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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


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FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:



quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

"O Coração da Música - Vida e Obras dos Grandes Mestres: Händel/ Mozart/ Beethoven/ Brahms/ Wagner”, de Paul Trein – Ed. BesouroBox (2018)



Quando o coração da música está dentro da gente
por Leocádia Costa


Ao chegar na Edições BesouroBox, em abril desse ano, me deparei com um catálogo que renova ao comunicar os saberes. Cheguei com diversos lançamentos previstos, entre eles, um pequeno livro (porque a edição é de formato 12x18cm) mas que traz em seu miolo uma abordagem iluminada sobre música: "O Coração da Música”.

O pianista, educador e também escritor Paul Trein, que residia há muitos anos na Alemanha, conseguiu de maneira didática abordar sinteticamente a vida e obra dos grandes mestres da música clássica: Händel, Mozart, Beethoven, Brahms e Wagner. Os textos sobre cada compositor abordam em sua estrutura o bom senso destacando detalhes biográficos de maneira pontual, elegante e explicativa, mas sem deixar que se sobreponham a genialidade contida em cada obra por eles criada.
A música clássica, que sempre foi acusada de ser inacessível a interessados por envolver não somente o aprendizado de um instrumento e a cultura musical, encontra um aliado nessa publicação. A pesquisa de Trein é, em tempos de internet e, assim, de uma maior circulação de ideias, algo que não se pode desconsiderar. Além disso, convida os mais curiosos a escutarem os principais temas de cada compositor, pois as contextualiza com primor.

Para mim, que fui criada entre audições clássicas de piano e voz em meu ambiente familiar por ter tido pais envolvidos com a música erudita, foi uma volta a escuta deles. Uma retomada a conversas que presenciei muitas vezes em saraus e reuniões com os amigos de coral em casa.

Paul Trein me proporcionou um retorno ao aconchego que a música erudita oferece, sem afetação ou barreiras a quem quiser escutá-la. Uma oportunidade de escutar outras ideias sobre a história de compositores que até hoje ressoam em nossos ouvidos universais. Um convite a pais, educadores e estudantes que queiram ler um livro escrito por quem ama a música na medida exata, mas com a devida emoção de sentir o coração quase saindo pela boca em forma de palavras.

Nesse final de ano, imagino a ausência que Paul Trein faz à sua família e amigos (ele faleceu no primeiro semestre de 2018, na Alemanha), mas também sei o quanto a música preenche esse vazio. Então se você sentiu entusiasmo em escutar mais uma vez seus compositores prediletos ou em conhecer cada um citado nesse livro, pegue sua vitrola, seu aparelho de CD, seu arquivo de mp3 ou nuvem e escute música. Se a vontade for maior ainda, vá a um concerto para escutá-la ao vivo. Com certeza toda a tristeza irá embora e somente os acordes ficarão ressonando dentro de você, como uma benção pulsante, viva e eterna.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)



"O esplendor de um navio marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a compor a música “Maiden Voyage”



Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que, em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente, chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua estreia como band leader, em 1962, aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador. É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de 1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.

Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências sonoras. O jazz modal, o be-bop, a música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George Coleman;  Freddie Hubbard, no trompete, outro monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.

E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros, enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais, noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo, quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E, por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.

Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo. Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal, quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia lhe autoriza.

Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco anterior de Hancock, seu trompete trazia um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o clima astral desse passeio musical proposto por Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares: oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada, adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante. Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma esfinge ainda a ser totalmente desvendada.

Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the Hurricane”, hard-bop efervescente, como o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado chorus da introdução no final.

A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante, arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos 3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de “Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.

O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica maneira de terminar a “viagem inaugural”.

O ano de 1965 foi de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage” certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50 melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu, já estava nadando pelos mares do pós-bop, do fusion e do funk para mudar novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem volta e com destino à eternidade.
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FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance

todas as canções de autoria de Herbie Hancock.

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OUÇA O DISCO:




quarta-feira, 18 de julho de 2018

Música da Cabeça - Programa #67


Poucos fizeram cinema com tamanha beleza como quem compõe uma ária de Mozart. Ingmar Bergman é um deles. No centenário de nascimento do mestre sueco, o Música da Cabeça pontua a importância de sua obra, mas não deixando, entretanto, de trazer várias outras coisas. Tem bastante rock, dos brasileiros Fausto Fawcett, Legião Urbana e RPM até estrangeiros como The Pogues, Pink Floyd, Depeche Mode e R.E.M. Ainda, um “Palavra, Lê” e um “Sete-List” muito especiais, acreditem. Vai ser como assistir um filme do Bergman: senta no sofá não arreda mais pé! Começa às 21h, na tela da Rádio Elétrica, antes da Hora do Lobo. Produção, apresentação e projeção: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:

terça-feira, 31 de julho de 2012

Stevie Wonder - "Innervisions" (1973)



Ou isso é uma visão em minha mente?
verso da canção “Visions”



