Sabe aqueles acontecimentos em que se cria uma grande expectativa e a
recompensa vem completa? Pois ter assistido Caetano Veloso e Gilberto Gil juntos e ao vivo foi assim: momento completo de se guardar para a vida.
Folgados os nós dos sapatos, das gravatas, dos desejos e dos receios, fui, na
doce e astral companhia das hermanasLeocádia e Carolina, ao Araújo Vianna presenciar uma noite inesquecível na
cidade (ao menos, a nós). Dois gênios vivos da arte mundial celebrando algo
incomparável e irrepetível: a união de 50 anos de carreira de cada um. As vivências
artísticas e próprias ou em comum; as conexões com vários tempos e movimentos;
a confluência com diversas manifestações da Arte e culturas; a musicalidade e a
poesia constantemente desenvolvidas ao longo dos muitos anos; as parcerias
entre eles e com outros. A significância inequívoca de cada um dentro do cenário
sociocultural brasileiro e mundial. Enfim: uma gama de motivos que fazem de “Dois Amigos, Um Século de Música” um
marco só por sua realização.
Porém, no palco, Caetano e Gil justificam o show, cuja turnê, iniciada
na Europa, em junho, passou pelo Brasil e já ganha a América Latina. Repertório
escolhido com inteligência e cuidado, como sempre fizeram em seus projetos.
Aliás, conheço essa qualidade não só dos discos ao vivo mas por já ter
assistido tanto a um quanto outro por duas ocasiões. Coincidentemente, as duas
primeiras vezes nos anos 90, quando cinquentões, e as recentes há bem pouco
tempo: 2013 (Gil, “Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo”), e 2014
(Caetano, "Abraçaço"), já passados dos 70 anos. Pela tevê ainda tive, em 1993,
a oportunidade de assisti-los num memorável megashow aberto em São Paulo com
duas superbandas mais a cozinha da Timbalada com Brown e tudo por ocasião do
disco “Tropicália 2” (à época, gravei em VHS e revi várias vezes o que hoje tem
no Youtube). Ou seja: vê-los agora de novo e reunidos é como se fechasse um
panorama de compreensão da extensão e da perenidade de suas obras ao longo do
tempo, esse “tambor de todos os ritmos”.
E foi justo a diversidade de ritmos que, trazidos pelo ecletismo
tropicalista ainda hoje revolucionário, pautaram o show. O arrebatamento se deu
do primeiro ao último acorde. O inicial, aliás, foi de emocionar qualquer um
que admire e entenda um pouco de suas obras. A música escolhida para abrir o
espetáculo foi a magistral “Back in Bahia”, rock
‘n’roll escrito por Gil na volta do exílio de Londres, início dos anos 70,
na qual ele expõe de forma madura, consciente e transformadora tudo o que
aprendeu com a (que poderia ter sido) traumática experiência. O tom de
identificação de um se refletiria no outro durante todo o desenrolar do show –
aliás, uma mostra daquilo que um sempre foi para o outro: um espelho. Foi o que
aconteceu no número seguinte. Se “Back...” traz as reminiscências de Gil de um
período marcante de sua vida, Caetano preferiu reviver outro tipo de memória
afetiva com a bossa nova que abriu seu primeiro disco (na voz de Gal Costa, à
época), em 1966: “Coração Vagabundo”.
Arranjos bem pensados, ambos dividiram os violões e os microfones nas
duas de abertura para, na sequência, trazerem uma cantada por cada um. E foram
dois hinos tropicalistas: a própria “Tropicália”, numa bela e impensável versão
acústica (difícil imaginá-la sem a orquestração de Duprat) com Caetano à voz, e
a tocante “Marginália II”, poesia brasilianista de Torquato Neto que Gil,
magistralmente, musicara para o disco-manifesto “Tropicália” ou “Panis et
Circensis”, de 1968. Primeiro momento do show a me levar às lágrimas ao ouvir
Gil entoando aquela letra do mais alto lirismo e identidade: “A bomba explode lá fora/ E agora, o que vou temer?/ Oh, yes, nós temos banana/ Até pra dar e vender/
Olelê, lalá/ Aqui é o fim do mundo/ Aqui é o fim do mundo...”
Passeando por suas histórias, foi a vez de reverenciar com afinco a
bossa nova e, mais que isso, ao ídolo João Gilberto. Outras duas dividindo os
vocais: “É Luxo Só”, samba de Ary Barroso “convertido” em bossa por João quando
da inauguração do estilo, em 1959, e “É de Manhã”, primeira composição de
Caetano e mais antiga escrita por um dos dois em todo o show, em 1963. Nesta, destacaram
a importância de Maria Bethânia, primeira da turma dos baianos a gravá-la e a registrar
uma música do irmão, então um jovem compositor iniciante.
Contraponto à canção mais antiga, num dos momentos especiais do show,
eles apresentaram uma composição de 2015, primeira parceria em 22 anos escrita
em São Paulo quando retornaram da temporada europeia. Ou seja: somente São
Paulo e Curitiba, shows imediatamente anteriores ao de Porto Alegre, a tinham
escutado. Uma joia chamada “As camélias do Quilombo do Leblon”, samba poético e
filosófico que repensa as condições socioculturais que o Brasil tem de criar e colher,
como dizem os versos, “as camélias da
Segunda Abolição”. Numa resposta a toda polêmica gerada pela tentativa de
boicote do ex-Pink Floyd, Roger Waters, ativista anti-Estado de Israel, quando
da passagem dos brasileiros por Tel-Aviv, a letra não deixa por menos, evidenciando
as possibilidades emancipadoras que o miscigenado e “cordial” povo brasileiro (aka Sérgio Buarque de Hollanda e Domenico
de Masi) tem diante de outras civilizações do planeta: “Vimos as tristes colinas logo ao sul de Hebron/ Rimos com as doces
meninas sem sair do tom/ O que fazer/ Chegando aqui?/ As camélias do Quilombo
do Leblon/ Brandir.”
Caetano, uma das maiores forças criativas da MPB.
foto: Júlio Cordeiro
Uma sequência de várias de Caetano emocionou o público – de uma
complacência um tanto fria até então, mas que a partir dali se derreteu de vez.
