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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Chico Science & Nação Zumbi - "Afrociberdelia" (1996)




"Afrociberdelia de África,
o ponto de fusão do maracatu,
da cibernética e da psicodelia.
Afrociberdelia é um comportamento,
é um estado de espírito, é uma ficção,
é a continuação de 'Da Lama Ao Casos'.
Afrociberdelia é tudo isso. Que mais?
É o nosso novo disco."
Chico Science





"Da Lama ao Caos"  de 1994 já havia sido uma sensação, algo impressionante, incrível, notável, "Afrociberdelia" (1996), seu sucessor era a lapidação perfeita da ideia do anterior.
Então com mais tranquilidade,maturidade, liberdade e autonomia a Nação Zumbi liderada por sua cabeça pensante Chico Science ia adiante nos conceitos e princípios de sua música. Balanço, funk, peso, regionalismo, tecnologia eram levados um passo adiante no novo álbum. A banda desta vez mais livre e com crédito da gravadora abusava dos samples e dos recursos de estúdio mas de uma maneira muito sóbria e inteligente, sem fazer com que seu som se tornasse meramente um monte de colagens sem personalidade. "Afrociberdelia" como o nome, em cada um de seus radicais, tenta sugerir une a africanidade musical, a cibernética, o espaço, o futuro e as sensações sonoras possíveis de mexer com a mente.
E nesse emaranhado de música, folclore, tradição e tecnologia, o computador da Nação Zumbi dá o 'Enter' e "Afrociberdelia" se inicializa com Mateus, personagem do maracatu que apresenta o disco: Uma breve vinheta de introdução que parece já vir disposta a derrubar tudo com uma guitarra ruidosa e pesada, disparada à ordem do verso "Eu vim com a Nação Zumbi/ ao seu ouvido falar" chamada "Mateus Enter" começa a dar o recado encaminhar um grande disco.
Quase sem pausa, praticamente emendada, "Cidadão do Mundo" quebra a violência sonora com um funk cadenciado, de ritmo gostoso extremamente bem produzido, cheio de variações rítmicas e alternativas sonoras.
A ótima "Etnia", numa das principais características da banda mescla peso com a brasilidade de forma brilhante, entremeada por samples espertíssimos e bem sacados.
"Macô", com participação de Gilberto Gil, uma das tradicionais crônicas urbanas da turma de Chico Science, foi na verdade, minha primeira mostra do então futuro trabalho numa apresentação no Vídeo Music Awards da MTV Brasil com a presença de Gil no palco, á deixando-me ótima impressão e expectativa desde então. Uma daquelas tradicionais crônicas urbanas e de costumes das áreas pobres de Recife que Chico Science e sua turma tornaram tão características em pouco tempo, embalada por um ritmo extremamente convidativo e com um toque valioso da musicalidade de Gilberto Gil. Uma das melhores do álbum.
Por mais qualidades que tenha a original de Jorge Mautner, "Maracatu Atômico" ganhava sua versão definitiva nas mãos da Nação Zumbi, nume releitura inteligentíssima de alta sensibilidade musical, que transformava, por exemplo, o violino de Mautner num refrão pop altamente sonoro e contagiante, isso sem falar que o título parece ter sido feito sob encomenda para uma grupo musical que funde ritmos regionais com tecnologia. A gravadora enfiou no disco e goela abaixo da banda três remixes de gosto duvidoso e que, mais do que isso, comprometiam um pouco a ideia de álbum, o formato e o conceito, mas a gravação original, a pretendida pela banda, a do disco mesmo é um primor e uma das melhores coisas que fizeram, ouso dizer até, respeitosamente, que, de tão perfeita "Maracatu Atômico" passou a ser mais de Chico Science do que de Jorge Mautner.
Outra das melhores do disco e da banda e que igualmente obteve boa resposta comercial e de execução pública é a embalada "Manguetown", composição brilhante de cabo a rabo, desde o conceito, a letra sobre os catadores de caranguejo nos mangues imundos, a base de baixo, a percussão mais requintada, a guitarra discreta mas eficiente, os samples, o refrão, tudo! Sonzaço!
A segue "Um Satélite na Cabeça" com sua guitarra repetida e agressiva; "Baião Ambiental', mesmo guardando características do ritmo que lhe dá nome, é mais um ponto de umbanda pontuado por um baixo distorcido. Genial!
Provavelmente a mais violenta do disco, em todos os sentidos, "Sangue de Bairro" é um metal impiedoso em que visceralmente Chico enumera os integrantes do grupo de Lampião e descreve de forma cinematográfica sua decapitação ("Quando degolaram minha cabeça passei mais de dois minutos vendo meu corpo tremendo")
Depois da porradaria, a vinheta "Interlude Zumbi" com sua profusão de berimbaus, tocados e sampleados encaminha um momento mais lento do disco com a agradável "Amor de Muito" e a boa "Crianças de Domingo" do ex-Fellini, Cadão Volapato, que faz menção ao belíssimo filme do mesmo nome, dirigido pelo filho de Ingmar Bergman;
"Samidarish" que seria o final do álbum segundo a banda, traz um instrumental psicodélico de tons orientais com uma guitarra viajante e no final um curto segmento onde Chico declama versos sobre uma batida tímida.
Tirando as versões de "Maracatu Atômico" que vinham depois, ali acabava um dos álbuns mais importantes da música brasileira. Uma das últimas vezes que se fez algo realmente relevante, criativo e original no Brasil. Nós brasileiros temos na maioria das vezes a tendência de subestimar o que se produz aqui e nessa síndrome de vira-lata não conseguimos enxergar muitas vezes a extensão de uma obra como esta. O que Chico Science e a Nação Zumbi faziam naquele momento era talvez o que de mais criativo e inovador houvesse na música mundial mas o ranço tupiniquim não permite que se veja e se reconheça algo assim.
Infelizmente a trajetória da banda com Chico Science que era inegavelmente o cérebro eletrônico do projeto foi abreviada com um acidente automobilístico e, com ele, a banda produziu apenas dois álbuns. Mesmo com os demais integrantes tendo continuado e tendo feito bons trabalhos depois, fica evidente que a genialidade, a visão, a ousadia de Chico fazem falta e mesmo o melhor da Nação Zumbi sem ele, não chega nem perto do que eles fizeram e de onde poderiam chegar. A vantagem, se é que se pode ver pelo lado bom, é que em pouco tempo de vida Chico Science nos proporcionou nada mais nada menos do que duas das maiores obras do rock nacional... e internacional, por que não?