Quando vi  Paul McCartney ao vivo chorei praticamente do início ao fim do show. Eu já previa que isso ia ocorrer, tendo em vista meu sentimento por sua obra, tão formativa quanto vital para a história da arte moderna – e até porque o podia fazer sem constrangimento, já que todo o estádio fazia igual a mim. Porém quando assisti pela TV Stevie Wonder no Rock in Rio 2011 eu não esperava que o mesmo acontecesse. E aconteceu... via satélite. Chorei música atrás de música, tanto nas lentas quanto nas agitadas – o que virou motivo de chacota entre os amigos. Mesmo já tendo boa parte da discografia dele há muito tempo, essa reação me surpreendeu, pois eu mesmo não tinha noção do quanto a obra mágica deste gênio (e isso eu já sabia) tinha tanto a ver comigo e que estava tão impregnada em minha alma. Mas se todas as músicas me tocavam, parei para pensar naquela hora, entre soluços e uma felicidade imbecil, com qual disco eu mais me identificava, uma vez que gosto de todos. A resposta veio como numa visão: “Innervisions”.
A escolha só podia ser de cunho emocional, pois TODA a discografia de Stevie Wonder dos anos 70 até o início dos 80 é fundamental. Assim como o lindo  "Talking Book"  (1972), já resenhado aqui, o exuberante “Songs in the Key of Life” (1976) ou a magnífica trilha sonora “Journey Through the  Secret Life of Plants” (1979), “Innervisions” é item obrigatório na prateleira de qualquer diletante. Um marco da black music considerado pelos críticos um dos melhores da música pop de todos os tempos. Mas o que para mim o diferencia e lhe dá um significado ainda maior é a relação estreita com universo onírico e figurativo de um artista que, cego desde a infância, é capaz de produzir uma arte absolutamente fulgurante, cristalina, repleta de verdade e sentimentos genuínos. Sua música vai no fundo do fundo do fundo.
“Innervisions” é o auge criativo de Stevie Wonder. A estas alturas, 1973, ele já não era mais o Little Stevie de quando surgira, aos 16 anos, como um prodígio; mas, sim, o consagrado Stevie Wonder, sucessor de uma linhagem que vem de Sam Cooke, Solomon Burke, Ray Charles, James Brown e que vai parar nos criativíssimos artistas negros da gravadora Motown como ele. Compositor nato, multi-instrumentista e dono de uma voz potente e deliciosa, capaz de ir de uma escala à outra sem esforço, Stevie já era nesta época um artista planetário que vendia milhões de discos. Mas, mais do que isso, “Innervisions”, Grammy de Melhor Álbum do Ano em 1974, é o resultado de um autoacolhimento pessoal, de um sentimento muito íntimo e definitivo de reconhecimento dele mesmo enquanto portador de uma deficiência. Não é à toa que a obra se refere justamente ao sentido que ele não possui: a visão (e será que não possui mesmo?...). Ali Stevie está pleno de si, fazendo com que o problema da falta de visão não seja um problema, mas, pelo contrário, um canal sensitivo que o fez se tornar alguém tão sensível que suas percepções se afinam a tal ponto de não precisar mais enxergar. Prova maior disso é que ele compõe, toca, canta, arranja e produz todo o disco. Até (pasmem!) a capa é concebida por ele: um desenho bastante simbólico em que a energia produzida por seus olhos ganha a atmosfera e a amplidão.
E as músicas, o que dizer? Somente nove faixas, perfeitas em tudo: melodia, harmonia, execução, arranjo, canto, edição de áudio. Clássicos do cancioneiro norte-americano e mundial, marcos do que de mais sofisticado e criativo se fez em música pop no século XX. O álbum abre mandando ver com “Too High”, um funk-jazz fusion cheio de um suingue tão contagiante que isso chega a exalar por sua voz e por todos os sons que emanam. Moderníssima em sonoridade e texturas, é tudo o que músicos cool de hoje gostariam de fazer mas não conseguem atingir. “Too fine”!
Se o clima começa animado e dançante, “Visions”, uma melancólica balada tocada em guitarra base, baixo acústico e guitarra-ponto entra delicada mas dizendo a que veio. De arrepiar. Cantada com extremo lirismo, sua letra fala de igualdade entre os homens e de um princípio natural capaz de promover paz para todos. A lei nunca foi aprovada/ Mas de alguma forma todos os homens sentem que estão verdadeiramente livres finalmente/ Será que realmente fomos tão longe no espaço e no tempo/ Ou isso é uma visão em minha mente?”.
Não seria exagero se Stevie quisesse acabar o disco já na segunda faixa, que é daquelas canções definitivas. Mas o bom é que não acaba!, e na sequência vêm o arrebatador tema-denúncia “Living for the City”, show de vocais e sintetizadores que aborda a opressão aos negros, e “Golden Lady”, um soul romântico e suingado tão belo que chega a reluzir. Sempre colando uma faixa à outra – como é característico de seus discos –, o astral leve de “Golden Lady” dá lugar ao funkão pesado de “Higher Ground”, tão rock em concepção que não precisou muito para que o Red Hot Chilli Peppers  a regravasse anos depois com mais distorção mas sem grande alteração no arranjo. Os versos: People keep on learnin'/ Soldiers keep on warrin'” (“As pessoas continuam aprendendo/ Os soldados continuam lutando”), viraram clássicos. Incrível, incrível.
Outra de deixar de o queixo caído é “Jesus Children of America”, soul cantado em escala decrescente, mas que, do meio para o fim, aumenta um tom, o que faz Stevie soltar, em várias vozes sobrepostas, seu afinado e cintilante falsete. O clima cai novamente, agora para uma suíte romântica ao piano de fazer qualquer casal brigado reatar: “All in Love is Fair”, típica balada Motown, com sua levada carregada de sentimento e um refrão que explode em emoção. Nessa Stevie dá uma verdadeira aula de canto. De chorar, ainda mais no fim em que bateria, voz e piano dão os suspiros finais.
Mas  se Stevie é hábil nas lentas, também possui o mesmo talento para fazer mexer o esqueleto. “Don’t  You Worry ‘bout a Thing”, que vem logo em seguida, é uma rumba marcada no piano e nos chocalhos que faz enxugar as lágrimas e levantar o astral de novo. Usada mais de uma vez no cinema, como na comédia “Hitch” (a cena do passeio de Jet-ski pelo rio Hudson de Nova Iorque), é daquelas músicas tão alegres que remetem diretamente ao colorido alegórico da cultura africana, influência sempre tão presente e hibridizada na obra de Stevie. O disco encerra na atmosfera melódica e gostosa de “He’s Misstra Know-it-all”, com seus bongôs acompanhando a bateria e o piano num andamento suave e suingado que, ao final, vai sumindo devagarzinho enquanto Stevie improvisa nos vocais.
Essas cores e esse brilho estavam no palco quando vi Stevie pela TV no Rock in Rio. Aos 70 anos, toda aquela verdade e prazer de produzir uma arte pura e elevada podia ainda ser percebida. Não tinha como não ficar tocado. Reouvi “Innervisions” dias depois do show, ainda sob efeito da apresentação. Mas não chorei mais, pois me dei conta de definitivamente se tratar de um dos artistas mais importantes para a minha vida. Ele, que eu já sabia ser um dos maiores de todos os tempos, como Mozart, Ravel , Coltrane , Chico  e o próprio MacCartney. Pode colocá-lo tranquilamente nesta fila, que aqui pra mim o altar dele já está reservado.