Não era para menos, pois vieram a clássica “Sampa” e a não menos épica “Terra”,
talvez a mais bem arranjada de todo o show. Somente aos dois violões, de longe
superou a versão original, revelando toda a atmosfera etérea da melodia, com
seus traços árabes e folks. Enquanto
Caetano cantava com emoção e destreza, Gil percutia levemente na madeira do
pinho. No refrão, providenciava para o amigo todos os complementos que o
arranjo original suscita. As percussões cintilantes, o som da cítara, a viola,
o andamento cadenciado: tudo é substituído e condensado no dedilhar magistral
de Gil. De arrepiar.
Caetano emenda outras de três momentos importantes de sua carreira: “Nine
Out of Ten”, presente em "Transa", de 1972, seu melhor disco e que, gravado em
Londres, foi responsável por fazê-lo sair da depressão do exílio; “Odeio”, do
visceral “Cê”, já dos anos 2000, uma confissão de amor ao estilo rock: fazendo
sexo virtual a esmo, o que ele queria mesmo era a ex ali consigo; e a
castelhana “Tonada de Luna Ilena” (de Simón Diaz, que gravou em 1994, em “Fina
Estampa”), numa impressionante interpretação que, claro, tocou a nós gaúchos
tão próximos dos irmãos portenhos.
Mais outras três encantadoras tocadas em dupla: a excelente bossa nova
“Eu Vim da Bahia”, das primeiras composições de Gil; “Come Prima”, em que ambos
mandaram um afiado italiano; e "Super-Homem, a canção", noutro momento de emoção.
Caetano, com a afinação e o timbre doce que lhe foram presenteados por Deus,
começa cantando. Na segunda parte, Gil, comovido por ouvir o parceiro, engasga
a voz e é aplaudido.
Gil e o violão qu expressa tudo.
foto: Júlio Cordeiro
O repertório, seguindo o conceito de espelhamento, trouxe, então, uma
série com Gil, começando pela gostosa “Esotérico”, cantada em coro pela plateia.
Tomado pela acolhedora egrégora criada pelos dois, me deu até a impressão de
esta ser uma música de Caetano – embora saiba que é de fato de Gil – devido às
repetições de versos, às assimetrias de métrica e o tom desafiador típicos
deste. Depois, esmerilhando as cordas, Gil sacou uma impecável “Tres Palavras”,
do mexicano Osvaldo Farrés, para, na sequência, emocionar novamente todos com
“Drão” que – assim como ocorrera antes, quando o companheiro desnuda-se ao
tocar “Odeio” – revela a dor da separação da antiga esposa. Caetano, que a
gravou em 1998 (no ao vivo “Prenda Minha”), nem ousou cantar junto.
Aliás, a deferência e a admiração de Caetano para com Gil ficam visíveis.
Não que ele se apequene; não que desconheça seu tamanho e relevância; mas Caê
reverencia “aquele preto que ele gosta” e deixa que ele estabeleça o clima do
show, o qual se dá de forma leve e elevada. Bonito de se perceber. Em “Expresso
2222”, obra-prima visionária de Gil, é ele quem, além de tanger os complexos
acordes da melodia, comanda o forró que se instala. O Araújo Vianna dança. No
embalo da animação, vem o afoxé “Toda Menina Baiana”, outro clássico.
Junto com a nova composição já apresentada, a lírica “São João, Xangô
Menino” é a única do set-list
composta em parceria. Linda, outra que me emociona sempre (e não foi diferente
desta feita), principalmente no refrão de versos móveis, um verdadeiro canto de
louvor à riqueza do folclore nacional e às forças da natureza: “Viva São João/ Viva o milho verde/ Viva São
João/ Viva o brilho verde/ Viva São João/ Das matas de Oxóssi/ Viva São João”. A
crença e a espiritualidade voltam em outro sucesso de Gil: “Andar com Fé”. Na
mesma atmosfera, eles enfim me desmontam ao tocarem "Filhos de Gandhi". Das
melhores e mais significativas canções de todo o vastíssimo cancioneiro de Gil.
Um privilégio ouvi-la ali naquela ocasião tão especial, acompanhado de quem
estava e, tendo recentemente ido à Bahia e sentido todo esse universo que a
canção carrega. E ainda mais com Caetano entoando junto essa verdadeira oração
aos orixás (“Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré/
Todo o pessoal/ Manda descer pra ver/ Filhos de Gandhi...”).
O primeiro bis teve uma que já nasceu clássica: “Desde Que o Samba e
Samba”, a qual parece ter sido composta por aqueles bambas dos anos 30/40 tipo
Wilson Baptista ou Ataulfo Alves. Mas não: é do próprio Caetano e do já
mencionado “Tropicália 2”, dos anos 90 – que teve também a eletrizante “Nossa
gente” no repertório. “Luz de Tieta”, forte e cantarolável, não foi suficiente
para que os deixassem ir embora. Teve ainda um segundo bis com a beatle “Leãozinho”, muito querida da
plateia, uma impressionante "Domingo no Parque", em que Gil novamente faz
daquele violão uma orquestra completa e, fechando de vez a apresentação, “Tree
Little Birds”, de Bob Marley. Um final alegre e sereno.
Caê e Gil, andando com fé pela música.
foto: Júlio Cordeiro
Poucas foram as repercussões pré ou pós na cidade. Parafraseando
Caetano, o “silêncio sorridentede Porto Alegre” de quem não quer
admitir admiração por outrem. Talvez, em decorrência de um intimidamento
provocado pela interferência internacional de Roger Waters ao show de Israel
(muitos pensaram alarmados: “Nossa, um
estrangeiro importante dando atenção para tupiniquins como eu?!”) ou pela
polêmica em torno do valor dos ingressos, “caros demais para artistas que se
dizem populares”, como ouvi. Uma proposital confusão entre “popular” e “populista”
de quem não se autoentendeu diante da situação de existirem representantes do
seu país com merecido destaque tanto lá fora quanto aqui – haja vista que a
turnê de “Dois Amigos, Um Século de Música” foi um sucesso na Europa. Detração
que vem, certamente, de quem criticou o preço do ingresso de um show como este
(que não teve nada de diferente de qualquer outra bilheteria de artista
brasileiro, muitas vezes infinitamente menos expressivo) mas paga caro para ver
algum dinossauro do rock caquético e descontado que vem tirar uma grana naquela
cidade que se submete a isso. Desculpe frustrá-lo, Caetano, mas Porto Alegre
não faz jus à sentença de que a “verdadeira
Bahia é o Rio Grande do Sul”.
