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quarta-feira, 21 de junho de 2017

Banda Black Rio - "Maria Fumaça" (1977)




“A Banda Black Rio é um dos maiores acontecimentos musicais desse planeta”.
Lucas Arruda


“Coisa mais séria que tem! Um dos discos instrumentais mais bem feitos no Brasil. Tudo absolutamente certo aqui: temas, timbres, só acerto.”
Ed Motta


O jazz no Brasil teve de caminhar alguns quilômetros em círculos para que obtivesse uma identificação real com o país do carnaval. Em termos de indústria fonográfica, até os anos 70 as apostas sempre estiveram sobre o samba e derivados ou outros gêneros comerciais, como o bolero, a canção romântica, a bossa-nova carioca, os festivais, a MPB e até o rock. Mesmo presente na sonoridade das orquestras das gafieiras ou na bossa nova, o jazz se misturava aos sons brasileiros mais pela natural influência exercida pelos Estados Unidos na cultura latina do que pelo exemplo de complexidade harmônica de um Charlie Parker ou Charles Mingus. Expressões bastante significativas nessa linha houve nos anos 50 e 60, inegável, mas jazz brasileiro mesmo, com “b” maiúsculo, esse ainda não havia nascido.

Por essas ironias que somente a Sociologia e a Antropologia podem explicar, precisou que o gênero mais norte-americano da música desse uma imensa volta para se solidificar num país tão africanizado quanto os Estados Unidos como o Brasil. Essa solidificação se deve a um simples motivo: assim como na criação do jazz, cunhado por mentes e corações de descendentes de escravos, a absorção do estilo no Brasil se deu também pelos negros. No caso, mais de meio século depois, pela via da soul music. O chamado movimento “Black Rio”, que estourava nas periferias cariocas no início da década de 70, era fruto de uma nova classe social de negros que surgia oriundos das “refavelas”, como bem definiu Gilberto Gil. Reunia milhões de jovens em torno da música de James Brown, Earth, Wind & Fire, Aretha Franklin e Sly & Family Stone. DJ’s, dançarinos, produtores, equipes de som, promoters e, claro, músicos, que começavam a despontar da Baixada e da Zona Norte, mostrando que não eram apenas Tim Maia e Cassiano que existiam. Tinha, sim, outros muitos talentos. Dentro deste turbilhão de descobertas e conquistas, um grupo de músicos originários de outras bandas captou a essência daquilo e se autodenominou como a própria cena exigia: Black Rio.

Formada da junção de alguns integrantes dos conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição, a Black Rio compunha-se com o genial saxofonista Oberdan Magalhães, idealizador e principal cabeça da banda; o magnífico e experiente pianista Cristóvão Bastos; os sopros afiados de José Carlos Barroso (trompete) e Lúcio da Silva (trombone); o não menos incrível baixista Jamil Joanes; Cláudio Stevenson, referência da guitarra soul no Brasil; e, igualmente impecável, o baterista e percussionista Luiz Carlos. Com uma insuspeita e natural mescla de samba, baião, funk, gafieira, rock, R&B, fusion, soul e até cool, a Black Rio inaugurava de vez o verdadeiro jazz brasileiro. Um jazz dançante, gingado, sincopado, cheio de groove e de rebuscamentos harmônicos.

Banda das mais requisitadas dos bailes funk daquela época, eram todos instrumentistas de mão cheia. Se nas apresentações eles tinham a luxuosa participação vocal de dois estreantes até então pouco conhecidos chamados Carlos Dafé e Sandra de Sá, tamanhos talento e habilidade não podia se perder depois que a festa acabasse e as equipes de som guardassem os equipamentos. Precisava ser registrado. Foi isso que a gravadora WEA providenciou ao chamar o tarimbado produtor Mazola – por sua vez, muito bem assessorado por Liminha e Dom Filó, este último, um dos organizadores do movimento Black no Brasil. Eles ajudaram a dar corpo a Maria Fumaça, primeiro dos três discos da Black Rio, a obra-prima do jazz instrumental brasileiro e da MPB, uma joia que completa 40 anos de lançamento em 2017.

Como se pode supor, não se está falando de qualquer trem, mas sim um expresso supersônico lotado de musicalidade e animação, que transborda talento do primeiro ao último acorde. Sonoridade Motown com toques de Steely Dan e samba de teleco-teco dos anos 50/60. Tudo isso pode ser imediatamente comprovado ao se escutar a arrasadora faixa-título, certamente uma das melhores aberturas de disco de toda a discografia brasileira. O que inicia com um show de habilidade de toda a banda, num ritmo de sambalanço, logo ganha cara de um baião jazzístico, quando o triângulo dialoga os sopros, cujas frases são magistralmente escritas e executadas. A guitarra de Cláudio faz o riff com ecos que sobrevoam a melodia; Jamil dá aula de condução e improviso no baixo; Cristóvão manda ver no Fender Rhodes; Luis Carlos faz chover na bateria. Quando o samba toma conta, praticamente todos assumem percussões: cuíca, pandeiro e tamborim.

Sem perder o embalo, uma versão originalíssima de “Na Baixa Do Sapateiro”, comandada pelo sax de Oberdan, que atualiza para a soul o teor suingado da melodia, e outra igualmente impecável: “Mr. Funky Samba”. Jamil, autor do tema, está especialmente inspirado, fazendo escalamentos sobre a base funkeada e sambada como bem define o título. Mas não só ele: Luiz Carlos adiciona ritmos da disco ao jazz hard bop, e Cristóvão mais uma vez impressiona por sua versatilidade na base de Fender Rhodes e no solo de piano elétrico. Uma música que jamais data, tamanha sua força e modernidade.

O líder Oberdan assina outras duas composições, a sincopada “Caminho Da Roça” e a carioquíssima “Leblon Via Vaz Lôbo”, em que Cláudio e o próprio improvisam solos da mais alta qualidade. Outros integrantes, no entanto, não ficam para trás nas criações, caso de Cláudio e Cristóvão, que coassinam uma das melhores do disco: “Metalúrgica”. Como o título indica, são os sopros que estão afiados no chorus. O que não quer dizer que os colegas também não brilhem, caso de Luiz Carlos, criando diversas variações rítmicas, Cláudio, distorcendo as cordas, e a levada sempre inventiva de Jamil.

A versatilidade e o conceito moderno da Black Rio revisitam outros mestres da MPB, como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Baião”), onde o ritmo nordestino ganha tons disco e funk; Edu Lobo (“Casa Forte”), de quem realçam-lhe a força e a expressividade das linhas melódicas; e Braguinha, quando o lendário choro “Urubu Malandro”, de 1913, vira um suingado e vibrante samba de gafieira. Nota-se um cuidado, mesmo com a sonoridade eletrificada, de não perder a essência da canção, o que se vê na manutenção de Cristóvão nos teclados e da adaptação das frases de flauta para uma variação sax/trompete/trombone.

