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terça-feira, 14 de abril de 2009

RPM - "Revoluções por Minuto" (1985)




O DISCO QUE ME FEZ GOSTAR DE ROCK

Disputar em cada frequência
O espaço nosso nessa decadência
da letra de "Radio Pirata"



Meus discos são inegavelmente parte importantíssima da minha vida. Só que alguns deles, em especial, tem papel importante na minha trajetória, por marcarem fases, episódios, vínculos, etc.
O “Revoluções por Minuto” do RPM é um destes discos que carrega uma marca importante em relação à minha vida: foi o disco que me mostrou que eu gostava de rock.
Não foi o primeiro disco que eu ouvi, não foi o primeiro que comprei, não é o melhor álbum nacional e todos os tempos, muito menos o melhor-melhor mesmo de todos, só que ele apareceu em um momento de descobertas. Muita gente começou com Beatles, outros com os Pistols. Descobertas relevantes, por certo. Eu comecei com RPM.
O trouxe hoje para ouvir no carro e ainda hoje percebo o porquê de ter-me despertado para algo que nunca mais me abandonaria, e que eu também não abandonaria mais. O rock.
Mesmo com seu apelo pop quase que pré-fabricado, serviu para despertar a sensibilidade para os elementos básicos do rock, guitarra-baixo-bateria, ainda que a grande estrela instrumental da banda fosse um tecladista, Luiz Schiavon, e que os outros instrumentistas fossem bastante limitados. Mas o fato é que ali se via um vigor de banda e nela os elementos que sempre estiveram presentes no gênero através dos tempos, como a rebeldia, o protesto, a ironia, a sensualidade e até mesmo esse apelo popular mesmo (por que não?) que sempre esteve presente desde que os ídolos são ídolos.
Tudo foi meticulosamente estudado para dar certo. Paulo Ricardo, o frontman da banda, fizera na época uma espécie de estágio em Londres para compor a receita que tinha que dar certo, e fez isso em cima de fórmulas já utilizadas nas últimas décadas e a partir do cenário local do momento que era extremamente criativo e dinâmico. Figuravam naquele momento Smiths, U2, Talking Heads, Cure, rolava o finzinho da new-eave, o fim do punk, o gótico estava na moda e no fundo no fundo o RPM tinha um pouco de tudo isso.
A primeira parte do álbum, que correspondia ao que seria o lado A do LP é a parte mais pop do disco. É onde encontram-se todos os grandes hits . Um riff de guitarra marcante e pungente seguido de um teclado cuidadosamente pegajoso abrem o disco e aí está “Rádio Pirata” com um aviso de que a invasão é inevitável. “Olhar 43”, talvez o maior hit tem um tecladão meio monocórdio, soando meio automatizado, bem grave e forte no início, encaminhando para uma letra totalmente sensual e envolvente que acaba num “tesão” que na época as rádios hesitavam em deixar que aparecesse. Segue “A Cruz e a Espada” baladinha com um clarinete e que falava sobre inocência, primeira vez, e essas coisas bem identificáveis para a meninada da época. “Estação no Inferno” um pouco mais soturna que só veio a ser sucesso mesmo no ábum ao vivo que seguiu este, tinha um clima meio soturno, meio que uma influência daquele cenário londrino estudado por Paulo Ricardo. O lado A fechava com “Loiras Geladas”, outro baita sucesso também muito sensual com o teclado em destaque numa espécie de The Doors/new-wave.
Curiosamente o que correspondia ao lado B, a segunda metade do disco, que não tocou no rádio era mais criativa e complexa como por exemplo a interessante “Liberdade/Guerra Fria” meio darkzinha com toques orientais, e a excelente e dramática ode ao país “Juvenília”. “Pr’esse Vício”, talvez a mais agressiva do disco, soa bem atual com suas referências a terrorismo e confrontos religiosos, e fechando o disco, completamente sintonizada com os dias de hoje, quase 15 anos depois, vem “Revoluções por Minuto” falando de caos econômico, globalização, drogas, consumo, num mundo girando a 78 RPM.
Depois disso o álbum “Rádio Prata Ao Vivo” vendeu como água, a banda fez megashows como nenhuma outra banda nacional havia feito, deu um tempo, voltou e ainda produziu um ótimo disco, “Os Quatro Coiotes”, mas que não teve boa aceitação do grande público. Aí a banda mudou de integrantes, voltou pra alguns caça-níqueis e era isso. O que pode resumir bem a situação atual é o fato de que o criativo e bom tecladista Luiz Schiavon toca atualmente na banda do Domingão do Faustão. Precisa dizer mais?
Depois do RPM descobri que uma banda que eu achava legal mas não sabia o nome era o tal de The Smiths, que uns carinhas de preto todos descabelados eram do The Cure e assim por diante, conheci outras e gostei mais de outras. Mesmo no cenário nacional, logo veio o “Cabeça Dinossauro” e abafou o “Revoluções...”, mas não deixo de ser extremamente grato ao álbum “Revoluções por Minuto” que foi o disco que me fez gostar de rock.
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FAIXAS:
01- Radio Pirata
02- Olhar 43
03- A Cruz e a Espada
04- Estação No Inferno
05- A Furia do Sexo Fragil Contra o Dragão da Maldade
06- Louras Geladas
07- Liberdade, Guerra Fria
08- Sob a Luz do Sol
09- Juvenilia
10- Presse Vicio
11- Revoluções Por Minuto

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Ouça:
RPM Revoluções Por Minuto


Cly Reis

terça-feira, 13 de julho de 2021

Grinders - "Grinders" ou "Skatepunkmusic" * (1987)









"E algum tempo depois,
Um skate eu montei
Ando todos os dias
E feriados também."
trecho de "Minha Vida"

"Ande de skate ou  morra!"
trecho de "Ande de Skate Ou Morra"



Meu primo Lucio Agacê, tradicional colaborador aqui do blog, na época das nossas formações musicais e descobertas sonoras, volta e meia nos apresentava, a mim e ao meu irmão Daniel, alguma novidade dos sons que acabara de conhecer. Recém iniciado no punk e hardcore, empolgado, chegava para nós com aqueles discos esquisitos, barulhentos, com sonoridades agressivas, rascantes, acabamento pobre, não só sonoro mas também gráfico, com artes feitas de colagens muito primárias ou com ilustrações de qualidade bastante deficiente. Eu, na época, ainda muito absorvido pelo rock que tocava nas rádios, na época da explosão do rock nacional, com bandas como Legião Urbana, Ultraje a Rigor, RPM, nem sempre valorizava muito àquelas coisas que meu entusiasmado primo trazia a meu conhecimento e apreciação. Com exceção um que outro que tinha alguma produção um pouco mais caprichada como Inocentes, Cólera, em alguns momentos, e um pouco mais adiante, Ratos de Porão, aquele som do punk nacional me soava excessivamente tosco e mal acabado. No entanto, em meio a esse universo pouco convidativo para meu 'paladar' sonoro, algo me chamou atenção. Uma banda chamada Grinders parecia ter um pouco mais de técnica, seu som era mais limpo, não se limitava aquela chiadeira que mais parecia um vespeiro em polvorosa e, claramente, havia um pouco mais de cuidado, de trato na produção.

Curiosamente, a primeira impressão não foi exatamente positiva pelos motivos certos. Meu primeiro contato com Grinders se deu quando o próprio Lucio me mostrou a coletânea "Ataque Sonoro", na qual a banda tinha duas músicas. Uma delas, "Skate Gralha", para mim estava mais para engraçada do que propriamente para boa, uma vez que, o vocalista, com uma interpretação acelerada, quase indecifrável, depois de esculachar, na letra, um suposto skatista muito ruim, que só atrapalhava na pista, culminava a execração do coitado dando-lhe, no refrão, a sentença definitiva de "animal" ("Pega o skate desse gralha /Sai da pista, animal /Se você quer tesourar /Vai pra casa animal /ANIMAL, ANIMAL, ANIMAL!"). Era engraçado, era divertido, brincávamos imitando aquele refrão mas, para mim, passava longe de ser algo que me agradasse musicalmente e, embora não fosse exclusivamente o que pesasse na minha antipatia, efetivamente, não havia como negar que aquela versão, presente na legendária compilação punk, era bastante precária.

