Por ocasião do recente lançamento do disco novo de Chico Buarque, “Caravanas” – o qual ainda não escutei integralmente, mas tudo que ouvi me agradou bastante – a Ilustrada da Folha de S. Paulo publicou uma matéria interessantíssima trazendo uma enquete com 40 personalidades afins com o músico e escritor, que fizeram, cada um, a seleção de suas três canções preferidas dele. Pronto, tocou em duas coisas que adoro: Chico Buarque e listas.
Bem abrangente, a publicação da Folha traz, entre os votantes, pessoas diretamente ligadas ao artista, como a irmã Miúcha, o genro Carlinhos Brown e a companheira de estrada Gal Costa, mas também nomes bem distintos, como o carnavalesco Alexandre Louzada, autor do enredo "Chico Buarque da Mangueira", com o qual a escola foi campeã em 1998; Adelia Bezerra de Meneses, autora dos livros "Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque" e "Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque"; e o cineasta Bruno Barreto, diretor de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), que tem na trilha a inesquecível “O Que Será?”.
"Construção": a campeã
Das escolhidas, várias se repetem de um votante para outro, mostrando o quanto são temas que realmente arrebatam os admiradores de Chico. Caso de “Construção”, a campeã em menções, 9 no total, “O Que Será” (8), “As Vitrines” (6), “Roda Viva” (5) e outras, como “Vai Passar” (“Mais atual do que nunca”, segundo o diretor de teatro João Falcão), “Futuros Amantes”, “O Meu Guri” e “Todo o Sentimento”.
É de se destacar que não apenas os clássicos consagrados pelo tempo entraram na seleção. Aparecem também obras das novas safras de Chico, como “Sinhá” (do seu penúltimo álbum, “Chico”, de 2011, parceria com João Bosco vencedora do Prêmio Tim de Música do Ano) e as recentes “As Caravanas” e "Tua Cantiga" – esta última, entre as preferidas de Zé Celso Martinez Corrêa e Miúcha.
Nessa linha, fico feliz (até por não tê-las conseguido incluir entre as minhas) em ver citados temas mais "escondidos" do cancioneiro de Chico, ou seja, aquelas músicas que não são necessariamente as mais populares e que, uma vez escolhidas, denotam um profundo apreço por parte de seu eleitor. Dentre estas, "Meio Dia Meia Lua", "Uma Canção Desnaturada", "Mil Perdões", "Quando o Carnaval Chegar" e "O Futebol". Senti falta, entretanto, de "Samba do Grande Amor" e "João e Maria", comumente queridinhas dos fãs. Porém, como se sabe, trata-se de uma obra gigantesca e qualificadíssima, por isso ausências como estas são mais do que justificáveis.
Então, vão aqui as listas das eleitas de cada participante e, claro, a minha também. Missão difícil, quase impossível. Mas como eu mesmo escrevo esta matéria, dou-me, ao menos, à liberdade de escolher não apenas três, mas 10 faixas. Eu posso.
