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quarta-feira, 9 de março de 2016

A Pureza dos Sons

Uma das coisas mais impressionantes que já presenciei em um show de música foi numa apresentação de Naná Vasconcelos. Algo tão impressionante que me leva a relativizar, inclusive, os termos que acabo de usar: “apresentação” e “show de música”. Não me refiro necessariamente à emoção de assistir a um artista que se gosta, o que, por si, já causa impressão. Naná foi um deles, assim como foi Paul McCartneyGilberto GilMorrisseyMaria BethâniaHelmetDi MeloThe CureMonarcoPrimal ScreamMilton Nascimento, e por aí vai. Só vê-los num palco, gigantes que se tornam – alguns, de baixa estatura como Caetano Veloso ou Vitor Ramil, mas enormes entidades quando cantam –, é um momento especial.

Refiro-me a outra coisa. Esse show de Naná foi em 2010, no Salão de Atos da UFRGS, em Porto Alegre. A começar, não havia mais ninguém no palco: apenas o gênio pernambucano (mais um deles) cujos tambores e percussões foram responsáveis por virar de ponta-cabeça a música do século XX com sua arte originalmente universal, forjada no âmago mais recôndito da África negra mas sensivelmente generoso aos sons de todo o mundo. Tudo que se fala hoje em termos de inclusão, diversidade, cosmopolitismo e até sustentabilidade estavam presentes desde sempre na música de Naná. As reminiscências da humanidade estão preservadas em seus sons, a manifestação inata e orgânica do corpo em movimento também, assim como entenderam Meredith Monk, os tap dances norte-americanos, Dorival CaymmiVioleta Parra, os bluesmans do Mississipi.

Pois, por toda essa complexidade – extremamente natural de ser sorvida e apreciada com a maior das facilidades –, questiono que aquilo tenha sido uma “apresentação” e necessariamente de “música”. Ele, sozinho no palco, rodeado de alguns instrumentos percussivos (não muitos), não simplesmente apresentou, mas experenciou algo a nós, plateia. E não somente um show, o que seria simplório, mas, por cerca de 1 hora, vivemos um momento de humanidade. Conversou e contou histórias com a simplicidade contrastante de um tímido acostumado a comandar públicos há décadas. Mas, principalmente, tocou. Tangeu, atritou, bateu, produziu sons. Ele e instrumentos eram a mesma coisa. Do mesmo barro. Independia a nós, que ouvíamos sua arte e certamente, antes de mais nada, a ele  próprio, se os sons emanavam do seu aparelho vocal, do berimbau, da pancada com as mãos em sua própria pele ossuda e ressonante ou da sua respiração. Ecos, reverberações, estampidos, fala, raspados, vibrações: tudo de igual origem.

Provavelmente só vira tal integração natureza/homem quando assistira Monk ano passado, quando esta recolhera o repertório de 50 anos de pesquisas e aprofundamento de sua “música impermanente”. Com Naná, entretanto, a comunicação foi maior. Costumaz colaborador de tantos e tantos artistas e bandas pelo mundo, em realidade não precisava de mais ninguém num palco. Quando o vi, havia Naná e centenas de outros. Todos dentro dele. Naquele dia, quem teve a sorte de estar na plateia – e isso certamente ocorria a muitos e em qualquer lugar que fosse, dada a generosidade de sua arte – teve a chance de experimentar essa sensação tão natural a nós, humanos, e, curiosamente, tão inacesssada.

Foi quando, para terminar o “encontro” (nego-me a classificar somente como “show”), Naná convidou a nós da plateia a produzir o som do Rio Amazonas quando chove... Sim, o som da água, da chuva caindo no rio e na mata! Como um maestro – ou um mago –, regeu-nos. Sob seu comando emitimos sons guturais e batíamos palmas acompanhando um ritmo que ele conduzia em gestos. O resultado foi algo simplesmente transcendente. Estávamos ali, sim, imitando o som da chuva na selva. Tornamo-nos água naqueles instantes, rumamos direto para àquilo que nos forma, que nos rege, aquilo que nos compõem em maioria em termos físicos e espirituais. Vibramos todas nossas moléculas e as harmonizamos no ritmo das ondas, sob a orientação dos ventos, sob a influência dos astros. Voltamos ao útero. Sentimos a pureza.

Não sei do restante das pessoas, mas eu nunca mais fui o mesmo a partir daquele momento. Mesmo que pouco, aquela experiência me mudou para sempre de alguma maneira, a ponto de, hoje, quando Naná Vasconcelos deixa esse planeta do qual tanto compreendeu e simbolizou com beleza, lembrar-me justamente desse episódio. Ele dizia que nunca iria gravar aquilo, pois era uma experiência para ser vivida. Eu vivi. E virei água como ele.


NANÁ VASCONCELOS
(1944-2016)





quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Som Imaginário - “Matança do Porco” (1973)



A capa original, em cima,
e a da reedição de 2003
“Foi uma época de muita coisa.
 Eu voltei da Europa na turnê que eu fiz com o Paulo Moura,
logo depois do show do Bituca com o ‘Clube da Esquina’.
É um disco que eu compus todo na Europa,
chamado ‘Matança do Porco’.
 Música que, inclusive, tem no disco ao vivo do Milton,
o ‘Milagre dos Peixes Ao Vivo’.
 Você vê que as ideias estavam ali.
Foi a nossa época de laboratório mesmo.
Serviu para o resto das nossas vidas.”
Wagner Tiso