De minha parte, só elogios. Uma ocasião que, até pelo mote, jamais se
repetirá, e sabe-se lá se ainda tocarão assim juntos novamente em vida. Óbvio
que, como fã, passou-me pela cabeça músicas das preferidas que não foram incluídas,
como “Trilhos Urbanos”, “Trem das Cores”, “Cajuína”, “Cores Vivas”, “Palco”, "Lamento Sertanejo", “Aqui e Agora”. Ou mesmo não terem escolhido apenas duas
das coautorias: quiçá uma “Divino Maravilhoso”, “Iansã”, “Haiti”, “Panis et
Circensis”, “Cinema Novo” ou “Beira-mar”. Mas é evidente que, em 100 anos de
carreiras somadas tão profícuas quanto extensas e constantes, fica impraticável
condensar tudo em uma hora e meia. Ao menos, foi possível neste tempo sentir a
riqueza infindável da arte que emana de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Minutos,
na verdade, dentro de toda a amplidão. Minutos que valeram por um século.
**************
Caetano Veloso e Gilberto Gil - As Camélias do Quilombo do Leblon - Porto Alegre 28/08/2015
e a direção do programa ficou a cargo do
Adriano Goldman.
Na véspera sentamos como João Bosco no hotel
para decidir o
repertório.
Ele pegou o violão e disse ‘vai ser assim’.
E nós ‘então tá bom’.”
Marcelo Machado,
cineasta e um dos responsáveis
por lançar a MTV Brasil em
1990.
Quem assiste hoje a MTV Brasil talvez não acredite que aquele canal
acéfalo foi um dia a coisa mais interessante da época da televisão brasileira
pré-canais por assinatura. No início dos anos 90, aquela nova e arejada
emissora de sinal UHF, mesmo que a precária aparelhagem dos televisores de
então gerasse uma sintonia com imagem chuviscada para desafortunados como eu,
trazia um sopro de modernidade e até de vanguarda diante das poucas
alternativas de TV aberta que se tinha, fosse pela estética dos videoclipes, pelas
novidades musicais e plásticas, pela concepção descomplicada de apresentação e
do Jornalismo ou mesmo pela programação.
Uma das atrações advindas foi o Acústico MTV, reprodução do projeto
também recente na MTV norte-americana, o MTV Unplugged, cuja ideia era trazer releituras
do repertório de artistas que rodavam na emissora através de clipes em
especiais de meia hora. Isso tinha tudo para dar certo também no Brasil, país
em que o canal vivia uma fase de crescimento de audiência e cujo estilo musical
tradicionalmente valoriza a composição sem eletrificação. Depois de estrear com
dois nomes do rock brazuca, Barão Vermelho e, em seguida, Legião Urbana, o terceiro
escolhido foi um verdadeiro representante da MPB: João Bosco. O que naquela época podia soar estranho a um canal
jovem, visto que música popular era ainda muito vista como “música para velhos”,
se justificou plenamente, o que se confere no excelente álbum “Acústico”. Virtuose do violão e dono de estilos de tocar
e cantar muito próprios e apurados, João Bosco presenteou o público com um
apanhado cirurgicamente bem pinçado de seu extenso cancioneiro, criando aquele
que é talvez o melhor unplugged
realizado nesses pagos tropicais.
O êxito começa na concepção: ao contrário de todos os outros acústicos,
por mais incrível isso pareça em se tratando de um formato de apresentação no
qual se propõe justamente uma sonoridade intimista, João Bosco o fez sozinho no
palco, apenas voz e violão. Como seus mestres Baden Powell e João Gilberto. É que com um violão em punho, João Bosco faz chover! Se para outros fariam falta
percussão e acompanhamentos, ao autor de “O Bêbado e a Equilibrista” não há
nenhuma necessidade. Recuperando canções de várias fases, desde os clássicos
dos anos 70 imortalizados por Elis Regina até sucessos recentes à época do
lançamento, o cantor e compositor, repetindo o conceito de arranjo que já
acertara em “100ª Apresentação”, de 1983, juntou isso a temas escritos com
parceiros de peso. Um destes é “Odilê Odilá”, feita com Martinho da Vila. Após
uma introdução solo ao violão impressionante em que já diz a que veio – onde
dobra o som do instrumento, dando a nítida impressão de terem dois violonistas
tocando –, Bosco abre o show com este samba no qual recupera, bem a seu estilo
e ao de Martinho, referências da africanidade e dos ritmos brasileiros de raiz,
engendrando um maxixe de cores modernas. Esta se emenda com “Zona de
Fronteira”, parceria com os poetas Antônio Cícero e Waly Salomão do então recém-lançado
álbum homônimo que, por outra via, também toca na temática africana: ”Rei/ Eu sei que sou/ Sempre fui/ Sempre
serei/ Obá/ De um continente por se descobrir/ Já alguns sinais/ Estão aí/
Sempre a brotar/ Do ar/ De um território que está por explodir”.
Outra da parceria com Cícero e Waly, a intensa “Holofotes” dá no
formato voz-violão a liberdade ideal para Bosco mostrar toda sua técnica e
sensibilidade, numa interpretação que supera a versão original. Sob uma base
sincopada, a letra junta versos de dois dos maiores poetas brasileiros: “Desde o fim da nossa história/ Eu já segui
navios/ Aviões e holofotes/ Pela noite afora/ Me fissurarm tantos signos/ E
selvas, portos, places/ Línguas,
sexos, olhos/ De amazonas que inventei...”. Hit nacional alguns anos antes, a bela “Papel Machê” se encaixa bem
no repertório por ser conhecida da plateia, contrastando com outros números
bastante ligados ao contexto dos anos 70 e talvez distantes da realidade
daquele público então presente.