10 - "Valsinha" (com Vinícius de Moraes, em "Construção"), "Rosa dos Ventos" (em "Chico Buarque de Hollanda nº 4", 1970) e "Amando sobre os Jornais" (em "Mel", por Maria Bethânia, 1979)
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ALEXANDRE LOUZADA
Carnavalesco
[1] "Carolina" (1967)
[2] "Quem te Viu, Quem te Vê" (1966)
[3] "Cálice" (com Gilberto Gil - 1973)
ADELIA BEZERRA DE MENESES
Professora da USP
[1] "Cala a Boca, Bárbara" (com Ruy Guerra - 1972/73)
[2] "Todo o Sentimento" (com Cristóvão Bastos - 1987)
[3] "O Que Será" (1976) e "Construção" (1971)
BETH CARVALHO
Gravou "O Meu Guri" e inúmeras canções do compositor
[1] "Apesar de Você" (1970)
[2] "O Meu Guri" (1981)
[3] "Sinhá" (com João Bosco - 2010)
BIBI FERREIRA
Atriz da primeira montagem de "Gota d'Água" (1975)
[1] "Gota d'Água" (1975)
[2] "Basta Um Dia" (1975)
[3] "Bem Querer" (1975)
BRUNO BARRETO
Cineasta, dirigiu, além de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), episódios de "Amor em Quatro Atos" (2011), baseada em canções de Chico
[1] "O que Será"
[2] "As Vitrines" (1981)
[3] "Folhetim" (1977/78)
CACÁ DIEGUES
Cineasta, encomendou a Chico canções para "Quando o Carnaval Chegar" (1972; aqui, o cantor também atua), "Joanna Francesa" (1973) e "Bye Bye, Brasil" (1980), entre outros
[1] "Morro Dois Irmãos" (1989)
[2] "Joana Francesa" (1973)
[3] "A Banda" (1966)
CADÃO VOLPATO
Jornalista e autor de conto inspirado em música de Chico para a antologia "Essa História Está Diferente" (Companhia das Letras)
[1] "Flor da Idade" (1973)
[2] "Quando o Carnaval Chegar" (1972)
[3] "Joana Francesa"
CARLINHOS BROWN
Cantor e pai de dois netos de Chico
[1] "Trocando em Miúdos" (com Francis Hime - 1978)
[2] "As Vitrines"
[3] "Olhos nos Olhos" (1976)
CAROLA SAAVEDRA
Escritora, assinou conto para o livro "Essa História Está Diferente"
[1] "Mil Perdões" (1983)
[2] "Construção"
[3] "Roda Viva" (1967)
CHARLES MÖELLER
Diretor de "Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos" (2014) e "Ópera do Malandro" (2003)
“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989
No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor.
Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.
O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.
Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.
Detalhe da contracapa do disco: a identidade das digitais e da 3x4 de quando foi preso na adolescência, que lembra as fotos de presos políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta.
O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos).
Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco.
O artista em 1980, fotografado por Thereza Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.
Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?
Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier.
De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.
A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.
"Bye Bye, Brasil": marco do cinema brasileiro genialmente traduzido em música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos,masque dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.
Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.
"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.
Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?
Robert Johnson
e as infinitas plantações de algodão do Mississipi.
Violeta Parra e
a imensidão das cordilheiras andinas.
É sublime
quando um músico consegue atingir tamanha simbiose entre ele e seu espaço, a
ponto de passar a representar, através de sua arte, uma paisagem física. É como
se ele fosse, por intermédio dos sons, não originário deste lugar, mas, sim, o
próprio lugar.
Milton Nascimento é um destes seres que, como o próprio nome indica, nasce e gera a própria
terra, Minas Gerais. O homem que integra a seu próprio nome um estado inteiro,
o seu mundo. E não digam que Mi(lton) Nas(cimento) é mera coincidência
linguística! Mais correto é afirmar que os Deuses - os do candomblé, da Igreja,
muçulmanos, indígenas, todos aqueles que perfazem a cultura mineira - assim
quiseram a este carioca desgarrado abraçado como um filho pelos morros de cor ferrosa
das Gerais, os quais, junto à lúdica maria fumaça, ele mesmo representa na
icônica capa em desenho a próprio punho. Como um ser pertencente àquela terra a
qual se homogeiniza.
Em meados dos
anos 70, Milton já havia percorrido muita estrada de terra na boleia de um
caminhão. Na faixa dos 35 anos, pai, casado, consagrado no Brasil e no
exterior, idolatrado e gravado por Elis Regina, mentor do movimento musical
mais cult da modernidade brasileira, autor de algumas das obras mais icônicas do
cancioneiro MPB. O reconhecido talento como compositor, cantor, arranjador e
agente catalisador misturava-se, agora, com a sabedoria da maturidade - como se
ainda coubesse mais sabedoria a este ser nascido gênio. Quase que naturalmente
a quem já havia ganhado o centro do País e desbravado o principal mercado fonográfico do mundo, o norte-americano, Milton, então, volta-se à sua própria
essência: a terra que lhe é e a qual pertence.