Milton Nascimento foi sempre o cabeça e congregador do chamado Clube da Esquina, esse time de artistas de Minas Gerais que mudou a cara da MPB desde a conturbada segunda metade dos anos 60 de Ditadura Militar no Brasil. Em torno de Bituca – e muitas vezes até motivados por ele, como no caso de Fernando Brant e Lô Borges – se configurou a movimentação musical que trouxe novas linguagem e referências à música brasileira e até mundial se se considerar seu pioneirismo naquilo que passou a se chamar tempo depois de world musicWayne Shorter, Sarah Vaughan, Quincy JonesEric Clapton, Paul Simon, Carminho entendem isso muito bem. Porém, dos diversos talentos surgidos à época e/ou junto com Bituca, um deles é quase tão fundamental: o maestro Wagner Tiso. Surpreendentemente autodidata (o saxofonista e clarinetista Paulo Moura, exímio arranjador, apenas lhe deu toques sobre teoria), é naturalmente dono de um estilo de tocar piano e de orquestrar que bebe no colorido de Claude Debussy e na força expressiva de Richard Wagner, além de sua veia sacra, a qual adquiriu ainda pequeno nas igrejas do interior de Minas que frequentava. Se Milton é o símbolo do Clube da Esquina, principal compositor e propulsor da cena, Tiso é o centro harmônico, o homem que aperfeiçoou a ideia e lhe deu lastro.

Tiso, sempre muito ligado a Milton Nascimento (ambos são naturais de Três Pontas), já era o principal arranjador e regente dos trabalhos deste desde o LP “Milton”, de 1970, mesmo ano em que, juntamente com Luis Alves (baixo), Frederyko (guitarra) e Robertinho Silva (bateria) forma uma banda de apoio para o parceiro. Assim surgiu a Som Imaginário, para a qual ainda foram convocados para completar o grupo nada mais, nada menos que três craques: Tavito (violão), Zé Rodrix (voz, órgão, flautas) e Naná Vasconcelos (percussão). Um time de primeira. Além das essenciais participações nos trabalhos de Milton e na de gente do calibre de MPB-4, Marcos Valle, Gal Costa, Odair José, Sueli Costa, dentre outros, a banda mantinha também carreira própria. Depois de dois discos em que Rodrix comandava os microfones (“Som Imaginário”, de 1970, e “Nova Estrela”, de 1971) a Som Imaginário, sem este e Naná, sintetiza sua sonoridade psicodélica e até lisérgica e compõem um álbum totalmente instrumental: “Matança do Porco”, de 1973. Nele, a MPB se junta com felicidade ao rock progressivo, ao jazz e à música clássica em seis canções assinadas por Tiso em que todos os músicos se esmeram nos instrumentos. Solos magníficos, arranjos deslumbrantes e orquestrações idem, cujas regências tiveram ainda a fina colaboração de Moura, maestro Gaya e Arthur Verocai. Este último trabalho de estúdio do grupo é uma obra-prima da música instrumental no Brasil.

“Armina”, com sua melodia valseada e melancólica, não apenas abre o disco com o piano altamente erudito de Tiso como, igualmente, recorta-o todo, aparecendo em vinhetas/excertos entre os outros cinco temas durante todo o decorrer, desfechando-o também, inclusive. A canção dá o clima do álbum, cujo peso do rock, o swing do samba-jazz e a energia do fusion são ciclicamente reconduzidos à atmosfera do tema-tronco, o qual traça uma linha entre o litúrgico e o a herança modernista do folclórico bachiano de Villa-Lobos. Entretanto, na alquimia natural da Som Imaginário, de cara se ouve um potente jazz-rock de baixo-guitarra-bateria-órgão, que faz um pequeno preâmbulo para, aí sim, dar lugar ao piano de Tiso. Depois de um lindo solo, que traz delicadeza ao número, a banda retorna vigorosa – a melodia lembra “I Want You (She's So Heavy)”, dos Beatles, na parte do “She so heavyyyy...”, para ver o nível de grandioculência – para um exímio e longo solo da guitarra rasgante de Frederyko, ao estilo de John McLaughlin. Por volta de 4 minutos e meio, param todos os instrumentos elétricos para novamente ouvir-se o dedilhado acústico do piano, fazendo ressurgir a valsa tristonha.

Agora sob o som de um piano elétrico, “A 3”, extremamente moderna, sintoniza com o que Hermeto Pascoal, Airto Moreira e João Donato vinham fazendo nos Estados Unidos àquela época e embasbacando os gringos: um jazz brasileiro com ritmo, harmonias complexas e uma habilidade musical peculiar dos trópicos. Show de perícia de toda a banda, que, levados pelos teclados, ganham o acompanhamento da percussão do mestre Chico Batera e da flauta de outro professor, Danilo Caymmi. Uma curta e orquestrada “Armínia”, arregimentada por Verocai – e na qual se notam os toques de sua sofisticação harmônica, principalmente na predileção pelos metais ouvidos ao final –, antecipa “A nº 2”, que inicia como um samba cadenciado conduzido por uma linha de órgão. Vão se adicionando as melodiosas vozes dos Golden Boys, solos da guitarra e cordas, num crescendo de emoção. Até que, pouco antes dos 5 minutos, o baixo de Luis manda um groove e a música dá uma virada para um jazz-funk estupendo. Tiso troca o órgão para o Hammond; Luis e Fredera, mantendo a base em repetições ágeis; Robertinho; segurando o ritmo na variação caixa/prato de ataque. Arrasador. Digno de um “Headhunters”, de Hancock, ou “On the Corner”, de Miles Davis.