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FAIXAS:

1. "Too High"  Stevie Wonder 4:36
2. "Visions"  Wonder 5:23
3. "Living For The City"  Wonder 7:23
4. "Golden Lady"  Wonder 4:58
5. "Higher Ground"  Wonder 3:43
6. "Jesus Children Of America"  Wonder 4:10
7. "All In Love Is Fair"  Wonder 3:42
8. "Don't You Worry 'bout a Thing"  Wonder 4:45
9. "He's Misstra Know-It-All"  Wonder 5:35


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Ouça:
Stevie Wonder Innervisions



quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Grupo Corpo – “Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil” – Teatro do SESI – Porto Alegre (03/11/2019)



"Confesso que recebi o convite para criar uma trilha para o Grupo Corpo com satisfação mas com preocupação também, especialmente quando eles manifestaram o desejo de denominar a peça GIL - ou seja, de concentrar a criação no conjunto, num arco que fosse o mais amplo possível do meu trabalho, que tem tantas influências baianas, do samba, da música pop em geral. De todo modo, ouvindo a trilha no final, percebo que ela tem muitos elementos da minha dimensão rítmica mesmo, com elementos da música afro-baiana". 
Gilberto Gil

O Grupo Corpo é, mais do que qualquer banda, cineasta ou outro tipo de artista no Brasil, o que mais tem o poder de me surpreender. A cada nova montagem, e até mesmo a cada repetição de alguma das antigas, a capacidade da companhia mineira de balé – sem dúvidas uma das melhores em atuação no mundo – de reinventar-se e trazer novas visões estéticas e conceituais é invejável. Não foi diferente na última apresentação deles em Porto Alegre, em razão da mais recente montagem,“Gil”, cujo nome já diz tudo: um retrospecto sintético da obra do genial músico baiano Gilberto Gil. Para arrematar, além da iluminada companhia das "Costa", Leocádia, Carolina e a amiga Amanda, a ocasião caiu justamente no dia de meu aniversário. Muita emoção envolvida.

Como disse, não só as novas montagens surpreendem. O hábito comum do grupo de trazer na primeira parte alguma de suas peças anteriores, não raro é tão estimulante quanto a estreia. Foi assim em 2015, quando trouxeram, junto à então recente “Dança Sinfônica” – com trilha de Marco Antônio Magalhães, parceiro de longa data do Corpo –, que perdeu impacto diante de sua talvez mais representativa montagem, “Parabelo” (1997, José Miguel Wisnik e Tom Zé). Desta vez, abriram com uma das que mais tinha vontade de assistir mas que nunca tivera a oportunidade: ”Sete ou Oito Peças para Ballet”, de 1994. Marco na trajetória recente da companhia de mais de 40 anos, tem trilha com arranjos e execução do grupo mineiro instrumental Uakti – liderado por Magalhães – e autoria do, assim como Gil, gênio: o norte-americano Philip Glass.

"Sete ou Oito Peças para um Ballet", com trilha de Glass: êxtase no palco
Afora a deliciosa surpresa de que a tal trilha que nunca achava para ouvir pelo nome da peça era a mesma de “Águas da Amazônia”, lançada em disco com este título anos depois da apresentação nos palcos, a coreografia é simplesmente extasiante. Aproveitando-se da construção minimalista da música, que se monta a partir de células sonoras móveis em variações de volume, intensidade e harmonia, Rodrigo Pederneiras cria uma coreografia em que extrai o máximo da trilha através de movimentos e danças, intercalando constantemente contenção e expansão. Como uma dança da natureza em que a terra determina criação e recriação. Isso auxiliado pela linda luz (Paulo Pederneiras) e pelo figurino (Freusa Zechmeister), que remetem diretamente à organicidade, e a cenografia (Fernando Velloso), igualmente inspirada na fauna e na flora brasileiras. Para mim, que ouço seguidamente “Águas...” , foi emocionante vê-la encenada, principalmente a parte final, quando uma das composições mais icônicas de Glass, “Metamorphosis”, ganha a instrumentalização característica da Uakti, de sonoridade tão brasilianista quanto de vanguarda. No encerramento, num ápice típico das composições de Glass, fica a sensação de que talvez nem precisasse de segunda parte.