Mas Milton,
carinhosamente chamado de Bituca por quem o ama, não faz isso sozinho, visto
que convoca seu talentoso Clube da Esquina, reforçando o time de amigos, inclusive.
Se "Minas", a primeira parte deste duo de álbuns gêmeos, explora a
grandiosidade das geraes Guimarães Rosa de Drummond, seja em sons e letras,
"Geraes" solidifica essa ideia quase que como um milagre: um homem
torna-se seu próprio som. Ou melhor: transforma-se em montanha para, do alto de
topografia, emitir a sonoridade da natureza. Samba, rock, soul, folk, jazz, toada, sertanejo, candombe, trova, oratório... world music, não só por acepção, mas por intuição, é o termo mais adequado para classificar.
A ligação entre
uma palavra e outra, entre um título e outro, entre um disco e outro, se dá
pelo mesmo acorde que desfecha “Simples”, última faixa de "Minas", e
abre, em ritmo de toada mineira, a linda "Fazenda" (“Água de beber/ Bica
no quintal/ Sede de viver tudo/ E o esquecer/ Era tão normal que o tempo parava").
A religiosidade católica do povo, traço cabal da cultura mineira, transborda
tanto em "Cálix Bento", com a marca do violão universal de Milton e o
emocionante arranjo de Tavinho Moura sobre tema da Folia de Reis do norte de
Minas, quanto em "Lua Girou", outro tema do folclore popular – este da
região de Beira-Rio, na Bahia – vertida para o repertório pela habilidosa mão do
próprio Bituca.
O lado
político, claro, está presente. Milton, consciente da situação do País e jamais
acovardado, não havia esquecido das recentes retaliações da censura que quase
prejudicaram seu "Milagre dos Peixes", de 3 anos antes, um verdadeiro
milagre de ter sido gestado com tamanha qualidade. O parceiro e produtor
Ronaldo Bastos, além da concepção da capa, é quem pega junto em "O
Menino", escrita anos antes pelos dois em homenagem ao estudante Edson
Luís, assassinado em 1968 em um confronto com a polícia no restaurante Calabouço,
no Rio de Janeiro, episódio que uniu a sociedade em protestos que culminaram
com a famosa Passeata dos Cem Mil contra a Ditadura Militar. E que luxo a banda
que o acompanha: João Donato (órgão), Nelson Angelo (guitarra), Toninho Horta
(guitarra), Novelli (baixo), e Robertinho Silva (bateria). Com a mira militares
a outros artistas naquele momento, como Chico Buarque, Milton pode, enfim,
lançar a música e não se calar diante da barbárie.
Quem também
garante o grito de resistência é um recente e igualmente genial amigo, com quem
tanto e tão bem Milton produziria a partir de então. Justamente o então visado Chico
Buarque. É com ele que Milton canta a canção-tema do filme "Dona Flor e
Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto, um sucesso de bilheteria no Brasil à
época, "O que Será (À Flor da Pele)". Fortemente política, a letra,
cantada com melancolia e até tristeza, reflete os tempos de iniquidade humana:
"O que será que será/ Que dá dentro da gente que não devia/ Que desacata
a gente, que é revelia/ Que é feito uma aguardente que não sacia/ Que é feito
estar doente duma folia/ Que nem dez mandamentos vão conciliar/ Nem todos os
unguentos vão aliviar/ Nem todos os quebrantos, toda alquimia/ Que nem todos os
santos, será que será...". Gêmea de "O que Será (À Flor da Terra)",
Milton retribui o convite e divide com Chico os microfones desta última no álbum
dele naquele mesmo ano, o não coincidentemente intitulado “Meus Caros Amigos”.