A faixa-título, que eu conheci no disco de Milton, “Milagre dos Peixes Ao Vivo” (1974), surpreendendo-me por demais já daquela feita, não perde em nada no estúdio. Aliás, até ganha, tendo em vista que os registros ao vivo da época eram deficitários tecnologicamente (o caso). Além do mais, o próprio Bituca empresta aqui a sua voz. Então: serviço completo, nada faltando. Sugestivo, o título remete ao arcaico ritual de abate de suínos típico do folclore português e que, obviamente, devido a seus requintes de crueldade, exprime algo de visceral e funesto vivido à época no Brasil de Regime Militar. Como se tratava de uma canção “sem letra”, os milicos a consideraram inofensiva e deixaram passar pela censura. Isso faz com que “Matança do Porco”, música e disco, alinhem-se, pela via de um “silêncio resistente”, a “Milagre dos Peixes” de estúdio, daquele mesmo ano de 1973, que os militares censuraram praticamente todas as letras, transformando-o, forçadamente, num álbum semi-instrumental. Este aqui é instrumental de propósito, pois não há palavras para exprimir o sentimento nefasto que se presenciava. Os sons, dados à imaginação, falam por si.

Nos mais de 11 minutos da canção “Matança do Porco”, ponto alto do disco, deságuam boa parte da musicalidade construída pela turma do Clube da Esquina. Seguindo a atmosfera erudita que domina o álbum, trata-se de um pequeno réquiem transgressor, entre o rock e o jazz. Traz o vigor de um rock progressivo, que lembra o Pink Floyd psicodélico pré-"Wish You Were Here", ainda mais pela novamente excelente performance de Frederyko debulhando a guitarra – e não deixando nada a dever a um David Gilmour. O primeiro “movimento” inicia lento com acordes 2/2 de Tiso ao piano, que exercita uma breve introdução (Kyrie e Gloria) enquanto vão entrando aos poucos os outros instrumentos até chegar na guitarra, que, distorcida, se adona do campo. São quase 5 minutos de um solo dividido em dois momentos (algo que se poderia intitular como “A Preparação”, Credo, e “A Desforra”, Sanctus) que vai num crescendo e toma uma carga emotiva tamanha com o poder de carregar consigo os outros integrantes, ao final igualmente em êxtase. Robertinho dá um show de rolos e condução; Tiso, centro da peça, lança impressionantes ataques e improvisos jazzísticos. O ritual de morte chega a seu ápice. O sangue escorre. Morte.

Valendo-se fartamente de seu conhecimento erudito, Tiso corta mais uma vez a canção para, numa fusão para um segundo ato, arregimentar a partir dali uma volumosa orquestra Odeon (conduzida por Gaya), a qual toca uma melodia triste (um Benedictus), como uma prece à ignorância humana. Entram o coro dos Golden Boys formando um cantochão gregoriano. Junto, para realçar ainda mais a beleza melancólica do tema, a guitarra volta a marcar a base e Milton soma ao coro o seu inconfundível timbre, executando vocalises arrepiantes. O final, no órgão, desfecha-a num evidente tom fúnebre de Missa dos Defuntos, até voltar ao toque quase de cantiga de roda dos primeiros acordes. Agnus Dei. Um desbunde. O porco e o cidadão brasileiro, perseguidos e sem voz, foram abatidos. “Quem é animal e quem é gente?”, fica a pergunta.

Depois de tanta magnitude, uma gostosa “Armina” com ares de bossa-nova ameniza o astral visitando Tom Jobim e Billy Blanco. “Bolero”, na sequência, é uma balada com riff bem rural escrita em parceria com Luis, Robertinho e Milton, este último de quem evidentemente partiu a ideia do violão-base tocado por Tavito, outro dos coautores. Nova mostra de habilidade dos músicos em que Tiso, principalmente, se destaca manipulando os dois pianos, assim como a flauta de Danilo Caymmi. O filho do gênio baiano é quem dá os primeiros acordes de “Mar Azul”, outro samba-jazz moderníssimo feito para os dedos de Tiso maravilharem num Hammond, tanto quanto Tavito ao violão 12 cordas. Da segunda metade para o fim, é geral o show de improvisos. Jazz brasileiro puro.

A intensidade orquestral finaliza este histórico álbum com a quarta e última seção de “Armina”, novamente com o toque de Verocai, que carrega nas cordas e metais no início para, aos poucos, verter a sonoridade para as madeiras, numa transição extremamente apurada e apenas perceptível quando a flauta entoa a última nota, haja vista que aumenta um tom para terminar não num registro suave, mas grave como deveria ser. Na capa da reedição em CD, de 2003, vê-se um plano geral de uma mesa dá bem a dimensão do período de tristeza e decadência que o País um dia se colocou: copos, garrafas de cerveja e de uísque, todos vazios, acompanham um cinzeiro lotado de cinzas e baganas e um papel surrado sobre um dos copos – que bem pode ser uma carta a um ente querido impossível de ser postada por causa do cerco da ditadura ou uma confissão de suicídio.

Naquele 1973, o enganoso “milagre brasileiro” do governo Médici escondia ainda mais as torturas, perseguições e exílios promovidos desde o AI-5, de cinco anos antes. As guerrilhas eram enfraquecidas e a população, quando não ignorante, se calava à força. Sem precisar dizer quase nenhuma palavra, “Matança do Porco” e “Milagre dos Peixes” formam um dos mais potentes libelos contra a opressão da ditadura militar no Brasil, duas sinfonias em nome da liberdade que todo brasileiro decente de então merecia. É o poder da música, é a magia dos sons. Sons capazes de despertar o imaginário de quem consegue entender o que é dito pelo coração.
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FAIXAS:
01. Armina
02. A3
03. Armina (Vinheta)
04. A n° 2
05. A Matança do Porco
06. Armina (Vinheta 2)
07. Bolero (Tiso/Milton Nascimento/ Robertinho Silva/Tavito/Luis Alves)
08. Mar Azul (Tiso/Alves)
09. Armina (Vinheta 3)
todas as músicas compostas por Wagner Tiso, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:







quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #192


 1.000 dias sem Marielle. 14.600 dias sem Lennon. Seguimos tocando a vida, mas que eles fazem falta, fazem. O que não quer dizer que a gente deixe de tocar o nosso MDC, que, aliás, vai ter eles e muito mais, como: The Cure, Chico Buarque, Joe Satriani, Kid Abelha, Aracy de Almeida e mais. No "Cabeça dos Outros", tem ainda Naná Vasconcelos e, no "Palavra, Lê",  Tom Waits. Eu se fosse vocês não ficaria mais um dia sem ouvir o programa. Aproveita já o de hoje: 21h, na na imperdível Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Aliás, por ontem e por hoje: "Why?"

