quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Cartola - "Cartola" (1976)
quinta-feira, 10 de janeiro de 2019
"O Coração da Música - Vida e Obras dos Grandes Mestres: Händel/ Mozart/ Beethoven/ Brahms/ Wagner”, de Paul Trein – Ed. BesouroBox (2018)
Quando o coração da música está dentro da gente
por Leocádia Costa
Ao chegar na Edições BesouroBox, em abril desse ano, me deparei com um catálogo que renova ao comunicar os saberes. Cheguei com diversos lançamentos previstos, entre eles, um pequeno livro (porque a edição é de formato 12x18cm) mas que traz em seu miolo uma abordagem iluminada sobre música: "O Coração da Música”.
O pianista, educador e também escritor Paul Trein, que residia há muitos anos na Alemanha, conseguiu de maneira didática abordar sinteticamente a vida e obra dos grandes mestres da música clássica: Händel, Mozart, Beethoven, Brahms e Wagner. Os textos sobre cada compositor abordam em sua estrutura o bom senso destacando detalhes biográficos de maneira pontual, elegante e explicativa, mas sem deixar que se sobreponham a genialidade contida em cada obra por eles criada.
A música clássica, que sempre foi acusada de ser inacessível a interessados por envolver não somente o aprendizado de um instrumento e a cultura musical, encontra um aliado nessa publicação. A pesquisa de Trein é, em tempos de internet e, assim, de uma maior circulação de ideias, algo que não se pode desconsiderar. Além disso, convida os mais curiosos a escutarem os principais temas de cada compositor, pois as contextualiza com primor.
Para mim, que fui criada entre audições clássicas de piano e voz em meu ambiente familiar por ter tido pais envolvidos com a música erudita, foi uma volta a escuta deles. Uma retomada a conversas que presenciei muitas vezes em saraus e reuniões com os amigos de coral em casa.
Paul Trein me proporcionou um retorno ao aconchego que a música erudita oferece, sem afetação ou barreiras a quem quiser escutá-la. Uma oportunidade de escutar outras ideias sobre a história de compositores que até hoje ressoam em nossos ouvidos universais. Um convite a pais, educadores e estudantes que queiram ler um livro escrito por quem ama a música na medida exata, mas com a devida emoção de sentir o coração quase saindo pela boca em forma de palavras.
Nesse final de ano, imagino a ausência que Paul Trein faz à sua família e amigos (ele faleceu no primeiro semestre de 2018, na Alemanha), mas também sei o quanto a música preenche esse vazio. Então se você sentiu entusiasmo em escutar mais uma vez seus compositores prediletos ou em conhecer cada um citado nesse livro, pegue sua vitrola, seu aparelho de CD, seu arquivo de mp3 ou nuvem e escute música. Se a vontade for maior ainda, vá a um concerto para escutá-la ao vivo. Com certeza toda a tristeza irá embora e somente os acordes ficarão ressonando dentro de você, como uma benção pulsante, viva e eterna.
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)
quarta-feira, 18 de julho de 2018
Música da Cabeça - Programa #67
Poucos fizeram cinema com tamanha beleza como quem compõe uma ária de Mozart. Ingmar Bergman é um deles. No centenário de nascimento do mestre sueco, o Música da Cabeça pontua a importância de sua obra, mas não deixando, entretanto, de trazer várias outras coisas. Tem bastante rock, dos brasileiros Fausto Fawcett, Legião Urbana e RPM até estrangeiros como The Pogues, Pink Floyd, Depeche Mode e R.E.M. Ainda, um “Palavra, Lê” e um “Sete-List” muito especiais, acreditem. Vai ser como assistir um filme do Bergman: senta no sofá não arreda mais pé! Começa às 21h, na tela da Rádio Elétrica, antes da Hora do Lobo. Produção, apresentação e projeção: Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
terça-feira, 31 de julho de 2012
Stevie Wonder - "Innervisions" (1973)
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Ouça:
Stevie Wonder Innervisions
quinta-feira, 21 de novembro de 2019
Grupo Corpo – “Sete ou Oito Peças para um Ballet" e "Gil” – Teatro do SESI – Porto Alegre (03/11/2019)
Gilberto Gil
O Grupo Corpo é, mais do que qualquer banda, cineasta ou outro tipo de artista no Brasil, o que mais tem o poder de me surpreender. A cada nova montagem, e até mesmo a cada repetição de alguma das antigas, a capacidade da companhia mineira de balé – sem dúvidas uma das melhores em atuação no mundo – de reinventar-se e trazer novas visões estéticas e conceituais é invejável. Não foi diferente na última apresentação deles em Porto Alegre, em razão da mais recente montagem,“Gil”, cujo nome já diz tudo: um retrospecto sintético da obra do genial músico baiano Gilberto Gil. Para arrematar, além da iluminada companhia das "Costa", Leocádia, Carolina e a amiga Amanda, a ocasião caiu justamente no dia de meu aniversário. Muita emoção envolvida.