Algum tempo depois, já mais aberto e tolerante, tive a oportunidade de ouvir o disco de estreia dos Grinders e lá estava "Skate Gralha", que, embora ainda totalmente "animal", claramente estava bem mais limpa e mais bem acabada.

Trato mais cuidadoso que, por sinal, todo o disco tinha, até mesmo nas mais ruidosas e selvagens como "Destrua Um Monstro Nazista", "Ande de Skate ou Morra" e "Explorados". Mas não era só a questão do trabalho de estúdio, os Grinders sabiam tocar, tinham bala na agulha, as músicas tinham bons riffs e podia-se até mesmo notar uma pegada meio surf-music e do punk californiano. As duas peças instrumentais, a que leva o nome da banda e abre o disco, "Grinders", e a cover do tema do Homem-Aranha, são exemplares indesmentíveis dessas influências.

Chama atenção também como os gritos da galera punk daquela época, incrivelmente, continuam tão válidos e procedentes ainda hoje, e talvez até mais pertinentes agora do que naquele momento pós-abertura, quando parecia haver uma série de conscientizações em relação a diversos temas e problemas do país por parte da sociedade. "Amém", denunciando os falsos religiosos que se utilizam da ignorância do povo para lucrar, a irônica "Serviço Militar", contra o militarismo, "Destrua Um Monstro Nazista", bem a calhar diante das inúmeras manifestações de extrema-direita que surgem por todo canto, e "Como É Que Pode", que chama atenção para a desigualdade social e a fome, infelizmente, mostram-se extremamente atuais e urgentes. "Ruas de Soweto", uma das melhores, com seu riff vigoroso e sua letra mínima porém sintética ("Os dias são negros pelas Ruas de Soweto"), se hoje não é mais tão atual em relação ao Apartheid sul-africano, não perde a validade, dadas as mostras escancaradas de racismo pelo mundo, e em especial no Brasil, cujo procedimento é apoiado pelo discurso discriminatório do próprio presidente da República.

Mas, em meio a tantos assuntos sérios, há  espaço para o skate, prática muito comum entre o pessoal do punk e hardcore, na época, e que é tema de destaque no disco, não somente com a já destacada, "Skate Gralha", mas também com a ótima "Minha Vida", que relata a satisfação de ter um skate e poder usufruir dele, e a marcante "Ande de Skate ou Morra", lema do pessoal das rodinhas, elevado à condição de hino skatista hardcore pelos Grinders.

O disco ainda tem a pérola, que o finaliza, "Puta Vomitada", que relata o day after de uma noitada, aquela ressaca e os efeitos da bebedeira, numa manhã de domingo em que, tudo que se encontra numa tentativa de assistir TV, é Programa Sílvio Santos, Menudo, RPM , numa crítica à massificação do entretenimento promovido pelas mídias, naqueles idos dos anos 80. Apesar de gostar de RPM, na época e ainda hoje, é um encerramento de disco espetacular que ainda fica melhor com o som de uma descarga de banheiro que joga para o esgoto toda aquela porcaria.

Edições posteriores, em CD, tem alguns extras bem interessantes como uma cover instrumental, ao vivo, de "California Über Alles", dos Dead Kennedy's, que só confirma ainda mais aquela impressão da influência do punk californiano; "Amém" com uma introdução de "oração"; e algumas inéditas, em versão demo, como "Trem Lotado", "Danceteria" e a preconceituosa, porém divertida "Eu Não sou Break".

Ainda que um pouco mais bem produzido que seus contemporâneos, "Grinders" mantém aquela pureza característica punk nacional, na sonoridade, nas composições e nas letras. Aquela crueza, aquela "barulheira" que de início era exatamente o que me incomodava, no fim das contas é o diferencial do punk raiz, do punk proletário, do punk suburbano, e que atesta, sobremaneira, a autenticidade de sua atitude e de seu discurso. 

Dia do Rock e época de Olimpíadas, nada melhor do que trazer toda a força do rock, sua essência, sua atitude, seu caráter contestador, e misturar com esporte, nas mais radicais manobras sobre as quatro rodinhas. E, cá entre nós, poucos esportes têm tanta atitude como o skate.

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FAIXAS:
1. Grinders
2. Skate Gralha
3. Amém
4. Homem-Aranha
5. Minha Vida
6. Destrua Um Monstro Nazista
7. Explorados
8. Serviço Militar
9. Ande De Skate Ou Morra
10. Ruas De Soweto
11 Como É Que Pode
12. Puta Vomitada

Ao Vivo no Woodstock Music Hall(1987)
13. Grinders
14. Skate Gralha
15. Homem-Aranha
16. Amém
17. Como É Que Pode
18. Minha Vida
19. Califórnia (cover instrumental de "California Über Alles", dos Dead Kennedy's)

Demo Tape(1985)
20. É Domingo
21. Grinders
22. Skate Or Die
23. Como É Que Pode?
24. Trem Lotado(TL)
25. Eu Não Sou Break
26. Danceteria

Ao Vivo na Broadway(1985)
27. É Domingo
28. Eu Não Sou Break

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Ouça:

* nome dado à reedição em CD de 2001

por Cly Reis


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

cotidianas #238 - "RPM 33 1/3"