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

ARQUIVO DE VIAGEM – Recife Antigo - Recife/PE – 06/08/2017



A galera na noite recifense em meio aos sons,
cheiros e sabores da cidade
Esta publicação pode-se dizer a primeira sobre Recife, mesmo que eu ainda não tenha a data de quando saem as próximas. Que serão quando voltar à cidade como turista. Viajando a trabalho, em menos de 24 horas que estive na terra de Chico Science, posso dizer que meu encantamento extrapola o simples agrado de se conhecer uma nova cidade. É, sim, identificação. Uma identificação que já supunha, haja vista conhecer pernambucanos queridos e por minha admiração de muito ao que a capital pernambucana e o estado como um todo sempre trouxeram – de Mangue Beat a Clarice Lispector, de João Cabral de Melo Neto a Frei Caneca, de Miguel Arraes a Naná Vasconcelos.

O que deu pra ver nas parcas horas livre que tive, basicamente, a noite de um domingo, foi um pouco da noite no Recife Antigo. Onde tudo começou. Mas quando digo tudo, é tudo MESMO, pois lá está, à beira da Baía do Pina, o Marco Zero, ou seja: onde essa “bagaça” chamada Brasil foi descoberta pelos portugueses. Não que não tivessem os índios aqui já, por direito mais brasileiros que qualquer um, mas é fato que, a partir dali, daquele ponto, em 1500, que se desencadeou a nossa sinuosa e alegórica história enquanto nação.

Para um domingo, achei bastante movimentado, tanto no largo da Praça, com famílias, turistas, casais e gurizada, quanto, principalmente, na agradabilíssima Rua da Moeda, uma das mais célebres e antigas vias da cidade. Nela, o público que encontrei era bem novo, adolescente, diria. Imagino que os mangueboys e manguegirls, jovens e jovens adultos, devam dar as caras mais às sextas e sábados à noite... Enfim, a Rua da Moeda é um misto de Lapa carioca com Cidade Baixa porto-alegrense com Pelourinho soteropolitano e Cidade Velha de Belém. Um rock anos 80 rolando num bar e um forró no do lado, ambos a plenas caixas, gente falando, bebendo, namorando, pedintes, policiamento ostensivo, cachorros vira-latas. Um barato.

Como disse, a passagem foi rápida e não deu para registrar muita coisa. Fica aqui, entretanto, um pouco das fachadas, da arquitetura, da atmosfera que une história e contemporaneidade. Mistura que, ao que deu pra notar mesmo com poucas horas de convivência, é a cara de Recife.

Podes deixar, que eu volto logo.

Galera concentrada na Rua da Moeda: estátua do malungo, tal qual Chico Science

Um dos bares clássicos do local, o Novo Pina

A Rua da Moeda com seus casarios estilo português

Pelas ruas do Recife Antigo

As ruelas históricas, esta, entre o Shopping da Alfândega e a Igreja da Madre de Deus

Mais do clima noturno do bairro

Prédios históricos conhecidos do cartão-postal da cidade

Quem nunca prestou atenção nesses prédios de estilos diferentes nas transmissões do Carnaval?

Muita gente na noite de domingo no Marco Zero

No Marco Zero em direção à Baía do Pina

Os movimentados bares ao lado da Praça

Como em todo Centro antigo, os cuscos têm que estar presentes

O beijo - um dos

Pela luz e pela cena, dá pra dizer que é um momento Edward Hooper recifense

por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 22 de março de 2023

Música da Cabeça - Programa #311

 

Nem tudo que brilha é joia. No MDC, por exemplo, não falta. Quem vem reluzindo com suas musicalidades hoje é Jards Macalé, Robert Wyatt, Nei Lisboa, Massive Attack, Naná Vasconcelos e mais. Quem também brilha aqui é o músico gaúcho Carlos Bolacha, no "Cabeça dos Outros". Totalmente legal, o programa de hoje passa tranquiaço pela alfândega às 21h na insuspeita Rádio Elétrica. Produção, apresentação e brilho próprio: Daniel Rodrigues.



www.radioeletrica.com

sábado, 12 de novembro de 2011

Brechó Solidário – Atelier Vanice Cougo – POA – RS (23/10/2011)






Fui ao brechó solidário em prol de animais abandonados no atelier da artista plástica Vanice Cougo, na Cidade Baixa, a convite de minha tia e parceirona Isaura Reis e da adorável amiga Francine Kras Borges, envolvida na causa. Sabendo de antemão que haveria pouca roupa masculina, interessei-me por saber que estaria à venda, entre outras coisas, CD’s. Para minha boa surpresa, além de alguns CD’s – como o ótimo “05:22:09:12 Off”, do Front 242, que peguei pra mim –, tinha também vinis. Poucos mas bons! O suficiente para vir para casa com uma pilhazinha de bolachões. São velhos conhecidos, mas as aquisições são novas. Eis:


Ambitious Lovers, "Lust"
“Lust”, The Ambitious Lovers (1990) – O segundo e último trabalho da dupla Peter Scherer e do múltiplo “americano-pernambucano” Arto Lindsay. Assim como o primeiro, “Greed” (1988), segue no estilo sofisticado da banda, que foi uma das precursoras fora do país a unir MPB a um som moderno e tecnológico. Destaque para a faixa-título, a linda “Villain”, parceria com Caetano Veloso (com direito a participação dele e de Naná Vascocelos!), e para a versão eletrificada de “Umbabarauma”, de Jorge Ben. Disco bem legal.