Outra pérola de Jamil desfecha essa impecável obra num tom de soul e jazz cool, que antevê o que se chamaria anos adiante no Brasil de “charme”. Embora a canção seja de autoria do baixista, é o trompete de Barrosinho que arrasa desenhando toda melodia do início ao fim.

Talvez seja certo exagero, uma vez que já se podia referenciar como jazz “brazuca” o som de Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Airto Moreira, João Donato, Eumir Deodato, Flora Purim, Dom Um Romão, entre outros – embora, a maioria tenha-o feito e consolidado seus trabalhos fora do Brasil. Com a Black Rio foi diferente. Com todos pés cravados em terra brasilis, foi o misto de contexto histórico, necessidade social, proveito artístico e oportunidade de mercado que a fizeram tornar-se a referência que é ainda hoje. Uma referência do jazz com cheiro, cor e sabor latinos. Mas para além das meras classificações, a Black Rio é o legítimo retrato de uma era em que o Brasil negro e mestiço passou a mostrar a riqueza "do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão".

Banda Black Rio - "Maria Fumaça"


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FAIXAS
1. Maria Fumaça (Luiz Carlos Santos/Oberdan) - 2:22
2. Na Baixa Do Sapateiro (Ary Barroso) - 3:02
3. Mr. Funky Samba (Jamil Joanes) - 3:36
4. Caminho Da Roça (J. Carlos Barroso/Oberdan) - 2:57
5. Metalúrgica (Claudio Stevenson/Cristóvão Bastos) - 2:30
6. Baião (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga) - 3:26
7. Casa Forte (Edu Lobo) - 2:22
8. Leblon Via Vaz Lôbo (Oberdan) - 3:02
9. Urubu Malandro (Louro/João De Barro) - 2:28
10. Junia (Joanes) - 3:39

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Carlos Dafé - “Pra que Vou Recordar” (1977)



“A refavela/ Revela o passo/ 
Com que caminha a geração/ 
Do black jovem/ Do Black Rio/ 
Da nova dança no salão”. 
Gilberto Gil, da letra de "Refavela", de 1977

O ano de 1977 foi cheio para a Banda Black Rio. Formada a não muito da fusão de músicos de diferentes origens – os conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição –, eles eram os reis dos bailes black da Zona Norte carioca, que eclodiram nos anos 70. Além das festas,  começaram a ser bastante requisitados para outros projetos. Só entre janeiro e março, gravaram todo o primeiro disco e foram até tema de novela da Globo, Locomotivas. Era o momento deles. Junto com nomes como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo, Hyldon, Toni Tornado, Dom Mita e outros, a Black Rio não só representava como levava o nome da onda sociocultural que mobilizava milhares de negros excluídos pela sociedade. Eram jovens oriundos das "refavelas" em recente processo de ascensão social num Brasil de Ditadura Militar, que passavam agora a demonstrar seu orgulho pela raça, pelo cabelo crespo, pela dança, pela cor da pele, pelo sotaque, pela linguagem. E pelo seu som: brasileiro, mas universal.

Todos da Black Rio eram músicos excepcionais, mas nenhum sabia (pelo menos, ainda) cantar. E para incendiar a galera dos passinhos durante os bailes tinha que ter alguém chamando nos microfones e com presença de palco. Mais do que um crooner. A voz feminina a banda de Oberdan Magalhães achara: uma jovem cantora de voz rouca e potente digna das melhores da black music norte-americana chamada Sandra Sá. Porém, precisava de um gogó masculino também, o que coube perfeitamente a Carlos Dafé.

Cantor de elegância e gingado, Dafé é compositor e multi-instrumentista, capaz de mandar ver no violão, guitarra, baixo, piano, acordeão e vibrafone. Nascido no subúrbio de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, teve no pai (José de Sousa, um funcionário público tocador de chorinho) e na mãe (Conceição Gonçalves, poetisa) o incentivo à musicalidade. Tanto que, aos 11 anos, já estudava no Conservatório de Música e, na fase do serviço militar, fez turnê com o grupo Fuzi 9, do Corpo de Fuzileiros Naval. Toda essa bagagem deixava evidente que Dafé era a figura perfeita para acompanhar a Black Rio. Tanto que não ficou apenas restrito aos bailes. Assim como ocorrera com a própria banda naquele início de 1977, eles correram para o estúdio, quando se concebeu o brilhante “Pra que Vou Recordar”. Igualmente a “Maria Fumaça”, a também estreia da Black Rio, o disco de Dafé completa 40 anos de lançamento em 2017, formando o mais célebre duo de discos da soul music brasileira de todos os tempos.

A lendária Banda Black Rio: grupo de apoio de Dafé em sua estreia
Dançante mas altamente sofisticado, o álbum abre com uma das maiores canções pop já escritas no Brasil: a irrepreensível “De Alegria Raiou o Dia”. Parceria dele com outro craque da soul, Dom Mita, é um arraso em execução, timbres, sonoridade, ritmo. Que tabelinha de Luis Carlos na bateria e Jamil Joanes no baixo! Adicionado a isso, o Fender Rhodes de Cristóvão Bastos, a levada de guitarra de Claudio Stevenson, os sopros: tudo perfeito, encaixado, sonoro, musical. Mesmo sendo seu primeiro registro fonográfico, o já experiente Dafé mostra de largada toda a habilidade como compositor e cantor. A voz rasgada e de pronúncia aberta é, sobretudo, símbolo da afirmação daquela negritude adormecida e, agora, autovalorizada. O fraseado malandro, que opera propositais supressões de fonemas e adiciona ginga noutros, é de visível inspiração a nomes consagrados da música brasileira, como Seu Jorge e Criolo. Como se não bastasse o funk irresistível, na segunda parte, a “cozinha” entra com um samba-rock que, convenhamos, não tem ninguém que saiba, faça ou entenda como um músico brasileiro – quanto mais se tratando de Black Rio. Também nisso o disco de Dafé guarda semelhança com o debut do conjunto carioca, haja vista que as duas faixas de abertura trazem essa fusão dos ritmos típicos norte-americano e brasileiro como proposta conceitual.

“Tudo Era Lindo” (“Era lindo vagar, me perder de amor/ Correndo a enfrentar um mundo de loucos”) e “A Cruz” (“Se existe uma barreira/ Entre os nossos corações/ Não ligue pra essas coisas/ O importante somos nós”) dão a devida diminuída no ritmo em duas balada cheia de suingue e romantismo. Afinal, todo baile funk pede também aquela hora de dançar de rosto colado! A empolgação volta para homenagear o genial autor de “Superstition” com “Hello Mr. Wonder”, mas a um modo bem brasileiro: soul com muita carga de samba, assim como já haviam apresentado em “De Alegria...”.