- Como foi que tudo isso começou?
imagem adaptada do filme "Fahrenheit 451"
de François Truffaut
- É meio incerto, mas acreditamos que tenha sido com o advento de um tipo de arquivo físico chamado fita cassete. O conceito de álbum, obras musicais produzidas pelo artista, muitas vezes conceituais, pensadas da capa à última música, começou a desmoronar. As pessoas tinham 60, 90 minutos para gravar o que quisessem e muitos faziam coletâneas descriteriosas. Mas não foi tão grave, muitos ainda gravavam LP's nas fitas e tinham discotecas portáteis. Contudo, o compact disc, um disco digital com maior capacidade e possibilidades de armazenamento, só veio a piorar as coisas: eram 80 minutos no mínimo ou horas intermináveis com os tais arquivos MP3, este por certo você já ouviu falar?
O homem de uniforme laranja concordou com a cabeça e então o outro prosseguiu:
- Este sim foi o começo do fim: o MP3. Cada vez mais compactaram-se aparelhos, as possibilidades de agrupamentos de arquivos musicais eram infinitas. Aparelhos portáteis cada vez menores no tamanho mas com cada vez maior capacidade interna. Todos só faziam compilações pessoais. Os álbuns foram deixando de existir. Para eles, lá em cima, era perfeito. Enquanto as pessoas ouvissem música em seus aparelhos apenas para ir ao supermercado, correr, fazer musculação, cada vez mais iam perdendo os critérios, o senso crítico, iam pensando cada vez menos...
Baixou a cabeça como a lamentar pelo que estava relatando mas tomou novo fôlego e continuou:
- Mas não era suficiente, você entende? Tinham que se certificar que não estivéssemos ouvindo uma obra inteira nos nossos aparelhos, que não tivéssemos a contestação sarcástica de um Dylan, a fúria de um Kurt Cobain, o ódio de um Johnny Rotten, a politização de um Bob Marley. Nada que nos fizesse pensar. Aí começaram as proibições. Primeiro passou a ser proibido ter aparelhos antigos em casa. Toca-discos, 3 em 1, gramofones, tudo o que tocasse os antigos discos de vinil.
- O que eram esses... discos de vinil? - perguntou o ouvinte.
- Eram os LP's dos quais falei. Discos, disco mesmo. De mais ou menso 30 cm de diâmetro, havia menores, os compactos, mas a maioria eram os grandes, conhecidos como bolachões. Tinham faixas gravadas em ambos os lados e eram reproduzidos em aparelhos giratórios, mais comumente a 33 e 1/3 rotações por minuto, pelo contato de uma agulha que lia sua superfície. A agulha ia deslizando da borda externa para dentro e assim que chegava no limite interno era necessário que se levantasse a agulha, virasse o disco para se ouvir o outro lado.
- Pouco prático, não? - observou o outro que até então apenas ouvia atento.
- Até pode parecer, mas você não imagina o prazer que dava em sentir o primeiro contato da agulah com o vinil. O chiado que fazia ao roçar nele, a expectativa para o final de cada lado e para o início do outro...
Montag não entendeu muito bem mas acreditou que provavelmente tratasse de algo especial.
- Mas então? Como chegamos a este ponto? Como as coisas são hoje.
Retomou então o homem:
- Bem... não é difícil imaginar. Em seguida aos discos proibiu-se os CD's, os dispositivos portáteis, a compra de arquivos em bloco ou de um mesmo artista, os downloads passaram a ser monitorados pelo governo, foram proibidas então as músicas com letra, instrumentos e por fim, percebendo que até um Beethoven, um Sivuca ou um Glass podem estimular pensamentos mesmo sem palavras, resolveram criar a Rádio Estatal e esse o som que sai das paredes. O único som que é permitido. É lobotômico, você sabia? Deve-se evitar ouvi-lo prolongadamente. Mas a população ouve. Gostaram da música do governo. Aliás o povo sempre foi assim, gosta do que der pronto para ele.
Suspirou fundo, olhou na direção das árvores:
- O K7 até voltou a ganhar alguma força no submundo mas tão logo os homens souberam iniciaram uma nova onda de perseguições e buscas. E é aí onde você entra.
- Mas eu não sou mais um coletor – defendeu-se rapidamente Montag – Eu, eu... durante uma busca para coleta eu peguei um aparelho. Eu não o coloquei na prensa. Guardei no bolso. Eu o levei para casa e consegui ouví-lo. Ainda usei os fones de ouvido da Central, mesmo. Os que usamos para sermos avisados das buscas. Eu ouvi.
- O que você ouviu, Montag. É este o seu nome, não? Montag?
- Sim, é. No aparelho, um reprodutor de MP3 havia um arquivo chamado “Help”. Eu ouvi aquilo... havia uma música chamada “Yesterday”. Ela simplesmente... me fez chorar. Não sabia que músicas podiam fazer isso com a gente.
- Oh, sim... Eles eram conhecidos como The Beatles. Dizem que foram os maiores. “Help!” foi um grande álbum – confirmou o outro com ar de satisfação – A música é muito poderosa. Por isso não querem que as ouçamos.
- Quer ficar conosco?
- Adoraria. Ainda mais agora que sou uma espécie de “ameaça ao governo” - riu.
- Pois bem, aqui somos apenas uns 80, mas há muitos outros em muitas outras colônias clandestinas como esta pelo mundo afora. Pessoas dispostas a manter vivo o encanto, a magia e o ideal dos artistas e das suas obras fonográficas. Não foi pensado! Na verdade tudo começou meio que por acaso. Um homem aqui, outro ali, amante incondicional de música tratou de guardar no lugar mais seguro e intransponível, seu cérebro, no mínimo, uma música que amasse muito. Todos os detalhes possíveis, a melodia, a entonação, a batida, um ruído secreto. São homens-música. Deu-se que calhou de juntarmo-nos aqui e nestes outros lugares que falei, onde o governo ignora ou prefere que fiquemos desde que não “importunemos” sua ordem. O que eles não sabem é que assim que temos notícia de que uma outra “música” que faça parte de uma obra esteja pronta, tratamos de trazê-la para cá ou levá-la para onde possa compor um álbum. A propósito, não me apresentei, sou “Águas de Março” de Tom Jobim.
E apontou adiante mostrando:
- Aquele ali é “Non, Je Ne Regrete Rien”, de Édith Piaf; aquele outro sentado é “Little Red Rooster”, de Willie Dixon, na versão de Howlin' Wolf; aquele outro é “Anarchy in the U.K. Dos Sex Pistols; aquela moça bonita de vermelho é “Venus In Furs” do Velvet Underground. E vê aqueles todos juntos? Aquelas nove peassoas? Conseguimos reunir todas as músicas do “Let It Bleed” dos Rolling Stones – sorriu com satisfação.
- Não é fácil – continuou- Nem sempre conseguimos reunir álbuns inteiros, às vezes temos 4, 5 homens-música mas os outros estão espalhados por aí, por outras colônias, ou simplesmente vagando solitários com sua música favorita guardada em sua cabeça até que um dia as músicas sejam permitidas novamente e que aqueles clássicos possam voltar a serem gravados. Você ainda tem o aparelho? O arquivo?
- Sim, sim. Eu trouxe na fuga – apressou-se em mostrar, tirando do bolso.
- Acha que pode decorar sua letra, melodia, os detalhes de sua percussão? Acha que consegue identificar os instrumentos?
- Creio que sim.
- Pois então, ouça bem, ouça quantas vezes precisar e trate de gravar na sua mente. Assim que tiver terminado faremos o que você sempre fez, destruiremos o arquivo para que o governo não tenha motivo para prender qualquer um de nós. Temos alguns fones velhos se precisar.
- Eu gostaria muito.
- Vamos lá. Vamos à cabana buscar – conduzindo Montag com a mão em seu ombro.
No caminho para a choupana que lhes servia de alojamento, passaram por uma menina de uns dezessete anos que cantarolava alto o suficiente apenas para que quem estivesse perto dela conseguisse ouvir, “in dreams i walk with you...”. Era “In Dreams” de Roy Orbison.


Cly Reis

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Legião Urbana - "Dois" (1986)


“Eu não falo porque quero salvar alguém. Eu falo porque gosto. Quem sou eu para salvar alguém? Eu é que tenho que me salvar!”

“Minha geração sempre foi tachada de vazia e idiota. Eu não podia fazer uma besteira.”
Renato Russo


Lembro que ganhei o “Dois” em cassete num Natal. O rock Brasil estava em plena efervescência, “Tempo Perdido” tinha estourado havia pouco tempo e todo mundo queria ter discos de Titãs, RPM, Legião. Pedimos de presente então, eu, o novo do Legião Urbana, e meu irmão, o “Selvagem?” dos Paralamas. Lembro que botamos a fita pra tocar, ali, ainda naquela noite. Iniciava com um ruído de sintonia radiofônica que passava brevemente por “Será”, como que anunciasse exatamente que ali estava uma continuação melhorada do bom álbum de estréia. E “Daniel na Cova dos Leões”, começava então, confirmando bem o refinamento e aperfeiçoamento em relação ao que haviam feito anteriormente, num rock preciso, intenso, numa composição forte claramente mais elaborada que os punks quase crus do disco anterior, com um final clássico com um piano cheio de dramaticidade.
“Quase sem Querer” que a seguia, apresentava uma faceta meio cancioneira que o público não conhecia até então dada a característica do disco anterior. Com um rock acústico de letra introspectiva e intimista Renato expunha sentimentos de tal forma que músicas como esta seriam fundamentais para consolidar a proximidade que o público viria a assumir a partir dali cada vez mais com a banda.
A terceira, “Acrilic On Canvas” tinha um arranjo duro, baixo, com vocal forçado nos graves. Tem como maior mérito o interessante paralelo, cheio de matáforas, entre uma desilusão amorosa e a concepção e pintura de um quadro. Talvez seja a mais amarga e dolorosa do disco.
Já a seguinte, “Eduardo e Mônica”, com sua levada acústica, foi sucesso imediato apesar de sua letra longa, sem refrão e sua historinha de amor. Meio piegas, meio breguinha, é verdade, mas provavelmente fora exatamente isto o que cativara tanto as pessoas. Uma história contada de forma objetiva e direta cheia de ternura e bom humor versando sobre pessoas comuns; comuns como nós.
“Central do Brasil” era um pequeno interlúdio; um lamento acústico, meio sertenejo, breve, servindo praticamente de entrada para um dos grandes hits da banda, “Tempo Perdido”, esta por sua vez, um dos maiores ‘hinos’ da Legião. Talvez seja a que tenha conquistado o público de vez e que tenha efetivamente impulsionado o disco e a popularidade do quarteto de Brasília. Forte, intensa, cheia de sentimento, “Tempo Perdido” mostrava uma levada bem próxima ao som do The Smiths, que na época era influência forte de Renato Russo, desde a sonoridade, passando pelo jeito de dançar no palco e pelas flores que carregava em shows e fotos, assim como Morrissey. Mas “Tempo Perdido” era mais que uma “imitação” de Smiths, era algo como um grito desesperado da juventude e Renato Russo aparecia como uma espécie de representante. Todos nos identificamos na época com Renato porque ele se colocava no nosso mesmo barco e lamentava o fato de que ainda éramos tão jovens e já havíamos perdido tanta coisa.
A seqüência do disco era destruidora com duas pancadas sonoras, “Metrópole” e “Plantas Embaixo do Aquário”, especialmente a primeira, um punk-rock agressivo no melhor estilo Aborto Elétrico.
Seguia então com “Música Urbana 2”, um blues acústico lamentoso e amargo que a seu modo resumia o dia-a-dia nas cidades grandes; e “Andréa Doria”, que vinha em seguida, funcionava como uma de gêmea de “Acrilic On Canvas”, apenas um pouco mais leve sonoramente mas tão triste, infeliz e com o coração tão partido quanto na outra.
“Fábrica”, a seguinte, também lembrava Smiths no som - mais de leve, mas lembrava -, e era uma das mais belas e emocionantes do disco com Renato novamente se colocando junto com a massa, exigindo justiça e elevando valores como honestidade, bondade, igualdade. Era uma espécie de Messias?
Mas seu 'messianismo' ainda estava por mostrar-se mesmo na última faixa, “Índios”, uma letra longa, difícil, construída a partir de uma anáfora cujo verso repetido passaria a ser emblemático para a banda: “quem me dera ao menos uma vez”. “Índios” era um canto de esperança e desesperança ao mesmo tempo, uma demonstração de inocência traída, um clamor de justiça, uma declaração de amor ao país e um pedido de algo em troca. E nós nos sentíamos aqueles índios. Nós éramos a partir de então os índios, e todos sabíamos disso.
Não à toa, a partir daí passou-se a chamar, informalmente e extraoficialmente, os fãs do Legião Urbana de “tribo” e a banda de A legião, como se aquilo tudo do que fazíamos parte fosse uma espécie de seita, de religião.
E era mais ou menos isso, e por incrível que pareça, hoje exatamente 14 anos depois da morte de Renato Russo, não é muito diferente. Já não somos mais crianças, já não somos mais tão jovens quanto o próprio Renato cantou, sabemos que não somos fiéis de ninguém e que essa coisa de líder messiânico é bobagem, mas, independentemente disso, A Legião Urbana, sobretudo na figura de seu líder, ainda preserva essa aura de ascendência sobre uma geração. A geração Coca-Cola.