"Midnight Express, soundtrack
“Midnight Express Soundtrack”, Giorgio Moroder (1978) - A marcante trilha sonora de um dos melhores trabalhos de Alan Parker. A música desenha a atmosfera de melancolia, solidão e mistério do filme. De tão forte que é, impossível não associar cenas ao tema musical, como a histórica sequência final. Além desta, cenas como da perseguição pelas ruas de Istambul ou a do acesso de fúria do personagem principal na cadeia são fortemente pontuadas pela música de Moroder.











Caetano, "Totalmente Demais"
“Totalmente Demais”, Caetano Veloso (1986) – Pode-se dizer o precursor do modelo “Acústico MTV”. Este bom disco de Caetano, só na voz e violão, traz, como sempre quando se trata do artista, obras-primas. Já inicia com a então inédita na voz dele “Vaca Profana”, um clássico. Ainda tem pérolas como “O Quereres”, “Oba-lá-lá/Bim Bom” e a linda versão de “Todo Amor que Houver nesta Vida”, de Cazuza, cujo aval de Caetano ao então malvisto rock brasileiro àquela época foi marcante.










Sisters of Mercy, "Floodland"
“Floodland”, The Sisters of Mercy (1988) – Segundo dos únicos três álbuns de estúdio desta boa banda gothic-punk britânica. O disco é irregular, porém traz as boas “Lucretia my Reflection”, com baixo matador, “Flood II” e a soturna “Never Land”. Curiosamente, este é o LP que motivou o início de outra boa banda inglesa da época: o The Mission, uma vez que os então integrantes , Wayne Hussey e Craig Adams saíram do Sisters nesta época para formá-la.











Deee-Lite, "Infinity Within"
“Infinity Within”, Deee-Lite (1992) – Depois do ótimo “World Clique” (1990), puxado pelo hit “Groove is in the Heart”, este segundo trabalho do cosmopolita trio (a americana Lady Kier, o DJ russo Dimitri e o telentosíssimo japonês Towa Tei) não repete com tanto sucesso o trabalho de estreia. No entanto, valem bastante “Runaway”, “I.F.O.”, “Electric Shock” e as interessantes participações das bandas Arrested Development e Disposable Heroes of Hiphoprisy.
Enfim, uma tarde de boa ação e boas compras.







sexta-feira, 11 de março de 2016

Coluna dEle #40



Salve, salve!
Tamo chegando.
E aí como é que tão as coisa? Tudo tranquilo e favorável?
Então tá bom.
De Minha parte, Eu tô nas nuvens.

***

Mas a propósito de tranquilo, favorável, desse MC aí, daquela outra lá da metralhadora, Eu coloco aí Tom Jobim, Pixinguinha, Villa-Lobos, tem vivos Gil, Caetano, Chico, Jorge Ben e vocês ficam ouvindo essas porcarias?
Eu dou biscoito pra quem não tem dente, mesmo.
Depois Eu é que não vou salvar ninguém do Inferno, hein.

***

Eu sei, Eu sei, dou muitos caras foda aí pra vocês mas tiro também. Eu sei. Mas é da vida, uma hora eles vão ter que vir. Naná, por exemplo, que acabou de subir: se é pra vocês ficaram ouvindo Bin Laden e tratratrá, é sinal que não tá fazendo falta nenhuma aí embaixo. 
Aqui, assim que chegou, já saiu batucando nas Tábuas Sagradas, batendo os sinos celestiais e usando as auréolas dos anjinhos como se fossem triângulos.
Gênio!

***

Mal chegou e já foi relembrando as parcerias
Por falar em gênio, outro que Eu chamei pro andar de cima  que sei que vocês não engoliram bem até agora foi o Bowie.
Sei que não tem NINGUÉM aí embaixo pra fazer o que ele fazia, sei que essa posição fica vaga mas, pensa bem, o cara já fez tudo que era possível pra um mortal fazer em matéria de arte, já deixou o bastante pra vocês, não? Queriam mais? 
Deixem o cara sair de cena. Além do mais aqui ele fica mais perto das estrelas que ele gosta tanto e com as quais é tão acostumado.
Foi outro que mal chegou e já foi fazendo um som. Encontrou o Freddie e já puxaram um "Under Pressure" e com o John saiu cantando "Fame". Pelo jeito até já encaminhou outras parcerias interessantes por aqui. O vi combinando alguma coisa com o Ian Curtis, com a Amy, com o Jimi, com o Kurt, com o Lou com quem ele já tinha feito uns lances, e até com o Lemmy que também chegou há pouco.
Mas talvez as parcerias aqui de cima não se confirmem. A gente tá revendo a estratégia de marketing e não é de se descartar que ele volte. Como um Lázaro.

***

Ainda falando em deuses, e os show dos Stones por aí , hein?
Que que foi aquilo, véi???
Os velhinhos sabem das coisas, não?
Tenho que admitir que já chamei o Keith umas trocentas vezes pra vir pra cá pra cima mas que ele ainda tá mandando ver, tá! Até vou dar mais uns anos pra ele depois dessa turnê. 
Podia ter visto de graça aqui de cima mas a visão era muito longe do palco, aí tive que morrer numa nota preta mas vi de pertinho, ali do gargarejo. Teve uma hora que um cara até falou "Deus está entre nós", Eu pensei que ele tinha Me reconhecido mas ele tava se referindo ao Richards. Ufa!
O show todo foi afudê mas Eu fiquei arrepiado mesmo foi com "Sympathy for the Devil". "Pleased to meet you/ hope you gessed my name".