Voltando para a pista, “Bem Querer” une a elegância do jazz soul com pitadas de samba, ou seja, tudo o que a turma domina. O coro feminino faz uma tabela perfeita com a voz de Dafé, enquanto Oberdan “apavora” num solo de sax. Merece ainda realce o baixo sempre incrível de Jamil, que não se restringe a simplesmente manter uma base, e, sim, desenhar linhas harmônicas sobre a escala.

A faixa-título (adicionada do complemento “o que chorei”), outro clássico do disco e da black music brasileira, faz jus ao mito. Além de trazer aquele clima das baladas dos mestres “gringos”, como Marvin Gaye e Bobby Womack, ainda adiciona-lhe a “cadência bonita do samba”. E mais uma interpretação impecável de Dafé, cheia de sentimento. Destaque para a levada de Luis Carlos e a guitarra solada de Claudio Stevenson.

“Zé Marmita” começa somente com Cristóvão ao piano elétrico e Dafé introduzindo os primeiros versos para, logo em seguida, cair num novo samba, agora bem suingado. A letra fala de um brasileiro pobre e trabalhador que se deixa levar pela alegria do Carnaval sem pensar que tem que pegar no batente no dia seguinte: “Cantando na avenida, você nem vê que amanheceu/ Esquece até da vida/ Pensa que o mundo agora é seu/ Quero só ver quando a festa acabar/ Coragem pra trabalhar”.

Ainda mais especial é “Bichos e Crianças”, que intercala uma doce melodia (“Dia de domingo/ Quem vai passear?/ Bichos e crianças vão”) com uma disco animada e lúdica cujo ritmo a Black Rio repetiria a dose na trilha do filme “Sábado Alucinante”, de 1979. Já “O Metrô”, última faixa, é o característico funk temperado com pitadas de brasilidade. A timbrística da Black Rio é algo realmente impressionante e improvável: une a sonoridade da Motown, com o padrão Steely Dan, recupera o samba telecoteco de Miltinho e o samba-rock da turma da Tijuca para chegar àquilo que eles mesmos se autodenominam: Black Rio. Ainda, é claro, a qualidade do band leader nos microfones. Um final com o que havia de melhor na cena. Em "Pra que...", Dafé e o time de Oberdan atingem um nível de musicalidade poucas vezes visto no mundo, haja vista que passa pelo funk, pela soul e pelos ritmos brasileiros em constante namoro com o jazz fusion, mas sem ser pedante nem difícil. Pelo contrário: é pop e sofisticado ao mesmo tempo.

Se 1977 ainda era tempo de Ditadura, é de se imaginar que, se a repressão recaía fortemente sobre adolescentes universitários de classe média, imagina se não iria exercer a mesma força a jovens negros da periferia? Bastou os bailes começarem a mobilizar muito mais gente que o esperado e, ainda por cima, ganhar espaço também na “branca” Zona Sul do Rio, que se resolveu dar um basta. Essa coisa de “movimento Black Rio” ou “Black o que fosse” estava começando a ficar perigosa para o governo. Então, para que os donos de equipes de som e artistas começassem a ir para o DOPS foi um passo.“Quando viram aqueles caras dançando junto, com aquelas roupas e cabelos, os militares perceberam que se nasce um líder ali no meio ia dar uma grande merda para o governo”, conta DJ Marlboro, que presenciou a cena. O movimento se tornava, da noite para o dia, subversivo.

A onda Black, pelo menos naquele momento, se esvaziara. Seguiram-se, nos anos seguintes, a última década de Governo Militar, a redemocratização, a era Collor, a ascensão do PT. Paralelamente, entretanto, o grito da periferia não se calara. Vieram o hip-hop, o break, o melô, o funk carioca, o charme, o punkadão. Se a qualidade das manifestações culturais da negritude não acompanhou aquele embrião animador e altamente musical, paciência. A bandeira pela liberdade dos negros havia sido hasteada. Dafé, Black Rio e Cia. cumpriram o papel daquilo que Gilberto Gil captara naquele sociologicamente fatídico 1977 para o Brasil negro: conceber um “samba paradoxal. Algo que só nossa “escola” é capaz. Ou seja: “Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional”.

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FAIXAS:
1. “De Alegria Raiou o Dia” (Carlos Dafé/Dom Mita) - 3:40
2. “Tudo Era Lindo” (Dafé/Jomari) - 3:34
3. “A Cruz” (Dafé/Tânia Maria Reis) - 5:52
4. “Hello Mr. Wonder” (Dafé/Claudio Stevenson/Luiz Carlos dos Santos) - 3:44
5. “Bem Querer” (Dafé/Lucio Flavio/Tião da Vila) - 3:11
6. “Pra Que Vou Recordar o que Chorei” (Dafé) - 3:46
7. “Zé Marmita” (Dafé/Vandenberg) - 3:34
8. “Bichos e Crianças” – (Dafé/Marilda Barcelos) - 2:45
9. “O Metrô” (Dafé/Lucio Flavio/Oberdan) - 2:58

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por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de março de 2014

Tim Maia - "Nuvens" (1982)



“Arlênio pega a pelota/ E passa pro China/ Trindade pisa na bola/ Mas é bom menino.”
da letra de “Haddock Lobo, Esquina com Matoso”



Ed Motta, profundo conhecedor da música soul e, além de tudo, sobrinho de Tim Maia, disse certa vez: “’Nêgo’ tá de bobeira com negócio de [Tim Maia] Racional, muito menos musical. O lance é esse aqui.” O “lance” a que ele se refere é “Nuvens”, que seu tio gravara em 1982. Uma preciosidade da soul music brasileira da fase final da era black rio que Tim foi, se não o principal, um dos protagonistas juntamente com Cassiano, Hyldon, Dom Salvador, Érlon Chaves, Oberdan Magalhães, Carlos Dafé, entre outros craques. Tudo gente da maior categoria, músicos de primeira, a quem Tim, em “Nuvens”, faz questão de reverenciar de uma forma ou de outra.

