda o filme
O entrosamento do diretor de “Taxi Driver” com a dupla de atores é evidente, e isso é uma das forças do filme, tendo trabalhado com De Niro por 9 ocasiões e com DiCaprio, 6, totalizando 15, quase 60% de toda a filmografia do cineasta. “Assassinos...” é conduzido pelo talento da dupla, porém, assim como já ocorreu com Sharon Stone e Margot Robbie, outra atriz tem um papel primordial na trama, formando com eles um tripé narrativo, que dá especial ação à história: Lily Gladstone, no papel de Mollie. Ela divide as atenções da câmera, não raro atraindo-a para si e, mais que isso, ditando o aspecto emocional da história. Além de bonita, Lily é daquelas figuras, que, sob o olhar de Scorsese, tem o poder de dominar a cena quando filmada, principalmente pela força de sua expressividade e olhar, misto de encantamento, força e fragilidade. Quão simbólica é a sua personagem, uma vez que evoca a importância dos povos originários formadores das Américas tão dizimados pela cultura branca europeia.

Para além das boas atuações (que se estende a todo o elenco), “Assassinos...” é tecnicamente perfeito, como é característico do perfeccionista Scorsese. A Direção de Arte, a cargo de Jordan Crockett, em especial, juntamente com a fotografia, a maquiagem e os figurinos, são impecáveis, creio que dignas de indicação ao Oscar para 2024. A trilha sonora, do amigo e ídolo Robbie Robertson, ex-líder da The Band (a qual Scorsese filmara em 1978 no doc “The Great Waltz”) falecido em agosto, é econômica, mas totalmente assertiva, misturando os sons folk do interior norte-americano, desde o blues de raiz e os spirituals de trabalho a temas indígenas típicos. Na edição, mais uma vez a parceira Thelma Schoonmaker, fazendo chover e contribuindo para que um filme de extensas 3 horas e 26 minutos de rolo não perdesse o ritmo.

A multipremiada dupla De Niro/DiCaprio: ao todo,
15 filmes com Scorsese

Aliás, embora a montagem contribua para a coesão da obra, é indiscutível que o resultado final (seja acertado ou não) se deve em última análise ao diretor. E aí entra Scorsese e sua maestria. Com o aval da indústria cinematográfica para fazer produções no formato que quiser, seja longa, curta, documentário, série ou especial, ele não abre mão de estender-se para contar a história a que se propõe. E o faz isso sem provocar sequer uma “barriga” em todo o decorrer da fita! Atuações, música, arte, edição, foto, tudo contribuiu. Mas nada disso funcionaria não fosse a mão habilidosa do cara que já experimentou diversas formas de fazer filme, mas que busca, mesmo passados dos 80 anos de vida, surpreender o espectador. Contumaz crítico da “tecnologização” exacerbada de Hollywood e suas intermináveis e interdependentes franquias Marvel, Scorsese – embora não desconsidere o uso de efeitos especiais, a se ver por “A Invenção de Hugo Cabret”, de 2011 – vale-se da gramática do cinema para extrair nuances narrativas e técnicas que produzam impacto ao espectador. Isso, sim, é inovação. O uso de imagens de arquivo em P&B antigas com imagens de arquivo ”fake”, por exemplo, embora não novos, é um recurso que funciona muito bem em “Assassinos...”, cabendo-lhe perfeitamente à narrativa.

Foto dos verdadeiros Osage usadas
de forma documental no film
e
O roteiro, contudo, é responsável por tamanho sucesso. Escrito pelo próprio Scorsese em conjunto com o premiado Eric Roth (Oscar de Roteiro por “Forrest Gump”, em 1994), a história se baseia no best-seller homônimo do escritor David Grann, o roteiro prevê todos os diversos pontos de flexão e inflexão, estabelecendo o ritmo de uma história complexa e rica em detalhes e delineamentos. A própria escolha do tema, aliás, faz parte de um entendimento maior e, em certo aspecto, “alternativo” de Scorsese como cidadão norte-americano. Assim como outro talentoso cineasta contemporâneo seu, Clint Eastwood, Scorsese ama seu país, mas nem por isso (e até por isso) deixa de evidenciar as barbaridades que constituíram sua sociedade. A mesma abordagem crítica de obras como “Cabo do Medo” e “Taxi Driver” se refletem na sua visão revisionista em filmes históricos, casos de “Gangues de Nova York” e “A Época da Inocência”. É preciso trazer a luz a podridão do passado para que os novos tempos corrijam os rumos.

A este aspecto o roteiro também traz méritos no que se refere à construção psicológica das personagens. A obra original favorece, mas dar corpo a personagens tão complexos no audiovisual ganha uma dificuldade diferente, visto que diversas nuances que a escrita absorve, a tela exige que se escancare. A personalidade contraditória de Ernest, por exemplo, ora um marido dedicado, ora um ganancioso induzido pelo tio, é facilmente indutora a erros, por mais talento que Di Caprio tenha. 