Como disse, não só as novas montagens surpreendem. O hábito comum do grupo de trazer na primeira parte alguma de suas peças anteriores, não raro é tão estimulante quanto a estreia. Foi assim em 2015, quando trouxeram, junto à então recente “Dança Sinfônica” – com trilha de Marco Antônio Magalhães, parceiro de longa data do Corpo –, que perdeu impacto diante de sua talvez mais representativa montagem, “Parabelo” (1997, José Miguel Wisnik e Tom Zé). Desta vez, abriram com uma das que mais tinha vontade de assistir mas que nunca tivera a oportunidade: ”Sete ou Oito Peças para Ballet”, de 1994. Marco na trajetória recente da companhia de mais de 40 anos, tem trilha com arranjos e execução do grupo mineiro instrumental Uakti – liderado por Magalhães – e autoria do, assim como Gil, gênio: o norte-americano Philip Glass.
"Sete ou Oito Peças para um Ballet", com trilha de Glass: êxtase no palco |
Luz amarela e fendas pelo corpo: o sertão de Gil representado |
Nascida a peça, a partir daí o autor constrói uma verdadeira sinfonia gilbertiana, em que traz, em uma síntese tocante, todos os elementos de sua extensa e abarcante obra: a Bahia, o candomblé, a bossa nova, o sertão, a tecnologia, o tropicalismo, o samba, o concretismo, o rock, o Oriente. E também Villa-Lobos, Beatles, Satie, Chico Science, Smetak, Domenico, Caymmi, Arnaldo, Caetano. João. Que tarefa difícil, visto a amplitude de sua importância como artista no mundo e o paradigma simbólico de uma obra tão representativa da cultura moderna de um país continental como o Brasil. Gil acompanhou tudo o que aconteceu em termos de movimentos musicais em mais de 60 anos para cá. Agora, foi a vez de ele mesmo fazer esse autopercurso revisitando-se para extrair uma nova compreensão de si próprio.
Gestual que lembra a performance do próprio artista inspirador da montangem |
Rica em variações, harmonias, timbres e texturas, a encadeada e emocionante trilha dá ao espetáculo coesão e dinâmica em seus quase 40 minutos de duração. “Intro”/“Choro nº 1/”Improviso”, logo nos primeiros movimentos, é especialmente marcante, pois encerra várias vertentes do universo musical do músico baiano: o chorinho, o rap, o afoxé, o samba, o eletro-pop e o baião, passando por uma seção clássica de piano até progredir na reelaboração de si mesmo e de sua música ao parafrasear "Filhos de Gandhi" (1974) e "Ela Falava Nisso Todo Dia" (1968). Outras duas, "Aquele Abraço" (1969) e "Andar com Fé" (1982) sevem de motivo para um auto-sample, em que traços minimamente reconhecíveis de suas melodias se entrecruzam - repetindo e ressignificando, aliás, as vozes fragmentadas da introdução.
Ritmo e movimento: a Bahia africana de Gil |
Além do uso intenso de percussão em vários momentos (que chama a coreografia a movimentos igualmente carregados), o trabalho de sopros é, não à toa, bem destacado, assim como os elementos eletrônicos (comandados por Domenico Lancellotti). Mas o que ganha realce é o violão de Gil, quase que seu segundo corpo. É no violão que o autor, ao compor, se materializa enquanto som, em que revive e logo se esvai a cada nota que o vento leva. E é sobre isso que, em suma, “Gil”, aborda: vida e morte. Ao varrer através do tempo a própria vida, do começo desta até o presente, Gil, com 76 anos e sapiente da maior proximidade da partida deste plano, escreve uma espécie de réquiem. Porém, diferente de Mozart, Gil a completa ainda de olhos abertos. Sente-se um olhar enevoado tanto para o passado esvaído quanto para o futuro implacavelmente cada dia mais encurtado. Tudo está embrenhado: memória, perspectivas, sentimentos, razão, espírito, matéria. Num só corpo. Por isso, os altos e baixos da narrativa, em que alegria e tristeza, luz e sombra, vida e morte, se confundem, já são a mesma coisa para Gil. A releitura desconstruída e uns dois tons abaixo na escala de “A Raça Humana” (“Triângulo”) é uma mostra “viva” disso. O que era originalmente um reggae dançante vira uma missa fúnebre, como os passos sofridos a caminho da morte dos retirantes nordestinos sob (aquele) sol calcinante.