Renato Russo era soropositivo desde 1989 e morreu em virtude complicações causadas pela AIDS em 11/10/1996.
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FAIXAS:
  1. "Daniel na Cova dos Leões" (Renato Russo/Renato Rocha) – 4:04
  2. "Quase Sem Querer" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha) – 4:42
  3. "Acrilic on Canvas" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) – 4:43
  4. "Eduardo e Mônica" (Renato Russo) – 4:31
  5. "Central do Brasil" (Renato Russo) – 1:34
  6. "Tempo Perdido" (Renato Russo) – 5:03
  7. "Metrópole" (Renato Russo) – 2:42
  8. "Plantas Embaixo do Aquário" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Renato Rocha/Marcelo Bonfá) – 2:53
  9. "Música Urbana 2" (Renato Russo) – 2:40
  10. "Andrea Doria" (Dado Villa-Lobos/Renato Russo/Marcelo Bonfá) – 4:53
  11. "Fábrica" (Renato Russo) – 4:55
  12. ""Índios"" (Renato Russo) – 4:17
* o formato cassete trazia ainda a faixa "Química" que depois vira a fazer parte do álbum seguinte, "Que País é Este".
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Ouça:
Legião Urbana Dois



Cly Reis

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Bezerra da Silva -"Alô Malandragem, Maloca o Flagrante" (1986)

"O Bezerra é o cara mais rock'n roll que eu conheço."
Paulo Ricardo, RPM


“Mas Bezerra da Silva é pagode!”, precipitar-se-ia algum eventual enfezado leitor ao ver “Alô Malandragem, Maloca o Flagrante” nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Ora, amigos, em primeiro lugar, eu não diria que Bezerra da Silva venha a tratar-se extamente de pagode, seria mais apropriado provavelmente dizer samba, samba de raiz ou partido-alto talvez, mas de qualquer modo, ainda que admitindo-se a precisão do seu termo, em momento algum eu afirmei que a seção deveria dedicar-se exclusivamente ao rock e seus assemelhados, a ver-se que por aqui já passaram Miles Davis, Tom Zé, Chico Buarque e outros. Mas mesmo que fosse com este fim, não haveria artista popular mais apropriado que Bezerra da Silva para representar essa relação do pagode (que seja), do samba do morro, do partido-alto com o rock. A crítica social, a digressão, a amoralidade, a rebeldia, a negação, a contravenção, são todos elementos comuns à música de Bezerra com o rock’n roll.
Entre malandros, dedos-duro, cornos, piranhas, bêbados, traficantes e policiais, Bezerra com sua interpretação escrachada confere à música um valor, até antropológico, por assim dizer, com a realidade do morro, da vida nas favelas, o modo característico de falar, as gírias e expressões, os costumes, os procedimentos, as descrições físicas e humanas, tratando tudo com o bom humor e a capacidade intrínseca do brasileiro de rir da própria desgraça.
Tem a denúncia social de "A Rasteira do Presidente"; tem um enterro interrompido pela polícia porque o caixão estaria cheio de muamba na hilária “Defunto Grampeado”; tem uma breve descrição de um espancamento a uma mulher que fora apanhada no flagra ‘enfeitando’ a cabeça do marido (“Quem Usa Antena é Televisão”); tem outra zoação com 'chifrudos' na engraçadísima "Sua Cabeça Não Passa na Porta"; tem a demonstração de desprezo e com os ‘caguetes’ evidenciadas em "Maloca o Flagrante" e "Língua de Tamanduá", e que aparece também em “Malandragem Dá um Tempo”, sendo esta última com o acréscimo da naturalidade ao tratar do uso de drogas; e ainda a relação malandro-mané em “Direitos do Otário”.
É interessante destacar, e muita gente não sabe, que Bezerra não escrevia as músicas, apenas as interpretava com aquele sua maneira toda particular de cantar. As letras incrivelmente bem-humoradas e certeiras eram compostas por ilustres desconhecidos do morro com os mais curiosos nomes como Pedro Butina, Cláudio Inspiração, Beto Sem-Braço e 1000tinho.
Disco muito legal e extremamente divertido. Sexo, drogas, violência, marginalidade... Quer mais rock’n roll que isso?
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FAIXAS:
• 1. Malandragem Dá Um Tempo
• 2. Defunto Grampeado
• 3. Quem Usa Antena É Televisão
• 4. Maloca O Flagrante
• 5. Vovô Cantou Pra Subir
• 6. A Rasteira do Presidente
• 7. Meu Bom Juiz
• 8. Língua de tamanduá
• 9. Na Boca do Mato
• 10. Sua Cabeça Não Passa na Porta
• 11. Os Direitos dos Otários
• 12. Compositores de Verdade

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Ouça:

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Ultraje a Rigor - "Nós Vamos Invadir Sua Praia" (1985)

“...'Inútil' foi nossa melhor sacada, quando conseguimos sintetizar tudo que queríamos falar.
Na época todos tínhamos um inimigo comum
que era a ditadura.
Muitas vezes me perguntavam se eu
considerava todo mundo inútil.
Eu dizia que não, que estavam fazendo
o brasileiro de inútil,
mas que também muitas vezes “somos inútil” porque nós temos até hoje uma mentalidade complicada e
muitas vezes penso que nem queremos mudar. "
Roger