Milton e Chico: encontro mágico promovido à época de "Geraes" e que deu maravilha à música brasileira
A maturidade
filosófico-artística de Milton era tão grande, que as dimensões do que é grande
ou pequeno, do que é parte ou geral, se reconfiguram numa consciência elevada
de humanidade. A ligação universal de Milton com sua terra passa a significar o
ligar-se a América Latina. Afinal, sua Minas é, como toda a latinoamérica, dos
povos originários. “San Vicente” e "Dos Cruces", de "Clube da Esquina”, já traziam essa semente que “Geraes”, mais do que “Minas”, solidificaria, que é essa visão ampla do
território, dos povos. Primeiro, na realização do sonho de cantar Violeta Parra
com Mercedes Sosa. Apresentada a Milton por Vinícius de Moraes, La Negra divide
com Milton os microfones da clássica “Volver a los 17”. Igualmente, vê-se o encontro dos rios do
Prata e São Francisco, que não poderiam deixar de fazer brotar aquilo que os perfaz e
lhes dá sentido: água. É com o conjunto de jovens chilenos deste nome, amigos
recém conhecidos, que Milton instaura de vez, na acachapante “Caldera”, a
alma castelhana dos hermanos na música popular brasileira – convenhamos, muito
mais do que os músicos da MPG, cuja proximidade regional do Rio Grande do Sul propiciaria
tal fusão mais naturalmente. É o canto dos Andes – mas também de Minas – sem
filtro.
As amizades,
aliás, estão presentes em todos os momentos, e o território de Milton é como
uma grande aldeia onde ele, consciente de seu papel de pajé, mantém a egrégora
sob a força do amor. Fernando Brant, parceiro desde os primeiros tempos, coassina
aquela que talvez seja a música mais sintética de todo o disco: “Promessas De
Sol”. A sonoridade latina das flautas andinas, a percussão marcada pelo tambor leguero, o violão sincrético de Milton e os coros constantes e tensos
dão à canção a atmosfera perfeita para um os mais fortes discursos políticos
que a Ditadura presenciou em música. “Você me quer belo/ E eu não sou belo mais/
Me levaram tudo que um homem precisa ter”. Épica, como uma ópera guarani, a melodia
vai escalando de um tom baixo para, ao final, se encerrar com intensos vocais
de Milton bradando, denunciativo: “Que tragédia é essa que cai sobre todos
nós?”
Parece que não
cabe mais emoção num álbum como este. Mas cabe. A brejeira “Carro De Boi”, de Cacaso
e Maurício Tapajós (“Que vontade eu tenho de sair/ Num carro de boi ir por aí/ Estrada
de terra que/ Só me leva, só me leva/ Nunca mais me traz”) casa-se com a
inicial “Fazenda” seja na ludicidade ou na sonoridade ao estilo de cantiga
sertaneja. Mas tem também a jazzística e comovente “Viver de Amor”, em que novamente Ronaldo,
desta vez em parceria com o excepcional Toninho Horta, compõem para a voz cristalina
de Milton uma das canções românticas mais marcantes de toda a discografia
brasileira. Ronaldo, múltiplo, também tira da cartola mais uma vez com Milton
outra joia do disco, que é o samba-jongo “Circo Marimbondo”. Assim como Milton,
de ouvido tão absoluto quanto sensível, fizera ao contar com a voz de Alaíde Costa
para cantar com ele "Me Deixa em Paz" em “Clube da Esquina”, aqui ele
vai na fonte mais inequívoca para este tipo de proposta musical que une África
e Brasil: Clementina de Jesus. Na percussão, além de Robertinho no tamborim e
surdo, também outros craques da “cozinha”: Chico Batera, no agogô; Mestre
Marçal, cuíca; Elizeu e Lima, repique; e Georgiana de Moraes, afochê. E que
delícia ouvir o canto anasalado e potente da deusa Quelé acompanhada pelo coro de
Tavinho, Miúcha, Chico, Georgiana, Cafi, Fernando, Bebel, Ronaldo, Bituca, Vitória,
Toninho e toda a patota!