A riqueza da obra do compositor baiano representada em gestos pelo Grupo Corpo |
“Corpo/ Carpa/ Corvo/ Cravo/ Cedro
Corpo/ Perna/ Braço/ Fauna/ Flora
Corpo/ Palco/ Pedra/ Preto/ Porco”.
Por fim, todos os metais e madeiras, um a um, dão aquilo que pode ser classificado prática e simbolicamente como o último sopro. Pois que, numa inesperada alteração de textura, timbre e sensação, Gil tira das cordas do violão, este sim, o derradeiro acorde. Dissonante, enigmático e inconcluso. Um som cuja energia vibratória tem tempo de vida de alguns segundos, desde seu ataque até sua queda, esvaindo aquilo que em música se chama justamente de “corpo”. Finda-se o som e um proposital silêncio se faz mesmo depois que as luzes se apagam, mas ainda sem o cerrar das cortinas (ou seria o fechar os olhos?). A plateia reage com estranhamento e desconforto, pois realmente a intenção era desacomodar. Se a sensação não foi de êxtase, ainda mais em comparação com a primeira parte de “Sete ou Oito...”, a proposta dos autores, Gil e Grupo Corpo, foi totalmente exitosa, visto que simbólica e profunda. E se não é tão arrebatadora a montagem, com certeza mais uma vez a companhia surpreende, ainda mais desta feita, inspirada na força criativa do autor de "Drão". Aliás, não é exagero dizer que se trata de um dos melhores trabalhos da carreira de Gilberto Gil.
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domingo, 21 de fevereiro de 2010
"O Último Grande Herói", de John McTiernan (1993)
Acabo de assitir pela enésima vez um filme que curto de montão e que considero injustiçado pelo fato de não ter recebido a devida atenção, elogios nem reconhecimento que é "O Último Grande Herói", de John McTiernan. Pode-se subestimar inicialmente esta película pelo fato de ser estrelada pelo grandalhão monossilábico (mas carismático) Arnold Shwarzenegger mas no fundo, o filme cheio de ação e de "mentiras" típicas de cinema, é uma grande declaração de amor à Sétima Arte com todas as suas referências a clássicos, homenagens, ridicularizações de clichês, brincadeiras com a própria indústria cinematográfica, e participações especiais.
Não é um clássico absoluto, não é um cult-movie - com boa vontade, na minha concepção um candidato a cult - mas com certeza figura, ali, junto com filmes como "Ed Wood", "Cinema Paradiso" e mais recentemente "Bastardos Inglórios, como um destes filmes de ode ao cinema. Filme de apaixonados pela arte.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
Lou Reed & John Cale - "Songs for Drella" (1990)
Foi assim com Reed e Cale desde sempre. Dois dos maiores talentos de sua geração de prodigiosos jovens artistas nascidos no pós-Guerra, são figuras essenciais para a cena da contracultura nova-iorquina, que mudou os rumos da vida social na segunda metade do século XX. Isso, contudo, não impediu que as desavenças se manifestassem. Pelo contrário, era-lhes como dar mais munição. Já na Velvet Underground, histórica banda que cofundaram com Moe Tucker e Sterling Morrison nos anos 60 e espinha dorsal do rock junto a Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones, isso já acontecia. Mesmo com a alta sinergia artística que os unia e os colocava como o principal núcleo criativo do grupo – capaz de inventar algumas das mais elevadas obras da música contemporânea, como “Heroin”, “Venus in Furs” e “Sister Ray” –, as diferenças falavam mais alto do que as semelhanças. A Velvet continuou com Reed até este partir para sua própria carreira no início dos anos 70, mas Cale, incomodado com o parceiro, não suportou mais do que dois discos e saltou fora um ano após a estreia no clássico "Disco da Banana" para voos solo e na produção musical.
Já veteranos, os integrantes da banda promoveram uma nova aproximação somente 25 anos, em 1993, para o memorável show “Live MCMXCIII”. A turnê comemorativa, que vinha emocionando fãs por onde passava, entretanto, mal havia começado e teve de ser subitamente interrompida por causa de brigas entre os dois líderes. De novo os iluminados raios se chocavam e faziam fechar o tempo, transformando a situação festiva em um dilúvio de ferozes descargas elétricas.