Frequentemente ouço questionarem porquê Roger Rocha Moreira, vocalista, guitarrista e letrista do Ultraje a Rigor, não ultiliza melhor seu Q.I. superior a 140 , um dos maiores entre famosos no Brasil... Olha, acho que, a seu modo, ele faz bom uso dele. E tenho certeza que o utilizou bastante bem, pelo menos, para conceber um dos grandes discos da história do rock nacional, o ótimo "Nós Vamos Invadir Sua Praia" de 1985.
"Nós Vamos Invadir sua Praia" é um discaço de rock'n roll apoiado em letras inteligentíssimas que abordam temas como comportamento, adolescência, diferenças
sociais, relacionamentos, mainstream, política, com malícia e bom-humor sem precedentes no rock nacional.
"Ciúme" e Zoraide" representam o melhor do rock ultrajeano em duas canções que vão direto nas relações entre casais e todas as suas chatices e particularidades; a maliciosa "Marylou" é um country-rock estilizado e exagerado com menções um tanto picantes a certos bichinhos 'safados' da fazenda. "Jesse Go", que o guitarrista Maurício certa vez disse que serviria para o Paulo Ricardo do RPM, ataca com ironia os ídolos fabricados da indústria musical e o estrelismo que os acomete depois da fama; e a ótima "Eu Me Amo" é um genial exercício psicanalítico sobre descoberta de si próprio e autovalorização, na que deve ser provavelmente a única auto-canção de amor da história da música.
"Inútil", com sua concordância propositalmente errada e provavelmente com o riff mais bacana já feito no rock brasileiro, ao contrário do que sempre se disse por aí, não desvaloriza o brasileiro, mas sim, pelo contrário, reafirma a capacidade deste país de fazer tudo tão bem ou melhor que qualquer outro, e à sua maneira, irônicos e escrachados, questionam os motivos pelos quais, mesmo com tanto potencial, tudo o que via-se, naquele Brasil bem menos desenvolvido e promissor do que hoje dos anos 80, eram constantes insucessos e impedimentos nos mais diversos segmentos. "Mim Quer Tocar", outra genial e uma exceção no que diz respeito à ênfase rock'n roll do disco, é um reggae 'preguiçoso' que brinca com a visão estrangeira em relação ao Brasil que supunha muitas vezes ser um país ainda habitado por um bando de índios e selvagens, mas alfineta também a própria auto-depreciação que o povo acabou assumindo em relação ao próprio país.
"Rebelde Sem Causa" talvez a melhor composição do disco, é um surf rock com cores new-wave, com um excente trabalho de guitarra de Roger e uma letra genial na qual um jovem relata o quanto sua vida  é 'chata' pelo excesso de atenção, carinho, bens materiais e tudo o que poderia desejar, numa sutil crítica comportamental (que se estende ao social) a todo mundo que se queixa da vida de barriga cheia. Extremamente atual se formos pensar em bad-boys que queimam índios, chutam negros, agridem prostitutas e homossexuais; filhinhos-de-papai que saem atropelando todo mundo com seus carrões e ficam impunes; babacas que provocam brigas em festas, etc., e cuja grande alegação muitas vezes é que têm problemas psicológicos, não tiveram atenção dos pais, ou que são 'traumatizadinhos'. Ora, veja!
A faixa que dá nome ao disco por sua vez não tem maiores ambições intelectuais e se contém algum recado implícito é apenas o de "Cuidado, nós estamos chegando e não tem como escapar". E não teve mesmo: "Nós Vamos Invadir Sua Praia" não demorou a invadir nas rádios e conquistar o público com seu ritmo contagiante, seu astral muito pra cima, e provavelmentee também, pela identificação das situações bem farofeiras de praia colocadas na letra. A faixa é uma verdadeira festa com participações de Lobão, Ritchie, Selvagem Big Abreu e Léo Jaime se revezando na ordem dos versos do refrão ou soltando pequenos improvisos como o famosa pergunta do Lobão, "cadê a minha farofinha, Roger?" dita lá pelas tantas durante a música como várias outras gracinhas dos outros convidados e integrantes da banda. Provavelmente devia estar uma grande bagunça no estúdio.
A mais fraca do disco é com certeza a faixa "Se Você Sabia" um rockzinho interessante musicalmente e que até tem um solo legal no refrão do baterista Leospa, mas que no fim das contas se revela excessivamente pueril com sua letrinha primária e juvenil sobre o 'drama' de um rapaz que descobre que a namoradinha está grávida.
Para fechar, uma faixa gravada ao vivo extamente para contar com a participação do público que nos shows respondia ao refrão de "Independente Futebol Clube" com uma efusiva saudação. Aquilo tinha que ser registrado em disco. E foi. E ficou um barato. Um rock'n roll gostoso com uma letra aparentemente tola, mas que na verdade não era nada mais nada menos do que uma manifestação de respeito à individualidade. Roger lançava aquele "Nós somos livres, Independente Futebol Clube" e a galera respondia com um entusiasmado "Êêêêêêê!!!
A propósito de show, recentemente a banda voltou a ser comentada depois de ter sido impedida de continuar seu show no Festival SWU pelo pessoal da produção do Peter Gabriel. A galera ficou do lado do Ultraje no incidente e provou que ainda tem a turma do Roger em alta conta e que a banda ainda é uma das mais queridas do país mesmo passados 26 anos desde seu clássico álbum de estreia. Muita dessa solidariedade deve-se também, em parte, à visibilidade que voltaram a ter por conta participação num talk-show na TV. Aí até quem nunca sequer ouviu o "Nós Vamos Invadir Sua Praia" ou alguma coisa da banda na vida, mas que curte o programa acabou apoiando os caras e lembrando que existe (ou existiu) um 'rock nacional'.
Roger com certeza não é o maior gênio da história da música, não é um Dylan escrevendo, não é um McCarteney compondo. Longe disso! Aliás muitas vezes passa por paspalhão. Mas se de alguma coisa lhe serviu ter um Q.I. tão alto como se comenta, ele aplicou a inteligência que o tal índice possa ter-lhe proporcionado para produzir um dos melhores da música nacional de todos os tempos. Álbum que com "Cabeça Dinossauro" dos Titãs, "Selvagem?" dos Paralamas,  "Revoluções por Minuto" do RPM, e o "Dois" da Legião Urbana, completa o quinteto fundamental de grandes álbuns brasileiros dos anos 80.
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A reedição em CD saiu ainda com uns extras, como a censurada "Ricota", a hilária "Hino dos Cafajestes", uma versão marchinha para "Marylou" e versões originais de "Mim quer Tocar", com a letra um pouco diferente, e de"Inútil", bem mais crua e um pouco mais arrastada.
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FAIXAS:
01. Nós Vamos Invadir Sua Praia
02. Rebelde Sem Causa
03. Mim Quer Tocar
04. Zoraide
05. Ciúme
06. Inútil
07. Marylou
08. Jesse Go
09. Eu Me Amo
10. Se Você Sabia
11. Independente Futebol Clube


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Ouça:
Ultraje a Rigor Nós Vamos Invadir Sua Praia




Cly Reis

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

"O Diabo de Cada Dia", de Antonio Campos (2020)

 


Um pastor profano (Robert Pattinson), um casal perverso (Jason Clarke e Riley Keough) e um xerife corrupto (Sebastian Stan) são alguns dos habitantes sinistros de Knockemstiff, uma região remota de Ohio onde o jovem Arvin Russell (Tom Holland) enfrenta as forças externas que ameaçam sua família.

Como diria o pensador moderno, Paulo Ricardo do grupo RPM: “Até onde vai à sua fé?”. "O Diabo de Cada Dia" consegue criar algo muito interessante colocando no liquidificador violência, religião, vingança e sexo, nos entregando, ainda, no final, um prato saboroso, de comer rezando de joelhos (Está bem, não é para tanto é pecado de minha parte dizer isso).

É um ótimo estudo de personagens pois “O Diabo de Cada Dia” consegue nos mostrar a psique de alguns deles, nos atraindo para dentro da história. Para alguns, o longa pode ser arrastado e monótono, para outros, contemplativo, e confesso que, para mim, ele fica no meio termo. Alguns momentos ele acerta em diminuir o ritmo, e apostar no silêncio, em outras, dá até sono.

Muito interessante a forma como a religião liga os personagens e suas vidas, tanto seus passados e presente quanto o futuro, e essa ligação acaba sendo o diferencial do filme. A fé é usada como ferramenta e justificativa para quase todos os atos dos personagens principais, e quando ela não é utilizada diretamente, ela serve como “gatilho” para ações. 

Supernormal construir um santuário para
obrigar seu filho a rezar todos os dias...

Um elenco cheio de estrelas onde todos acabam tendo um bom tempo de tela, sendo que o destaque vai para Robert Pattinson que faz um pastor que, de longe, é um dos personagens mais odiosos; e para Tom Holland, que vive afetado pelo fantasma de seu pai, um extremista religioso, aliás um típico extremista.

Mesmo com seu ritmo uma tanto vagaroso, “O Diabo de Cada Dia” consegue nos prender com seu roteiro bastante envolvente. O longa traz um bom debate sobre a influência da religião na vida das pessoas, mostrando como ela pode ser usada para manipulá-las e, ao invés de incentivá-las a fazer o bem, pelo contrário, tirar delas o que estas têm de pior. Mostra como muitos acabam seguindo cegamente a um líder religioso e aceitando toda e qualquer interpretação que esse líder tem das “palavras de Deus”, a utilizando da forma que mais lhe convém. 