Este papel de resgate cabe ao medley
com “Quilombo” (1973), “Tiro de misericórdia” (1977) e “Escadas da Penha”
(1975), composições dos primeiros discos do artista e nas quais a parceria dele
com Aldir é determinante. Nas três, a forte temática do candomblé e da herança
da África negra. A mais impressionante e provavelmente melhor do espetáculo – muito
por causa do violão de Bosco, que mantém uma batida de samba intensa,
repetitiva e rápida, forjando um clima espiral hipnótico – é “Tiro...”, a qual
conta a história de um menino do morro aparentemente comum, mas que, por conta
da proteção dos orixás, era invejado e malquisto pelos inimigos. A letra de
Aldir é de uma riqueza literária espantosa, aproximando-se da prosa de Jorge Amado uma vez que engendra um espaço narrativo em que coabitam real e
imaginário, concreto e transcendência, ou seja, o mundo dos homens (“Aiyê”) e o universo das forças
não-terrenas (“Òrun”). Os versos
dizem: “Exus na capa da noite soltara a
gargalhada/ e avisaram a cilada pros Orixás/ Exus, Orixás, menino, lutaram como
puderam/ mas era muita matraca e pouco berro”. Para arrematar, Bosco engata
no mesmo ritmo “Escadas...”, que versa sobre a mesma potência das entidades místicas
sobre a realidade ao colocar várias situações em que, ao serem influenciadas
pelo poder das preces feitas na igreja da Penha (“A doideira da chama/ Chamou [...] O remorso num canto/ Cantou...”, por
exemplo), alteram seu estado (“A doideira
da chama/ Velou [...] O remorso num canto/ Guardou...”). Nada menos que
admirável.
Outro medley traz as “líticas”
“Granito” e “Jade”. A primeira, parceria com Cícero, questiona as semelhanças
essenciais entre homem e pedra, numa abordagem em certo aspecto parecida com a
do candomblé. Já “Jade”, do próprio Bosco, trata-se de uma balada de romantismo
tocante, tanto por melodia quanto por letra (“Pedra que lasca seu brilho/ E queima no lábio/ Um quilate de mel/ E
que deixa na boca melante/ Um gosto de língua no céu...”). “Romantismo” e “essência”
são as palavras-chave de “Memória da Pele”, outra dele com Waly. Que versos
lindos e profundos esses: “Eu já esqueci
você, tento crer/ nesses lábios que meus lábios sugam de prazer/ sugo sempre,
busco sempre a sonhar em vão/ cor vermelha/ carne da sua boca/ coração”.
“Corsário” é mais um momento especial. De relativo sucesso no final dos
anos 80, essa canção traz um dos melhores poemas/letras de Aldir (e olha que
são várias a disputar!). “Meu coração
tropical/ está coberto de neve, mas/ ferve em seu cofre gelado/ e a voz vibra e
a mão escreve: mar”. O lirismo é tal que Bosco, com assertividade, abre o
tema com o poema “E então, que quereis...?”, do poeta russo Maiakowsky (“Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes
as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de
pólvora perseguindo-me até em casa...”), o qual casa temática e
estilisticamente com a música. Novamente, o dedilhado ágil do violão sobre
acordes difíceis de executar dá à interpretação uma consistência
melódico-harmônica sui generis, algo que
somente um instrumentista de alto nível consegue extrair.
Para terminar, Bosco surpreende com uma fusão temporal em que aproxima
rock britânico e samba de batuque ao inserir Beatles (“Eleanor Rigby”, anos 60)
em Noel Rosa (“Fita Amarela”, anos 30). E como funciona! Completando este pot-pourri, “Trem Bala”, dele, Waly e
Cícero, que traz uma mensagem de consciência e esperança às novas gerações,
representadas ali pela jovem plateia: “A
blitz ali na frente diz que aqui a onda/ tá mais pro Haiti do que pro Havaí/ Se
as coisas nos reduzem simplesmente a nada/ de nada simplesmente temos que
partir”. A base é de um toque ligeiro, que exige muita destreza, ao mesmo
tempo em que intercala cantos com partes quase faladas, além das brincadeiras
com a voz a la Clementina de Jesus
típicos dele. Bosco, com sua característica simpatia, técnica e prazer pelo o
que faz, cativa o público e consegue dar, com a maior naturalidade, um ar jovial
ao especial mesmo sendo um artista “das antigas”, provando o quanto MPB, rock,
pop e qualquer outra classificação são pura definição de gênero. Tudo é
simplesmente música: atemporal e rica a qualquer um que se interesse.
O projeto Acústico da Music Television nacional foi ganhando cada vez
mais visibilidade, e não demorou muito para que se tornasse um produto de pura
venda para as grandes gravadoras e para a própria MTV. Ironicamente, foi o ótimo
acústico de Gilberto Gil, de 1994, o começo do fim, uma vez que o mesmo estourara
na mídia, vendendo milhões de discos e alertando de vez as gravadoras para
(mais) uma fonte de renda ao sanguessuga e pouco criativo mercado fonográfico. Começaram
a vir então shows chatos, incoerentes, duvidosos e megalomaníacos, contrariando
totalmente a proposta intimista inicial, e a série, desvirtuada, nunca mais foi
a mesma. Se hoje virou moda fazer shows desplugados, às vezes até pautando toda
uma turnê em torno disso, o sempre corajoso e arrojado João Bosco é um dos
principais responsáveis pela formação do mesmo no Brasil. Mas para o cara que
enfrentou a censura do Governo Militar com hinos de resistência e denúncia uma
contribuição como esta é apenas mais uma entre as tantas que deu à música
brasileira.
********************
FAIXAS:
1. Odilê Odilá (Martinho da Vila, João Bosco)/ Zona de fronteira (João Bosco, Antônio Cícero, Waly Salomão)
Pode parecer contraditório, mas, às vezes, dependendo da intensidade emotiva
que determinado show ao vivo tem para mim, é mais difícil escrever sobre ele.
Foi assim com o do Paul McCartney, em 2010, do Gilbert Gil e orquestra, em
2014, e o da Meredith Monk, ano passado. Todos muito bem sorvidos pelos ouvidos
e sentidos, mas que, na hora de transpor pro papel, parece que a emoção me
congela. Pois outro desta lista foi o do cantor, compositor e escritor Vitor Ramil, que assisti ao lado das hermanasLeocádia e Carolina Costa em
2013. Naquela feita, como nestes outros que citei, não consegui escrever a
respeito daquele que foi certamente um dos grandes shows que assisti. Música no
seu mais alto nível. Pois o tempo se encarregou de me dar uma nova chance,
igualmente acompanhado das duas e novamente tendo como cenário o majestoso e
familiar Theatro São Pedro. E com um adicional incontestável: Vitor tocando com
a Orquestra de Câmara do teatro. Ou seja, motivos de sobra para que, enfim,
esse momento tão especial fosse por mim registrado.
Minha obrigação atestou-se já de início. Ainda sem o protagonista no
palco, a orquestra, formada basicamente pelas cordas (cellos, violinos e
violas), estremece-nos com uma luxuosa execução do Prelúdio das “Bachianas nº
4”, de Heitor Villa-Lobos. Que começo! Quando sobe finalmente, o gracioso Vitor
brinca: “Quero ver se vocês vão querer me
ouvir agora depois do Villa-Lobos”. “Foi no mês que vem”, de poesia
romântico-lírica, numa brincadeira com o tempo cronológico e afetivo (“Vou fiquei/ No teu chegado e tu chegada ao
meu/ Penso, grande é Deus/ Um paraíso prum sujeito ateu...”) dá início ao refinado
e absolutamente musical espetáculo, tanto quanto o de dois anos atrás embora
diferente. Não somente pelos arranjos da orquestra, assinados por Vagner Cunha
e regidos pelo também bem-humorado maestro Antônio Borges-Cunha, os quais
cumpriram, com muita felicidade a função de realçar os traços das canções. Mas,
sim, pela obra maior de Vitor Ramil, um dos maiores músicos da atualidade no
Brasil.
A habilidade como violonista e cantor destacam ainda mais o lindo timbre
de voz, suave como uma pluma, e a capacidade criativa do compositor de criar
melodias lindamente improváveis. O professor de artes Celso Loureiro Chaves diz,
no texto do programa: “Há sempre uma
surpresa nessas melodias. Quando pensamos que elas vão para um lado, elas tomam
outro caminho e terminam como ninguém – a não ser Vitor – poderia ter pensado”.
Essa é a sensação que se tem na tensa e quase expressionista “Livro aberto” –
infelizmente prejudicada pelo pandeiro muito mal tocado por uma das integrantes
da orquestra, único resvalo de todo o espetáculo –, a qual vai ganhando ares
hipnóticos que as cordas ajudam a intensificar.
Para qualquer fã de Vitor, não precisa nem dizer que "Noite de São João", obra do célebre “Ramilonga”, de 1997, na qual ele musica uma poesia de
Fernando Pessoa, foi das mais emocionantes. A regência de Borges-Cunha lhe
empresta cores lúdicas, enquanto o músico entoa com absoluta delicadeza a
melancólica e rica melodia. Igualmente de embasbacar, “Milonga das 7 Cidades”
(mais uma de “Ramilonga”), a suplicante “Perdão” (“Perdoo o sol/ Que aquece meu corpo/ Perdoo o ar/ Que me alimenta/
Perdoo a dor/ Que desistiu de mim/ E a solidão/ Que não foi tanta como eu quis...”)
e “Vem”, onde, a capella, Vitor
arrasa no canto (a letra, fez sobre um prelúdio de Bach) enquanto o maestro
conduz um belíssimo arranjo, chamando atenção para a segunda parte, em que
todos abandonam os arcos para, delicada e ordenadamente, tangerem com os dedos as
cordas de seus instrumentos.
Original do disco “Délibáb”, de 2010, “Querência” traz a poesia pampeana
de João da Cunha Vargas, a quem muitos, incluindo a mim, passou a conhecer
através das músicas de Vitor. Dos dois é outra das mais incríveis que se ouviu,
esta apenas na voz e violão: “Deixando o Pago”, milonga capaz de transmitir ao
mesmo tempo bravura e fragilidade, tristeza e sensação de liberdade: “Cruzo a última cancela/ Do campo pro
corredor/ E sinto um perfume de flor/ Que brotou na primavera/ À noite, linda
que era/ Banhada pelo luar/ Tive ganas de chorar/ Ao ver meu rancho tapera”.
No final do show, executando "Astronauta Lírico".
Hit gravado por nomes como Gal Costa, Milton Nascimento, Chico César e Maria Rita, “Estrela Estrela”,
amada pelo público, é a que mais foi possível ouvir o coro da plateia, silenciosa
a maior parte do tempo, pois extremamente atenta a todos os acordes que se
pronunciavam. Esta ganha um arranjo suave, acompanhando sua aura lunar e
fugidia. Já em “Indo ao Pampa”, mais uma de “Ramilonga”, Loureiro Chaves
escreve um arranjo especial no qual explora a atmosfera indiana da original e
transpõe isso para a orquestra. Um show! Das melhores do set-list, a qual explode no refrão em ataques intensos das cordas.
Especial também é o canto de Vitor, que avança impressionantemente de um tom
médio para o agudo sem desafinar jamais. Que cantor!
Outra das incríveis de seu repertório, igualmente adorada pelo público,
“Astronauta Lírico”, levou-nos às lágrimas. Delicadeza resume bem essa canção,
onde se nota novamente a esfíngica forma de Vitor compor. Valendo-se
praticamente de “lugares comuns” da poesia, os versos, escritos com tamanha
sensibilidade e destreza, são de uma poesia sem igual: “Quero perder o medo da poesia/ Encontrar a métrica e a lágrima/ Onde
os caminhos se bifurcam/ Flanando na miragem de um jardim...”. E o refrão,
em que ele consegue quebrar em três tempos uma pequena palavra como “terra”!?
(sem que isso fique esquisito, aliás, pelo contrário: harmonizando lindamente
palavra e som.)
O primeiro bis é a própria “Ramilonga”, de lindo arranjo das cordas que
veste a música num crescendo nesta que é a mais perfeita tradução da
melancólica mas poética Porto Alegre, cidade cujos versos “nunca mais/nunca mais” se encaixam assustadoramente bem. O
desfecho foi com a milonga “Mango”, talvez não a melhor escolha para um último
número, haja vista a extensa lista de sucessos que fariam o público ir para
casa embora levitando (“Loucos de cara”, “Joquim”, "Satolep"
, “Não é céu”), mas
nada que desagradasse - pelo contrário, pois foi suficiente para, junto com o
restante, fazer-nos ir para casa suspensos sim.
Se ficou muita coisa de fora, é compreensível, pois é realmente difícil
sintetizar cerca de 40 anos de música em um projeto complexo em formato e que
envolve tantas mãos como este. Porém, certamente o que vimos manteve intacta a
sublime obra deste gaúcho de Pelotas que tanto representa, com profundidade
artística e até semiológica, a arte e o modo de ser do pampa. Vitor nos prova o
quanto se é capaz de ser regional e universal ao mesmo tempo. Vitor nos mostra
que existe outro Brasil que não só de Carnaval e Nordestes pasteurizados. Vitor
nos evidencia que há uma beleza nessa combalida e vulgarizara imagem do ser
gaúcho. Em Vitor nos identificamos e ele em nós.
E sim, Vitor: não deixas nada a desejar diante do mestre Villa-Lobos,
podes ter certeza.
Deve haver algum mistério divinal guardado
no nome Ivone que faz com que algumas delas, Ivones, sejam iluminadas. Só pode!
Pois se não bastasse dona Ivone Lara, a sambista bachiana da MPB, eis que tenho
a honra de conhecer e ver tocando a também dona Ivone, esta de sobrenome
Pacheco, intitulada como a Diva do Jazz de Porto Alegre. As semelhanças entre
as duas não se encerram aí: longevas (ambas ultrapassam as 80 primaveras), ainda
são mestres na música e, acima de tudo, verdadeiras entidades, pessoas que ao
se olhar se percebe que excedem este plano aqui, de nós mortais. Há uma
espiritualidade que as eleva e que, justamente, conseguem transpor em arte.
Foi um pouco disso que vi durante o
encontro do Club de Jazz Take Five no último dia 18 de abril, data em que o
clube completou 30 anos. Promovido por d. Ivone, o Take Five teve início quando ela se
juntou ao músico Marcos Ungareti (que, claro, estava lá na comemoração). Na
época, as performances musicais de d. Ivone se restringiam às festas da família. Só depois de criar os filhos,
cursar a faculdade de música e lecionar, Lady Ivone teve a ideia de fazer as jams
sessions no porão de sua casa. Foi então que tudo começou.
Grupo tocando Hancock, um dos
pontos altos da noite
O ambiente é totalmente mágico, misto de
clube de jazz nova-iorquino ou parisiense com loja de antiguidades. Um
espetáculo. Diversos quadros, espelhos, capas de disco, móveis antigos, objetos,
tecidos, pôsters que vão de Charlie Parker ao de Humphrey Bogart e, claro, o
piano. Pouca luz; suficiente. Cheiro de magia no ar. Pessoas felizes que te
sorriem sem saber quem tu és: o fazem só pela simples alegria de estar
compartilhando aquilo ali seja com quem for. Tomado por essa atmosfera, escutei
números de jazz tocados com muita emoção. Teve “Summertime”, “Hello, Dolly” e uma
versão de “Ins’t She Lovely” do Stevie Wonder com a mesma banda que tocou uma outra
que me tirou do chão: “Cantaloupe Island”, do Hancock. Uau!
"Summertime"
O pessoal do
rockabilly
Como funciona em rodízio de
bandas/artistas, cada um vai lá ao palco e manda ver algumas músicas. Numa
dessas trocas, um simpático trio de rockabilly se apresentou, tocando coisas bem
legais, como “Summertime Blues” (Eddie Cochran) e “Can´t Help Falling In Love”,
clássico imortalizado por Elvis Presley, em que todo mundo entoou o refrão.
D. Ivone e Ramiro Kersting tocando
"As Time Goes By"
Mas o melhor desta noite onírica não podia
vir de uma pessoa: d. Ivone. Ao piano, ela, numa concentração astral, emanou
com extrema delicadeza e sensibilidade peças emocionantes. Lembrava a fineza
dos dedilhados de Paul Bley, Toshiko Akyioshi, Bill Evans, Sonny Clark. Mas antes
de qualquer coisa era Ivone Pacheco. Como se não bastasse, juntou-se a ela o
trompetistaRamiro Kersting,
e ali se deu algo realmente mágico. Sem trocar uma palavra, mas em total
sincronia, presentearam o público com pérolas como “As Time Goes By” e “When The Saints Go Marchin' In”, para ficar em dois ótimos
exemplos.
Amante de jazz como sou, confesso que não
sabia da existência de um grupo tão antigo na minha própria cidade e em plena
atividade e, principalmente, do quão secreto é o evento. Entre as regras que regem
o clube, como o caráter não-comercial e o fato de todos levarem sua própria
bebida, o endereço é mantido em sigilo: só vai quem sabe ou se conhece alguém
que já foi – situação na qual me enquadro. Um critério seletivo que todos respeitam e que só faz valorizar o
clube, além de lhe dar ainda um charme especial.
Foi um momento de se respirar jazz, de se
inalar a “música da alma”. De se sentir música. Saí de lá com uma certeza: na
próxima encarnação, quererei vir Ivone.
Dona Ivone ao piano - comemoração dos 30 anos do Take Five
Um pouco mais sobre o Take Five
Take Five: casa que completa
30 anos
Sexto Take: Eu, totalmente intergrado
na atmosfera do clube
Depois de pôr em
funcionamento o Take Five, em 1982, Ivone Pacheco começou a se apresentar em
bares e fazer shows em Porto Alegre, interior gaúcho e até em outros estados e
fora do Brasil, tocando em ruas, metrôs e pubs. No início, as reuniões do Club
de Jazz eram semanais. Nos anos 90, auge do Take Five, os encontros passaram a
ser mensais, pois o local começou a lotar e perder um pouco sua essência. Ivone
Pacheco sempre incentivou novos e conhecidos artistas a se apresentarem naquele
espaço.Muitas bandas se formaram lá durante os encontros, que avançavam até as
altas horas da madrugada. Já passaram pelo palco bandas como a Tradicional Jazz
Band que, quando vinham se apresentar em Porto Alegre, faziam questão de tocar
no "porão da Ivone". Hoje, as reuniões do Take Five são realizadas
apenas em datas especiais quatro vezes por ano: o aniversário do clube, a noite
de São João, a chegada da primavera e a festa de encerramento com o Natal.
E ele chegou aos 80. Tomado de significados, o aniversário de Gilberto Gil está sendo uma celebração nacional.
Por vários motivos: ele é a nossa arte maior, o nosso orgulho enquanto povo, a representação da nossa raça, da nossa sapiência espiritual, da nossa resistência
política e cidadã. O Brasil que deu (que pode dar) certo. No Clyblog, basta fazer uma breve pesquisa pelo nome deste
artista que se encontrarão diversas referências, talvez a de maior volume nestes
quase 14 anos de blog.
Tanto é que nós, como se parentes ou súditos muito próximos, haja vista que sua arte perfaz nossas vidas desde crianças, aqui estamos reunidos para celebrar os 80 anos deste baiano que quis falar com Deus e conseguiu. Gentes
de diferentes idades, estados, profissões, mas impregnados da mesma admiração pela
vasta, vastíssima obra de Gil, um autor, assim como o mano Caetano Veloso – o próximo
oitentão da turma – capaz de produzir misteriosamente com uma qualidade superior
por décadas a fio praticamente sem quebras neste alto padrão artístico.
O “nós” a quem me refiro, claro, inclui-me, mas vai além
disso. Somos oito seguidores da egrégora Gil das áreas do jornalismo, da arquitetura, da biblioteconomia,
da arquitetura, da produção cultural e outros e, claro, da própria música. O talentoso
músico paulista Mauricio Pereira, que já versou Gil n’Os Mulheres Negras, é um
dos que generosamente colaboram conosco elencando suas preferidas. Como ele, tivemos a árdua tarefa de escolher
cada um10 músicas, chegando, devota e festivamente, à soma de 80, igual a suas primaveras
completas no último 26 de junho.
Creio que, daqui a 2 anos, quando Chico Buarque completar esta
mesma idade (o que todos esperamos), talvez haja comoção parecida. Mas somente
parecida. Gil guarda particularidades junto ao coração das pessoas que somente ele é capaz de provocar. Tanto que não foi assim quando Roberto chegou ao time dos oitentões, nem com Erasmo, Tom Zé, Flora, Hermeto, Donato e nenhum outro da música brasileira que já tenha rompido
a barreira das oito décadas. Além de recentemente sentar-se na cadeira da
eternidade da Academia Brasileira de Letras, ratificando o que construiu ao
longo de 60 anos de carreira, a própria imortalidade, este aniversário de Gil é
um aniversário de todos: dos fãs, dos brasileiros, da América preta e mestiça,
da África diáspora, da cultura latino-americana, da arte universal. De nós.
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Kaká Reis
produtora cultural (Rio de Janeiro/RJ)
"Gil sempre fez parte da minha vida. Meus dois irmãos (autores desse blog), mais especificamente Daniel, sempre trouxeram suas melodias e letras para perto e realmente conquistaram meus ouvidos a ponto de 'Tropicália 2' ser, com ainda uns 7 anos de idade, meu disco favorito. Um ancestral vivo, ativo, criativo, que eu posso ver com meus olhos, ouvir com os ouvidos e sentir com a alma… assim é Gil. Um griot da sabedoria!”
4. "Abre o Olho" ("Gilbert0 Gil Ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca", 1974)
5. "Refazenda" ("Refazenda", 1975)
6. "Sarará Miolo" ("Realce", 1979)
7. "Quanta" ("Quanta", 1997)
8. "Parabolicamara" ("Parabolicamará", 1992)
9. "Nos Barracos da Cidade" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
10. "Drão" ("Um Banda Um", 1982)
Leocádia Costa
publicitária, produtora cultural e locutora (Porto Alegre/RS)
"Escolher 10 canções na imensa e maravilhosa discografia de Gilberto Gil, Ave, é desesperador. Quando recebi o convite de participar dessa homenagem por ser uma fã dele e da sua expressão, precisei estabelecer algum critério para escolher 10 canções. Gostar, gosto de praticamente tudo o que ele canta, então esse não seria um critério adequado. Depois, pensei naquelas canções que me tiram do chão, me fazem vibrar em espirais que só ele produz. A missão de escolher ficou ainda mais complexa, porque algumas canções de Gil dizem o que meu coração gostaria de dizer, ou aquilo que minha cabeça pensaria, ainda coloca na minha boca a indignação ou a descoberta mais sensível dos inúmeros graus da Espiritualidade que ele percorre. Então, descartei esse critério também. Daí me dei conta que boa parte das iniciais 33 canções que eu havia escolhido se dividiam entre canções que estão eternizadas na voz do Gil e outras que eu escuto na voz dos seus intérpretes sendo praticamente deles (Cássia Eller, "Queremos Saber"; Rita Lee, "Panis et Circenses", João Donato, "Bananeira"; Dominguinhos, "Só quero um xodó"; Elis Regina, "Rebento"; e Cazuza, "Um trem pras estrelas", só para citar algumas, sendo impossível nominar as composições de Gil e Caetano que me nutrem a alma). Então, cheguei ao critério que me fez melhorar um pouco a seleção para chegar nas 10 escolhidas: destacaria somente aquelas canções que, para mim, são ouvidas na voz do compositor e que me marcaram profundamente e aí estão elas!"
1. "Lamento Sertanejo" ("Refazenda", 1975, com Dominguinhos)
2. "Sitio do Pica-Pau Amarelo" (Trilha sonora "Sítio do Pica-Pau Amarelo", 1977)
3. "Filhos de Gandhi" ("Gil & Jorge" ou "Xangô/Ogum", 1974, com Jorge Ben)
4. "Drão"
5. "Tempo Rei" ("Raça Humana", 1984)
6. "Vamos Fugir" ("Raça Humana", 1984, com Liminha)
7. "Domingo no Parque"
8. "Zumbi (A Felicidade Guerreira)" (Trilha sonora "Quilombo", 1985, com Wally Salomão)
9. "Aquele Abraço" ("Gilberto Gil", 1969)
10. "São João, Xangô Menino" ("Gilberto Gil ao vivo em Montreux", 1978, com Caetano Veloso)
Tatiana Viana
assessora de planejamento da Secretaria da Cultura de Viamão (Viamão/RS)
"Acho que ele tem lugar garantido no coração, em algum lugar da memória afetiva de todo brasileiro, uma obra ampla, maravilhosa, que fala dos dilemas humanos, de amores e sofrimentos da vida de um modo geral, a desigualdade social, cultura. Gil é um pouco de cada um de nós e nós carregamos um pouco dele em nossas vidas."
1. "Emoriô" (por João Donato, "Lugar Comum", 1975, com Donato)
2. "Extra" ("Extra", 1983)
3. "Nos Barracos da Cidade"
4. "Tempo Rei"
5. "Esotérico" ("Um Banda Um", 1982)
6. "Drão"
7. "Andar com Fé" ("Um Banda Um", 1982)
8. "Parabolicamará"
9. "Buda Nagô" ("Parabolicamará", 1992)
10. "Metáfora" ("Um Banda Um", 1982)
Maria Joana Lessa
jornalista (Rio de Janeiro/RJ)
“Eu acho que Gil é um orixá vivo”.
1. "Extra"
2. "Afoxé É" ("Um Banda Um", 1982)
3. "Abre o Olho"
4. "Sarará Miolo"
5. "Refazenda"
6. "Back in Bahia" ("Expresso 2222", 1972)
7. "Domingo no Parque"
8. "Filhos de Gandhi"
9. "Babá Alapalá" ("Refavela", 1977)
10. "São João, Xangô Menino"
Clayton Reis
arquiteto, cartunista e blogueiro (Rio de Janeiro/RJ)
"Tarefa dificílima! Sempre me ocupei meramente em apreciar e nunca em elencar minhas preferidas. Numa obra tão linda, nunca me preocupei em saber se eu gostava mais dessa ou daquela. Enfim, aí estão as 'do momento'. Talvez depois me arrependa e pense em alguma injustiçada que não entrou. Mas por agora, minhas 10 são essas aí..."
1. "Drão"
2. "Febril" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
3. "Domingo no Parque"
4. "Refazenda"
5. "Roque Santeiro (O Rock)" ("Dia Dorim Noite Neon", 1985)
6. "Raça Humana" ("Raça Humana", 1984)
7. "Ela" ("Refazenda", 1975)
8. "Back in Bahia"
9. "Parabolicamará"
10. "Lamento Sertanejo"
Luciana Danielli
bibliotecária (Niterói/RJ)
"Gil, baluarte da música brasileira e o maior ministro da cultura que o Brasil já teve! Grande artista!!!! Parabéns Gil! Feliz 80!"
1. "Marginália II" ("Gilberto Gil", 1968, com Torquato Neto)
2. "Refazenda"
3. "Tempo Rei"
4. "Aquele Abraço"
5. "Toda Menina Baiana" ("Realce", 1979)
6. "Domingo no Parque"
7. "Expresso 2222" ("Expresso 2222", 1972)
8. "Lamento Sertanejo"
9. "Refavela" ("Refavela", 1977)
10. "Pela Internet" ("Quanta", 1997)
Daniel Rodrigues
jornalista, escritor, radialista e blogueiro (Porto Alegre/RS)
"'Gil engendra em Gil rouxinol', cantou Caetano usando as palavras do poeta Souzândrade para falar de Gilberto Gil. A obra de Gil é gigante em vários sentidos, por isso, misteriosa. Inclusive no assombroso volume de canções da primeira linha da música mundial. E quantas que eu adoro tiveram que ficar de fora da minha lista! 'Aqui e Agora', 'O Oco do Mundo', 'Haiti', 'Febril', 'Rock Santeiro (O Rock)', 'Beira-Mar', 'A Balada do Lado sem Luz'... Apenas 10 é pouco para representá-la e representá-lo, mas creio que, sim, muito bem representadas quando junto às 10 de todos nós. Viva Gil!! Axé!"
1. "Filhos de Gandhi"
2. "Lamento Sertanejo"
3. "Back in Bahia"
4. "Drão"
5. "Cores Vivas" ("A Gente Precisa Ver o Luar", 1981)
6. "Domingo no Parque"
7. "Palco"("A Gente Precisa Ver o Luar", 1981)
8. "Queremos Saber" (por Erasmo Carlos, "A Banda dos Contentes", 1976)
9. "Cinema Novo" ("Tropicália 2", com Caetano Veloso, 1993)
10. "Lamento de Carnaval" ("Quanta Gente Veio Ver", 1998, com Lulu Santos)
Maurício Pereira
músico e jornalista (São Paulo/SP)
“Difícil demais escolher 10 músicas do Gil pra passar pra vocês, o repertório dele tem coisas fundamentais, de cara eu já pensei numas 30… E não tou falando não como o Maurício músico ou compositor, não. Falo como ouvinte, como um brasileiro comum que se serviu da poesia, da sensibilidade, da inquietude filosófica, da visão de mundo desse artista, pra poder tentar entender e viver o mundo (e o Brasil) dum modo mais profundo e mais misterioso. Salve o Gil! .”
1. "Retiros Espirituais" ("Refazenda", 1975)
2. "Jeca Total" ("Refazenda", 1975)
3. "Vitrines" ("Gilberto Gil", 1969)
4. "Aquele Abraço"
5. "Louvação" ("Louvação", 1966)
6. "Raça Humana"
7. "Domingo no Parque"
8. "Batmacumba" (por Os Mutantes, "Tropicália" ou "Panis et Circensis", 1968, com Caetano Veloso)
9. "Meio de Campo" (por Elis Regina, "Elis", 1973)
10. "Tradição" ("Realce", 1979)
*********
As mais votadas
- "Domingo no Parque" - 7 votos
- "Drão" - 5 votos
-"Lamento Sertanejo", "Refazenda" e "Tempo Rei" - 4 votos
- "Back in Bahia" , "Parabolicamará", "Aquele Abraço" e "Filhos de Gandhi" - 3 votos
- "Abre o Olho", "Raça Humana", "Extra", "Sarará Miolo", "Nos Barracos da Cidade" e "São João, Xangô Menino" - 2 votos
- "Super-homem, a Canção", "Haiti", "Quanta", "Sitio do Pica-Pau Amarelo", "Vamos Fugir", "Zumbi (A Felicidade Guerreira)", "Emoriô", "Esotérico", "Andar com Fé", "Buda Nagô", "Metáfora", "Afoxé É", "Babá Alapalá", "Febril", "Roque Santeiro (O Rock)", "Ela", "Marginália II", "Toda Menina Baiana", "Expresso 2222", "Pela Internet", "Cores Vivas", "Palco", "Queremos Saber", "Cinema Novo", "Retiros Espirituais", "Jeca Total", Vitrines", "Tradição", "Meio de Campo", "Batmacumba" e "Louvação"- 1 voto