Luz amarela e fendas pelo corpo: o
sertão de Gil representado
Mas precisava, sim. Afinal, era a representação em dança pelo filtro artístico do Grupo Corpo de ninguém menos que o “Buda Nagô” Gilberto Gil, talvez o mais completo músico de sua geração. Com um conceito totalmente diferente de “Sete ou Oito...”, o que fez parecer tratar-se de outra companhia, “Gil” inicia. Tons de um amarelo intenso, como um sol implacável do sertão nordestino, iluminam o tablado. Eu, fã ardoroso de Gil, mas suficientemente resistente para não buscar nenhuma informação sobre a montagem antes de assisti-la para não estragar a surpresa, pensava: “De que forma ele irá começar a trilha?” Seria com o toque de seu violão, instrumento tão simbiótico a ele? Ou acordes de sanfona, herança do baião de Luiz Gonzaga e memória de sua infância? Ou as percussões, as quais sempre fora intimamente ligado por conta das raízes da África? Eis que o mestre me surpreende emitindo os primeiros sons da peça em que ele próprio é tema com vocalizes e sons guturais reelaborados eletronicamente. O título: “Choro”. A voz, representação primeira da identidade do ser humano, do músico, do artista, do ser humano. Afinal, qual o primeiro som que emitimos quando nascemos?

Nascida a peça, a partir daí o autor constrói uma verdadeira sinfonia gilbertiana, em que traz, em uma síntese tocante, todos os elementos de sua extensa e abarcante obra: a Bahia, o candomblé, a bossa nova, o sertão, a tecnologia, o tropicalismo, o samba, o concretismo, o rock, o Oriente. E também Villa-Lobos, Beatles, SatieChico Science, Smetak, Domenico, Caymmi, Arnaldo, Caetano. João. Que tarefa difícil, visto a amplitude de sua importância como artista no mundo e o paradigma simbólico de uma obra tão representativa da cultura moderna de um país continental como o Brasil. Gil acompanhou tudo o que aconteceu em termos de movimentos musicais em mais de 60 anos para cá. Agora, foi a vez de ele mesmo fazer esse autopercurso revisitando-se para extrair uma nova compreensão de si próprio.

Gestual que lembra a performance do próprio artista
inspirador da montangem
A coreografia, também de Rodrigo Pederneiras, se vale enormemente de gestos amplos e expansivos (com referências ao frevo, ao samba, aos caboclos de lança, aos orixás, à assimetria roqueira) e não raro referindo-se aos conhecidos gestos performáticos de Gil quando no palco. O tempo todo o ritmo dos passos é marcado pela luz quente e amarelada criada por Paulo e Gabriel Pederneiras, a qual persegue em fachos os dinâmicos movimentos dos corpos. O figurino escuro, autoria de Freusa, traz estampas de colorido africano (Joana Lira) que dão, sob o jogo de luz, a impressão de porem à mostra fendas da carne corpórea. Com um conceito cenográfico bastante limpo – poucos bailarinos no palco por vez, utilizando-os muito mais como linhas ora em pequenas composições, ora individualmente –, a montagem, assim, desenha a concepção musical proposta pelo compositor: organismos que se formam (as três “Intros”), tomam fisionomia própria (“Choro nº 1”, “Seraphimu” e “Fragmento Lírico”, além do knee "Balafon"), brincam em suas existências efêmeras (os três “Improvisos”) para, na segunda metade, aí sim, ganharem concretude, ganharem corpo (“Círculo”, “Triângulo”, “Quadrado”, “Retângulo” e “Pentágono”). O final não poderia ser mais lógico e emblemático com um tema intitulado, justamente, de “Gil”.

Rica em variações, harmonias, timbres e texturas, a encadeada e emocionante trilha dá ao espetáculo coesão e dinâmica em seus quase 40 minutos de duração. “Intro”/“Choro nº 1/”Improviso”, logo nos primeiros movimentos, é especialmente marcante, pois encerra várias vertentes do universo musical do músico baiano: o chorinho, o rap, o afoxé, o samba, o eletro-pop e o baião, passando por uma seção clássica de piano até progredir na reelaboração de si mesmo e de sua música ao parafrasear "Filhos de Gandhi" (1974) e "Ela Falava Nisso Todo Dia" (1968). Outras duas, "Aquele Abraço" (1969) e "Andar com Fé" (1982) sevem de motivo para um auto-sample, em que traços minimamente reconhecíveis de suas melodias se entrecruzam - repetindo e ressignificando, aliás, as vozes fragmentadas da introdução.

Ritmo e movimento:
a Bahia africana de Gil
Já a segunda sequência, o movimento “Seraphimu”, ideia extraída de outra canção dele, "Serafim", de 1992, começa como um legítimo kraut-rock alemão em que cita o riff de “A Novidade”, para, mais adiante, dar um caráter erudito-religioso aos tambores e às percussões politonais do matiz africano fazendo da mesma "Serafim" um fio condutor ("Quando o agogô soar/ O som do ferro sobre o ferro/ Será como o berro do bezerro/ Sangrado em agrado ao grande Ogum", diz a letra original). Também, de extrema sensibilidade e responsável por um dos momentos mais belos do espetáculo, “Fragmento Lírico” é com certeza das melodias mais bonitas já criadas por Gil. Igualmente empolgante, inclusive na coreografia, o rock "Círculo", com citação a "Toda Menina Baiana", de 1979.