O disco, assim, é uma volta às raízes da errante carreira desse junkie total chamado Tim Maia (afinal, o cara, cheirava, fumava, bebia e comia, tudo em excesso). Tim já era uma lenda desde o final dos anos 50, antes mesmo apresentar seu gogó de veludo ao mundo do entretenimento. Nos anos 60, viajou, no peito e na raça (negra), para os Estados Unidos em plena ebulição de Luther King e Black Panthers e em uma época que não era comum um preto sul-americano pobre fazê-lo (ainda não é...) para viver no gueto de Nova York fazendo música “y outras cositas mas”. Foi, evidentemente, deportado por porte de drogas... Voltou ao Brasil, foi gravado pelo já ícone Roberto Carlos e fez dueto com outro ícone, Elis Regina. Tudo isso antes do seu aguardado – e confirmado – debut solo, "Tim Maia" (1970) (já resenhado aqui no ClyBlog). Entre sucessos estrondosos ao longo da década seguinte (“Primavera”, “Não Quero Dinheiro”, “Você”, “Azul da Cor do Mar” e mais uma dezenas de hits), Tim também amargou fracassos homéricos, fosse pela sua inabilidade como empresário à frente da gravadora própria, a Seroma, fosse pelo comportamento de toxicômano ou pelo seu temperamento irascível, o que lhe indispunha diretamente com toda a indústria fonográfica. O limite da “irracionalidade” se deu em 1975, quando, em uma séria crise de abstinência, parou com todas as drogas químicas para se viciar na Cultura Racional, uma espécie de seita ocultista cuja filosofia ia do nada ao nada, mas que o motivou a gravar os dois históricos discos “Tim Maia Racional Vol. 1” e “Vol. 2”.

Após o (óbvio) fracasso do projeto (o Racional virou cult no mundo 30 anos depois sem render, no entanto, nenhum centavo ao bolso de Tim) e de um retorno com tudo às drogas, ele limpou-se de novo e ainda se recuperou nas paradas no final dos anos 70, mas tudo com mais baixos do que altos. Curiosamente, a despeito do caixa zerado, esse período de sua carreira é extremamente rico e fértil. Maduro como músico (tocava quase todos os instrumentos, do violão à bateria, além compor, arranjar e de dominar a mesa de estúdio), Tim enfileira discos excepcionais, como os homônimos de 1976 (que contém “Rodésia”) e 1978 (o todo em inglês) e “Reencontro”, de 1979 (o da linda “Lábios de Mel”). “Nuvens”, como Ed Motta ressalta, é o ápice dessa fase, e um dos segredos para tal êxito está justamente na volta às origens. Tim, então chegado aos 40 anos, parecia ter compreendido que era necessário não se afastar de todos, como fizeram na fase Racional, mas, sim, se reaproximar (física ou espiritualmente) daqueles que construíram sua história, expondo, assim, o que ele realmente era: um cara de talento ímpar, excêntrico e difícil, mas generoso e amigo.

Assim, voltam à cena Hyldon, Robson Jorge e, principalmente, o “genial Genival”: Cassiano, cuja participação já lá no primeiro álbum de Tim é fundamental. A faixa-título e de abertura, parceria de Cassiano com o “gringo brasileiro” Deny King, evidencia seu toque refinado. Como destaca Ed Motta: “tema do Cassiano lindaço, moderno harmonicamente”. De fato, a harmonia bossa-novista, com sinuosidades a la Marvin Gaye, ao mesmo tempo romântica e espacial, tem a sua cara. O paraibano contribui ainda com seu falsete e arranjo vocal no refrão, no qual forja, numa improvável alocação, a palavra “você” dentro de apenas meio tempo do compasso sobre um riff de metais matador. Genial. Genival. Cassiano.

O álbum segue com temas interessantíssimos: o sambão romântico “Outra Mulher”, ao estilo “Gostava Tanto de Você”, “Réu Confesso” e “Vou Correndo te Buscar”, característico de Tim; a foliosa “A Festa”, com uma levada de baixo em escala que é de um groove impressionante; a autoavaliativa “Ninguém Gosta de se Sentir Só”, cuja gostosa melodia lembra outra de Tim, “Brother, Father, Sister and Mother” (presente em “Tim Maia”, de 1976); e a balada quase bolero “Deixar as Coisas Tristes pra Depois”, também com a mãozinha de Cassiano no coro. Mais uma fruto de parceria com um “brother”, Robson Jorge, “Ar Puro”, de letra ecologicamente consciente numa época em que não era moda este termo (“Mas eis que estão matando o verde/ E o quê irá sobrar?/ Sujando os mares e os rios/ O volume do ar/ Ar.”), é daqueles soul super dançáveis, igualmente às versões de “O Trem”, tanto o tema instrumental (infalível em qualquer disco de Tim) quanto o “falado”, que tem improvisos super bacanas da banda Vitória Régia.

Ainda no espírito de resgates, Tim chama Hyldon para tocar na regravação do maior sucesso do amigo, “Na rua, na chuva, na fazenda (Casinha de Sapê)”, em que empresta seu vozeirão com direito a ouverdub para a pegajosa letra da canção: “Jogue suas mãos para o céu/ E agradeça se acaso tiver...”. Mas para muitos críticos e fãs é “Haddock Lobo, Esquina com Matoso” – endereço do bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio, ponto de encontro de uns moleques que se tornariam algumas maiores nomes da MPB dos anos 50 até os dias de hoje – o verdadeiro hit de “Nuvens”. “Foi lá que toda a confusão começou”, alerta Tim! Pois foi lá que Tim formou seu primeiro grupo musical juntamente com Roberto Carlos, Arlênio Lívio (aquele que “pega a pelota”), o “bom menino” Edson Trindade (um dos grandes parceiros de Tim ao longo da carreira, autor do clássico “Gostava Tanto de Você”, gravada por Tim em 1973) e Wellington Oliveira, Os Sputniks, posteriormente, renomeado The Snakes, já sem Tim e Roberto mas com as substituições de outro Roberto, o China, e de outro Carlos, o Erasmo. Ele recobra esta origem de subúrbio ao trazer situações e personagens, como Jorge Ben (“A turma estava formada/ Com lindas meninas/ E o Jorge com um camarada/ Era o Babulina”) e os próprios Roberto e Erasmo (“Erasmo, um cara esperto/ Juntou com Roberto/ Fizeram coisas bacanas/ São lá da esquina...”). Como se vê, uma das lembranças gostosas desse tempo está relacionada a futebol, nas peladas que batiam pelas ruas quando meninos. Uma menção breve acerca do esporte, mas bastante simbólica no que se refere ao conceito de resgate emocional (Tim era um jogador de futebol frustrado) que o disco carrega.

Depois dessa passagem nostólgico-futebolística, merecem atenção dois funks. O primeiro,  “Apesar dos Poucos Anos”, de Tim e Cajueiro, mas que quem dá a roupagem caprichada é Cassiano na fineza da harmonia e da linha vocal com sutilezas de Nile Rodgers e Quincy Jones. Por último, justamente a faixa que encerra o disco, “Sol Brilhante”, uma canção, simplesmente, solar, tal seu colorido e boas energias que transmite: “Vê que dia lindo/ Com muito amor, viver sorrindo/ Com este sol da manhã/ Com este sol penetrante/ Sol brilhante...”. Tudo numa execução exata da banda, num ritmo swingado e com vocal aberto, cantado pra fora. Inspiração total. O jornalista e escritor Marcello Campos, admirador e conhecedor da obra do artista, que diz: “’A musica do Sol’ é uma das coisas mais lindamente felizes e inspiradoras que eu já ouvi. Lindo demais.”