Um filme em que pode-se dizer que não tem mocinho, nem vilão. É cada um fazendo as coisas para o seu próprio bem e, até mesmo você, espectador, vendo a mesma atitude de diferentes personagens, pode julgar uma forma como correta a outra não. Bem fechadinho, ótimo estudo de personagem e cenário, “O Diabo para Cada Dia” é uma ótima pedida para os adoradores da Netflix, Amem!!!

Dois homens que seguem a palvra de Deus.
Pelo menos aos olhos deles mesmos.



por Vagner Rodrigues


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Erasmo Carlos - "Carlos, Erasmo..." (1971)

"A música impediu que eu fosse para o crime"
Erasmo Carlos



Depois de protagonizar junto com Roberto Carlos o estouro da Jovem Guarda, tornando-se um dos artistas de maior popularidade do Brasil, Erasmo, no final dos anos 60, viu-se numa encruzilhada. Roberto, ídolo de multidões, guinara sua carreira para um exitoso e popular estilo misto de bolero, balada e MPB, mais “adulto” que o iê-iê-iê e adequado a uma classe média de um economicamente milagroso país ditatorial. Erasmo, obviamente, não podia ocupar o mesmo lugar que o parceiro. O negócio seria seguir outro caminho. Então, fez uma escolha: dar vazão à sua mente criativa e “alternativa”. O marco inicial e auge desta fase é o brilhante disco “Carlos, Erasmo...” , de 1971. Em clima de reunião musical com os amigos, ele se liberta da pecha de coadjuvante e realiza um álbum “cariocamente” descolado e, ao mesmo tempo, psicodélico, onde se vale do samba, rock, música cubana, soul e baião – não necessariamente nesta ordem.
A começar pelo título, ratificando de qual dos “Carlos” se está falando, o disco é a afirmação da indenidade de Erasmo como artista. E isso se percebe como conceito em todas as faixas, deixando a sua marca em todas elas. Tal como no seu trabalho anterior (“Erasmo Carlos & os Tremendões, 1970), Erasmo gravara uma música de Caetano Veloso; mas desta vez, ao invés de somente interpretar, como bem fizera com a bossa nova “Saudosismo”, Erasmo reinventa a canção do baiano. Encomendada por ele a Caetano, à época ainda no exílio em Londres, “De Noite na Cama” é uma verdadeira ode a esta nova fase do Tremendão: como numa festa com muitas vozes ao fundo e com participação de toda a galera da banda no coro (entre eles os ex-Mutantes Dinho Leme e Liminha), a faixa que abre o disco traz um maravilhoso berimbau acompanhando o baixo (engenhosa ideia que o RPM repetiria 17 anos depois em “A Estratégia do Caos”, do álbum “Os 4 Coiotes”), uma guitarra afiada na base e uma cuíca chorando por toda a melodia. Um show! Misturando samba, soul, rock e baião, Erasmo celebra o Tropicalismo de Caetano e Gil e demarca sua entrada no segundo momento deste movimento, influência que confirmaria nos seus álbuns seguintes daquela década.
O disco traz lindas parcerias com Roberto: a swingada “É Preciso Dar um Jeito Meu Amigo”, a “viajante” “Sodoma e Gomorra” e a rumba “chapada” “Maria Juana” – na qual a dupla, muito antes do Planet Hemp popularizar a verdinha, capciosamente proclamava: “Eu quero Maria Joana”. Outra incrível dos dois é “Mundo Deserto”, um funk no melhor estilo Motown e de ótima letra em que Erasmo solta o gogó, mostrando toda sua influência da black music americana.
O disco traz ainda outras duas pérolas. Uma delas é outra versão de muita criatividade, desta vez prestando vivas a outro amigo tropicalista, Jorge Ben, na genial “Agora Ninguém Chora Mais”. Nesta, Erasmo convoca os parceiros Golden Boys, Fevers, MPB4 e a banda de apoio para cantarem junto com ele, formando uma capa sonora densa e de rara beleza. Com arranjo do maestro-maluco Rogério Duprat, a música de Ben vira um funk sincopado com efeitos psicodélicos, como ruídos “espaciais” e um impressionante solo de sino (!). A guitarra pesada, lembrando Funkadelic, sai dos dedos de outro artista referência do Tropicalismo, o “inglês brasileiro” Lenny Gordin. O resultado é uma obra-prima, que consegue ser melhor que a original. E, como se não bastasse, uma jogadinha genial: o coro, após cantar toda a primeira parte, se duplica na segunda, só que invertendo as estrofes, fazendo com que dois coros se sobreponham, reencontrando-se no final no verso: “Chora maaaaaais...”, o que provoca um efeito impressionante. Simples, mas de pura criatividade. Com poucos recursos (a hoje precária mesa de 16 canais dos estúdios da Phillips), Erasmo alcança nesta música um resultado tão moderno que é de fazer um Beck corar de vergonha.
Quase tão legal quanto, “Dois Animais na Selva Suja da Rua”, de Taiguara, além da letra reflexiva e poética (“Por isso somos iguais/ Nós somos dois animais que se animam/ que se amigam...”), tem a base marcada por notas fortes de piano e um instrumental intenso, chegando ao ápice no refrão, quando todos os elementos se adensam, inclusive a linda orquestração de cordas do maestro Chiquinho de Moraes.
Cult, “Carlos, Erasmo...”, 31º entre os 100 melhores discos da MPB pela Rolling Stone, é seguramente mais vanguardista e contemporâneo do que muita coisa que se faz hoje dentro e fora do Brasil. Ao se comemorar os 50 anos de carreira de Erasmo Carlos, uma justa homenagem a um dos grandes artistas brasileiros vivos.
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FAIXAS:

  1. "De noite na cama"
  2. "Masculino, feminino"
  3. "É preciso dar um jeito, meu amigo"
  4. "Dois animais na selva suja da rua"
  5. "Agora ninguém chora mais"
  6. "Sodoma e Gomorra"
  7. "Mundo deserto"
  8. "Não te quero santa"
  9. "Ciça, Cecília"
  10. "Em busca das canções perdidas nº 2"
  11. "26 anos de vida normal"
  12. "Maria Joana"

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Ouça:
Erasmo Carlos - Carlos, Erasmo...
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Altamente recomendáveis também os discos “Sonhos e Memórias: 1941-1972” (1972), que traz clássicos como “Mané João” e “Mundo Cão” (da trilha do filme “Os Machões”, pelo qual Erasmo foi premiado como Melhor Ator no Festival de Cinema de Brasília), e o excelente “Banda dos Contentes” (1976), disco que marcou época pelo enorme sucesso da faixa de abertura, "Filho Único", da trilha de uma novela da Globo, e que conta também com uma das melhores canções de Gilberto Gil, feita especialmente para Erasmo: “Queremos Saber” (regravada por Cássia Eller no seu Acústico MTV).

Ouça também:
Sonhos e Memórias
Banda dos Contentes

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Música da Cabeça - Programa #67


Poucos fizeram cinema com tamanha beleza como quem compõe uma ária de Mozart. Ingmar Bergman é um deles. No centenário de nascimento do mestre sueco, o Música da Cabeça pontua a importância de sua obra, mas não deixando, entretanto, de trazer várias outras coisas. Tem bastante rock, dos brasileiros Fausto Fawcett, Legião Urbana e RPM até estrangeiros como The Pogues, Pink Floyd, Depeche Mode e R.E.M. Ainda, um “Palavra, Lê” e um “Sete-List” muito especiais, acreditem. Vai ser como assistir um filme do Bergman: senta no sofá não arreda mais pé! Começa às 21h, na tela da Rádio Elétrica, antes da Hora do Lobo. Produção, apresentação e projeção: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Milton Nascimento & Criolo - "Existe Amor" (2020)



"Criolo é um dos artistas mais criativos com quem já convivi na vida. Conheço poucas pessoas que conseguem fazer letra e música do jeito que ele faz." 
Milton Nascimento

“Milton é um ser de luz. Isso não se explica, apenas, se sente.” 
Criolo

Milton Nascimento, além de ser um dos gênios vivos da música mundial, celebrado por gente do calibre de Wayne Shorter, Caetano Veloso, Elis Regina, Herbie Hancock e Esperanza Spalding, é conhecido pela generosidade. Tanto é que seus pares costumeiros, como Wagner Tiso ou Lô Borges, ou esporádicos, como Chico Buarque e Gilberto Gil, o elegem como o melhor parceiro para se escrever música. Generoso, porém, exigente. Não é qualquer um que coassina ou divide com ele o palco ou os microfones – quanto mais, autorias. Criolo, no entanto, está neste seleto time. Desde 2005, quando escreveram a primeira canção juntos, “Dez Anjos”, para o disco “Estratosférica”, de Gal Costa, o rapper paulista entrou para o panteão de compositores a comungarem arte com Bituca como os já citados Chico, Caetano e Gil, bem como os célebres Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô e Márcio Borges e outros privilegiados. O EP “Existe Amor”, produzido por Daniel Ganjaman, deste ano, já chega com o peso de ratificar esse encontro de duas gerações como o mais representativo da MPB na década. Obra essencial para a sustentação da sanidade brasileira, sagazmente contradiz os versos do próprio Criolo para lançar um sopro de esperança e resistência em meio a um caos sanitário, político e econômico que vive o Brasil.