Misturando drama histórico com faroeste, policial e filme de tribunal, Scorsese consegue forjar um filme rico em referências e qualidades diversas, que o colocam entre os melhores de sua longa filmografia. Se serão justos com o velho Scorsese ao indicá-lo ao Oscar, bem como DiCaprio como ator, Lily para atriz e DeNiro em coadjuvante, ainda é cedo para prever. É comum a Academia fazer “vistas grossas” a grandes realizadores como ele, Steven Spielberg, Spike Lee ou Brian De Palma como que fazendo de conta que eles sejam “premiáveis” por si só - erro que a leva, não raro, a ter que dar apressadamente um prêmio logo após cometerem uma descarada injustiça. Nestes vários anos que acompanho Scorsese seja na tela grande ou na televisão, ele ganhou apenas uma vez o Oscar de Direção pelo não mais que competente “Os Infiltrados”, em 2006, por terem-no esnobado pela superprodução “Gangues...” quatro anos antes. Porém, até o começo de 2024, quando começam a pipocar as previsões dos favoritos à estatueta, ainda tem bastante coisa para rolar e a indústria do cinema é muito programada para este período. Mas que seria justo, seria.

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trailer de "Assassinos da Lua das Flores"




Daniel Rodrigues

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

"O Lobo de Wall Street", de Martin Scorsese (2013)






Uma das melhores combinações que existem atualmente no cinema norte-americano chama-se Scorsese/DiCaprio. Um, atrás das câmeras, e o outro, à frente. Martin Scorsese, o mestre que soube impor à indústria mais do que elementos narrativos, fílmicos e estilísticos da cena underground, mas, sim, o seu próprio olhar sensível e afiado sobre a sociedade, o qual acolhe o realístico e o fantástico. Leonardo DiCaprio, por sua vez, é o grande ator hollywoodiano da atualidade, capaz de, como os bons da arte de atuar, encarnar os papeis desde galã até os mais agudos sem parecer ele mesmo de uma atuação para a outra.

Pois “O Lobo de Wall Street” (2013), quinto trabalho em conjunto da dupla, vai além da estreia da parceria no inconsistente “Gangues de Nova York” (2002), em que é Daniel Day-Lewis quem cumpre o “fator Robert de Niro” e não DiCaprio; de “O Aviador” (2004), épico mas de difícil deglutição, já com DiCaprio à frente; e do brilhante e premiado “Os Infiltrados” (2006), em que o panteão de astros (Nicholson, Damon, Wahlberg, Sheen) faz com que os holofotes se dividam. Neste novo longa, porém, a química do trabalho entre os dois está amadurecida e DiCaprio conduz o filme com total controle num papel de difícil equilíbrio dramático, pois construído sobre o perfil psicológico preferido de Scorsese muitas vezes assumido pelo talhado e exemplar de Niro: personalidade obsessiva, ambiciosa, extravagante e depressiva mas com grande poder de atração.

O filme conta a história do “vida loka” Jordan Belfort (DiCaprio), um jovem sem orientação dos pais que vai trabalhar como corretor em Wall Street, onde conhece Mark Hanna (Matthew McConaughey, magnífico nos menos de 10 minutos em que aparece), de quem recebe ensinamentos de como lidar com dinheiro, o que acaba levando para toda a vida. A Segunda-Feira Negra, no entanto, faz com que as bolsas caiam repentinamente e Belfort perca o emprego. Vai trabalhar, assim, numa corretora de fundo de quintal que lida com papéis baratos. Lá tem a ideia de montar uma empresa focada neste tipo de negócio, cujas vendas são de valores mais baixos mas, em compensação, o retorno para o corretor é bem mais vantajoso. Cria, então, ao lado de Donnie Azoff (companheiro de todas as horas e carreiras de pó) e de meia dúzia de amigos na mesma vibe de enriquecer, a corretora Stratton Oakmont, uma máquina de produzir dinheiro que faz com que todos passem a levar uma vida sem limites dedicada ao prazer, ao sexo e às drogas.

Neste sentido, Belfort se parece com Henry Hill (Ray Liotta) de “Os Bons Companheiros” ou Jimmy Doyle (DeNiro) de “New York, New York”, fator este que pode ser a única crítica possível ao filme. Ao rodar uma nova “cinebiografia sem cortes” depois de uma fantasia infantil, "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), e de um terror psicológico, "Ilha do Medo" (2010) – seus dois trabalhos anteriores –, Scorsese estaria repetindo o formato de “Os Bons...”, “Aviador” ou “Touro Indomável”. Sim, de fato. Mas qual o problema? Além de divertir com suas tiradas e cenas de humor grotesco (a cena em que DiCaprio cheira cocaína para anular o efeito de outra droga e reassumir o controle do próprio corpo para salvar o amigo, fazendo um paralelo com o desenho do Popeye comendo espinafre na televisão, é digna dessa classificação) e da habitual montagem hábil da mestra Thelma Schoonmaker, “O Lobo...” é exemplar em atuações, não só do protagonista (Jonah Hill, como Donnie, merece inquestionavelmente um Oscar de Coadjuvante, o qual concorre), mas em condução narrativa, ainda mais tratando-se de uma produção de 3 horas, que o espectador não vê passar tamanha a capacidade de prender-lhe a atenção.