Definitivamente, “Nuvens” é um dos mais ricos e bem-acabados trabalhos da longa e sinuosa carreira de Tim Maia, seja pelas interpretações, pelos arranjos perfeitos, pela diversidade rítmica – percebida antes com tanta variedade, a bem da verdade, somente nos Racional – ou pelas referências que absorve, que vão desde Banda Black Rio até Gaye, James Brown, Curtis Mayfield e Stevie Wonder, passando pelos companheiros de rock e soul dos anos 60-70 e o samba carioca. Tudo isso não quer dizer, entretanto, que “Nuvens” tenha sido um sucesso. Marcello Campos confirma isso: “Esse disco é ensolarado como a capa, mas, por questões ‘tim-maianas’, um fracasso de mercado“. Mas, como de costume na obra te Tim Maia, virou mitológico tempo depois. Qual a validade disso? Em relação a Tim Maia, “só não vale dançar homem com homem e nem mulher com mulher”. O resto vale.

"Haddock Lobo, Esquina com Matoso" - Tim Maia


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FAIXAS:
1. "Nuvens" (Cassiano/Deny King) - 3:05
2. "Outra Mulher" - 3:11
3. "Ar Puro" – (Tim Maia/Robson Jorge) - 3:08
4. "O Trem - 1ª Parte" - 1:56
5. "A Festa" - 4:26
6. "Apesar dos Poucos Anos" (Tim Maia/Beto Cajueiro)- 3:24
7. "Deixar as Coisas Tristes para Depois" (Pedro Carlos Fernandes) - 2:58
8. "Ninguém Gosta de se Sentir Só" - 3:13
9. "Haddock Lobo, Esquina com Matoso"- 3:53
10. "O Trem - 2ª Parte" - 1:56
11. "Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapê)" (Hyldon) - 3:38
12. "Sol Brilhante" (Tim Maia/Rubens Sabino) - 2:50
Todas de Tim Maia, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO





sábado, 14 de março de 2015

Aquisições soteropolitanas

No início deste ano, numa das vezes que fui à Bahia a trabalho, peguei um táxi do aeroporto de Salvador com destino a Feira de Santana com um taxista incomum. Um senhor de uns 50 anos, Sr. Gelson, que adorava e conhecia muito bem música africana (e de vários países: Angola, Congo, Mali, Nigéria, entre outros). Papo vai, papo vem e, além de aprender com ele, fiquei sabendo que em Salvador havia lojas de música que o supriam de parte deste exótico material fonográfico. Guardei a informação para quando retornasse à capital baiana.

Pois, desta vez viajando a passeio por Salvador, descobri uma cidade que respira música – o que, vocês devem imaginar, gerou uma forte identificação a alguém que, como eu, anda ininterruptamente com várias músicas na cabeça durante o dia. E não demorou muito para que o cheiro de loja de discos me atraísse. Em plana Praça da Sé, centrão da cidade, está lá a Planet Music, comandada pelo diletante Ademar, sujeito boa-praça que não poupava em deslacrar qualquer CD e colocá-lo para o cliente escutar, mesmo que fosse pra passar rapidamente cada faixa (atitude quase inimaginável no comércio de Porto Alegre). Pois, seguindo o bom gosto do dono, a Planet Music é rica em títulos e muito bem selecionada, além de os preços serem bem aceitáveis.

Entrei, percorri algumas fileiras enquanto tocava (alto) um axé-music qualquer, corriqueiro por lá. Leocádia entrou em seguida. Até que Ademar, de dedo nervoso, para a música pela metade e troca por nada menos que “Saci Pererê”, da Black Rio. Conquistou-me de vez. Levei junto com esses outros CD’s que aqui comento:





Saci Pererê” – Banda Black Rio (1980): Clássico segundo álbum deste que é dos meus grupos brasileiros preferidos. Além da gostosa faixa-título, presente de Gilberto Gil, tem Aldir e João Bosco (“Profissionalismo É Isso Aí”), Zé Rodrix (“Amor Natural”) e composições dos integrantes da banda. Nem a ausência de Cristovão Bastos nos teclados fez Oberdan e Cia. baixarem a qualidade, que, depois do célebre instrumental "Maria Fumaça", se aventuram nos vocais e mandam muito bem.








Marinheiro Só” – Clementina de Jesus (1973): Produzido por Caetano Veloso e Milton Miranda, é talvez o mais bem acabado trabalho desta negra que alçou ao mundo da música já idosa por providencia de Hermínio Bello de Carvalho, que a descobriu cantando num bar. Toda a ancestralidade antropológica africana pode ser sentida em sambas (“Essa nêga pede mais”, “Madrugada”), maxixes (“Marinheiro Só”) e cantos religiosos (“Taratá”, “5 Cantos Religiosos”).







Nada Como um Dia Após o Outro Dia” – Racionais MC’s (2002): O sucessor de “Sobrevivendo no Inferno” é um disco longo demais (pecado dos duplos), por isso é irregular. Mas inquestionavelmente a banda avançou em estilo e discurso, o que faz com que seus dois volumes, “Chora Agora” e “Ri Depois”, tragam verdadeiras joias do rap e da música nacional no início dos 2000. Espetaculares “Vida Loka” 1 e 2, “Jesus Chorou” e “Vivão e vivendo”. Figura entre os 100 maiores discos da música brasileira da história segundo a Rolling Stone.








Negro é Lindo” – Jorge Ben (1971): Embora o Babulina tenha outros VÁRIOS discos preferidos da discoteca, pois produziu absurdamente bem principalmente do final dos anos 60 até meados de 70, este não fica pra trás, até porque a “cozinha” é do espetacular Trio Mocotó. Traz a poética e sensível "Porque é proibido pisar na grama", a bela canção-homenagem “Cassius Marcellus Clay”, parceria com Toquinho, e aqueles sambas-rock sempre inspirados (“Cigana”, “Comanche” e “Zula”) como só Ben sabe fazer.








Força Bruta” – Jorge Ben (1970): Também com o Trio Mocotó, é o mais experimental trabalho de Ben. Ele, Parahyba, Nereu e Fritz estão soltos e se divertindo ao executar os temas ao vivo no estúdio. Não é dos meus preferidos, até porque Ben tem muito mais discos maravilhosos, mas só por “O telefone tocou novamente” (meu toque de celular!), “Charles Jr.” e “Mulher brasileira” já valia. Ainda por cima, inicia arrasando com “Oba, lá Vem Ela", daqueles começos de disco empolgantes.