A Velvet com Nico: apadrinhados por Andy |
Precavidos do próprio histórico, a combinação foi a seguinte: por três meses, os dois – e somente os dois –, suportariam o confinamento e baixariam a cabeça para comporem conjuntamente um repertório inteiramente novo em memória a Andy. Três meses apenas. O que talvez seja muito pouco tempo para alguns, foi mais do que suficiente para que os conflituosos, mas não menos experientes e afinados companheiros, compusessem uma obra-prima única em vários aspectos. A começar pela ocasião em si, para a qual Reed e Cale conceberam também algo especial, uma vez que sabiam da responsabilidade que lhes cabia: somente eles podiam cumprir aquela tarefa. Embora a vastidão da influência de Andy para a arte, estabelecendo nesta um "antes" e um "depois" de si, eram Reed e Cale seus verdadeiros herdeiros na música. Por isso, entendiam que a homenagem a Andy pedia pompas. Afinal, somente um indivíduo ímpar na humanidade poderia juntar Drácula com Cinderella (daí, o apelido “Drella”). Com isso, “Songs” saiu não apenas um disco, mas uma ópera-rock, que respeita toda a estrutura clássica tal como o rock havia incorporado ao narrar uma história de apogeu e miséria e final necessariamente trágico. Outra excepcionalidade é ter apenas os dois no recinto tocando, cantando, gravando, mixando e produzindo a si próprios. O resultado é um disco de sonoridade minimalista mas altamente expressiva, em que não há percussão, sopros, orquestra ou outras vozes, apenas as cordas vocais dos dois falando pela de Andy e intercalando-se e a de seus instrumentos: guitarras, baixo, viola e piano/teclados.
Cale, Reed e Andy em 1976: relação antiga e muito cúmplice |
Para narrar a trajetória de Andy, Cale e Reed determinam, então, 15 movimentos em que se ouvem a sofisticação do art rock, a fúria do punk, a ousadia da vanguarda, a tradição clássica europeia e o palpável da canção pop. Tudo que Andy lhes legou em ideias e conceitos, desde a Velvet até as suas carreiras solo, era revisado e revisitado de forma altamente madura e concisa, mas também emocional e devota. Num teor erudito, a provocativa “Smalltown” começa como uma espécie de minueto ternário em allegro em que a voz de Reed faz resgatar o desejo do jovem Andy antes de mudar-se para a cosmopolita Nova Yprk nos anos 50. Gay, estranho e totalmente deslocado em sua Pittsburgh natal, ele tinha uma única certeza: a de que queria sair dali. “De onde é que Picasso vem/ Não há Michelangelo vindo de Pittsburgh/ Se a arte é a ponta do iceberg/ Eu sou a parte mais ao fundo“.
A percepção de que o destino de Andy era mudar os padrões da sociedade começa a ser desenhada a partir do momento em que ele pisa na Big Apple, mais precisamente quando “abre a casa” na 81st Street, em Manhattan, para receber toda a fauna de artistas e doidões de uma Nova York em plena ebulição criativa. Era a Factory, seu lendário estúdio de onde a arte ocidental entrou de um jeito e saiu de outro para nunca mais ser a mesma. A dupla dá a este momento ares litúrgicos e ambientais, mas ao mesmo tempo recorre ao minimalismo nas três notas repetidas que formam o núcleo melódico de "Open House", o mesmo que usaram em "Waiting for the Man", outra sua do repertório da Velvet.
Enquanto Cale canta a busca de Andy por patrocínio junto aos mecenas endinheirados, a quem apresenta um portfólio com suas embalagens de Brillo e uma tal banda chamada Velvet Underground (“Style It Takes”), Reed, na sequência, sob um ruidoso e minimalista rock, traz o artista em atividade (“Work”) fazendo lembrar o som hipnótico e sequencial de contemporâneos de anos 60, mas estes, da cena avant-garde da Califórnia, Philip Glass e Steve Reich. Logo começam, entretanto, os problemas. “Trouble With Classicists”, numa melodia neo-renascentista quase declamada por Cale, traz as idiossincrasias entre a arte moderna e classicismo, bem como o embate com os críticos.