***

Mas ainda sobre o mundo do entretenimento, nunca recebi tanta oração pra alguém ganhar um prêmio quanto pra esse tal de DiCaprio. Não vejo porque tanta ansiedade pra isso. Tanta gente tão boa ou melhor no cinema passou a vida inteira fazendo coisas incríveis e só foi "ganhar" a sua estatuazinha dourada depois que já tinha vindo pra cá. Mas se era importante pra ele... pras fãs... Taí. Faça bom proveito.

***

Sobre o filme, esse que ele participa e que ganhou prêmio de direção também, o que tenho dizer é que... Não vi. Não posso opinar.

***

Tive que dar explicações sobre o meu patrimônio
ter aumentado em apenas sete dias
Mas agora, mudando de saco pra mala, a situação política aí no Nosso... digo, no país de vocês, de tranquila e favorável não tem nada, hein. E o pior é que é o sujo falando do mal lavado. Não tem um que se escape. Eu não queria estar na pele de vocês quando tiver eleições. 
A propósito, Eu nunca tinha visto uma cassação prévia como estão tentando fazer por aí.

***

E não me venha com essa de que Ele é de direita, Ele é de esquerda. Eu não sou de lado nenhum. eu sou de cima.

***

Uma vez Me vieram uns agentes da Polícia Celestial aqui em casa querendo Me levar para dar explicações de como é que que tinha construído todo Meu patrimônio em sete dias. Me vieram com um papo de condução, como é que é, coercitiva, eu acho. Eu disse que não ia, que tinha meus direitos, que aquilo era uma violência contra o cidadão, que não iam encontrar ninguém mais honesto do que Eu, que aquilo ia contra o Decálogo,  e se eles sabiam com QUEM tavam falando. O cara da Celestial só Me disse, "Mesmo que tu fosse Deus. Se até o Lula foi, tu vai também". E tive que ir.

***

Fui lá dei Meu depoimento, blablablá, biriri e bororó  e Me liberaram. Eles perceberam, na verdade, que não tinha jeito porque se Me prendessem, Eu virava herói, se Me matassem, como Nietzsche tentou, Eu virava mártir, e se Me deixassem, solto Eu seria um Deus.

***

Tenho que ir, Minhas crias.
Vocês não fazem ideia do quanto cuidar de vocês Me dá trabalho.

Qualquer coisa, orações pra astros de cinema, pra queda de presidente, pra queda de presidente da câmara, pra queda de candidato à presidência, pra eliminação de participante do BBB, pra eliminação do programa BBB, pra baixar o dólar, contra a dengue, o chycungunya, a zica, a urucubaca ou qualquer outro assunto,
enviar para o e-mail:
god@voxdei.gov


Fiquem Comigo e que Eu os abençoe.

Ralei peito, meti o pé, deitei o cabelo, fui!


por Ele

quinta-feira, 30 de março de 2017

Dom Um Romão – “Dom Um Romão” ou “Braun-Blek-Blu” (1973)




As duas capas: edição original e
da reedição de 1974
“Agora as mesas foram viradas. 
Os brasileiros estão contratando músicos 
de jazz para tocar sua música. 
É ainda um casamento da música
 brasileira e do jazz, mas o corte 
está sendo feito do ponto de vista brasileiro.” 
Gary Giddins,
no texto original 
da contracapa do LP



Quando o jazz fusion, no final dos anos 60 e início dos 70, escancarou as portas do jazz tradicional, mesclando-o ao gênero mais pop do século XX, o rock, um novo paradigma se abriu. Até então fortemente ligado ao ritmo dançante do swing, ao virtuosismo do be-bop e à sofisticação do cool, o jazz passava a ser, na prática, tudo: rock, funk, vanguarda, clássico, ritmos latinos, música indiana, oriental, etc.. Para bem ou para mal, qualquer coisa que minimamente se valesse de elaboração musical passou a também poder ser considerado jazz. Houve quem se favorecesse com tal releitura, caso da música brasileira. Principalmente pós-bossa nova, o Brasil e seus músicos entraram de vez no mapa da música moderna e passaram a ditar, Tetê a Tetê com norte-americanos e europeus, os rumos da arte musical “culta”. Tom Jobim, João Donato, Moacir Santos, Eumir Deodato e Sérgio Mendes, nos Estados Unidos desde os anos 60, desbravaram essa trilha. Agora uma nova e ainda mais arejada geração de brazucas desembarcava nos “states”. Os percussionistas, em especial, considerando as características da música brasileira, tiraram vantagem. Caso dos rapidamente reconhecidos Naná Vasconcelos e Airto Moreira e de outro craque das baquetas, que ganhou os corações e mentes dos exigentes jazzistas: Dom Um Romão.

Dono de um estilo único e muito natural que une a versatilidade adquirida nas orquestras da noite carioca à alta técnica da sincopa e das divisões rítmicas, Romão tem uma história peculiar. Filho de um também baterista, literalmente herdou-lhe o dom, pondo-o em prática, nos anos 50, nos bares boêmios do Beco das Garrafas. Cedo, já havia realizado feitos invejáveis para qualquer músico de sua geração: no Brasil, participara, em 1958, da gravação do marco inicial da bossa nova “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, e, alguns anos mais tarde, do memorável “O Som”, da Meirelles e os Copa 5, de 1964, o “A Love Supreme” brasileiro. Já nos Estados Unidos, integrou a “cozinha” do clássico “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, em 1967, e substituíra o amigo Airto na mitológica banda Weather Report, a maior referência do jazz fusion, tocando, de 1972 a 1976, ao lado de feras como Wayne Shorter, Josef Zawinul, Alphonso Johnson e Eric Gravatt. Mas faltava-lhe o trabalho solo no exterior (já tinha um LP homônimo, de 1964, gravado no Brasil), aquele que ratificasse não apenas suas qualidades como instrumentista, mas também como compositor e band leader. A oportunidade veio em 1973, quando o cultuado selo Muse o chama para realizar um projeto à altura de seu merecimento.

A reverência ao novo contratado fica evidente pelo time convidado a participar das gravações. O set reuniu uma lista extensa de músicos: dos “gringos”, figuras referenciais como Stanley Clarke e Frank Tusa, no contrabaixo; Gravatt, na percussão; Lloyd McNeill, flauta; Joe Beck, guitarra elétrica; Jerry Dodgion; sax-alto e flauta; Richard Kimball, sintetizador; Mauricio Smith, sax-soprano e flauta; Jimmy Bossey, sax-tenor; e William Campbell Jr., trompete. Ainda, como não poderia deixar de ser, o disco conta com músicos brasileiros – e não quaisquer músicos –: no órgão e no piano acústico, Sivuca; no harpischord, Donato; no piano elétrico e acústico, Dom Salvador; na percussão, Portinho; e no violão, Amauri Tristão.

“Dom Um Romão” traz seis faixas de absoluta perfeição e que representam a contribuição sui generis que o Brasil dava à nova feição do jazz: o samba, o baião, o maracatu e os ritmos folclóricos brasileiros e latinos fundidos ao hard-bop, ao jazz modal, ao cool jazz. Tudo começa na espetacular “Dom’s Tune”, um “cartão de visitas” arrasador que virou tema cult entre os músicos e admiradores tardios de Romão. Pura destreza e musicalidade, a começar pela rica percussão do próprio autor, que comunga vários instrumentos como caxixi, chocalho, pratos, chipô, tamborim e sinos. Sobre uma base modal de tempo 5/3 do piano de Dom Salvador, Beck esmerilha a guitarra, solando os mais de 8 minutos do número. Isso sem falar dos sintetizadores de Richard Kimball, das incursões percussivas de Portinho e da frase repetida dos sopros que, a partir da segunda metade, passam a dar um riff para a música. Certamente um dos melhores exemplares do jazz dos anos 70.

Segue “Cinnamon Flower”, uma versão bastante original de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento, evidenciando a inventividade harmônica e melódica do compositor mineiro, muito a ver com o jazz contemporâneo. Em ritmo de baião, tem Romão percutindo a trinca típica do gênero (bumbo-caixa-triângulo), além do riff executado nas flautas, os quais evocam aqueles lindos versos: “A lua morena/ A dança do vento/ O ventre da noite/ E o sol da manhã/ A chuva cigana/ A dança dos rios/ O mel do Cacau/ E o sol da manhã”. A guitarra com pedal wah-wah faz não só a levada como também o principal solo, dando ainda mais modernidade a um tema de raízes folk. O melhor do jazz fusion, mas num ritmo tão tipicamente tupiniquim, que somente um brasileiro podia estar à frente.

Romão relembra os tempos de bossa nova num tema altamente elegante: “Family Talk”. Composição sua mas que bem poderia ser de Tom Jobim nalgum de seus discos da A&M, “Tide” ou “Wave” (este último, em que o baterista participa), haja vista a parecença da sonoridade transparente e o conceito musical sofisticadíssimo: dominante em “Sol”, batida de violão ao estilo João Gilberto, baixo acústico trasteando como o de Ron Carter, a levada malemolente da bateria no aro da caixa e, principalmente, o arranjo, que privilegia a flauta como executora do riff. Perfeita. Não bastasse, o mestre Donato aparece para fazer um solo bem a seu estilo: econômico e inteligente.

Assim como a segunda faixa, “Ponteio” é mais uma releitura de clássico da MPB, esta agora, que em muito lembra Shorter e a Weather Report, talvez a versão mais inspirada que a composição de Edu Lobo e Capinam pudesse ganhar. Romão comanda um constante triângulo, enquanto seu xará Dom Salvador, o electric piano. É o pianista também quem desvela um rico solo no teclado acústico, que tem por trás as inventivas viradas e variações rítmicas de Romão na bateria, enquanto os intensos baixo de Clarke e congas de Gravatt mantém uma atmosfera caribenha. Outro solo, agora de flauta na segunda parte, incute ainda mais a complexidade jazzística ao tema, que não perde, entretanto, o teor grave da melodia original, a qual remete inevitavelmente às rodas e duelos de viola nordestinos.

“Braun-Blek-Blu”, que informalmente dá nome ao disco, é outro espetáculo à parte. Sozinho no estúdio, somente ele e seu aparato, Romão substitui uma bateria de escola de samba inteira. Ao mesmo tempo em que é um samba marchado e acelerado, exigindo alta técnica e controle dos tempos, lembra, sem erro, também o maracatu rural do Nordeste brasileiro com seus tambores, chocalhos e gonguê. Hábil, o percussionista consegue variar o compasso, acelerando e desacelerando o ritmo. Isso, enquanto executa viradas e ataques junto com os próprios vocalises, que se hegemonizam às batidas. Nada menos que impressionante.

O sertão dos trópicos retorna com a interpretação de mais um hino do cancioneiro brasileiro: “Adeus, Maria Fulô”. No entanto, Romão e Cia. dão uma pegada de latin jazz explosivo ao singelo baião. E com consentimento do próprio autor, Sivuca, que comanda o órgão e o piano, enquanto o sax soprano de Mauricio Smith anuncia, apenas em sons, o riff (“Adeus, vou-me embora, meu bem/ Chorar não ajuda ninguém/ Enxugue o seu pranto de dor/ Que a seca mal começou”). O mesmo Smith é quem manda um belo solo, desta vez improvisando com total liberdade no tenor. Romão preenche o espaço com uma rara multiplicidade de texturas e cores, ajudado pela percussão de Gravatt e Portinho. Um final digno a um disco irreparável do primeiro ao último acorde.

Como disse o jornalista Maurício Pinheiro:“No viés de reinvenção dos conceitos do jazz moderno, o álbum é um testemunho dos estímulos provocados por essa geração que marcou o início dos anos 1970”. Junto com trabalhos igualmente essenciais e revolucionários dos compatriotas Airto, (“Fingers”), Flora Purim, (“Butterfly Dreams”) e Hermeto Pascoal (“A Música Livre de Hermeto Pascoal”) – todos do mesmo ano e gravados nos Estados Unidos –, “Dom Um Romão” marca uma fase áurea do jazz moderno brasileiro no exterior, servindo de referência até os dias de hoje para músicos (brasileiros ou não) das mais diferentes vertentes. Afinal, tudo é jazz.

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Reeditado dois anos depois com nova arte, em 1990, a 32 Jazz lançou em um único CD, intitulado “The Complete Muse Recordings”, os dois trabalhos de Dom Um Romão pelo selo Muse, este e o também ótimo “Spirit of the Times”, de 1974, do qual se incluíram suas sete faixas: “Shakin' (Ginga Gingou)”, “Wait On The Corner”, “Lamento Negro”, “Highway”, “The Angels”, “The Salvation Army”, e “Kitchen (Cosinha)”.

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FAIXAS:
1, “Dom’s Tune” (Dum Um Romão) - 8:39
2. “Cinnamon Flower” (“Cravo e Canela”)(Milton Nascimento) - 3:30
3. “Family Talk” (Romão) - 5:30
4. “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam) - 6:30
5. “Braun-Blek-Blu” (Romão) - 4:40
6. “Adeus, Maria Fulô” (Sivuca/Humberto Teixeira) - 7:59

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Mundo Livre S/A - "Samba Esquema Noise" (1994)


"Se a Terra é um rádio
Qual é a música?
Manguebit"



Cavaquinhos envenenados, frevos rasgados, guitarras distorcidas, batucadas explosivas, sambas ácidos... Com estes elementos, letras bem sacadas, composições complexas, crítica social e irreverência, o Mundo Livre S/A no seu mix de cultura brasileira e elementos pop e eletrônicos nos apresentava um dos discos mais legais e interessantes que a música brasileira já viu.
Em "Samba Esquema Noise" (1994) tem lugar para tudo: um frevo invade naturalmente um ska ("Manguebit"); uma levada de cavaquinho de repente dá lugar a uma explosão de guitarra distorcida ("Livre Iniciativa"); um berimbau se confunde com a guitarra num reggae sinuoso e serpenteante como em "Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives"; ou ainda simplesmente predominam experimentações eletrônicas, samples e efeitos como no caso de "Sob o Calçamento (Se Espumar é Gente)".
O disco é cheio de tiradas inteligentes e antenadas com referências tecnológicas, filosóficas e literárias que vão de Kafka a Homero, sem contudo, ficar chato ou pedante, sem falar das inúmeras referências a Jorge Ben, uma espécie de mentor espiritual da banda. A começar pelo nome do álbum inspirado no "Samba Esquema Novo" primeiro trabalho de Jorge Ben, as referências passam, por exemplo, pelo samba alucinado "O Rapaz do B... Preto", aludindo à canção "O Homem da Gravata Florida" do disco "A Tábua de Esmeraldas"; ou mesmo meramente pela sonoridade dominante em toda a obra que vai completamente ao encontro do conceito que o inspirador já desenvolvia lá em 1963.
Uma das minhas prediletas, "Musa da Ilha Grande", é uma samba-rock de primeira, também bem ao estilo Babulina, com uma participação vocal mínima de Malu Mader, mas que é suficiente para conferir todo um toque de sensualidade. Gosto muito também de "Terra Escura", um samba chapado cantado quase sem forças acompanhado por um surdo alto e vibrado; "Cidade Estuário", muito soul e cheia de metais, também é das mais bacanas; "Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives" traz a percussão preciosa de Naná Vasconcelos; "Sob o Calçamento" vem com a participação do vocal poderoso de Sérgio Boneka; e o álbum encerra com a faixa que lhe dá nome, ainda que a expressão "Samba Esquema Noise" não seja cantada nela e sim na faixa "Livre Iniciativa" , e que esta curiosamente não tenha barulho algum, tratando-se de um lamento acústico lento e pessimista sobre as oportunidades na vida.
Disco notável da banda que divide com a Nação Zumbi de Chico Science, a honra de terem promovido, como já falei no post sobre o "Da Lama ao Caos", o último grande movimento musical relevante no Brasil.

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FAIXAS:
1.Manguebit
2.A Bola do Jogo
3.Livre Iniciativa
4.Terra Escura
5.Saldo de Aratú
6.Uma Mulher com W... Maiúsculo
7.Homero, o Junkie
8.Rios (Smart Dugs), Pontes & Overdrives
9.Musa da Ilha Grande
10.Cidade Estuário
11.O Rapaz do B... Preto
12.Sob o Calçamento (se Espumar é Gente)
13.Samba Esquema Noise

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Ouça:
Mundo Livre SA Samba Esquema Noise





Cly Reis