O q Faço é Música” – Jards Macalé (1998): Se Cristovão Bastos não estava mais com a Black Rio, aqui seu papel é fundamental. Talvez o grande disco de Macalé – ao menos, o seu mais maduro –, "O Q Faço é Música" já mereceu ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do Clyblog, feita por Cly Reis. Eu, que gosto um monte também, não me contive e comentei no próprio blog, que está logo abaixo da resenha.












sexta-feira, 26 de agosto de 2016

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO, ClyBlog 8 anos - Robson Jorge & Lincoln Olivetti - "Robson Jorge & Lincoln Olivetti" (1982)

Minha Bíblia Musical
por Lucas Arruda


“O disco solo do Lincoln Olivetti e do Robson Jorge é uma referência de que é possível fazer um disco bem gravado MESMO, em qualquer condição, basta dedicação e talento”.
Ed Motta



Alegria imensa em poder falar um pouco deste álbum! Pessoalmente, é o disco que mais influenciou em termos de arranjo, sonoridade, composição. Minha bíblia! Um registro magistral da parceria do Robson e Lincoln, dupla de músicos e produtores que dominou a produção musical no Brasil durante a década de 80.

Este disco representa toda a perfeição técnica que os dois sempre buscaram em suas produções e traz um time incrível de músicos, os melhores daquela geração! Paulo Cezar Barros, Jamil Joanes, Picolé, Paulo Braga, Mamão, Oberdan Magalhães, Leo GandelmanMárcio Montarroyos, Bidinho, Serginho do Trombone, Zé Carlos Bigorna e outros brilhantes músicos. Um supertime!

São 12 faixas que trazem a mais perfeita simbiose entre a black music norte-americana e a música brasileira. Os arranjos de sintetizadores explicam porque Lincoln é chamado de mago, e o Robson é sem dúvida um dos maiores músicos que este país viu, embora incrivelmente pouco citado!

A primeira música que ouvi deste álbum foi a balada "Eva". Destaque para o trabalho rítmico das guitarras do Robson nesse disco, assim como a melodia tocada em uníssono com a voz. Aliás, essa é uma característica forte do álbum. Canções instrumentais, com os vocalises do Robson às vezes cantando pequenos trechos de letra, outras vezes a melodia. Tomo a liberdade de dizer que isso me influencia muito.

Tem algo de muito incrível nesse disco! A capacidade de criar hits sem letras, ou com apenas uma palavra, como o clássico “Aleluia!”. Esta é a faixa mais conhecida deste disco, e traz ecos do Earth, Wind and Fire. Ninguém no Brasil conseguiu traduzir essa sonoridade como os dois fizeram. Nota-se também a influência da música latina (“Raton” e o medley “Baila Comigo/Festa Brava”).

Outra canção que evidencia a habilidade do Robson como guitarrista é o funk "Pret a Porter". Aliás, ouso dizer que este disco pode ser muito mais classificado como um disco de música norte-americana influenciado por música brasileira do que o contrário. É um disco que realmente pode ser equiparado às produções norte-americanas da época em termos de sonoridade e qualidade técnica.

O disco abre com “Jorgea Corisco”, segue para a balada “No Bom Sentido” e logo após “Aleluia!”. Depois a latina “Raton” e a genial “Pret a Porter”. “Squash”, com lindas dobras de synth e guitarras e a canção “Eva”, com um clima quase blaxploitation. “Fá Sustenido” apresenta quase um acento reggae nas guitarras e lindo arranjo de vocoder. Passamos pelo samba do morro no interlúdio “Zé Piolho” e seguimos pro medley “Baila Comigo/Festa Brava”. Finalizando: o samba funk “Ginga” com um poderoso naipe de metais e a última faixa do disco: “Alegrias!”.

Mas na verdade não consigo ser muito teórico ao falar deste trabalho. Eu amo este disco! É um álbum que abriu muitos caminhos musicais na minha cabeça, e sou eternamente grato por esse trabalho existir. Recentemente, durante as gravações do meu terceiro disco, tive o prazer de trabalhar com o grande Edu Costa, engenheiro de som e braço direito do Lincoln em suas produções. Pude ouvir muitas histórias incríveis e absorver um pouco do universo dos dois.
Recomendo muito! E pra quem ainda não ouviu com atenção, ouça! É uma obra-prima! Felizmente este disco vem sendo cada vez mais cultuado. E assim como outros clássicos é um trabalho sempre presente na minha vida. Referência forte, sempre!

Robson Jorge & Lincoln Olivetti - "Pret-à-Porter"

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FAIXAS:
1-Jorgea Corisco
2-No bom sentido
3-Aleluia
4-Raton (Contesini)
5-Pret-à-porter
6-Squash
7-Eva (Ronaldo, Olivetti, Jorge)
8-Fã sustenido
9-Zé Piolho
10-Baila comigo (Roberto de Carvalho, Rita Lee)/Festa braba (Olivetti, Jorge)
11-Ginga
12-Alegrias
todas as composições de autoria de Lincoln Olivetti e Robson Jorge, exceto indicadas
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OUÇA O DISCO:




Natural do Espírito Santo, Lucas Arruda é um jovem compositor, cantor, arranjador, produtor e multi-instrumentista. Um dos maiores talentos da música brasileira dos últimos anos, leva suas influências de soul, funk, MPB, jazz, rock e blues ao mundo, principalmente a Europa e ao Japão, onde é reverenciado. Em fase de conclusão de seu mais novo trabalho, tem dois discos: "Sambadi", de 2013, integrante da lista dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS do ClyBlog, e o igualmente elogiado “Solar”, de 2015. Um digno representante da linhagem dos músicos do jazz-soul brasileiro, que passa por AzymuthBlack Rio, Marcos Valle, Robson, Lincoln e Ed Motta. Lucas foi especialmente convidado pelo Clyblog para falar sobre um disco de sua predileção em razão das comemorações pelos 8 anos do blog.
www.facebook.com/lucasarrudaofficial/?fref=ts

sábado, 3 de março de 2012

Neyde Zis e Tim Maia - "Neyde & Tim" - (1974)