Além do uso intenso de percussão em vários momentos (que chama a coreografia a movimentos igualmente carregados), o trabalho de sopros é, não à toa, bem destacado, assim como os elementos eletrônicos (comandados por Domenico Lancellotti). Mas o que ganha realce é o violão de Gil, quase que seu segundo corpo. É no violão que o autor, ao compor, se materializa enquanto som, em que revive e logo se esvai a cada nota que o vento leva. E é sobre isso que, em suma, “Gil”, aborda: vida e morte. Ao varrer através do tempo a própria vida, do começo desta até o presente, Gil, com 76 anos e sapiente da maior proximidade da partida deste plano, escreve uma espécie de réquiem. Porém, diferente de Mozart, Gil a completa ainda de olhos abertos. Sente-se um olhar enevoado tanto para o passado esvaído quanto para o futuro implacavelmente cada dia mais encurtado. Tudo está embrenhado: memória, perspectivas, sentimentos, razão, espírito, matéria. Num só corpo. Por isso, os altos e baixos da narrativa, em que alegria e tristeza, luz e sombra, vida e morte, se confundem, já são a mesma coisa para Gil. A releitura desconstruída e uns dois tons abaixo na escala de “A Raça Humana” (“Triângulo”) é uma mostra “viva” disso. O que era originalmente um reggae dançante vira uma missa fúnebre, como os passos sofridos a caminho da morte dos retirantes nordestinos sob (aquele) sol calcinante.

A riqueza da obra do compositor baiano representada em gestos pelo Grupo Corpo
Nova guinada e volta animada a manipulação eletrônica da própria voz com o eletro-funk “Quadrado” emulando “Cérebro Eletrônico” (1969) e “Realce” (1979). A misteriosa e oriental “Retângulo” e a marcha “Pentágono”, com ares de jazz funeral de New Orleans, dão, como se diz na linguagem vulgar, a “morta”. Gil pronuncia, agora com a voz inteira e sem processamentos de mesa, palavras soltas. Mas não tão soltas assim, visto que simbolizam ele, a montagem e a sua arte:

“Corpo/ Carpa/ Corvo/ Cravo/ Cedro
Corpo/ Perna/ Braço/ Fauna/ Flora
Corpo/ Palco/ Pedra/ Preto/ Porco”.

Por fim, todos os metais e madeiras, um a um, dão aquilo que pode ser classificado prática e simbolicamente como o último sopro. Pois que, numa inesperada alteração de textura, timbre e sensação, Gil tira das cordas do violão, este sim, o derradeiro acorde. Dissonante, enigmático e inconcluso. Um som cuja energia vibratória tem tempo de vida de alguns segundos, desde seu ataque até sua queda, esvaindo aquilo que em música se chama justamente de “corpo”. Finda-se o som e um proposital silêncio se faz mesmo depois que as luzes se apagam, mas ainda sem o cerrar das cortinas (ou seria o fechar os olhos?). A plateia reage com estranhamento e desconforto, pois realmente a intenção era desacomodar. Se a sensação não foi de êxtase, ainda mais em comparação com a primeira parte de “Sete ou Oito...”, a proposta dos autores, Gil e Grupo Corpo, foi totalmente exitosa, visto que simbólica e profunda. E se não é tão arrebatadora a montagem, com certeza mais uma vez a companhia surpreende, ainda mais desta feita, inspirada na força criativa do autor de "Drão". Aliás, não é exagero dizer que se trata de um dos melhores trabalhos da carreira de Gilberto Gil.

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trechos de "Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil"


Daniel Rodrigues

domingo, 21 de fevereiro de 2010

"O Último Grande Herói", de John McTiernan (1993)


Acabo de assitir pela enésima vez um filme que curto de montão e que considero injustiçado pelo fato de não ter recebido a devida atenção, elogios nem reconhecimento que é "O Último Grande Herói", de John McTiernan. Pode-se subestimar inicialmente esta película pelo fato de ser estrelada pelo grandalhão monossilábico (mas carismático) Arnold Shwarzenegger mas no fundo, o filme cheio de ação e de "mentiras" típicas de cinema, é uma grande declaração de amor à Sétima Arte com todas as suas referências a clássicos, homenagens, ridicularizações de clichês, brincadeiras com a própria indústria cinematográfica, e participações especiais.
Além de manter um bom ritmo de ação e interesse, pelas mãos do diretor que já havia nos tirado o fôlego em "Duro de Matar 2", "O Último Grande Herói" ainda nos  põe frente-a-frente com a tela e faz questão de nos lembrar que vida real é uma coisa e cinema é outra, reforçando seus argumentos pelos exageros do mundo da ficção (durante o tempo em que o filme se passa lá) e pela impotência dos personagens ficcionais no mundo real, onde, aliás, respinga até uma crítica à nossa sociedade quando se sugere que aqui, na realidade, os vilões podem vencer.
O negócio todo deste trânsito entre real e irreal é que um garoto, aficcionado por filmes, ganha de um velho porteiro e projetista do cinema que freqüenta, um suposto ingresso mágico, e por incrível que pareça o tal bilhete funciona e dá passagem da relaidade para um mundo paralelo. O lance é que o guri está dentro do cinema e acaba caindo exatamente no filme do seu grande ídolo, Jack Slater, interpretado por Shwarzenegger. Lá, do outro lado da tela, o garoto, Danny, tenta argumentar de todas as formas com o herói que tudo aquilo é um filme e por isso as coisdas sempre dão certo, carros explodem com um tiro, vidros são quebrados com socos sem que se sinta dor, e as mulheres são todas perfeitas; além do fato, é claro, de tentar convencê-lo que é apenas um personagem interpretado pelo astro Arnold Shwarzenegger que o herói, é claro, nunca ouvira falar.
As homenagens ao mundo do cinema vão desde uma passadinha rápida por Catherine Trammel de "Instinto Selvagem"entrando na delegacia, uma visita à locadora à procura de "O Exterminador do Futuro II" (ali estrelado por Stallone), passando pela menção a "Amadeus" de Milos Forman no qual o personagem de F. Murray Abraham é lembrado por ter matado Mozart; mas é mais bacana ainda principalmente quando A Morte de "O Sétimo Selo", clássico de Ingmar Bergmann, sai da tela e diz a Danny que Jack Slater não está na sua lista pois não trata com ficção.
Outro barato é na festa de lançamento do filme dentro do filme, "Jack Slater IV", as pontas de Jean-Claude Van Damme, MC Hammer, James Belushi e Little Richard no tapete vermelho da premiére.
Não é um clássico absoluto, não é um cult-movie - com boa vontade, na minha concepção um candidato a cult - mas com certeza figura, ali, junto com filmes como "Ed Wood", "Cinema Paradiso" e mais recentemente "Bastardos Inglórios, como um destes filmes de ode ao cinema. Filme de apaixonados pela arte.