Encontro de gerações e de almas
O impacto é forte, o que não quer dizer que, para isso, tenha-se usado toda a tonelagem. Afinal, o experiente Milton sabe muito bem que tamanho não é documento. Afeito aos formatos mais enxutos de obras sonoras, mesmo tendo lançado uma série de álbuns extensos na carreira – como os duplos “Clube da Esquina I” e “II”, “Milagre dos Peixes – Ao Vivo” e “Txai” –, o mineiro nunca deixou de apostar em compactos e EP’s. Foi assim com o emblemático “Milton & Chico”, de 1977, que trazia apenas duas faixas, as obras-primas “O Sal da Terra” e “1º de Maio”, ou com o também marcante “RPM Milton”, de 1987, quando o experiente músico soube extrair da banda de Paulo Ricardo o melhor que esta guardava já em um período pré-dissolução. Agora, com Criolo, no entanto, o tratamento ganhou ainda maior requinte.

A começar pela sensibilidade inequívoca do pianista pernambucano Amaro Freitas, um dos maiores talentos da MPB/Jazz brasileira dos últimos anos, convidado para tocar e assinar o arranjo de duas das quatro do projeto: a clássica “Cais” (de Milton e Ronaldo, escrita em 1971) e a música a qual se tira sabiamente o controverso título, “Não Existe Amor em SP” (esta, de Criolo, do seu “Nó na Orelha”, de 2011). Amaro dá uma coloração que une nitidez e abstratismo, mas em tons introspectivos, oníricos, que reinventam canções já eternizadas no cancioneiro brasileiro. Mais do que regravações, tomam caráter de ressignificação, principalmente, “Não Existe...”, cuja mensagem deliberadamente crítica de Criolo à sociedade e ao mundo materialista é endossada pelo canto incomparável de Milton.

Não apenas estas duas, mas existe ainda mais amor em “Existe Amor”. Além das duas gravadas com o toque virtuoso de Amaro Freitas, o disco apresenta duas gravações feitas pelos artistas em 2018 com regência de Arthur Verocai, outra lenda da música brasileira, compositor, arranjador e maestro carioca presente em obras memoráveis da MPB como “Por que é Proibido Pisar na Grama”, de Jorge Ben (1971), e “Pra Aquietar”, de Luiz Melodia (1973), além de seus próprios trabalhos solo, considerados cult no Brasil e no exterior. Dessa safra, Milton e Criolo regravam com a fineza dos arranjos de Verocai a já citada “Dez Anjos” e “O Tambor”, esta, parceria dos dois últimos, originalmente registada no último álbum de Verocai, “No Voo do Urubu”, de 2016. Se com Criolo a relação é mais recente, com Milton os caminhos de Verocai se cruzaram já no final dos anos 60, quando participaram do movimento Músicanossa junto de outros compositores como Roberto Menescal e Marcos Valle. Ou seja: tudo em casa, conexões certas em todos os pontos. Outras duas preciosidades que, embora difiram do arranjo contemplativo e da textura pianística das primeiras, em nada destoam no conjunto da obra, formando um disco curto, mas 100% assertivo. Um novo clássico da música brasileira.

Além da qualidade musical, a reunião também tem méritos humanistas. A venda do EP pretende arrecadar projeto R$ 1 milhão para um projeto em conjunto com a agência AKQA e o Coala.Lab para ajudar pessoas durante a pandemia do Coronavírus. Milton, em depoimento sobre a atual situação do país e o desafio cidadão deste momento, falou: “E, diante desse cenário que se mostra cada dia mais absurdo, precisamos fazer a nossa parte, urgente.” O parceiro, por sua vez, engrossa o coro: “'Arte cria energia para a luta contra quem fomenta o mal”. Ao que depender dos dois, a chama da elaboração crítica fará com que os justos sobrevivam a tamanho obscurantismo e perversidade do Brasil atual. Ao contrário de todo o mar de negatividade que se impõem, eles nos dão um lugar - de fala e de escuta. Essa "SP" real e imaginária que representa a todos. A rebeldia, a não aceitação, a insubmissão como maior prova de amor. É a negação dos versos originais ("Não existe amor") como um chamado positivo de salvamento ("Existe Amor"). Por sorte, ele ainda existe em todas as “SP’s” simbólicas a que Milton e Criolo nos loteiam.

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FAIXAS:

1. "Cais" (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - participação: Amaro Freitas - 6:03
2. "Dez Anjos" (Milton/Criolo) - 4:53
3. "Não Existe Amor em SP" (Criolo) - participação: Amaro Freitas - 5:48
4. "O Tambor" (Arthur Verocai/Criolo) - 3:25


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Vídeo de "Cais", com Milton Nascimento, Criolo e Amaro Freitas


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 20 de março de 2017

Zeca Pagodinho – “Zeca Pagodinho” (1986)




“É a hora em que as gravadoras estão investindo no samba.
É a hora de você, Zeca, com seu sangue novo, sua  garra, também fazer e segurar o seu sucesso.”
Arlindo Cruz,
em texto da contracapa do disco


É sabido que o Brasil é um país sem memória, ainda mais quando se trata daquela escrita pelo lado menos favorecido da sociedade, o povo. Num país onde cultura não raro é vista em segundo plano, principalmente a popular, não é de se estranhar que certos acontecimentos importantes desta não sejam nem computados nos anais. Ocorreu bastante disso, por exemplo, com o ritmo mais caracteristicamente brasileiro: o samba. Muitos que curtem seu sambinha hoje descompromissadamente, seja na balada ou no Spotify, nem imaginam que, há bem pouco tempo historicamente falando, este precisava entrar na fila antes de qualquer outro gênero, tanto nacional quanto internacional. Fenômenos como a extinta Princesa AM, rádio de Porto Alegre fundamental na resistência da cultura negra num estado “branco” como o Rio Grande do Sul, eram relegados a mera “coisa de preto”. O samba, assim, marginalizado no passado, mesmo com a explosão de grandes compositores a partir dos anos 60, responsáveis por sua modernização (leia-se Martinho da Vila, Paulinho da Viola, João Nogueira, Beth Carvalho, Jorge Aragão, entre outros), nunca havia decolado de fato na mídia. Isso, até um fenômeno aparecer na metade dos anos 80.

Sopros de resistência, entretanto, sempre houve. Tinha Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão, Alcione, Almir Guineto, Bezerra da Silva e a galera do Cacique de Ramos: Fundo de Quintal, Originais do Samba, entre outros, que mantinham o samba de raiz em alto nível. Porém, precisou que aparecesse um jovem franzino e de voz gostosa, ligado à tradição do samba e frequentador de tudo quanto é pagode na Rio de Janeiro desde cedo. Trazendo algo “especial”, como lhe credita a madrinha Beth Carvalho, Zeca Pagodinho unia a nova cara do samba ao lirismo dos bambas do passado para, em 1986, lançar seu histórico primeiro disco. Se comparado ao que os sambistas de então já faziam, não há novidade em “Zeca Pagodinho”: estão ali o partido-alto clássico, a malandragem do morro e a batucada tocada nos terreiros da periferia. Samba urbano em essência. Mas é justamente esse “quê” peculiar de Zeca – hoje, mais de 30 anos depois, consagrado como um dos maiores artistas da música brasileira – que fez do disco um estrondoso êxito, com mais de 1 milhão de cópias vendidas e hits em todas as rádios do Brasil (não só na guerreira Princesa desta vez).

