Deparei-me pelo Facebook com uma notícia com a qual fiquei
muito feliz: uma das bandas do meu primo-brother e colaborador do Clyblog, Lucio Agacê, a Vômitos & Náuseas, vai
lançar CD este ano. É para setembro que está previsto o primeiro disco full-lenght destes veteranos do hardcore gaúcho, formada atualmente,
além do Lucio nos vocais, pelo Gabriel Tolla, no baixo, Fabiano Dian e Guga
Prado, nas guitarras, e Cristiano Hulk, bateria.
Minha felicidade se justifica. Além de acompanhar sempre que
possível, de perto ou de longe, as movimentações musicais que o agitador Lucio
sempre promoveu desde os anos 80 (época em que mudou minha vida, quando, ainda
guri, fui apresentado por ele ao punk-rock),
igualmente, vi, em 1989, o nascimento e formação da Vômitos, a qual assisti algumas
vezes em ensaio e show ao vivo. Presenciei também à época a participação na
coletânea “Paranoia Suicida”, de 1990, primeiro registro oficial deles, pouco
antes do Lucio entrar para o grupo.
Vômitos & Náuseas,
retorno com tudo.
E lá se vão 20 anos de “coma”, como os próprios definem o
período em que estiveram afastados. Em 2014, depois de tocarem outros projetos,
entre períodos de viagens e trabalhos em outras bandas (só o Lucio teve
envolvido com a Causa Mortis, Facção Zumbi, trabalhos solo, discotecagem e a
própria HímenElástico, a qual também pertencia), os caras retornaram pra
detonar tudo de vez com seu som que mescla o bom e velho punk com hip-hop e heavy metal. Estão atualmente aprontando material inédito no
estúdio Hurricane, em Porto Alegre, incluindo canções compostas nos anos 90 e
coisas novas, com produção do Sebastian Carsin, Gabriel Siqueira e Juan Acosta.
Seja bem vinda de volta, Vômitos & Náuseas! Paulada na
cabeça desse rock gaúcho insosso e ridiculamente “érrebe-éssezado”. Nauseiem à
vontade os estomagosinhos dessa gente apática e idiota e vomitem-lhes
agressividade em forma de boa música. É de vômito que estamos precisando. O CD
sai em breve, mas por enquanto, fiquem com uma das inéditas, composta em 1991:
“Corpos Mutilados”.
Fazia tempo que queria ver a Código Penal, uma das bandas do meu primo-irmão-parceiro Lucio Agace. Digo uma das bandas, porque Lucio enfileira, desde os anos 80, algumas das bandas mais legais da cena alternativa gaúcha. A começar pela HímenElástico, projeto que tínhamos em conjunto com meu outro irmão e coeditor deste blog, Cly Reis, e meu outro primo e irmão do Lúcio, Lê, com o adicional de nosso baterista oficial César “Pereba”. Mas a Hímen, há de se dizer, por mais legal que fosse nosso som (considero-a a grande banda gaúcha dos anos 90 que não aconteceu), foi talvez o projeto mais incipiente de Lucio. Vômitos & Náuseas, Causa Mortis e Câmbio Negro, pelo contrário, são alguns desses seus projetos mais consistentes. Mas também há de se dizer: a Código Penal é especial. O som, misto de hardcore, hip hop, funk e uma veia social e urbana muito evidente (em vários aspectos, parecida com a da Hímen) fazem da Código uma banda muito foda de se ouvir. Faltava vê-los no palco.
Pois o Festival Preto no Metal, ocorrido no célebre bar Opinião, trouxe esta oportunidade. A Código se apresentou na sequência de outras bandas muito legais com essa mesma vertente e ativismo, mas confesso que fomos mesmo lá para vê-los. E a expectativa foi totalmente atendida, numa apresentação enérgica, potente, dançante e... foda. A “arquitetura” da banda é apreciável, desde a visual até a sonora, com Lucio e Black to Face dividindo-se nos vocais como verdadeiros vocalistas MCs, dois guitarristas, Marcio Zuza e Eduardo Jack, um fazendo base e outro complementando o arranjo com efeitos e solos, o baixo poderoso de Luciano Tatu, a bateria pegada de Pereba e uma mesa eletrônica comandada pelo próprio Lucio.