Cly Reis

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Lou Reed & John Cale - "Songs for Drella" (1990)


“Lou e eu tivemos uma conversa, e se tornou muito mais importante expor o que nós dois tínhamos [de relação com Andy Warhol], criando um show com apenas duas pessoas no palco, para que todos vissem nossa história. Achei que era mais importante – quase mais importante do que a música”.
John Cale

“O que você experimenta por meio desse registro é o relacionamento entre nós e Andy. Não se trata apenas de Andy; não é apenas, ‘oh! ele fez isso, ele fez aquilo’. Quando você experimenta ‘Drella’, é sobre John e eu, é sobre mim e Andy, e é sobre John e Andy. Queremos que você conheça melhor Andy Warhol, que você o sinta como John e eu o sentimos, para que você possa vivenciar a presença dessa pessoa única e incrível e se aproximar dela.” 
Lou Reed

Há quem contradiga o ditado de que “dois raios não caem no mesmo lugar”. Se for considerar a parceria entre Lou Reed e John Cale, essa máxima realmente não se aplica. Tanto pela raridade do fenômeno quanto por sua fugacidade, em todas as ocasiões em que os dois estiveram juntos ao longo de quase quatro décadas, o céu proporcionou um espetáculo irrefreável de belezas, mas também não demorou a se precipitar com violência. E isso, não apenas uma, mas duas, três vezes pelo menos. Tal como forças da natureza semelhantes e intensamente fortes, não suportam uma a outra pela tamanha atração que exercem entre si, repelindo-se mutuamente tão logo realizem seu feito. 

Foi assim com Reed e Cale desde sempre. Dois dos maiores talentos de sua geração de prodigiosos jovens artistas nascidos no pós-Guerra, são figuras essenciais para a cena da contracultura nova-iorquina, que mudou os rumos da vida social na segunda metade do século XX. Isso, contudo, não impediu que as desavenças se manifestassem. Pelo contrário, era-lhes como dar mais munição. Já na Velvet Underground, histórica banda que cofundaram com Moe Tucker e Sterling Morrison nos anos 60 e espinha dorsal do rock junto a Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones, isso já acontecia. Mesmo com a alta sinergia artística que os unia e os colocava como o principal núcleo criativo do grupo – capaz de inventar algumas das mais elevadas obras da música contemporânea, como “Heroin”, “Venus in Furs” e “Sister Ray” –, as diferenças falavam mais alto do que as semelhanças. A Velvet continuou com Reed até este partir para sua própria carreira no início dos anos 70, mas Cale, incomodado com o parceiro, não suportou mais do que dois discos e saltou fora um ano após a estreia no clássico "Disco da Banana" para voos solo e na produção musical.

Já veteranos, os integrantes da banda promoveram uma nova aproximação somente 25 anos, em 1993, para o memorável show “Live MCMXCIII”. A turnê comemorativa, que vinha emocionando fãs por onde passava, entretanto, mal havia começado e teve de ser subitamente interrompida por causa de brigas entre os dois líderes. De novo os iluminados raios se chocavam e faziam fechar o tempo, transformando a situação festiva em um dilúvio de ferozes descargas elétricas.

A Velvet com Nico: apadrinhados por Andy
Somente um milagre da natureza para fazer com que tanto talento (e ego) pudesse permanecer minimamente em harmonia por algum tempo, mesmo que curto, sem que se provocasse imediatamente mau-tempo. Esse milagre tinha nome e lhes era um velho conhecido desde os tempos das performances multimídia da Exploding Plastic Inevitable, nos primeiros anos da Velvet. Chamava-se Andy Warhol. Fazia já três anos que o pai da pop art e padrinho artístico da turma havia dado adeus, deixando neles uma sensação de dívida para com a figura que, junto com eles – mas também abarcando-os –, havia transformado os cânones da cultura mundial para sempre com sua proposta artística ousada e conectada com a pós-modernidade. No entanto, ainda precisou que um segundo raio teimasse em se lançar no mesmo ponto: praticamente um ano depois, a cantora e modelo alemã Nico, parceira do histórico primeiro disco da Velvet e musa musical de Cale por vários anos, também morria. A despedida de Nico, que dera voz a alguns das principais composições da dupla, como “All Tomorrows Parties” e “Femme Fatalle”, deixou a Cale e Reed mais do que evidente que aquele 1990 lhes trazia um aviso do firmamento. Sim, precisavam unir-se. Foi então que, entre tempestades e quietações, nasceu “Songs for Drella”, o qual completa 30 anos de lançamento.

Precavidos do próprio histórico, a combinação foi a seguinte: por três meses, os dois – e somente os dois –, suportariam o confinamento e baixariam a cabeça para comporem conjuntamente um repertório inteiramente novo em memória a Andy. Três meses apenas. O que talvez seja muito pouco tempo para alguns, foi mais do que suficiente para que os conflituosos, mas não menos experientes e afinados companheiros, compusessem uma obra-prima única em vários aspectos. A começar pela ocasião em si, para a qual Reed e Cale conceberam também algo especial, uma vez que sabiam da responsabilidade que lhes cabia: somente eles podiam cumprir aquela tarefa. Embora a vastidão da influência de Andy para a arte, estabelecendo nesta um "antes" e um "depois" de si, eram Reed e Cale seus verdadeiros herdeiros na música. Por isso, entendiam que a homenagem a Andy pedia pompas. Afinal, somente um indivíduo ímpar na humanidade poderia juntar Drácula com Cinderella (daí, o apelido “Drella”). Com isso, “Songs” saiu não apenas um disco, mas uma ópera-rock, que respeita toda a estrutura clássica tal como o rock havia incorporado ao narrar uma história de apogeu e miséria e final necessariamente trágico. Outra excepcionalidade é ter apenas os dois no recinto tocando, cantando, gravando, mixando e produzindo a si próprios. O resultado é um disco de sonoridade minimalista mas altamente expressiva, em que não há percussão, sopros, orquestra ou outras vozes, apenas as cordas vocais dos dois falando pela de Andy e intercalando-se e a de seus instrumentos: guitarras, baixo, viola e piano/teclados.

Cale, Reed e Andy em 1976: relação antiga e muito cúmplice

Para narrar a trajetória de Andy, Cale e Reed determinam, então, 15 movimentos em que se ouvem a sofisticação do art rock, a fúria do punk, a ousadia da vanguarda, a tradição clássica europeia e o palpável da canção pop. Tudo que Andy lhes legou em ideias e conceitos, desde a Velvet até as suas carreiras solo, era revisado e revisitado de forma altamente madura e concisa, mas também emocional e devota. Num teor erudito, a provocativa “Smalltown” começa como uma espécie de minueto ternário em allegro em que a voz de Reed faz resgatar o desejo do jovem Andy antes de mudar-se para a cosmopolita Nova Yprk nos anos 50. Gay, estranho e totalmente deslocado em sua Pittsburgh natal, ele tinha uma única certeza: a de que queria sair dali. “De onde é que Picasso vem/ Não há Michelangelo vindo de Pittsburgh/ Se a arte é a ponta do iceberg/ Eu sou a parte mais ao fundo“. 

A percepção de que o destino de Andy era mudar os padrões da sociedade começa a ser desenhada a partir do momento em que ele pisa na Big Apple, mais precisamente quando “abre a casa” na 81st Street, em Manhattan, para receber toda a fauna de artistas e doidões de uma Nova York em plena ebulição criativa. Era a Factory, seu lendário estúdio de onde a arte ocidental entrou de um jeito e saiu de outro para nunca mais ser a mesma. A dupla dá a este momento ares litúrgicos e ambientais, mas ao mesmo tempo recorre ao minimalismo nas três notas repetidas que formam o núcleo melódico de "Open House", o mesmo que usaram em "Waiting for the Man", outra sua do repertório da Velvet. 

Enquanto Cale canta a busca de Andy por patrocínio junto aos mecenas endinheirados, a quem apresenta um portfólio com suas embalagens de Brillo e uma tal banda chamada Velvet Underground (“Style It Takes”), Reed, na sequência, sob um ruidoso e minimalista rock, traz o artista em atividade (“Work”) fazendo lembrar o som hipnótico e sequencial de contemporâneos de anos 60, mas estes, da cena avant-garde da Califórnia, Philip Glass e Steve Reich. Logo começam, entretanto, os problemas. “Trouble With Classicists”, numa melodia neo-renascentista quase declamada por Cale, traz as idiossincrasias entre a arte moderna e classicismo, bem como o embate com os críticos.  

A efervescência nova-iorquina agora está nas veias de Andy. A intensa “Starlight”, com as guitarras distorcidas de Reed e o toque atonal do piano de Cale, fala da casa LGBT que abrigou seus pares: Ingrid, Viva, Little Joe, Baby Jane, Eddie S. “Starlight aberto/ Luz das estrelas abre sua porta/ Isso se chama Nova York/ Com filmes na rua/ Filmes com pessoas reais/ Que você recebe é o que você vê”. Desses personagens reais surgem as famosas fotografias e serigrafias como as que imortalizou de Marylin Monroe, Elvis Presley ou Truman Capote. O genial e inquieto rapaz do interior agora se encontra totalmente consigo mesmo. Criador e criaturas se homogeneízam. Para Andy, cantado no elegante timbre de Cale numa das mais brilhantes do disco, “rostos e nomes são tudo a mesma coisa”. Kitsch, celebridades, sexo, drogas, noite, ruas. Em "Faces and Names" a arte sai pelos poros, seja pela pintura, cinema, teatro ou música. São os “15 minutos de fama” e muito mais. Andy, no auge, prossegue formando novas figuras, como Reed canta noutra maravilha de “Songs”, “Images”. A viola ao estilo La Monte Young de Cale e a guitarra com efeitos de pedal de Reed formam um corpo dissonante só para registrar que, além do figurativo, o abstrato também integra o repertório pictórico do artista visual. 