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FAIXAS:
1. Mateus Enter (Chico Science & Nação Zumbi)
2. O Cidadão do Mundo (Chico Science/ Nação Zumbi/ Eduardo BID)
3. Etnia (Chico Science/ Lucio Maia)
4. Quilombo Groove (instrumental)
5. Macô (Chico Science/ Jorge du Peixe/ Eduardo BID)
6. Um Passeio no Mundo Livre (Chico Science & Nação Zumbi)
7. Samba do lado (Chico Science & Nação Zumbi)
8. Maracatu Atômico (Jorge Mautner / Nelson Jacobina)
9. O Encontro de Issac Assimov com Santos Dumond no céu (Chico Science / Jorge Du Peixe/ H.D. Mabuse)
10. Corpo de Lama (Chico Science / Jorge Du Peixe/ Lucio Maia / Dengue)
11. Sobremesa (Chico Science & Nação Zumbi / Renato L.)
12. Manguetown (Chico Science / Lucio Maia / Dengue)
13. Um satélite na cabeça (Chico Science & Nação Zumbi)
14. Baião Ambiental (instrumental)
15. Sangue de Bairro (Chico Science & Nação Zumbi)
16. Enquanto o Mundo explode (Chico Science & Nação Zumbi)
17. Interlude Zumbi (Chico Science / Gilmar Bolla 8 / Gira / Toca Ogan)
18. Criança de Domingo (Cadão Volpato / Ricardo Salvagni)
19. Amor de Muito (Chico Science & Nação Zumbi)
20. Samidarish (instrumental)
21. Maracatu Atômico (Atomic Version)
22. Maracatu Atômico(Ragga Mix Version)
23. Maracatu Atômico (Trip Hop)


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Ouça:
Chico Science & Nação Zumbi Afrociberdelia



Cly Reis

sexta-feira, 12 de maio de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 2)

 

O novíssimo "Marte Um" já figurando
na lista dos melhores da história
A lista dos 110 filmes dos 110 anos de cinema brasileiro continua. Nesta segunda parte, na ordem decrescente iniciada da última posição, são mais 20 títulos, e a diversidade e criatividade típicas do cinema nacional se fazem cada vez mais presentes. Obras marcantes da retomada, como “Bicho de Sete Cabeças” e “O Invasor” convivem com clássicos combativos do cinema novo (“O Desafio”), documentários de décadas distintas (“Partido Alto”, dos anos 70, e “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto” e “O Fim e o Princípio”, anos 2010) e longas recentíssimos. Entre estes, “Marte Um”, o mais novo de toda a lista, que precisou de menos de um ano de lançamento para carimbar seu lugar ao lado de consagradas chanchadas ou de produções inovadoras, tal o experimental "A Margem" e “A Velha a Fiar”, primeiro “videoclipe” do Brasil em que o tarimbado Humberto Mauro ilustra a canção popular de mesmo nome do Trio Irakitã.

A ausência, pelo menos neste novo recorte, são os filmes dos anos 80, que geralmente pipocam entre os escolhidos, mas que certamente virão mais adiante. Interessante perceber que cineastas mundialmente consagrados como Babenco, Karim e Coutinho se emparelham com novos realizadores como os jovens Gabriel Martins e Gustavo Pizzi. Tradição e renovação. Fiquemos, então, com mais uma parte da listagem que a gente traz como uma das celebrações pelos 15 anos do Clyblog.

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90.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, Walter Avancini (1978)

Possivelmente, em algum momento o brasileiro viu uma cena em que Paulo Gracindo bebe um martelinho num boteco pensando que fosse cachaça e, indignado com a enganação, grita: “Água!”. A palavra ecoa enquanto a imagem congela e uma música brasileiríssima divina começa a tocar anunciando os créditos iniciais. Tanto quanto uma cena como a da nudez na praia de Norma Bengell em “Os Cafajestes” ou da operação do Bope no baile funk em “Tropa de Elite”, este começo do “teledrama” baseado no conto de Jorge Amado tem ainda a primazia de ser uma obra feita para a televisão, o que a coloca em tese em inferioridade diante do comum 35mm do cinema. Mas a questão instrumental não interfere neste média absolutamente brilhante dirigido por Avancini. Atuações e diálogos memoráveis, arte primorosa, ritmo perfeito, figurino geniais de Carybé, trilha magnífica de Dori Caymmi. Não à toa deu um dos Emmy conquistados pela TV Globo.


89. “O Invasor”, de Beto Brant (2001) 
88. “O Desafio”, Paulo César Saraceni (1965) 
87. “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor d'Alincourt (2013)
86. “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa, Raphael Alvarez (2005)
85. “Dois Filhos de Francisco”, Breno Silveira (2005)


84, “Partido Alto”, Leon Hirszman (1976-82)
83. “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (2000)
82. “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (2001) 
81. “O Homem do Sputnik”, Carlos Manga (1959)

80.
“Bicho de Sete Cabeças”, Laís Bodanzky (2000)

Da leva do início dos 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. Símbolo desta fase, “Bicho...” é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Ainda, está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.


79. “Marte Um”, Gabriel Martins (2022)
78. “Madame Satã”, de Karim Ainouz (2002) 
77. “Babilônia 2000”, Eduardo Coutinho (2001)
76. “Benzinho”, Gustavo Pizzi (2018)
75. “A Margem”, Ozualdo Candeias (1967)


74. “Estômago”, de Marcos Jorge (2007) 
73. “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco (1976) 
72. “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2006)
71. “A Velha a Fiar”, Humberto Mauro (1964)


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 23 de março de 2012

Gilberto Gil - "Refazenda" (1975)


"Renda tecida com fios do milho, milho ouro, milho sol, (...) Esperança transmutada em verde de verdade, verdes notas mágicas, o encanto da fazenda nova. Reencantação. A árvore da trindade: abacate, tomate, mamão. Árvore milagrosa: um fruto diferente a cada estação. (...) Refazenda segue sendo a vontade de Deus para cada estação."
Gilberto Gil,
explicando o conceito do disco
em 1975


Demorou pra aparecer um Gil por aqui. já teve A.F. do Caetano, do Chico, do Jorge, do João, dos Tons (o o Jobim) e nada do ex-ministro. E não foi porque merecesse menos que qualquer um desses outros. Pelo contrário. É exatamente por ter uma obra tão qualificada, com tantos discos interessantes que foi difícil apontar um pra ser seu primeiro Fundamental aqui do blog.
Depois de muito avaliar, ouvir, reouvir, trocar uma ideia com o meu irmão e parceiro de blog, o Daniel Rodrigues, cheguei à conclusão que o grande disco de Gilberto Gil é mesmo o seu "Refazenda" de 1975, parte integrante da trilogia (de quatro discos) completada por "Refavela", "Realce" e "Refestança".
Em "Refazenda", Gil penetra no coração do Brasil para compor uma obra cheia de sensibilidade, inspiração e riqueza sonora. Com composições que remetem ao homem do campo, à natureza, ao sertenejo, a temas rurais, ritmos regionais e paisagens naturais, o baiano entrega-nos algumas de suas canções mais marcantes.
Já na faixa que dá nome ao disco, a primorosa "Refazenda", de belíssimos arranjos de cordas e flauta, se utiliza da figura dos frutos, das árvores, do verde para falar sobre simplicidade, sobre o tempo das coisas, sua natureza e o amadurecimento que tudo requer.
Os temas naturais aparecem também na singela "Tenho Sede" de Dominguinhos, canção belíssima que chove, brota, escurece e emociona. Gil trata do homem simples na divertida "Jeca Total", uma canção aparentemente primária, com uma tuba minimalista, onde provoca sobre quem é verdadeiramente caipira, com alguns pontos que nos fazem pensar sobre o fato de um homem como Tiririca estar no Congresso Nacional; e vai no fundo da alma de um homem do campo deslocado na cidade grande, na emocionante "Lamento Sertanejo", minha preferida do disco, uma canção acústica chorosa de interpretação comovente. Ainda funde fauna brasileira, com rock e cultura oriental em "O Rouxinol", parceria com Jorge Mautner e visita novamente o oriente, outro de seus interesses culturais-musicais, em "Meditação", canção breve, curta com sonoridade que alude à música japonesa.
Tem ainda o chorinho "Pai e Mãe; a exaltação do povo e da alegria na ótima "Ê, Povo, ê"; a introspectiva "Retiros Espirituais" com referência a "Banho-de-Lua" consagrada no Brasil na voz de Celly Campelo ( "luar tão cândido" ); e "Essa é Pra Tocar no Rádio", um jazz experimental e acelerado, que embora interessante, perde para a versão definitiva registrada em seu disco em parceria com Jorge Ben.
Num disco tão interiorizado, nada mais correto que o artista olhar para dentro de si mesmo e é o que acontece em "Ela", faixa que abre o disco onde Gilberto Gil examina a própria alma, abre o coração e declara seu amor por sua maior musa, a música, num samba-rock embalado absolutamente saboroso
E temos enfim um Gilberto Gil nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Agora, como eu disse, com uma obra tão tão significativa  e interessante, é certo que outros aparecerão por aqui. Este foi só para abrir a porteira.
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FAIXAS:
1.Ela (Gilberto Gil)
2.Tenho Sede (Dominguinhos/Anastácia)
3.Refazenda (Gilberto Gil)
4.Pai e Mãe (Gilberto Gil)
5.Jeca Total (Gilberto Gil)
6.Esse é Pra Tocar no Rádio (Gilberto Gil)
7.Ê, povo, ê (Gilberto Gil)
8.Retiros Espirituais (Gilberto Gil)
9.O Rouxinol (Gilberto Gil/Jorge Mautner)
10.Lamento Sertanejo (Gilberto Gil/Dominguinhos)
11.Meditação (Gilberto Gil)

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Ouça:
Gilberto Gil Refazenda


Cly Reis

sexta-feira, 24 de março de 2017

Os meus 20 melhores documentários brasileiros (e os 20 da Abracine também)



Coutinho e seu "Cabra Marcado para Morrer", 1º lugar
absoluto entre os docs brasileiros
Venho pensando há meses (quiçá, anos) em fazer alguma lista para o blog sobre documentários brasileiros. Além de gostar muito do que é produzido no gênero no Brasil, principalmente a partir da década de 60, chama-me a atenção não apenas a variedade de temas, estéticas, narrativas e estilos – coisa que um país como o Brasil é capaz de fornecer mais do que muitos outros – como também a riqueza de recortes possíveis de serem feitos. Eu fiquei naquelas de montar uma lista dos “meus melhores documentários dos anos 2000”, “melhores documentários brasileiros sobre música”, “melhores cinebiografias”, melhor isso, melhor aquilo e... nunca pus no papel de fato.

Tanto posterguei que, com toda a sumidade que lhe é conferida, a Abracine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema, enfim, listou os 100 melhores documentários brasileiros de todos os tempos. A mesma comporá um livro que a entidade lançará ainda este ano a exemplo do já referencial “100 Melhores Filmes Brasileiros”, editado em 2016. Fim de papo.

Nem tão "fim" assim para um cinéfilo que adora criar as suas próprias listas como eu. Muito bem escolhida, a seleção da Abracine acerta praticamente em tudo. Vários eu, confesso, não assisti, e sei que são lacunas importantes. Mas posso assegurar, igualmente, de que com aqueles que vi consigo satisfatoriamente montar também uma lista representativa. Por que, agora, claro, o desafio ficou óbvio: expor os meus melhores de todos os tempos. Tomei vergonha na cara, trocando em miúdos. Entretanto, para não encompridar demasiadamente, faço aqui uma lista dos meus 20 preferidos e não da centena cheia embora o pudesse, destacando, a título de comparação e informação, os 20 primeiros da listagem da associação.

Hirszman aparece com 3 títulos
Interessante vislumbrar que há vários títulos de 2000 em diante (50% dos meus), mostrando o quanto o gênero documentário evoluiu no Brasil, tornando-se, aliás, uma das principais fontes do cinema brasileiro pós-Retomada. A temática social e política, não raro pela via da corajosa denúncia, é massiva, norte para 18 dos 34 títulos citados ao todo. Outro ponto legal de se constatar é a presença de grandes cineastas, como Eduardo Coutinho, documentarista por natureza e dono do 1º lugar em ambas, mas também de Glauber RochaLeon Hirzsman, Joaquim Pedro de Andrade e João Batista de Andrade, diretores que sempre se impuseram, além dos seus filmes de ficção, o ofício quase cívico do registro documental.

Ainda, vale a menção ao gaúcho Jorge Furtado, que aparece tanto em minha lista quanto na outra com o referencial “Ilha das Flores”, curta presente em diferentes rankings em todo o mundo, como no livro “1001 Filmes para se Assistir Antes de Morrer” ou entre os próprios 100 melhores filmes brasileiros pela Abracine. Dele, ainda seleciono “Esta não É a sua Vida”, que pela associação ficou em 87º lugar.

Os meus selecionados:
1 – “Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984)
2 – “Edifício Master”, Eduardo Coutinho (2002)
3 – “Estamira”, Marcos Prado (2006)
4 – “Santiago”, João Moreira Salles (2007)
5 – “Garrincha, Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
6 – “Di”, Glauber Rocha (1977)


7 – “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)
8 – “Aruanda”, Linduarte Moreira (1960)
9 - “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2005)
10 – “Janelas da Alma”, João Jardim e Walter Carvalho (2001)
11 – “Partido Alto”, Leon Hirszman (1982)
12 – “Vlado – 30 Anos Depois”, Joaquim Batista de Andrade (2005)
13 – “O Mistério do Samba”, Carolina Jabor e Lula Buarque (2008)

Filme sobre a Velha Guarda
da Portela: preferência minha


















14 - “Iracema – Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1976)
15 - “Esta não é a Sua Vida”, Jorge Furtado (1991)
16 - “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, Paulo Sacramento (2002)
17 – “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor D´Alincourt (2013)
18 - “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2010)
19 – “Greve!”, João Batista de Andrade (1979)
20 – “Cidadão Boilensen”, Chaim Litewski (2009) e “Ônibus 174”, José Padilha (2002)

Os selecionados da Abracine:
1. “Cabra Marcado para Morrer”
2. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
3. “Santiago”
4. “Edifício Master”
5. “Serras da Desordem”, de Andrea Tonacci (2006)
6. “Ilha das Flores”


7. “Notícias de uma Guerra Particular”, João Moreira Salles (1999)
8. “Ônibus 174”, José Padilha (2002)
9. “Di”
10. “Aruanda”
11. “O Prisioneiro da Grade de Ferro”
12. “O País de São Saruê”, Vladmir Carvalho (1979)
13. “Viramundo”, Geraldo Sarno (1965)
14. “ABC da Greve”, Leon Hirzsman (1979-80)
15. “Jango”, Sílvio Tendler (1984)
16. “Garrincha, Alegria do Povo”