O tempo de show de festival, como de costume, curto. Então, o negócio é subir no palco e mostrar serviço, como a Código fez. Aí, foi só paulada, uma atrás da outra. “Terra de Ninguém” pra começar. “Os Dois Lados do Imoral”, na sequência, fez o ambiente pra ótima parceria da banda com Tonho Crocco em “Apologia”, que levantou a galera. “Marginalizado”, “Justiça Injusta” e “Chove Bala”, idem. Pra finalizar, “Sexo nas Ruas” e a ótima “Gangs”, que já rodei no meu programa, o Música da Cabeça, mas que ao vivo ganha uma potência maior, tanto pela reação da galera quanto pela sonoridade própria, com seus samples da trilha de “Sexta-Feira 13”. Aliás, por falar no filme, mais uma das coisas legais da performance da banda e de Lucio, em especial, que é quando ele se ausenta um tempo do palco para voltar travestido de Jason Voorhees, com a máscara característica do personagem, um casaco com capuz preto e um temível taco de beisebol. Fez lembrar outro punk performático chamado John Cale.
Enfim, showzasso da Código, que Leocádia e eu vencemos os 48 graus de sensação de Porto Alegre àquele dia para estar no Opinião, mas que valeu totalmente a pena. Confere aí um pouco de como foi:
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A Código sobe ao palco do Opinião
Lucio, performático, com a máscara do Jason junto com Black to Face
Black to Face mandando ver nas rimas
Um pedacinho de como foi o show
daCódigo Penalno Opinião
Visão da mesa de som
Código in da house, motherfucker!
Mais rimas
Lucio ao centro do palco com a baita banda na "cozinha"
Preto no Metal olhando o Preto no Metal
A galera comemorando o baita show ao final: Jamal, Val, Lucio, Leo e eu
Quando assisti ao ótimo bluesmanKenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show
fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi
Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de
Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava
por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra
boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som
de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde
tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além
destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita
combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o
MDBF, vontade alimentada há anos.
Stroger, comandando o grupo no baixo.
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma
programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações
internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o
MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos)
que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso
é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso
ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de
apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento,
fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o
local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato
cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela
sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía
ajudou a aumentar o clima cinematográfico.
Bob Stroger posando para as lentes.
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das
pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que
ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85
anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente
por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de
irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições
deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja
vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele
referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um
caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul
norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e
trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do
início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se
sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.
Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados.
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em
si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e
chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado
blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado,
repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e
apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto.
Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo,
orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the
blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua
voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter,
“Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que,
além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”,
autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia
outro episódio importante horas depois...
"Don't You Lie To Me" - Bob Stroger - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Sherman Lee Dillon, pura energia.
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage,
iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli,
ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das
apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e
que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que
assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por
ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa:
Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide
guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música
que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de
rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano
Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele
velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia
observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando
empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.
Na bateria, Gutto Goffi.
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou
ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua
guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno
palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de
“Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante
quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o
baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e
sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião,
também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias
vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy
Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.
'Super Chikan' no palco principal do MDBF.
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no
Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais
atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan"
Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse
apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e
passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito
rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só
corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite
uma sequência de notas, sempre com muito groove.
Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra
imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.
Eu com Rip Lee Pryor.
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um
pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor),
que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o
que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais
para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra
das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a
cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles
vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para
Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi
tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym
n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no
sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua
poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a
plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de
sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com
repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a
excelência da voz de Zora.
A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia
ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com
receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a
equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir
Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais...
Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar
do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali,
sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas
que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar
a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de
verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado
no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora
e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco,
estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu,
abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.
"The Thrill Is Gone"/ "I'm Freee" - Zora Young - Mississipi Delta Blues Festival 2015
Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento
compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o
MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu
mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer
Leocádia: “Oh, baby, don't you want to
go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet
home, festival?”