A belíssima Margot Robbie
como Naomi, a esposa de Belfort
Igualmente, o filme presenteia o mundo com a beleza e o talento da australiana Margot Robbie, no seu primeiro papel de relevância em Hollywood, e com a sempre magnífica trilha sonora (que contém coisas como Bo DiddleyAhmad Jamal Trio, Alcatraz, Foo Fighters, Devo e Cypress Hill, sabidamente resultado do gosto pessoal de Scorsese). Mas, como ressaltado anteriormente, é a força cênica de DiCaprio que sustenta “O Lobo...”, de quem o diretor consegue extrair a representação certa daquilo que pretende evidenciar: o sistema esquizofrênico e superficial da sociedade moderna. Ou melhor, da construção dos porquês desse sistema, uma vez que a biografia do contraventor Belfort transcorre da metade dos anos 80 até os dias atuais, acompanhando fatos históricos como a Black Monday, o avanço tecnológico, a entrada de novas drogas no mercado, etc. O fato de o protagonista se tornar um respeitado e rico consultor empresarial (o que, de fato, ocorre, uma vez que a história, roteirizada por Terence Winter, é baseada na autobiografia do próprio Belfort), em contraposição à enlouquecida investida no submundo, elemento psicológico reforçado ao espectador durante todos os minutos antecessores, deixa claro tal crítica. Quem são essas pessoas públicas a quem estamos endeusando? O que está por trás dessa imagem que a mídia engendra e tenta vender ao maior número de pessoas possível? A que caminhos levam a supervalorização do dinheiro e do prazer físico-carnal? Perguntas que ganham novos pontos de interrogação na abordagem realística e desmistificada impressa por Scorsese, coisa que ele alcança novamente e “O Lobo...” assim como faz com maestria desde quando, de fato, acertou a mão, em “Caminhos Perigosos”, de 1973.

É satisfatório saber que “O Lobo...” já é a maior bilheteria de Martin Scorsese em sua carreira, tanto pela torcida pelo filme e a ele, cineasta que sempre apostou no questionamento da sociedade contemporânea e na ruptura com os modelos pré-estabelecidos da linguagem cinematográfica (e sem deixar de reverenciar quem gosta), quanto pelo o que isso representa para o cinema em dias atuais: a proposição de uma visão mais integrada das coisas, sem excessos tanto de ideologias yankees imundas nem de rompimento total com a arte. Nem tanto para blockbuster nem para Dogma 95. Cinema, na sua essência, é saber contar uma história em audiovisual de uma forma interessante e cativante. Pois o novo Scorsese/DiCaprio cumpre isso muito bem. Se vai ganhar algum Oscar, mesmo com o ator principal sendo sério candidato, não se sabe, até porque a Academia já cometeu muitas barbaridades em nome de ideologias políticas duvidosas, e uma implicância com alguma ferida que o filme porventura toque não seria de se estranhar que não leve mesmo alguma estatueta. Mas a torcida é válida, pois predicados não faltam ao longa.

trailler "O Lobo de Wall Street"




domingo, 24 de setembro de 2023

"Conflitos Internos", de Andrew Lau e Alan Mak (2002) vs. "Os Infiltrados", de Martin Scorsese (2006)

 



"Conflitos Internos" é aquele time que ganha, com uma certa facilidade, a maioria dos jogos na sua liga continental. No quesito filme policial certamente ele se destaca em relação a seus concorrentes asiáticos. Uma ótima trama, surpresas, reviravoltas, tensão, a produção de Hong Kong entrega tudo isso e deixa o espectador na constante expectativa de como seu jogo de gato e rato vai terminar. Só que quando ele sai da seu cercadinho e pega um time de uma liga maior, mais tradicional, mais bem preparado, com maior investimento, um elenco milionário e um baita treinador, não dá nem pra saída. Embora não seja regra que com todas essas vantagens um filme norte-americano supere uma produção de mercados alternativos, "Os Infiltrados", no caso específico, atropela seu adversário. Ele é melhor em tudo! Tudo que ele se propõe a fazer melhor que o original que o inspirou, ele consegue. O enredo tem mais elementos, o roteiro é mais bem trabalhado, a trilha sonora é excelente, a parte técnica é superior (luz, som, maquiagem...), Martin Scorsese, um dos maiores diretores de todos os tempos, conduz o filme de forma precisa e seu time conta com, nada mais nada menos que, Leonardo DiCaprioMatt Damon e Jack Nicholson, sem contar com ótimos coadjuvantes como Vera Farmiga, Martin Sheen e Mark Wahlberg