Sintonizado com a modernidade e a tradição, Zeca convoca compositores da nova geração, Arlindo Cruz, Nei Lopes e Mauro Diniz, ilustres desconhecidos da favela, como Beto Sem Braço, Sereno e Beto Gago, e os soma à velha guarda de Monarco e Ratinho. O resultado é um álbum em que todas as suas 12 faixas estouraram, feito que nem um “Cabeça Dinossauro” dos Titãs ou “Revoluções por Minuto” do RPM conseguiram com tamanha eficácia naquela década. A começar pela brilhante “S.P.C.”, parceria dele com Arlindo. Um dos mais inspirados temas do samba brasileiro, abre o disco trazendo a caprichada melodia característica dos dois, com a tônica no tom alto, que faz com que Zeca precise, já em sua estreia solo, mostrar sua capacidade vocal ao fazer as modulações em “Fá” com desenvoltura. A letra, igualmente, é um primor. Engraçada, cronística, sociológica. Conta a desavença conjugal de um casal da então classe baixa brasileira daquele Brasil de Planos Cruzados que, separando-se, entra em conflito por causa de roupas compradas no nome dela. “Precisei de roupa nova/ Mas sem prova de salário/ Combinamos, eu pagava/ Você fez o crediário/ Nosso caso foi prá cova/ E a roupa pro armário.” Agora, ele quer dar o troco deixando de pagar os carnês para queimá-la na praça. “E depois você quis manchar meu nome/ Dentro do meu métier/ Mexeu com a moral de um homem/ Vou me vingar de você, porque!/ Eu vou sujar seu nome no seu S.P.C.”. Quer situação mais corriqueira na vida da classe pobre brasileira do que essa? Genial.

O alto nível musical não só se mantém como aumenta na sequência com outra canção que virou um clássico na voz de Zeca: “Coração em Desalinho”. Samba-enredo tristonho e romântico dado de presente a ele pelo mestre Monarco, antes, quase foi parar no repertório de Martinho da Vila. Mas o velho portelense achou melhor alcançá-la ao promissor Zeca, que desde pequeno o perseguia pela rua querendo aprender-lhe sambas da antiga. A escolha não podia ser mais acertada. Além de ganhar uma interpretação brilhante, a música virou um tema indispensável nos shows de Zeca até hoje e em qualquer função na quadra de Madureira. A letra é digna dos melhores poetas lusófonos: “Dei afeto e carinho/ Como retribuição/ Procuraste um outro ninho/ Em desalinho/ Ficou o meu coração/ Meu peito agora é só paixão/ Meu peito agora é só paixão...”. No final, quando o tom sobe, elevando a emotividade, é impossível não se comover: ”Agora/ Uma enorme paixão me devora/ Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho curto a minha dor”.

Duas de Sereno, “Jogo de Caipira”, partido-alto em parceria com o craque Nei Lopes (“Isso aqui tá um jogo de caipira/ Quem tem bota banca, parceiro/ Quem não tem, se vira...”), e a romântica “Cheiro de Saudade”, esta, dele com Mauro Diniz (filho de Monarco), que fecha o lado A do formato LP. Antes, entretanto, dois outros sucessos: “Se Eu For Falar de Tristeza” (“Sei que o amor oferece tanta coisa boa/ Eu não vou me preocupar com uma coisinha à toa...”) e a maravilhosa “Quando eu Contar”, mais um partido-alto em que o cantor mostra seus dotes vocais. A rima ligeira e esperta, que remete ao samba-de-roda nordestino (”Iaiá, ô Iaiá/ Minha preta não sabe o que eu sei/ O que vi nos lugares onde andei/ Quando eu contar, Iaiá, você vai se pasmar...”) se adensa no clima de pagode muito bem captado na produção de Milton Manhães, seja pela sonoridade crua, pelo coro das pastoras ou pela descontração de Zeca comandando os microfones.

O partido-alto segue dando o tom no segundo lado com um pout-pourri arrasador, que emenda “Hei de Guardar teu Nome”, “Vou lhe Deixar no Sereno” e o domínio público “Macumba da Nêga". Daquelas que não deixam nenhuma roda de samba parada: é todo mundo chamando no pé! Em seguida, outro destaque do disco e mais um sucesso: “Casal Sem-Vergonha”. Na tonalidade alta típica de Arlindo, é um dos temas românticos mais verdadeiros já escritos na música brasileira, que retrata com docilidade e realismo a relação de um casal da classe baixa, que se desentende, tem ciúme, discute, mas se ama acima de tudo. “A minha vida é um mar de rosa em tua companhia/ Brigamos mil vezes ao dia/ Mas depois as brigas retorna a harmonia/ Às vezes ela é dengosa/ Às vezes é bicho de peçonha/ Sem vergonha/ Somos um casal sem vergonha”. Além da bela melodia, que rima estupendamente criativa que é “bicho de peçonha” com “casal sem vergonha”!

Outro dos nomes do samba moderno, Jorge Aragão, aparece na linda “Quintal do Céu” (“A luminosidade é a luz do nosso amor...”), mais uma que recebe um trato vocal de Zeca todo especial. Toques do samba rural na cadenciada “Cidade do Pé Junto” lembram Martinho, faixa antecessora de duas que, igualmente, tornaram-se clássicos do repertório de Zeca. A primeira é a sincopada “Judia de Mim”, de tamanho sucesso que virou tema de novela da Globo. Raro um brasileiro que não saiba cantar seu refrão: “Judia de mim, judia/ Se eu não sou merecedor desse amor”. O acerto da música não é coincidência, pois, além da letra e do refrão pegajosos, a melodia é rica e bem elaborada, fazendo com que harmonias mais rebuscadas do samba tradicional soem pop. O disco termina, obviamente, com hit: “Brincadeira Tem Hora”, outro infalível partido-alto, daqueles que incendeiam a roda de samba.

Honesta e bem acabada, a estreia de Zeca Pagodinho cumpriu aquilo que o amigo Arlindo lhe pedira: “fazer e segurar o seu sucesso”. Além de alçá-lo ao estrelato, o disco abriu as portas para que o samba, por tanto tempo perseguido, enfim, nunca mais deixasse de ser apreciado pelo grande público. Mauro Diniz, por sua importância e exemplo, considera-o “O” disco; Ubirany, do Fundo de Quintal, espanta-se ainda hoje: “Nunca vi 12 músicas tão bem gravadas e tão bem aceitas. Eu fui um desses que aceitei de coração”. Se a consequência natural foi a enxurrada de “pagodeiros” nos anos 90, não tem importância. O samba, gênero identificador da cultura brasileira, está aí hoje aceito, consolidado, inserido. E se uma joia como a rádio Princesa há muito não existe mais, ao menos, no tempo que viveu ajudou a escrever essa história em que Zeca é um dos protagonistas. Na prática, todos fizeram o que clamam os versos daquela velha canção: “Não deixe o samba morrer/ Não deixe o samba acabar”. 
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FAIXAS:
1 - S.P.C. (Zeca Pagodinho/Arlindo Cruz) - 3:17
2 - Coração em Desalinho (Monarco/Ratinho) - 3:13
3 - Jogo de Caipira (Nei Lopes/Sereno) - 3:15
4 - Se Eu For Falar de Tristeza (Zeca/Beto Gago) - 3:00
5 - Quando eu Contar (Iáiá) (Serginho Meriti/Beto Sem Braço) - 3:10
6 - Cheiro de Saudade (Sereno/Mauro Diniz) - 3:42
7 - Pout-Pourri de Partido Alto: “Hei de Guardar teu Nome/Vou lhe Deixar no Sereno/Macumba da Nêga" (com Deni) (Arlindo/Adilson Victor/Sem Braço) - 4:26
8 - Casal Sem-Vergonha (Acyr Marques/Arlindo) - 3:41
9 - Quintal do Céu (Wilson Moreira/Jorge Aragão) - 2:39
10 - Cidade do Pé Junto (Zeca/Sem Braço) - 3:07
11 - Judia de Mim (Wilson/Zeca) - 3:52
12 - Brincadeira Tem Hora (Zeca/Sem Braço) - 3:39

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues