O canal TCM de clássicos tem me proporcionado sessões fantásticas de obras que até então não tinha visto por falta de oportunidade ou porque preferi pegar algo mais atual na locadora e fui deixando o clássico pra depois, depois, depois... e no fim não vi.
Vi ontem Sindicato dos Ladrões (1954), com MarlonBrando, no especial Elia Kazan que o canal está exibindo.
Não é à toa que este filme tem a fama que tem. É um grande filme, mesmo! Um clássico!
Uma direção preciosa com uma fotografia fantástica e uma atuação incrível de Marlon Brando, que lhe valeu um Oscar de Melhor Ator, além dos outros sete que o filme levou, incluindo Melhor Filme. A película conta a história de um ex-boxeador que é usado, sem saber, numa cilada que leva à morte de um dos estivadores do cais do porto que desafiou o poder chefão do sindicato. O boxeador se envolve com a irmã da vítima e com isso, aos poucos, se volta contra os chefões e abraça a causa dos trabalhadores.
Remete muito ao neo-realismo italiano de Rosselini, De Sicca e Viscontti, com características mais hollywoodianas é claro, mas que não o fazem perder a qualidade. Destaque também para a ótima música de Leonard Bernstein que valoriza e pontua cada cena de maneira vibrante e emocionante.
O filme também tem um fator de comportamento cultural importante. Ele é certamente um dos elementos formadores do visual do jovem rebelde nos anos 50, juntamente com outros filmes como O Selvagem, com o prórprio Brando e Juventude Transviada, com a imagem de rebelde sem causa de James Dean e com a tendência rock'n roll que cada vez mais crescia, impulsionada pelo jovem Elvis Presley, naquele momento.
Acabo
de ler "Marlon Brando - A face sombria da beleza", do
jornalista francês François Forestier, que já biografou JFK e Marilyn Monroe. O presentaço veio do amigo Francisco Bino, que, na
dedicatória, fez uma previsão um tanto cômica: "Che, tu vai
ler tão rápido que vai parecer ejaculação precoce - desse mal Brando não sofria". Na verdade, acho que foi o único mal do
qual esse puta ator não padeceu.
Brando teve infinitas personalidades. Ora anjo, ora monstro. Mais monstro do
que anjo, diga-se. Na arte dramática, soube ser Midas; na vida real,
foi Medusa. Único, rebelde, encantador, arrogante, trágico. Ao
mesmo tempo em que conquistava todos à sua volta, fazia-se
repugnante. Antes de filmar algumas cenas de "Uma rua chamada
pecado", praticava um ritual que começava por uma leve
masturbação, depois molhava a calça jeans e, por fim, abria a
braguilha. Pronto, agora Stanley Kowalski poderia se exibir aos
colegas - em especial, à Blanche DuBois-Vivien Leigh.
Desdenhava
a profissão. Não lia roteiros, não decorava falas. Improvisava e
tomava conta dos sets como se fosse o dono de estúdio - havia
exceções, como com John Houston e Francis Ford Coppola, por
exemplo. Ainda no teatro, quando fazia "Um bonde chamado
desejo", tinha como hobby "brincar de boxe" com
figurantes e atores substitutos. Certo dia, levou um direto no rosto
que quebrou seu nariz. O autor da proeza: um jovem desconhecido
chamado Jack Palance, que se orgulharia a vida inteira do feito. Sua
grande diversão era chocar, chamar a atenção. E conseguiu. Todas
as mulheres do universo, de Hollywood ao Taiti, do México às
Filipinas, caíram em tentação. Entre as que sucumbiram, Ava
Gardner (então namorada de Frank Sinatra, que mandou capangas darem
um "recado" a Brando envolvendo a palavra "castração"), Marilyn Monroe (a quem ele não dava bola - "era muito
bunduda") e Vivien Leigh (então esposa de Laurence Olivier,
bissexual e grande referência para Brando, tanto no cinema quanto no
teatro).
Na adolescência como
protagonista de
"O Selvagem"
O
homem que virou rei de Hollywood, que defendeu indígenas e panteras
negras, nunca escondeu a sexualidade aflorada, intransigente,
desafiadora, inquietante. Gostava de mulheres exóticas - Rita
Moreno, Movita Castañeda, Katy Jurado, Tarita Teririipaia. E de
homens, também. Entre eles, os parceiros de toda vida: Wally Cox e
Christian Marquand. Brando nunca negou sua bissexualidade. Bernardo
Bertolucci teria se apaixonado por ele, incutindo sua obsessão nas
transgressões entre Brando e Maria Schneider em "O último
tango em Paris". O ator gostava tanto de gente quanto de Russel,
seu guaxinim. Teimava, no entanto, em não gostar de si. Ainda que
não bebesse ou consumisse drogas (influência pela vida errante
levada pela mãe, Dodie), Brando maltratava o próprio corpo comendo
desenfreadamente. A grande paixão? Sorvete. Potes e mais potes, que
o faziam engordar quilos de um dia para o outro. Aos 30 anos, por
estar "muito rechonchudo", quase perdeu o papel de "O
selvagem" para Montgomery Clift - que fazia sombra a Brando
desde "Uma rua chamada pecado", sendo, na época, um dos
grandes queridinhos de Hollywood. Monty era bonito, educado,
inteligente e homossexual. Ainda que tomasse conta de qualquer
ambiente, Brando baixou a bola para um colega de "O selvagem".
Um ex-fuzileiro naval mal-encarado chamado Lee Marvin fazia-no
tremer. Para Marvin, aquele motoqueiro falso requebrava um pouco além
da conta. "Maricão", dizia. "Não passa de um
monte de merda".
Dali
em diante, entre péssimos filmes e parcas boas exceções, como o
genial "Sindicato de Ladrões" (novamente de Kazan), Brando
via seu peso aumentar na mesma medida em que as confusões sucediam
em sua vida pessoal - sempre envolvendo mulheres. No começo dos anos
70, foi parar em "O Poderoso Chefão", já gordo e
decadente, com 58 anos, depois que o papel fora recusado por Laurence
Olivier e George C. Scott. Brando estava desacreditado, assim como o
filme, negado por vários diretores até parar nas mãos de um jovem
de 31 anos chamado Francis Ford Coppola. Sem dinheiro e credibilidade, Brando trocou 5% de participação na bilheteria por
U$ 100 mil. Deixou de ganhar, por baixo, U$ 10 milhões. Mas
recuperou a estima, a aura que havia ido pelo ralo. Depois dos
primeiros dias de filmagem, quando quiseram trocar Coppola pelo velho
mestre de Brando, um dedo-duro do Macartismo chamado Elia Kazan, Don
Corleone acariciou um gatinho e bateu pé: "se tirarem Coppola, também saio". Assim, Coppola ficou. Ficando, fez uma
obra-prima. Ficou rico e conseguiu dinheiro e renome suficiente para
realizar seu maior sonho, uma insanidade chamada "Apocalipse
Now". Tão insano quanto os 125 quilos com os quais Brando
chegou às locações, nas Filipinas.
Brando encarnando o célebre
Cel. Kutz em "Apocalypse Now"
Sobre
"Apocalipse Now", Forestier escreve: "As filmagens
seriam afetadas por um furacão, que destrói os cenários; o ator
principal, Harvey Keitel, não podia ser mais irritante. É pior que
Brando, no estilo Actors Studio. A cada saleiro depositado na mesa,
Keitel pergunta: ‘Mas por quê? Desde quando? Qual a história
desse saleiro? E dessa mesa?’. Coppola o manda embora. O
substituto, Martin Sheen, é satisfatório, mas... sofre um ataque
cardíaco, de cansaço. Passam-se os dias. A película prende nas
câmeras, por causa da umidade. Os técnicos fumam, se drogam,
contraem doenças desconhecidas. Os mosquitos atacam os brancos. Os
bifes importados dos Estados Unidos chegam descongelados, ou mesmo
podres. Encantadoras figurantes incitam os atores e maquinistas a se
entregarem a atos imorais - mas saborosos. O próprio Coppola cede
aos encantos das coelhinhas da Playboy que participam das filmagens.
O exército filipino recusa-se a emprestar helicópteros. Brando
raspa a cabeça. Dennis Hopper, o bad boy de ‘Sem Destino’,
chega. Drogado até o pescoço, recusa-se a tomar banho. Passada uma
semana, ninguém mais lhe dirige a palavra - exceto por telefone. Ao
fim de 40 dias, passa a ter direito a um ônibus particular: ninguém
mais quer entrar na condução com ele. Brando desaparece na selva."
Em
2004, aos 80 anos, Marlon Brando morreu. Apesar de ter tido o mundo
ao seu dispor, pereceu sozinho, assistindo uma comédia sem graça de
Abbot & Costello. Talvez comendo um McDonald´s daqueles que eram
jogados por cima do muro por um funcionário da lancheria mais
próxima de sua casa, em Mulholand Drive. Partiu não sem antes ter
vivido uma sequência de tragédias que, se fosse transformada
roteiro de cinema, perderia credibilidade - tamanho surrealismo. Em
1990, seu filho Christian Brando, um drogado problemático de QI
abaixo da média, dá um tiro na cabeça do cunhado, Drag Dollet, na
sala da casa do ator. Brando presencia os momentos seguintes e
procura inocentar o filho "atuando" no tribunal. Cheyenne,
a filha viúva, é outra problemática. Viciada em drogas e remédios,
estava grávida do agora finado namorado. Depois de inúmeras
tentativas de suicídio, a garota conseguiu se enforcar (“com
sucesso”) em 1995, aos 24 anos.
Entre
a sedução de Kowalski, a luta de Zapata, a ingenuidade de Terry
Malloy e a sagacidade de Vito, fico com a insanidade de Kurtz. Ou de
Brando, tanto faz. Ao fim e ao cabo, this will never be the end.
porRicardo Lacerda
Ricardo Lacerda é jornalista, chato e curioso. Desde que se conhece
por gente, vê filmes e escuta música de “gente velha” – como
diziam os amigos do colégio. É aficionado por folclore
latino-americano, curte Paulo Leminski e Pedro Juan Gutierrez –
entre doses de Salinger e Hesse. Na tela, aceita quase tudo – salvo
exceções. Foi editor da revista APLAUSO. Formado pela PUC, tem
especialização em Relações Internacionais pela ESPM e é sócio
da República – Agência de Conteúdo, de onde escreve para
publicações como Superinteressante, AMANHÃ, Voto e Jornal do
Comércio.
Deve ter sido delicioso aos que, pelo menos por algum período, puderam acompanhar
just-in-time a filmografia de algum
grande diretor do passado. No caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: o mestre
do suspense superava-se a cada produção que lançava, reelaborando às vezes a
mesma ideia ao longo do tempo, desde a fase inglesa (anos 20 e 30), passando
pelos primeiros anos nos Estados Unidos (década de 40) até chegar às
obras-primas definitivas (50 e 60). É perceptível que a confusão no teatro
lotado de “Os 39 Degraus” (1935) se repetira em “Cortina Rasgada” (1962), ou o
mesmo tenha ocorrido com a cena da escada de “Suspeita” (1941) e, depois, na
clássica de “Psicose” (1960), a que Norman Bates mata o detetive. Dois exemplos
de um realizador que soube como poucos reciclar suas próprias ideias e
progredir constantemente.
Dadas as devidas dimensões, os espectadores e cinéfilos de hoje podem gozar
dessa sensação quanto ao cinema de Alejandro González Iñárritu. Ele, que começara em alto nível com a trilogia “Amores
Perros” (2000), “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), resvalou um pouco no
hiperbólico “Biutiful” (2010) mas logo retomou-se com o labiríntico "Birdman" (2014), Oscar de melhor filme do ano passado. Agora, o cineasta mexicano,
aproveitando com parcimônia elementos de todas as suas realizações anteriores,
avança em estilo e estética e lança o filme que certamente é sua obra-prima até
então: “O Regresso”. Dos favoritos
para levar o mesmo prêmio que “Birdman”, é a produção de mais indicações este
ano, 11 no total, tendo ainda grandes chances à estatueta em Melhor Ator, com Leonardo DiCaprio, e em Direção, com o próprio Iñárritu.
O filme, baseado numa história verídica (sobre o romance de Michael
Punke) situa-se na primeira metade do século XIX e conta a história de Hugh
Glass (DiCaprio), um forasteiro que parte com seu filho para o oeste americano
disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso na floresta, fica
seriamente ferido e é abandonado à própria sorte por um dos parceiros, John
Fitzgerald (Tom Hardy, digno de Oscar também), o qual ainda mata seu filho.
Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma
árdua jornada em busca de vingança. Dado a personagens fortes, o talentoso
DiCaprio, provavelmente o melhor ator de sua geração, se esbalda no papel. É
impressionante vê-lo na pele de Glass nas cenas de solidão desafiando a
natureza opressiva e ainda doente, com dor, fome e dilacerado por dentro pela
brutal perda do filho.
Com a ajuda de um elenco afinado e de uma fotografia acachapante (de Emmanuel
Lubezki, impecável tanto nos grandes planos quanto nos fechados), Iñárritu
compõe um filme extremamente intenso, porém rigoroso. Nada está fora do lugar,
nem mesmo a intensidade. Do roteiro (Iñarritu e Mark L. Smith) ao figurino, da
cenografia à edição de som, da trilha sonora – do mestre Ruiychi Sakamoto – à montagem (Stephen Mirrione). Tudo é muito exato, porém, sem recair no artificial, comum
ao tecnicista cinema norte-americano. Afinal, está se falando de um esteta do
cinema da atualidade. Estão preservados vários elementos estilísticos que já se
tornaram marcas de Iñárritu: sua câmara andante, contemplativa e participativa,
o estreitamento entre civilização e barbárie, o limite entre vida e morte, o
contato com o etéreo e, mais do que tudo, o animalesco instinto de
sobrevivência do bicho homem.
Com esse suco, o diretor cria um western
estilizado em que a carga emocional é permanente, mas muito bem conduzida.
Diferentemente de outros filmes seus, em “O Regresso” Iñárritu, tão louvado
pela linguagem inovadora, vale-se sem embaraço de uma narrativa clássica. E não
poderia ter sido a melhor escolha, pois o enredo se presta a isso. Neste caso,
a estrutura tradicional do cinema preenche o enredo, prescindindo da
dificultação intrínseca à linguagem moderna. Com uma trama em que os
personagens são apresentados de início e partindo de um problema, gera-se uma
“crise” na história que faz com que os caminhos se diluam e se dificultem. Esse
problema de resolução complicada é vencido pouco a pouco pelo personagem
principal, gerando tensão à história, até que este chegue a seu objetivo. Não
muito diferente de milhares de filmes nesta linha, o clímax é uma vingança. A
construção dos personagens também respeita isso: há o herói com mais qualidades
que defeitos e que, embora bruto, é movido por sentimentos genuínos. Em
contrapartida, o vilão é tomado de inveja e maldade, enquanto há aqueles que,
por não penderem nem a um nem a outro, cumprem a função de dar o contrapeso. Como
na vida. Entretanto, até nisso é dado um teor diferenciado. Seguindo a
abordagem realista que permeia toda a história, os índios não são nem os perversos
dos bang-bangs enlatados nem idiotas
indefesos. São, sim, mostrados como a História os deve ver: um bravo povo
dizimado pela gananciosa civilização do homem branco.
É interessante notar a maturidade adquirida por Iñárritu no transcorrer
de sua filmografia. Este começou com três filmes de tramas corais, quase novelas,
bastante alicerçadas no roteiro do conterrâneo Guillermo Arriaga. Em
“Biutiful”, quando tenta emancipar-se do parceiro de escrita, escorrega
principalmente neste quesito, exagerando na dose de dramaticidade. Não repete o
erro e, ainda por cima, realiza o inesperado e ousado “Birdman”, em que
apresenta uma narrativa totalmente contemporânea e igualmente distinta da
utilizada em seus primeiros filmes. Assim, em “O Regresso” Iñárritu pinça com
inteligência feições de todas as suas obras anteriores, porém, sem deixar com
que este perca personalidade. De “Biutiful”, está o aspecto espiritual do
protagonista, que mantém contato constante com a esposa morta e, depois, com o
filho. Até o enquadramento e o conceito fotográfico da tomada da copa de
pinheiros altos com fumaça e cinzar no ar sob a neve é parecida. De “Birdman”,
mesmo sendo o que mais se difere de “O Regresso” entre suas obras, é visível
que a câmera na mão, ligeira mas firme e de ritmo humano, é novamente um
personagem a mais na trama. Da trilogia
inicial, também: no segundo quadrante do filme criam-se quatro histórias
paralelas: Glass tentando voltar; os companheiros já chegados ao forte;
Fitzgerald e um comparsa a caminho; e o grupo de franceses trapaceando os
índios. De “Amores Perros”, em especial, a equiparação bicho x homem é ainda mais clara. Um pouco de cada um dos cinco
anteriores, mas principalmente do próprio “O Regresso”.
A impactante e real cena do ataque do urso.
Outro fator-base da história, também largamente usado no cinema
clássico – mas de fácil ocorrência de erros –, são os elementos da natureza simbolizando
os narrativos. A atmosfera selvagem não é apenas mostrada permanentemente
através da fotografia, inóspita e desafiadora, mas num conceito amplo em que o
homem é apenas mais um componente dentro daquele universo, assim como os animais
e as intensas intempéries. Os sentidos estão todos despertos. Do tato, a
umidade, o frio, o calor, a dor. Da audição, o zumbido do vento, o ofego do
respirar, o estrondo das quedas d’água, os ruídos da mata. Tudo se mistura e se
integra com muita propriedade à edição de som e à trilha sonora, igualmente
inserida com lucidez e sem excessos. Tudo é vivo, o que faz com que tudo seja também
morte. Dessa forma, Iñárritu se utiliza do ambiente natural e dos sentidos não
como adereço, mas numa constante construção dos personagens e da narrativa. Glass,
por exemplo, durante o seu regresso e ainda tentando se recuperar da surra do
urso, põe sobre os ombros uma pele justamente deste grande mamífero, como se
assumisse o papel do bicho. Antes mesmo, quando, muito debilitado, assiste a Fitzgerald
matar seu filho sem poder fazer nada e espuma saliva pela boca, a mesma que o
próprio urso deixa escorrer sobre seu rosto quando o ataca, pois o fazia pelo
mesmo motivo que movia Glass: proteger sua cria. Homem e animal: nenhuma
diferença.
DiCaprio, atuação para Oscar novamente.
Essa cena, aliás, é altamente impactante e merece destaque. Feita com
um urso de verdade, o mais impressionante é que o ator também é de verdade.
Sim, não é um dublê: é o próprio DiCaprio, inteiro dentro do personagem. Mesmo
contracenando com um animal adestrado, ele saiu bem machucado pelo que se tem
notícia. Valeu o esforço. Certamente é das cenas mais célebres dos últimos 20
anos, junto com a chuva de sapos de “Magnólia” ou o acidente no ringue com a
lutadora de “Menina de Ouro”. Daquelas que entra para a seleta lista de cenas
inesquecíveis do cinema mundial. Mas não apenas essa: o filme é uma sucessão de
grandes momentos e sequências, várias daqueles de tirar o espectador da
poltrona, como o ataque indígena do início, a fuga de Glass sobre o cavalo e,
obviamente, o duelo final, cujo requinte da montagem remete ao tempo fílmico de Sergio Leone e John Ford. Chega a ter parecença com o tradicional ritmo de Quentin Tarantino, que o próprio muito se valeu no seu último longa, "Os Oito Odiados", também um western eque guarda-lhe também semelhanças
estéticas. Diferentemente do filme de Tarantino, cujo proveito do máximo das
sequências e dos diálogos o tornam de fato por vezes arrastado, em “O Regresso”,
por conta da conjunção do tom realístico e da estrutura clássica da narrativa,
os tempos de tensão e distensão estão perfeitos. Simbolizam, em última
instância, a luta eterna entre o calor e o frio, entre o fogo e a água, entre o
som e o silêncio, entre o bem e o mal. Entre o espaço e o tempo.
É o próprio tempo que, já fora da tela, poderá aligeirar-se no que
tange a premiar Iñárritu dando-lhe a primazia jamais alcançada por ícones como
William Wyler, Elia Kazan e Billy Wilder: o de levar o Oscar de Diretor em dois
anos seguidos – feito obtido por apenas dois craques desde 1929: John Ford e Joseph
L. Mankiewicz. Ou, contrariamente, o mesmo tempo venha a reconhecer com atraso
DiCaprio, merecedor da estatueta há bastante tempo, seja em filmes que
concorreu (“O Aviador”, “Diamante de Sangue”, "O Lobo de Wall Street") ou não
(“Django Livre”, “J. Edgar”). Além destes, “O Regresso” desponta como favorito
para levar ainda Filme, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição de Som. O
reconhecimento no prêmio Bafta anteviu isso. Afinal, não se trata apenas da
melhor produção de 2016: é, sim, um dos grandes dos últimos 10 ou 15 anos. Pode-se
colocá-lo tranquilamente ao lado de títulos como “A Vida dos Outros”, "Guerra aoTerror" e “Ida”. Daqueles que vem para entrar para a lista dos essenciais do
cinema, porque o tempo (novamente ele) é quem o dignificará para a eternidade.
Ganhe o Oscar ou não.
Um dos maiores realizadores vivos do cinema mundial chega aos 75 anos. Não seria necessariamente motivo de comemoração, afinal, não são poucos cineastas que, longevos, atingiram idades semelhantes nos últimos tempos. Porém, está se falando de Martin Scorsese, o mestre do cinema norte-americano, ao mesmo tempo um de seus principais renovadores e um autor de estilo muito próprio e cativante, que une a cultura pop, visíveis influências escolas de grandes diretores do cinema (Kazan, Kurosawa, Kubrick, Ford, Leone) e apuro técnico muitas vezes inigualável. Pra comemorar os 75 anos de Scorsese, completos no último dia 17, nosso blogger Paulo Moreira escolheu seus 10 filmes preferidos do mestre, cada um com com pequenos comentários:
The fucking best!! Perfeição a cada fotograma. TUDO é bom até a mini-participação do Michael Imperoli dos Sopranos como o cara que servia os drinks dos mafiosos e é morto pelo Joe Pesci na mesa de jogo. Trilha-sonora de luxo!
Scorsese com o elenco de 'Goodfellas'
Como ator em 'Taxi Driver'
2 – TAXI DRIVER(1976)
A paranoia americana e novaiorquina em seu apogeu. Jodie Foster nunca foi melhor do que aqui, assim como De Niro.
3 – CAMINHOS PERIGOSOS("Mean Streets", 1973) Onde o cinema do Scorsese começa a se mostrar. Outra trilha maravilhosa.
4 – DEPOIS DE HORAS ("After Hours", 1985) Kafka em NYC. Precisa dizer mais?? E ainda tem uma cena que tira sarro da minha ídola suprema, Joni Mitchell. Griffin Dunne no maior papel de sua diminuta carreira.
5 – TOURO INDOMÁVEL ("Raging Bull, 1980) Fotografia em P&B pra não chocar com tanto sangue - mal sabia ele que os Sexta-Feiras 13 iriam dar um banho de sangue sem pudor no público. De Niro engorda, emagrece, engorda, emagrece e dá um show. Cathy Moriarty fazendo seu próprio papel de loura platinada entediada. Gostossíssima!!
Com De Niro no ringue-cenário
Outra ponta como ator
6 - O REI DA COMÉDIA ("The King Comedy", 1983) Rupert Pupkin é o fã maluco do Jerry Lewis. De Niro sensacional e a Sandra Bernhardt incrível. Porque esta mulher não deu certo?
7 – CASSINO ("Casino", 1995) "Goodfellas" parte DOIS com a atuação estelar da Sharon Stone fazendo a mais louca das mulheres loucas. De Niro & Pesci se amando e se odiando.
9 – OS INFILTRADOS("The Departed", 2006) Duelo de titãs: DiCaprio & Nicholson mais Martin Sheen, Matt Damon e Mark Wahlberg de troco.
10 – CABO DO MEDO ("Cape Fear", 1991) Lembro quando saiu este filme o Pedro Ernesto - ele mesmo, o "Demóis" - dizia que tinha de trocar o nome pra ME CAGO DE MEDO!! HAHAHAHAH O casting é outra obra: o loucaço Nick Nolte fazendo o papel de bundão; a grande Jessica Lange da esposa mala, a chatinha Juliette Lewis da adolescente putinha e o De Niro, aqui sim como o Diabo, muito melhor do que no chatérrimo "Coração Satânico".
Conversando com De Niro nos bastidores de 'Cabo do Medo'
Afora os vários anos de paixão pelo cinema, de batimentos acelerados por causa de um final emocionante, um plano-sequência bem realizado ou mesmo um início de filme de tirar da poltrona, um dos grandes prazeres é deparar-se com surpresas que te motivam a comentar a respeito. “Pink Flamingos”, de 1971, clássico do cinema underground norte-americano, é um desses motivadores. O longa de John Waters, que completa 50 anos de seu lançamento, é tão escatológico, tão surrealista e ao mesmo tempo tão bem realizado e mordaz em sua capacidade crítica que é impossível passar incólume à obra. Mais do que isso: o quanto os símbolos da contracultura se transmutaram em um quadro muito mais perverso ao qual os Estados Unidos e o mundo se transformaram nestas últimas cinco décadas desde que o filme foi realizado.
Cineasta, ator, escritor, jornalista, artista visual e colecionador de arte, Waters é uma figura ímpar de quem só poderia ter saído algo como “Pink Flamingos”. Expulso do dormitório da Universidade de Nova York por fumar maconha e comparecer em uma única aula, Waters aprendeu sobre cinema com o dono de um laboratório de filmes da cidade natal, Baltimore, e um conhecido, que fornecida equipamentos de emissoras de televisão. Em 1964, o jovem aspirante a diretor lançou a primeira produção da carreira, o provocador curta-metragem “Hag in a Black Leather Jacket”, filme foi feito com apenas 30 dólares e que retrata um casamento entre um homem negro e uma mulher branca realizado por membros da Ku Klux Klan.
Ainda nos anos 60, Waters começou a formar o Dreamland, um grupo de artistas e performers atípicos interessados em dar vida às narrativas nada convencionais do diretor. Entre as figuras do seleto elenco, estava Harris Milstead, mais conhecido como intérprete de Divine, personagem a qual criaram juntos e que redefiniu o visual da drag queen. Sobrancelha arqueadas, delineados grossos e sombras coloridas que se estendem até o topo da cabeça quase careca, cabelos loiros e compridos que preenchem a outra metade, brincos brilhantes e um vestido vermelho ajustado ao corpo acima do peso considerado padrão pela sociedade. Sim: fora do padrão vigente e uma quebra, inclusive, da imagem Miss América que as drags ansiavam. Waters dizia, assim, que na sociedade moderna, nada é perfeito. Longe disso.
Deboche anti-cênico
“Pink Flamingos” tem muito de Luis Buñuel. Sem o charme do cinema do espanhol, já que a intenção não é essa mesmo. Mas noutras coisas, sim. Quando se fala em surrealismo no cinema a referência óbvia é Buñuel. Desde os pioneiros “Um Cão Andaluz” e “A Era do Ouro” (1928 e 1930, respectivamente), passando por alguns dos seus títulos mexicanos (“O Anjo Exterminador”, “Simão do Deserto”, “O Alucinado”) até os maduros da última fase na França (leia-se “A Via Láctea”, “O Fantasma da Liberdade”), toda sua obra é fortemente impregnada desta visão de mundo tão fora do real, que, por meio da exposição do absurdo, nos traz racionalmente para a realidade.
A turminha trash do subversivo filme de Waters
Um fator que contribui para esse universo é, além dos roteiros de cuidado literário, do refinamento da fotografia e do enquadramento e do olhar crítico e cruel de Buñuel sobre a sociedade moderna, a forma anti-cênica na qual dirigia os atores. Há em quase todos os seus filmes, um artificialismo dos atores em cena que reforça a carga de abstração do conteúdo e, por consequência, do não-realismo do discurso.
Essa proposital falsidade, sentida nas falas, nos gestos e nos diversos elementos físicos da cena, chega ao tom de deboche, algo que inspira “Pink Flamingos”, dominando todo seu elenco. O “sarro surreal” já começa pelo enredo: o filme conta a história de Divine, um travesti que orgulhosamente ostenta o título de ser mais pervertido do mundo. Um invejoso casal, porém, concatena um plano para tirar-lhe essa coroa. A monstruosa fêmea descobre o plano e faz de tudo para manter seu posto, sem, para isso, poupar nenhum tipo de escatologia ou repugnância.
Saco cheio
Existem obras que não poderiam ser geradas não fosse na época em que surgiram. Caso contrário, corriam o risco de não ser compreendida, o que acontece bastante com as visionárias, ou de ser tachada de tardia, quando lançada depois de já existir um marco anterior sobre aquele tema. Mas tem aquelas que, bum! Acertam na mosca. “Pink Flamingos” se enquadra nessa estirpe.
Waters: gênio do lixo
O cenário é a mesma Baltimore natal de Waters, nordeste dos Estados Unidos, início dos anos 70. Desde fim da Segunda Guerra, a sociedade norte-americana enriquecera, financiara o reerguimento da Europa, estabelecera seu cinema como maior espetáculo do mundo, gerara alguns dos maiores gênios da música com seu jazz. Mas, em contrapartida, passara por uma Crise dos Mísseis, vira um presidente ser assassinado em praça pública, perdera uma guerra para os coreanos e estava levando uma saraivada dos descalçados vietnamitas naquele momento. A “América” era um deboche.
O jovem americano urbano da época, de saco cheio com o establishment e com o mentiroso american way of life, passou a externar o desgosto com isso tudo através de manifestações artísticas, fosse em música, literatura, teatro ou cinema – às vezes, tudo ao mesmo tempo. Nascia o punk. Um desses talentos revoltosos era o cínico e picante John Waters, senhor de uma elegância quase lordesca e de uma mente tão perversa quanto criativa. “Pink Flamingos”, seu sétimo longa, insere-se no contexto do punk, movimento que, àquelas alturas, se engendrava na Big Apple e estava prestes a atravessar o Atlântico em direção a Londres, onde explodiria em 1975.
Embora não pertencente a este grupo, é estreita a relação de Waters com o punk. Sua abordagem sarcástica – a qual se viria inclusive em musicais, como o (off)Off-Brodway “Hairspray”, seu filme de maior sucesso, e “Cry Baby”, com o astro Johnny Depp – já nos anos 60 influenciaria cabeças como Paul Morrissey e John Vaccaro, estes dois ligados ao teatro e ao cinema e bastante atuantes na cena punk nova-iorquina.
A divina nojenta
Tanto “Pink Flamingos” quanto os outros longas no qual o ator Harris Milstead encarnara o travesti Divine expressam uma profunda crítica à sociedade americana. Personagem-símbolo da obra de Waters, Divine serve como corpo (e que corpo: 150 kg) para a denúncia à moral yankee. Porém, ao contrário da visão moralista de “O Sol é Para Todos”, de Robert Mulligan, ou mesmo do olhar realista das classes baixas dos dramas de Elia Kazan dos anos 50, o cinema americano nunca tinha visto um caldeirão de agressões e acusações tão intenso. E, bem ao estilo punk, cínico e descrente, como se soubesse da importância do que está falando, mas achando que não vai servir para nada.
“Pink Flamingos” é um festival de bizarrice. A saber: venda de bebês, seqüestro, inseminação e cárcere de mulheres férteis (para depois, claro, vender os bebês), sexo com galinhas (não, não é um homem transando com a galinha: é um casal transando com a galinha no meio...) e mais contorcionismo anal, canibalismo, exibicionismo hermafrodita e por aí vai. Uma das cenas mais célebres, no entanto, recebeu, assim como a da Batalha da Escadaria de Odessa (de “O Encouraçado Potemkin”) ou a Cena do Chuveiro (de “Psicose”), até um título: Sorriso de Merda. Nesta, Divine come, na frente do espectador, as fezes de um cachorro – e ainda solta um até divertido sorriso para a câmera.
"Eat shit": Divine em uma das cenas mais grotescas da história do cinema
Porém, se comparado com a loucura da sociedade americana, nada é pesado. Waters e os punks da época pareciam pressentir que aquele sistema nuclear da família, que a Igreja e o Estado estavam indo para o ralo, e que o final do século XX só guardava pioras. A violência da sociedade, vestida no filme de escárnio, parecem ter antevisto esse desregulamento do povo norte-americano, que quase todas as semanas enchem os noticiários com assassinatos em série em escolas e que elegem presidentes genocidas como Trump e Bush. No entanto, um dos elementos que condensam todas as ideias de ataque social que “Pink Flamingos” expõe com tamanha ironia é o do canibalismo. A cena em que Divine e sua família, ao invés de fugir de policiais que os atacavam, os comeram, é sintomática e metaforicamente profética.
O fato é que, passadas cinco décadas da realização de “Pink...”, sua atualidade se muta. O cenário político e social dos Estados Unidos transformou-se muito de lá para cá... ou nem tanto. Se àquela época a Guerra do Vietnã ainda atormentava a consciência norte-americana, a natureza bélica dos compatriotas de Waters manteve-se, menor ou maiormente, em todos - sem exceção - os governos que se sucederam ao traumático Nixon de então. Biden, no começo de caminhada, parece claramente optar pelo diálogo, mas nada impedirá que a máquina de guerra ianque haja se necessário à sua revelia - ou, pior, "por força maior" literalmente. No fim das contas, o povo mais rico do mundo, o exemplo para outras nações, o líder das ações políticas globais, aquele que se autoproclama afetivamente capaz e forte é, justamente, o que mais contraria tudo isso. Quão surreal é o cenário pós-Torres Gêmeas de multidões de refugiados. De crescimento abissal da pobreza extrema e de novos bilionários. De ascensão da extrema-direita e namoro com o fascismo. Nem uma mente subversiva e criativa com a de Waters imaginaria que as coisas fosse se configurar desse jeito. Acostumamo-nos com o surrealismo da vida.