A efervescência nova-iorquina agora está nas veias de Andy. A intensa “Starlight”, com as guitarras distorcidas de Reed e o toque atonal do piano de Cale, fala da casa LGBT que abrigou seus pares: Ingrid, Viva, Little Joe, Baby Jane, Eddie S. “Starlight aberto/ Luz das estrelas abre sua porta/ Isso se chama Nova York/ Com filmes na rua/ Filmes com pessoas reais/ Que você recebe é o que você vê”. Desses personagens reais surgem as famosas fotografias e serigrafias como as que imortalizou de Marylin Monroe, Elvis Presley ou Truman Capote. O genial e inquieto rapaz do interior agora se encontra totalmente consigo mesmo. Criador e criaturas se homogeneízam. Para Andy, cantado no elegante timbre de Cale numa das mais brilhantes do disco, “rostos e nomes são tudo a mesma coisa”. Kitsch, celebridades, sexo, drogas, noite, ruas. Em "Faces and Names" a arte sai pelos poros, seja pela pintura, cinema, teatro ou música. São os “15 minutos de fama” e muito mais. Andy, no auge, prossegue formando novas figuras, como Reed canta noutra maravilha de “Songs”, “Images”. A viola ao estilo La Monte Young de Cale e a guitarra com efeitos de pedal de Reed formam um corpo dissonante só para registrar que, além do figurativo, o abstrato também integra o repertório pictórico do artista visual.
A dupla em 1990 na rara reunião para homenagear o pai da pop art |
O belo country “Nobody But You” versa ainda sobre o traumático episódio (“Eu realmente me importo muito/ Embora pareça que não/ Desde que eu fui baleado/ Não há ninguém além de você”), encaminhando o musical para um desfecho, como se sabe, melancólico como em todas as óperas. Na discursiva e etérea “A Dream”, Cale traz sua veia new age e neoclássica captada junto a outros parceiros, como Terry Riley, Brian Eno e Kevin Ayers. A letra é um fluxo de pensamento de Andy, cuja descrição de um sonho traça um panorama de vários momentos de sua biografia: os primeiros anos, a Velvet, pessoas de convivência, a amizade com Reed e Cale, o incidente na Factory e as feridas que a vida lhe trouxe. A indagação: “Puxa, não seria engraçado se eu morresse neste sonho antes que eu pudesse inventar outro?”, quase ao final da faixa, denota o pressentimento de que os últimos traços de um artista sublime estavam sendo dados.
A arquitetura narrativa de “Songs” - que mantém um exemplar equilíbrio entre densidade e leveza, tonalismo e dissonâncias, agitação e calmaria, classicismo e vanguarda, agressividade e lirismo - surpreende mais uma vez na virada da contemplativa e extensa “A Dream” para o blues ultramoderno “Forever Changed”, talvez a mais impactante de todo o álbum. Ciente da proximidade da morte, Andy compreende igualmente a sina de todo grande artista: a permanência do seu legado. “Eu fui”, mas tudo “mudou para sempre”. A consciência da eternidade. Se Cale emenda as duas anteriores, é Reed quem tem o privilégio de desfechar este réquiem. Isso porque, ao invés de prosseguirem a narrativa na terceira pessoa, como que falando pela voz de Andy, são as próprias palavras de Reed que compõem a letra de“Hello It's Me” numa emocionante carta de despedida. “Andy, sou eu, não te vejo há um tempo/ Eu gostaria de ter falado mais com você quando você estava vivo”, abre dizendo na singela balada, mais uma como “Femme Fatale” e “Sunday Morning” composta pelos dois em meio aos vários proto-punks raivosos e sinfonias ruidosas dos tempos de Velvet.
Terminada a gravação, também não durou muito a turnê de “Songs”. Após algumas apresentações, Cale e Reed separaram-se novamente, como raios excelsos que entram em choque depois de mal se aproximarem. A última ocasião, o reencontro da Velvet, três anos dali, foi sentenciada com a partida de Sterling Morrison dois mais tarde e a do próprio Reed, em 2013. Antes da tormenta, contudo, o tempo colaborou para que registrassem este impecável e sui generis disco, que evidencia o quanto figuras como Andy Warhol fazem falta sempre. E por quê? Porque, como um Michelangelo, um Mozart, um Picasso, um Shakespeare, ícones revolucionários invariavelmente deixam lacunas impreenchíveis, simplesmente. Ouvir “Songs” hoje, a três décadas de seu lançamento, dá a dimensão do que existências como as de Andy, Reed, Nico e Morrison significam depois que partem e da importância dos que ficam, como Cale e Moe. Raios muito raros que, incrivelmente, caíram no mesmo lugar. Justo por isso que o disco tenha se concluído com estes versos: “Bem, agora Andy, acho que temos que ir/ Espero de alguma forma que você goste deste pequeno show/ Eu sei que é tarde, mas é a única maneira que eu sei/ Olá, sou eu/ Boa noite, Andy”.