Com algumas pequenas diferenças, basicamente a trama nos dois casos, nos apresenta um agente de polícia trabalhando infiltrado na máfia, e um "afilhado" de um mafioso, moldado dentro da polícia, formado na academia, a serviço do criminoso dentro da força policial. Ambos os lados, percebendo que informações vazam, tanto para a lei quanto para os criminosos, iniciam suas caças particulares ao respectivo informante, gerando situações de perseguição, suspense e constante expectativa.

A refilmagem norte-americana trabalha melhor o início de tudo, constrói melhor a formação inicial dos dois protagonistas, desde suas épocas de bairro, até o desempenho dentro da academia de cadetes. Os motivos que levam à preterição do jovem Billy Castigan para serviços convencionais dentro da polícia e a opção por colocá-lo disfarçado, bem como, do outro lado, a relação muito estreita do mafioso Costello com seu pupilo Colin Sullivan, e a ascensão do rapaz dentro da polícia, tudo é mais bem desenvolvido do que no original, honconguês, que, por sua vez, é bastante breve nesse ponto, dando apenas uma rasa e apressada noção dos fatos, já passando adiante para o momento em que os dois, Chan e Lau, trabalham para lados opostos.

Outra diferença, é que em "Os Infiltrados" a psicóloga da polícia, além de ser namorada de Colin, o filhote de mafioso infiltrado na polícia (Matt Damon), mantém uma relação íntima com o perturbado Billy (DiCaprio), o policial infiltrado na máfia. Já em "Conflitos Internos", ela sequer conhece Lau, o jovem mafioso que se passa por policial, e, embora próxima a Chan, o verdadeiro agente disfarçado, não tem qualquer relação amorosa com ele. A relação da psicóloga com os dois e como ela se desenvolve, a crise no namoro com um deles, e gradual conquista de carinho e confiança com o outro, é importante para o desfecho que Scorsese propõe e, por outro lado, a ausência de um laço emocional da dra. Lee com qualquer um dos dois, torna a resolução da primeira versão frágil e inconsistente.

A propósito, ainda que não queira dar spoiler, tenho que dizer que o final é diferente nos dois e mas no remake nos dá uma sensação um pouco mais confortante, o que não significa que seja melhor ou pior...



"Conflitos Internos" (2002) - trailer


"Os Infiltrados" (2006) - trailer


Mas então vamos ao que interessa.

Você quer bola rolando? Tá aí o que você queria:

O argumento original, cheio de revelações, reviravoltas, surpresas, é ótimo, envolvente, excitante, e isso tudo é um grande mérito do filme asiático, por outro lado, o remake aperfeiçoa essa premissa, lhe dota de mais detalhes e complementos e algumas modificações bastante válidas para o roteiro. Ou seja, "Conflitos..." sai na frente mas leva o empate logo em seguida.

Mas é basicamente o que o time honconguês consegue fazer pois a partir daí a equipe norte-americana deita e rola. Martin Scorsese é mestre e, apesar de "Os Infiltrados" nem ser seu melhor trabalho, conduz o time brilhantemente à vitória. Ele dita o ritmo, da agilidade ao filme e tem uma capacidade ímpar de combinar cenas intensas, fortes, violentas, a uma trilha sonora invariavelmente precisa e de muito bom gosto. 2x1 para os Infiltrados de Scorsese.

O ataque formado por Matt Damon e pelo badalado LeoDiCaprio é competente, joga bem, mas a dupla, no fim das contas, não desequilibra. Leozinho, que é queridinho da imprensa, pedido pela torcida na Seleção, cotado para a Bola de Ouro, na hora do vamos ver, não consegue ser, verdadeiramente decisivo, como se espera dele e faz um  jogo apenas comum. Mark Wahlberg faz bem o papel de volantão, de cão-de-guarda da defesa, Vera Farmiga, surpreende vindo de trás, mas quem faz diferença mesmo no jogo são os veteranos: Martin Sheen, só na experiência, distribui o jogo ali na meuíca, e o cracaço de bola, Jack Nicholson, três vezes Melhor do Mundo da FIFA (ou seja, três Oscar na prateleira), chama o jogo para si, dá um show e guarda o seu. 3x1, Infiltrados.

A cena do chefe de polícia caindo do prédio é mais impactante no filme de 2006, bem como toda a construção da situação que leva a ela é mais inteligente e bem elaborada (4x1); em compensação, o desmascaramento do policial corrupto num terraço de Honk Kong, é boa nos dois, porém mais impressionante plasticamente no primeiro (4x2). Será que o time asiático volta pro jogo?

Não dá, não. 

Toda a situação envolvendo o envelope, a grafia errada por fora, a entrega dele cinema para o informante, a perseguição entre os dois incógnitos pelas ruas, e a revelação de quem estava de posse da informação, tudo é muito mais bem feito no filme de Martin Scorsese. 5x2 no placar.

Como se já não bastasse o banho de bola, o fato de ter levado o Oscar de melhor filme, direção, edição e roteiro adaptado garante mais uma bola na rede para o time de Scorsese e define a vitória dos Infiltrados. 6x2, e ficou barato!

No final do jogo, os atletas trocam as camisetas e aí, sim, ninguém sabe mais quem é de quem, e quem estava de qual lado... Mas aí já não importa mais.

O policial de verdade desmascarando o falso policial nas duas versões
(à esquerda, o original de 2002, e à direita, o remake de 2006)


Com um jogo de movimentação e infiltrações na defesa adversária, 
o time do técnico Martin Scorsese,
atropela a equipe dos treinadores Lau e Mak, 
boa mas cheia de problemas de grupo e conflitos internos.





por Cly Reis

 

sábado, 18 de novembro de 2017

Os 10 melhores filmes de Martin Scorsese



Um dos maiores realizadores vivos do cinema mundial chega aos 75 anos. Não seria necessariamente motivo de comemoração, afinal, não são poucos cineastas que, longevos, atingiram idades semelhantes nos últimos tempos. Porém, está se falando de Martin Scorsese, o mestre do cinema norte-americano, ao mesmo tempo um de seus principais renovadores e um autor de estilo muito próprio e cativante, que une a cultura pop, visíveis influências escolas de grandes diretores do cinema (Kazan, Kurosawa, Kubrick, Ford, Leone) e apuro técnico muitas vezes inigualável.

Pra comemorar os 75 anos de Scorsese, completos no último dia 17, nosso blogger Paulo Moreira escolheu seus 10 filmes preferidos do mestre, cada um com com pequenos comentários:


por Paulo Moreira

1 – OS BONS COMPANHEIROS ("Goodfellas", 1990)

The fucking best!! Perfeição a cada fotograma. TUDO é bom até a mini-participação do Michael Imperoli dos Sopranos como o cara que servia os drinks dos mafiosos e é morto pelo Joe Pesci na mesa de jogo. Trilha-sonora de luxo!

Scorsese com o elenco de 'Goodfellas'

Como ator em 'Taxi Driver'
2 – TAXI DRIVER (1976)


A paranoia americana e novaiorquina em seu apogeu. Jodie Foster nunca foi melhor do que aqui, assim como De Niro.


3 – CAMINHOS PERIGOSOS ("Mean Streets", 1973)

Onde o cinema do Scorsese começa a se mostrar. Outra trilha maravilhosa.

4 – DEPOIS DE HORAS ("After Hours", 1985)

Kafka em NYC. Precisa dizer mais?? E ainda tem uma cena que tira sarro da minha ídola suprema, Joni Mitchell. Griffin Dunne no maior papel de sua diminuta carreira.

5 – TOURO INDOMÁVEL ("Raging Bull, 1980)

Fotografia em P&B pra não chocar com tanto sangue - mal sabia ele que os Sexta-Feiras 13 iriam dar um banho de sangue sem pudor no público. De Niro engorda, emagrece, engorda, emagrece e dá um show. Cathy Moriarty fazendo seu próprio papel de loura platinada entediada. Gostossíssima!!

Com De Niro no ringue-cenário

Outra ponta como ator
6 - O REI DA COMÉDIA ("The King Comedy", 1983)


Rupert Pupkin é o fã maluco do Jerry Lewis. De Niro sensacional e a Sandra Bernhardt incrível. Porque esta mulher não deu certo?

7 – CASSINO ("Casino", 1995)

"Goodfellas" parte DOIS com a atuação estelar da Sharon Stone fazendo a mais louca das mulheres loucas. De Niro & Pesci se amando e se odiando.


Com DiCaprio e Margot no set
8 – O LOBO DE WALL STREET ("The Wolf of Wall Street", 2013)


Uma das cenas mais engraçadas e trágicas do cinema ao mesmo tempo: Leonardo DiCaprio chapadaço tentando chegar em seu carro e não consegue descer a escada.

9 – OS INFILTRADOS ("The Departed", 2006)

Duelo de titãs: DiCaprio & Nicholson mais Martin Sheen, Matt Damon e Mark Wahlberg de troco.