Tudo aconteceu numa escaldante e misteriosa madrugada carioca no estúdio Somil, em Botafogo. A data é imprecisa. Ninguém sabe ao certo; só se tem uma vaga lembrança de que foi num final de semana de fevereiro de 1974. Os técnicos do som Ary e Célio, depois de uma sessão com Belchior, que gravava seu primeiro disco, organizavam as últimas coisas antes de fecharem tudo e irem embora. Mas eis que, no final da noite, imbica enviesado na frente do estúdio o famoso Fusca 71 roxo e verde de  Neyde Zis . E quem ao volante a acompanhava? Ele:  Tim Maia . Os dois, “maleixos” de uísque e sabe-se lá do que mais, já desceram cantando em dueto “Brother”, o gospel maravilhoso do mano  Jorge Ben . Com seu barítono inconfundível, ele reforçava o agudo nos versos: “Prepare one more happy way for my Lord” como se tivesse tomado pelo espírito de um cantor de igreja norte-americano. Ela, por sua vez, usava seu timbre rouco capaz de atingir agudos impressionantes, destilando uma segunda voz cheia de swing e emoção. E quando chegava na parte: “Jesus Christ is my Lord, Jesus Christ is my friend” era um verdadeiro desbunde: os dois, em uníssono. De arrepiar. Soul music na mais pura acepção.
Ary e Célio se entreolharam, ao mesmo tempo com admiração por presenciarem aquele belo dueto, mas também segurando a gargalhada por acharem engraçadíssimo ver aqueles dois abraçados cambaleando com uma garrafa que passava de mão em mão. Mas o que não previam era que, naquela noite,  Neyde Zis  e  Tim Maia  não tinham enchido o saco para ficarem com as chaves do estúdio à toa. E o que os técnicos jamais imaginariam, depois de darem as costas e “lavarem as mãos”, era que, por exemplo, aquela versão de “Brother” que ouviram entre soluços embriagados seria, horas depois, registrada numa performance perfeita, com espontaneidade e técnica, desfechando a mais obscura e inspirada jam session já documentada na MPB: o clássico álbum “Neyde & Tim”.
O disco é o ápice da carreira da “Diva Black”, “A menina mulher da pele preta”, como a apelidara  Jorge Ben , que a homenageara com a música que dá título ao primeiro álbum dela, de 1969. Depois de várias participações em trabalhos de parceiros – leia-se Cassiano, Tony Tornado, Hyldon e Bebeto, ou seja, só a nata da soul music brasileira –, ela, influenciada pela guinada pós-tropicalista do amigo  Erasmo Carlos  e do próprio Ben, grava o já muito bem comentado neste blog por Eduardo Wolff"Dó-Ré-Mi-Fa-Sol-Lá-Zis" , considerado por Oberdan a principal influência da Banda Black Rio e o melhor disco brasileiro dos anos 70. E não só ele a idolatrava. Até artistas internacionais louvavam Neyde Zis, como declarou Isaac Hayes, em entrevista de 1997 a BBC, quando perguntado qual a melhor cantora black de todos os tempos: Aretha Franklin ou Billie Holiday. Negando ser nenhuma das duas, ele respondeu com seu vozeirão de Chef: “The best black woman singer lives in Brazil. She’s called Neyde Zis.”
“Neyde & Tim” não tem comparação, e pode ser considerado um capítulo à parte na carreira tanto dela quanto na do “Síndico”. A sessão foi quase ininterrupta, tudo ao vivo, apenas uma paradinha e outra para emborcar um gole de uísque, fumar unzinho e comer um pouco de goiabada – coisa que Tim sempre carregava consigo para a sobremesa. O disco abre com uma obra-prima composta por  Gilberto Gil  no exílio em Londres: “Nêga”, que não coincidentemente fez parte do repertório de uma outra jam que jamais existiria não fosse “Neyde & Tim”: o disco “Gil & Jorge Xangô Ogum”, confessa homenagem de Gil e do Babulina à dupla. Nessa versão, mais cadenciada e romântica que a original, o vocal fica por conta de Neyde, que carrega na sensualidade. Tim, responsável por toda a cozinha, entrecorta a linha melódica soltando versos que pareciam ter sido escritos por Gil para Neyde: “The tropical nêga” ou “This nêga is my”.
Hayes: "Neyde Zis é a melhor
cantora negra de todos os tempos."
“Zismaia”, na sequência, é um funk sincopado cujo título traz controvérsias. Primeiro, o significado mais evidente: a simbiose musical que havia entre os dois. Porém há quem credite esse título a uma tentativa de Tim, já totalmente bêbado, em pronunciar a palavra “desmaia” num momento em que Neyde teve um rápido apagão (alcoólico, claro). As más línguas dizem que, acabada a garrafa de uísque, os dois passaram a entornar uma caninha que encontraram escondida na cozinha. O que, de certa forma, explica a existência de outra faixa, “Kaxassa”, uma das oito compostas com tamanha fluidez por Tim só naquela madrugada. (Essa segunda versão até que é bem verossímil considerando a situação.)
Sabe-se lá como, mas o Paulo Ricardo, o Rubens e o Serginho Trombone, que na época tocavam tanto na banda de um quanto de outro, apareceram por lá e gravaram a guitarra, o baixo e os sopros, enquanto Tim cuidava da bateria, do violão e de uma caxeta que trouxeram de um show em Niterói ocorrido horas antes. Neyde só se incumbia de emprestar sua voz. E era o que bastava. No máximo, um chocalho ou uns acordes de violão. Foi com essa formação que gravaram “Psychoblack”, um funk lisérgico de dar inveja a qualquer Parliament-Funkadelic; “Farofa”, baião eletrificado com uma bateria pesada cheio de groove; e “Retorno”, um samba-rock que captou o momento em que Tim reclamava do técnico de som que era... humm, ele mesmo. Todos – àquela altura já envoltos na fumaceira que tomava todo o estúdio –, caíram na gargalhada, e a música ficou uma das mais espontâneas do disco.
Ao todo são apenas 10 faixas de várias que a dupla tocou até as 7 da manhã do dia seguinte. Pelo menos foi isso que veio parar na mão do produtor Mariozinho Rocha, que finalizou a mixagem. Os LP’s impressos na época hoje são raridade, e valem uma fortuna no mercado alternativo. Sabe-se de colecionador no Japão que não vende seu exemplar nem por dez castelos de Osaka. Mas agora esta versão remasterizada com capricho no Abbey Road pode fazer com que mais pessoas possam dar o devido valor a uma das obras mais importantes da nossa música e, enfim, fazer justiça a uma artista infelizmente esquecida neste Brasil sem memória. Salve o “Gênio” Tim, claro, mas, acima de tudo, salve a “Musa” Neyde Zis!
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O impacto da noite de orgia musical e lisérgica foi tanto que, logo depois desta fatídica madrugada, Tim caiu em uma forte abstenção e a uma crise existencial que lhe levou a ler um tal de livro chamado “Universo em Desencanto”. O resto da história todos sabem no que deu.
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Poucos sabem, mas “Acenda o Farol”, gravada por Tim em 1978 no disco “Tim Maia Disco Club”, foi criada naquela noite. Quando os dois tiveram a delirante ideia de se dirigir ao estúdio da Somil, ambos vinham juntos de Niterói no tal fusquinha, que aprontou de furar um pneu no caminho. Tim, puto com o ocorrido, ao invés de ralhar, inventou uma música. Enquanto trocava o estepe lá fora, gritava para Neyde lá dentro do carro: “Pneu furou/ Acenda o farol/ Acenda o farol...”. A música foi gravada para “Neyde & Tim”, mas, infelizmente, perderam o único take porque puseram outra por cima (coisa de gente grogue). Tim só foi redescobrir a música anos mais tarde porque a encontrou escrita num papel amarrotado no bolso de uma calça que tinha usado apenas uma vez, ou seja, na histórica noite da gravação de “Neyde &  Tim”.
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FAIXAS:
1. Nêga (Gilberto Gil)
2. Zismaia (Neyde e Tim)
3. Ogulabuiê (tradicional: ponto de umbanda)
4. Batuque (Neyde e Tim)
5. Farofa (Tim Maia)
6. Psychoblack (Tim Maia)
7. Kaxassa (Tim Maia)
8. Som (Ari, Célio e Tim Maia)
9. Retorno (Tim Maia)
10. Brother (Jorge Ben)