A dupla em 1990 na rara
reunião para homenagear
o pai da pop art
Tanta exposição resulta na primeira grande crise, fato presente nas cinco faixas seguintes, que é a tentativa de assassinato que Andy sofreu da feminista radical Valerie Solanas, a qual se sentira ofendida com ele em razão de um desacerto profissional. A melodiosa “Slip Away (A Warning)” fala justamente do conselho de amigos para que fizesse o movimento inverso do que vinha procedendo: ao invés de “open house”, fechar seu estúdio. Pressentimento do pior. A barra segue pesada com “It Wasn't Me”, em que Andy tenta convencer Solanas a não se suicidar e de que ele não tinha culpa. O tiro, literalmente, saiu pela culatra: em 3 de junho de 1968, ela invade a Factory armada e desfere três tiros contra Andy, o que lhe deixou sequelas físicas e emocionais para o resto da vida. “I Believe”, outra ótima, narra com detalhes e urgência a cena do atentado, da chegada dela ao local à agonia de Andy no hospital. Solanas, que passou três anos na prisão pelo ocorrido, morreria 14 meses depois de Andy (e dois antes de Nico) em abril de 1988.

O belo country “Nobody But You” versa ainda sobre o traumático episódio (“Eu realmente me importo muito/ Embora pareça que não/ Desde que eu fui baleado/ Não há ninguém além de você”), encaminhando o musical para um desfecho, como se sabe, melancólico como em todas as óperas. Na discursiva e etérea “A Dream”, Cale traz sua veia new age e neoclássica captada junto a outros parceiros, como Terry Riley, Brian Eno e Kevin Ayers. A letra é um fluxo de pensamento de Andy, cuja descrição de um sonho traça um panorama de vários momentos de sua biografia: os primeiros anos, a Velvet, pessoas de convivência, a amizade com Reed e Cale, o incidente na Factory e as feridas que a vida lhe trouxe. A indagação: “Puxa, não seria engraçado se eu morresse neste sonho antes que eu pudesse inventar outro?”, quase ao final da faixa, denota o pressentimento de que os últimos traços de um artista sublime estavam sendo dados. 

A arquitetura narrativa de “Songs” - que mantém um exemplar equilíbrio entre densidade e leveza, tonalismo e dissonâncias, agitação e calmaria, classicismo e vanguarda, agressividade e lirismo - surpreende mais uma vez na virada da contemplativa e extensa “A Dream” para o blues ultramoderno “Forever Changed”, talvez a mais impactante de todo o álbum. Ciente da proximidade da morte, Andy compreende igualmente a sina de todo grande artista: a permanência do seu legado. “Eu fui”, mas tudo “mudou para sempre”. A consciência da eternidade. Se Cale emenda as duas anteriores, é Reed quem tem o privilégio de desfechar este réquiem. Isso porque, ao invés de prosseguirem a narrativa na terceira pessoa, como que falando pela voz de Andy, são as próprias palavras de Reed que compõem a letra de“Hello It's Me” numa emocionante carta de despedida. “Andy, sou eu, não te vejo há um tempo/ Eu gostaria de ter falado mais com você quando você estava vivo”, abre dizendo na singela balada, mais uma como “Femme Fatale” e “Sunday Morning” composta pelos dois em meio aos vários proto-punks raivosos e sinfonias ruidosas dos tempos de Velvet. 

Terminada a gravação, também não durou muito a turnê de “Songs”. Após algumas apresentações, Cale e Reed separaram-se novamente, como raios excelsos que entram em choque depois de mal se aproximarem. A última ocasião, o reencontro da Velvet, três anos dali, foi sentenciada com a partida de Sterling Morrison dois mais tarde e a do próprio Reed, em 2013. Antes da tormenta, contudo, o tempo colaborou para que registrassem este impecável e sui generis disco, que evidencia o quanto figuras como Andy Warhol fazem falta sempre. E por quê? Porque, como um Michelangelo, um Mozart, um Picasso, um Shakespeare, ícones revolucionários invariavelmente deixam lacunas impreenchíveis, simplesmente. Ouvir “Songs” hoje, a três décadas de seu lançamento, dá a dimensão do que existências como as de Andy, Reed, Nico e Morrison significam depois que partem e da importância dos que ficam, como Cale e Moe. Raios muito raros que, incrivelmente, caíram no mesmo lugar. Justo por isso que o disco tenha se concluído com estes versos: “Bem, agora Andy, acho que temos que ir/ Espero de alguma forma que você goste deste pequeno show/ Eu sei que é tarde, mas é a única maneira que eu sei/ Olá, sou eu/ Boa noite, Andy”.

Show de "Songs for Drella", de Lou Reed e John Cale (1990)


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FAIXAS:
1. “Smalltown” - 2:03
2. “Open House” - 4:16
3. “Style It Takes” - 2:54
4. “Work” - 2:36
5. “Trouble With Classicists” - 3:40
6. “Starlight” - 3:26
7. “Faces And Names” - 4:11
8. “Images” - 3:28
9. “Slip Away (A Warning)” - 3:04
10. “It Wasn't Me” - 3:29
11. “I Believe” - 3:17
12. “Nobody But You” - 3:44
13. “A Dream” - 6:33
14. “Forever Changed” - 4:49
15. “Hello It's Me” - 3:03
Todas as composições de autoria de Lou Reed e John Cale

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OUÇA O DISCO:





Daniel Rodrigues