10 – CABO DO MEDO ("Cape Fear", 1991)

Lembro quando saiu este filme o Pedro Ernesto - ele mesmo, o "Demóis" - dizia que tinha de trocar o nome pra ME CAGO DE MEDO!! HAHAHAHAH O casting é outra obra: o loucaço Nick Nolte fazendo o papel de bundão; a grande Jessica Lange da esposa mala, a chatinha Juliette Lewis da adolescente putinha e o De Niro, aqui sim como o Diabo, muito melhor do que no chatérrimo "Coração Satânico".


Conversando com De Niro nos bastidores de 'Cabo do Medo'

sábado, 21 de dezembro de 2019

"O Irlandês", de Martin Scorsese (2019)




Assim que acabei de percorrer as mais de três horas de "O Irlandês", tão logo a porta do quarto fica entreaberta e iniciam-se os créditos, veio a minha cabeça, quase que imediatamente, a dúvida se aquele não seria o melhor filme de Martin Scorsese. Como sabia que iria escrever sobre o filme aqui para o blog, Não que eu precisasse de confirmação mas, por curiosidade, fui dar uma conferida em outras impressões na Internet, em outros blogs, sites e páginas especializadas, para ver se meu entusiasmo fazia sentido ou se eu estava sozinho nessa. Ainda que tenha encontrado os que achassem cansativo, longo, lento, os que não tenham sido fisgados pelo filme, os que comparassem depreciativamente com outros filmes do diretor, uma boa parte das críticas que li, exaltava o novo filme de Martin Scorsese, e não foram poucas as vezes que encontrei a expressão obra-prima. 
O verdadeiro Frank Sheeran, o Irlandês,
interpretado no filme,
com a habitual competência por De Niro.
De fato, diante da ambição e do porte do atual projeto, e com uma filmografia riquíssima como a de Scorsese, não há como deixar de traçar comparativos com trabalhos anteriores como "Os Bons Companheiros" e "Cassino", especialmente, pelos contextos e temáticas mas também pelo nível de qualidade que estas outras obras atingiram. Mas "O Irlandês" não decepciona diante dos trabalhos consagrados do diretor. Pelo contrário, parece tirar o melhor de cada um deles para criar uma nova peça cinematográfica clássica. Tem os traços característicos do cinema do diretor como a narrativa em primeira pessoa, os flashbacks, os travelings, a crueza das cenas de violência, mas guarda um caráter único e novo em relação a seus demais filmes de máfia. Embora tenha uma trilha, como de costume, muito bem escolhida, ela não é tão incisiva quanto em outros momentos pontuando de maneira mais sutil as cenas. "O Irlandês" é muito "Os Bons Companheiros", é muito "Cassino", mas não tem aquela condução, muitas vezes, meio videoclípica do diretor, com o rock'n roll comendo solto emoldurando uma cena movimentada de edição rápida e frenética. Nesse sentido, o novo filme assemelha-se um pouco com "Touro Indomável", um filme mais denso, mais arrastado em seu enredo que, por sinal, também tinha no personagem principal um homem com dificuldades nas relações familiares. "O Irlandês" é sobre família, ou melhor sobre famílias. Um homem, Frank Sheeran, um veterano de guerra conhecido como Irlandês, que conquista a confiança de um gangster, Russel Bufalino, e passa a servir a núcleos da máfia e é indicado por estes mesmos para "trabalhar" com o líder trabalhista, Jimmy Hoffa, tem, por outro lado, enorme dificuldade em conduzir sua vida como marido e pai, especialmente com a filha Peggy (Anna Paquin), que desde cedo entende as atividades do pai e, naturalmente, as desaprova. E é isso, e todos os desdobramentos dessa atuação nesses dois pólos que ele mesmo, Frank Sheeeran, nos conta, já velho, remoendo resignado arrependimentos e remorsos, num lar de repouso. 
A propósito de idade, o tão falado rejuvenescimento digital, especialmente de Robert De Niro, para as cenas de passado de Sheeran, na minha opinião ficou meio artificial demais parecendo, muitas vezes, uma colagem sobre o filme, mas diante de tudo o que a obra como um todo nos oferece, este é um detalhe quase desprezível. A trinca estrelar, Robert De NiroAl Pacino e Joe Pesci, corresponde à expectativa que se alimenta quando se vê nos créditos três nomes de peso como estes. De Niro fazendo um protagonista sorumbático, muitas vezes dividido, às vezes inseguro, mas sobretudo, extremamente convincente; Pesci sóbrio, comedido, mas irrepreensivelmente preciso; e Pacino, um pouco mais vigoroso na atuação que os outros dois, pela característica do personagem, não é menos impressionante e espetacular.
Se é uma obra-prima ou o melhor filme de Martin Scorsese eu não sei, o que me parece certo é que temos mais um grande trabalho na filmografia deste grande diretor que pode ser colocado, sem constrangimento algum, ao lado dos outros dele que já figuram eternos na galeria das glórias do cinema. Bom, talvez um pouco acima deles...


"O Irlandês" - trailer 



Cly Reis

quarta-feira, 31 de março de 2010

"Ilha do Medo", de Martin Scorsese (2010)



Fã de Martin Scorsese como sou, fui no último sábado assistir a "Ilha do Medo", no cinema.
Mais um bom filme deste que é um dos maiores diretores de todos os tempos. Não entra na lista das suas grandes obras como "Taxi Driver", "Os Bons Companheiros" ou "Touro Indomnável", mas  não faz feio, não.Scorsese constrói em "Ilha do Medo" um verdadeiro labitinto psicológico e nos convida a entrar nele. Montando magistralmente e com calma a teia da trama, aos poucos coloca o espectador de tal forma diante dos fatos, que acaba por nos causar as mesmas confusões que afligem a cabaça do detetive Daniels, vivido por Leonardo DiCaprio. No filme, o Detetive Tedy Daniels é chamado a uma instituição penal para presos com distúrbios mentais, situada em uma ilha, a fim de solucionar o desaparecimento ou fuga de uma paciente. Desde sua chegada tudo parece muito estranho e vai ficando mais ainda: os médicos, a paciente, as circunstâncias da fuga, os métodos da entidade, e o próprio detetive Daniels e sua cabeça perturbada pela morte, anos antes, da esposa. A ilha presídio é mostrada sempre com um aspecto sinistro, quase macabro, com pedras escuras, mar revolto, névoas densas, céu cor de chumbo, deixando invariavelmente as cenas e imagens pesadíssimas.
Mesmo não sendo uma obra-prima deste mestre do cinema, mostra com certeza, que ele não se acomodou com um Oscar na estante e à sombra dele passou a fazer filminhos pra "galera". O que se vê em "Ilha do Medo" é exatamente o contrário: um cineasta que mesmo já tendo conquistado tudo, e que ao longo de sua carreira conseguiu agradar o público mais exigente e o público comum, e além disso é saudado pela crítica (o que é difícil), ainda se mostra inquieto, arrisca e busca novos caminhos. E, diga-se de passagem, se sai muito bem nesta experiência. 

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Ponto negativo, pra mim, é essa preferência do diretor por Leonardo DiCaprio em todos os seus últimos filmes.
Cara, não consigo ver nele um grande ator e nem vê-lo com perfil para um papel com este da "Ilha do Medo", por exemplo. Um detetive durão, violento, veterano da 2° guerra. Não sei... Não me cai.
Pode ser um pouco de preconceito meu por tê-lo visto com cara de garoto fazendo papeis de menino bonito, como "rei do mundo" em "Titanic", mas devo dizer que tento não associar a estas coisas e sim enxergar porquê Martin Scorsese gosta tanto de DiCaprio.
Ainda não consegui.




Cly Reis

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

domingo, 4 de abril de 2021

Claquete Especial de Páscoa - 7 filmes sobre a Paixão de Cristo (ou quase isso)




Pode parecer piegas, mas gosto de assistir filmes sobre a Paixão de Cristo na época da Páscoa. Confesso que sou daqueles espectadores que as emissoras, sem constrangimento de serem repetitivas e óbvias, conseguem atingir. Em país católico como o Brasil, no que entra a Semana Santa, começam a pipocar produções de diferentes épocas sobre a Via-Crucis. 

Por mais óbvio que seja, contudo, muitos desses filmes são bastante interessantes, visto que motivam os realizadores, essencialmente cristãos em sua maioria, a produzirem algo que lhes faz muito sentido, que lhes é caro em termos de crença e visão de mundo. Por isso, invariavelmente saem realizações caprichadas, maiúsculas, quando não, superproduções que se destacam, inclusive, na filmografia de alguns grandes cineastas. Casos de John Huston, David Lean e Franco Zefirelli, para ficar em três. 

Então, sem medo de soar enfadonho, vão aqui sete títulos sobre a saga bíblica que, mesmo não sendo-se católico, é, sem dúvida, uma grande história. Digna de filme (s). 


“Paixão de Cristo”
, de Mel Gibson (EUA, 2004)

Mesmo com pé atrás com relação a Mel Gibson em produções nas quais atua, tenho que admitir que os filmes dirigidos pelo ator australiano merecem respeito. Este, em especial, além de trazer uma abordagem realística das últimas horas de Cristo, com cenas de alta violência e crueldade – o que deve ter sido bem verdade – tem o rigor de ser inteiramente falado em aramaico e latim, línguas usadas na época de Jesus Cristo. Sem “estrelas”, é uma realização, por mais criticada que tenha sido à época de seu lançamento, bastante sóbria e circunspecta. 

Ultraviolência na Via-Crucis: controverso filme de Gobson


“A Última Tentação de Cristo”
, de Martin Scorsese (EUA/Canadá, 1988)

O filme que provocou o "cancelamento" de Scorsese, por parte do Vaticano, que fez uma séria marcação ao cineasta após realizar esta ousada adaptação da obra de Níkos Kazantzákis. Blasfema, diria a Igreja. Mas o filme é uma preciosidade. Além da história, que traz uma visão alternativa do que poderia ter sido a vida – e a morte – de Cristo, tem no papel do Messias o ótimo Willem Dafoe, mais Harvey Keitel, Harry Dean Stanton e David Bowie. A trilha, vencedora do Grammy de Melhor Álbum New Age e uma das mais emblemáticas do cinema, é de Peter Gabriel. Polêmico, este as TVs não passam muito, não...






cena de Cristo sendo tentado por Satã em “A Última Tentação de Cristo”



“A Idade da Terra”
, de Glauber Rocha (Brasil, 1980)

Outro título não muito lembrado para a Páscoa, até por conta de sua visão extremamente pessoal, alegórica e crítica da vida de Jesus, da Igreja e das estruturas de poder. Aliás, não uma vida, mas quatro! Geraldo Del Rey, Tarcísio Meira, Jece Valadão e Antônio Pitanga vivem, cada um, a personificação de um Cristo em diferentes realidades sociais: um negro, um militar, um índio e um guerrilheiro. No Brasil, Cristo não precisa de Via-Crucís: ele é crucificado simbolicamente um pouco todo dia. Último filme do gênio do Cinema Novo, que, assim como quase ocorreu com Scorsese, foi seu calvário. Desiludido com a péssima recepção da obra, o cineasta morreria meses depois de seu lançamento.

As quatro personificações de Cristo na visão de Glauber



“A Maior História de Todos os Tempos”
, de George Stevens, 
David Lean e Jean Negulesco (EUA, 1965)

O cara jogou xadrez com o Diabo e encarnou Jesus. Só mesmo um grande ator como Max Von Sydow para se prestar a esses dois extremos com tamanha entrega e competência. Traz ainda no elenco o “épico” Charlton Heston, além de Martin Landau e Telly Savalas. Épico com letra maiúscula codirigido por três feras da Hollywood clássica, George Stevens, David Lean e Jean Negulesco. Bem tradicional em abordagem, o que contrabalanceia as nossas sugestões anteriores. 

Von Sydow: haja versatilidade para quem já deu um "plá" com o Tinhoso...



“A Vida de Brian”
, de Terry Jones (Inglaterra, 1979)

Se é pra blasfemar, então vamos com tudo: “A Vida de Brian”, o hilariante longa da turma da Monthy Pyton, que desfaz a sempre penosa e triste história da Via Sacra de Jesus. Aliás, o filme não é exatamente sobre a vida do filho de Deus, e sim de um pobre coitado, sonso e azarado que é confundido com o Messias. O azar é tanto que o cara, mesmo tentando escapar de todas as maneiras, acaba por ser crucificado junto com o Salvador, numa das cenas mais “épicas” do cinema de comédia, quando cantam “Olhe Sempre o Lado Bom da Vida” ao final. Dando aqui uma letra, a cena, com sua ironia, traz uma mensagem positiva que muito falta ao catolicismo quando se refere ao tema.






a hilária cena da crucificação de "A Vida de Brian"



“O Evangelho Segundo São Mateus”
, de Pier Paolo Pasolini (Itália, 1964)

Quando fizemos um adendo na abertura em que dissemos que nem todos os realizadores eram necessariamente católicos, a referência era tanto a Glauber Rocha quanto, especialmente, a Pasolini. Anarquista e gay, o genial diretor italiano realizou por vontade própria a vida do Salvador através do poético texto eclesial. Talvez, o distanciamento crítico de seu posicionamento político e a sua sensibilidade de poeta – e, claro, seu talento único como cineasta – tenham lhe habilitado a realizar aquele que é o mais fiel filme sobre Jesus e seus ensinamentos – indicado, inclusive, pela Biblioteca do Vaticano, que teve que se render à obra de um filho não-abençoado.






filme completo "O Evangelho Segundo São Mateus”



“Rei dos Reis”
, de Nicholas Ray (EUA, 1961)

Quem não se lembra de filmes como este ou “A Bíblia” na Sessão da Tarde da Sexta-Feira Santa? Mais um típico épico bíblico norte-americano dos anos 60, assim como "A Maior História..." a superprodução de Nicholas Ray tem narração de Orson Welles e trilha de Miklós Rózsa e roteiro de Ray Bradbury. Remake do filme mudo de Cecil B. de Mille, de 1927, em suas mais de três horas de duração, traça a vida de Jesus Cristo, do nascimento até a ressurreição, baseando-se nos quatro evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João), além dos escritos do historiador romano Tácito.

Sermão da Montanha encenado grandiosamente por Ray



Daniel Rodrigues