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

4ª Feira de Vinil Gira Música - Casa da Polônia - Rio de Janeiro/RJ (1º/09/2019)



O dias em que passamos Leocádia e eu no Rio de Janeiro foram invariavelmente lotados. Só coisa boa, mas lotados. Mas sempre se tem espaço para encaixar mais uma programação, ainda mais quando esta trata de música. Ou melhor: quando esta trata de música E discos, o que para um colecionador é um prato cheio. Minha mãe, sabendo de nosso gosto, havia avisado dias antes que ocorreria, no domingo, a Feira de Vinil Gira Música, na Casa da Polônia, no próprio bairro e avenida onde estávamos instalados, Laranjeiras. Pois que, voltando de um passeio no bairro Jardim Botânico neste dia, eis que cruzamos em frente à feira. Obviamente que descemos e fomos dar uma conferida, o que não só valeu a pena a título de passeio como, claro, de compras.

A feira trazia food trucks, bancas com artesanato e bijuterias e uma exposição sobre o célebre músico, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, morto há  4 anos, infelizmente muito primária e amadora e que não dimensionava nem de perto a relevância do homenageado. Mas isso não era o mais importante e, sim, aquilo que nos levou até lá: os discos. Com expositores cariocas mas também vindos de Minas Gerais e São Paulo, a feira estava muito boa em termos de quantidade e variedade. Todos os gêneros musicais contemplados, mas principalmente rock, MPB e jazz. O nível dos expositores chamou atenção, uma vez que todos sabem muito bem o acervo que oferecem. Ou seja: os discos raros tinham preços que justificavam suas particularidades. Títulos como "A Bad Donato", de João Donato, "Stand", da Sly & Family Stone, o primeiro disco de Arthur Verocai, "Spirit of the Times", de Dom Um Romão, "Blue Train", de John Coltrane, ou o disco do próprio Lincoln em parceria com Robson Jorge, clássico da AOR brasileira, não saíam por menos que 500, 400, 350, 200, 180 Reais ou valores parecidos.

Galera percorrendo as prateleiras em busca "daquele" vinil
Clima descontraído e musical da Feira de Vinil na Laranjeiras
Não só vinil tinha na feira
Eu vasculhando as preciosidades da banda do Sonzera, um dos expositores
Pedaço da miniexposição sobre Lincoln Olivetti: deixou a desejar

Em compensação, vários balaios. E bons! Com muita variedade e, às vezes, até discos raros, era possível encontrar unidades a 10, 20 ou 30 Reais. E foi aí que me esbaldei, passando algumas horas na feira percorrendo as caixas com promoções enquanto Leocádia aproveitava outras atividades ou simplesmente me aguardava. Uma das atrações da feira seria a presença do cantor e compositor Hyldon, lenda da soul brasileira, que estaria à tarde autografando seu disco relançado, mas não ficamos para isso. Afinal, já estávamos muito bem alimentados com o que encontramos de variedade e qualidade de bolachões, inclusive esses, os que levamos para casa:



“Limite das Águas” – Edu Lobo (1976)
Edu tem vários discos solo cultuados, como “Missa Breve”, “Camaleão” e “Jogos de Dança”, mas não raro este aparece como o preferido do autor de “Ponteio”. Afinal, não tem como não adorar as parcerias como Capinan, Cacaso e Guarnieri, além do primor dos arranjos do próprio Edu e as participações de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Cristóvão Bastos, Joyce, Toninho Horta, Danilo Caymmi e o grupo vocal Os 3 Morais. Coisa fina da MPB.


“Libertango” – Astor Piazzola (1974)
Um dos gênios da música do século XX em seu disco mais icônico. Gravado em Milão, é a representação máxima do tango argentino moderno, tanto que as próprias faixas, assim como a que o intitula, trazem o termo “tango” no nome: Meditango, Violentango, Undertango, entre outras. De ouvir ajoelhado - ou tangueando.



“Brazilian Romance – Sarah Vaughn with Milton Nascimento” ou “Love and Passion”  Sarah Vaughn (1987)
A grande cantora norte-americana Sarah Vaughn, amante da MPB, recorrentemente voltava ao gênero. Depois de gravar discos como “Exclusivamente Brasil” e “O Som Brasileiro de Sarah Vaughn”, nos ano 70, em 1987 ela torna à sonoridade do Brasil por meio de um de seus mais admirados compositores: Milton Nascimento. E o faz isso com alto grau de requinte, haja vista a produção de Sérgio Mendes, os arranjos de Dori Caymmi e participações de gente como George Duke e Hubert Laws. Ela quase levou um Grammy de melhor performance feminina por este álbum.

“Merry Christmas, Mr. Lawrence (Music From The Original Motion Picture Soundtrack)”  Ryuichi Sakamoto (1983)
Tenho adoração por este filme intitulado no Brasil como “Furyo - em Nome da Honra”, e tanto quanto pela trilha sonora, escrita pelo genial Ryuichi Sakamoto. Que, aliás, atua neste filme de Segunda Guerra do mestre Nagisa Oshima, o qual conta no elenco (e só no elenco, o que acho legal também em nível de desprendimento) e como ator principal David Bowie em espetacular atuação. A faixa-título é não só linda como um marco das trilhas sonoras feitas para cinema.


“Stories to Tell” – Flora Purim (1974)
Terceiro disco solo de Flora e segundo dela em terras norte-americanas. Ou seja, vindo um ano após o seu debut “Butterfly Dreams”, no mesmo ano de“Hot Sand”, do então marido Airto Moreira, e dois da estreia com Chick Corea na Return to Forever, “Stories...” a consolida como a musa do jazz brasileiro. Ainda por cima tem Carlos Santana, George Duke, Ron Carter e o próprio Airto compondo a “bandinha”. E que voz é essa a dela?! 




“Amor de Índio” – Beto Guedes (1978)
Dos discos mais célebres da chamada “segunda fase” do Clube da Esquina. A galera tá toda lá: Milton, Brant, Toninho, Tiso, Venturini, Tavinho, Caetano e, claro, Ronaldo Bastos, produtor, compositor com Beto da faixa-título e autor da icônica foto dele enrolado no cobertor usada por Cafi na arte da capa.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e fanpage Gira Brazil - Gira Música