Para encerrar? A música que conjuga o primeiro e o segundo disco, o corpo e o espírito: “Minas Geraes”. O violão carregado de traços étnico-culturais de Milton, sua
voz que escapa do peito emoldurando-se ao vento, a docilidade das madeiras, a singeleza
do toque do bandolim. Clementina, em melismas, embeleza ainda mais a canção, lindamente
orquestrada por Francis Hime – outro novo amigo cooptado por Milton da turma de
Chico. Tudo converge para um final emocionante, que, como os próprios versos
dizem, saem do “coração aberto em vento”: “Por toda a eternidade/ Com o coração
doendo/ De tanta felicidade/ Todas as canções inutilmente/ Todas as canções
eternamente/ Jogos de criar sorte e azar”.
Ouvindo-se “Minas”
e “Gerais”, duas obras não somente maduras como altamente densas, simbólicas e encarnadas,
é impossível não ser fisgado pelo mistério da música de Milton Nascimento.
Encantamento que remete ao mistério da criação, o mistério da vida. Wayne Shorter, parceiro de Milton e mutuamente admirador, quando
perguntado sobre esta esfinge que é a obra do amigo, diz: “Bem, ouça você mesmo,
pois não há palavras para descrever. Apenas sinta”. Milton, que completa 80
anos de vida sobre o mundo, o seu mundo, é tudo isso: uma força da
natureza. Ele é mais do que música: é som em estado puro. É mais que tempo: é a
harmonia do espaço.
Milton é mais
do que homem: é pedra. Eterna.
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É impressionante perceber hoje, em retrospectiva, que o encontro de dois gênios da música brasileira se deu exatamente na época deste trabalho. Depois de aberta a porteira da fazenda de Milton para Chico, só vieram coisas lindas. Além de parcerias nos anos subsequentes - inclusive no célebre "Clube da Esquina 2", de 1978 - naquele mesmo ano de 1976 os dois se reuniriam para gravar o compacto "Milton & Chico", lançado oficialmente um ano depois. Incluído em "Geraes" na versão para CD, esta gravação clássica dos dois traz duas faixas: a melancólica "Primeiro de Maio", que denuncia a vida oprimida do trabalhador brasileiro no feriado dedicado a ele, e "O Cio da Terra", também combativa e ligada ao trabalhador, mas do campo, que se tornaria uma das canções emblemáticas do repertório tanto de Chico quanto de Milton.
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FAIXAS:
1. "Fazenda" (Nelson Angelo) - 2:40
2. "Calix Bento"(Folclore popular - Adap.: Tavinho Moura) - 3:30
3. "Volver a los 17" - com Mercedes Sosa (Violeta Parra) - 5:10
4. "Menino" (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:47
5. "O Que Será (À Flor da Pele)" - com Chico Buarque (Chico Buarque) - 4:10
6. "Carro de Boi" (Maurício Tapajós/ Cacaso) - 3:40
7. "Caldera (instrumental)" - com Grupo Agua (Nelson Araya) - 4:25
8. "Promessas do Sol" - com Grupo Agua (Milton Nascimento/ Fernando Brant) - 5:00
9. "Viver de Amor" (Toninho Horta/ Ronaldo Bastos) - 2:34
10. "A Lua Girou" (Milton Nascimento) - 3:42
11. "Circo Marimbondo" - com Clementina de Jesus (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos) - 2:55
12. "Minas Geraes" com Grupo Agua e Clementina de Jesus (Novelli/ Ronaldo Bastos) - 5:13
Faixas bônus da versão em CD:
13. "Primeiro De Maio" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 4:46
14. "O Cio Da Terra" - com Chico Buarque (Milton Nascimento/ Chico Buarque) - 3:48