Clássico de Joaquim Pedro, presente nas duas listas















17. “Imagens do Inconsciente”, Leon Hirszman (1984)
18. Estamira
19. “Santo Forte”, Eduardo Coutinho (1999)
20. Janela da Alma

por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Gal Costa - "Cantar" (1974)


Canto, Recanto

"Gal é uma das grandes
personalidades da nossa história.
As Dunas da Gal, o Vapor Barato, ‘a mulher mais elegante do Brasil’
(no dizer de Danuza Leão na época),
Baby, Divino Maravilhoso, Índia:
todo um mundo brasileiro do qual
não podemos abrir mão
se quisermos ser o que devemos ser."
Caetano Veloso



Caetano Veloso é, como todos sabem, irmão de Maria Bethânia. Mas sua ligação e sinergia musicais com Gal Costa talvez sejam até maiores do que com a cosanguínea. Baiana como ele, poucos anos mais nova mas da mesma geração, foi com Gal que o cantor e compositor gravou seu primeiro disco, “Domingo”, de 1966 – embora o elo, inclusive familiar, já viesse de antes. Além disso, no entanto, foi Gal quem, embarcada com os dois pés no Tropicalismo liderado por ele e Gilberto Gil na segunda metade dos anos 60, manteve acesa a explosão transgressora e criativa aberta pelos tropicalistas quando do exílio da dupla em Londres de 1969 a 1972. Ao contrário de Bethânia – que sempre soube seguir o seu caminho fugindo ao máximo das rotulações e estereótipos –, Gal por escolha não só segurou a barra enquanto única remanescente da formação original da Tropicália durante os anos de chumbo da Ditadura como, mais ainda, avançou a MPB em todos os sentidos, da confluência de estilos e referências (objetivo-fim tropicalista) a, obviamente, sua própria arte maior: a técnica do canto.

Não se começou a falar em Caetano Veloso num texto sobre Gal Costa à toa. Como aconteceria no espetacular "Recanto" – disco de 2012 cujo diálogo estreito com este forma um díptico de 38 anos de ínterim –, é o quase-irmão Caetano quem dá o tom do “cantar” de Gal. Produzido por ele em parceria com outro mestre da retaguarda tropicalista, Perinho Albuquerque, é um disco totalmente maduro da talentosa cantora, já deixando a extravagante e raivosa Gal do início da Tropicália um pouco para trás. Aqui, ela está dona de si, de seu conceito como artista e do posto de maior cantora de seu tempo ao lado de Elis Regina, também no auge à época. E Caetano, dirigindo um projeto para ela pela primeira vez (até então haviam exercido tal função Wally Salomão, Jards MacaléRogério Duprat e Guilherme Araújo), é um pouco responsável por esse amadurecimento.

Desfilam pelo disco músicos de primeira linha, como o genial João Donato, o mestre da raça Gil, o “Clube da Esquina” Noveli, o baterista Tuty Moreno e, claro, os próprios Perinho e Caetano. O resultado é um álbum resplandecente, florido como sugere a belíssima arte forjada pelo artista visual Rogério Duarte. A contestação de “Divino, maravilhoso”, a fúria de “Eu sou terrível”, a psicodelia de “Dê um role” ou a estridência de “Meu nome é Gal”, agora, refazem-se, remolduram-se. Estão ali, porém sob outro olhar. Um sopro de pólen colorido no negror dos anos de chumbo.

O começo não é nem um desabroche: é a flor já em pleno estado de vida. “Barato Total”, hit do álbum, é das melhores músicas de Gilberto Gil cujo presente não se encerra somente no fato de este tê-la dado especialmente para a amiga. Gil também empunha o violão durante a faixa, e Gil ao violão sabe-se como é, né? Além de sua altíssima técnica que une a batida de João Gilberto ao ritmo frenético do rock – e mais o congado, o maxixe, o jazz e o baião –, o grande compositor simplesmente arrasa nas cordas, sustentando a melodia num toque swingado e cheio. É tão intenso que, na regravação feita por Gal com a Nação Zumbi, em 2004 (também produzida por Caetano), bastou à banda traduzir para os tambores pernambucanos a batida de violão de Gil. A letra traz, já na abertura do disco, a mesma ideia de ressaltar a beleza da vida para além de toda a situação política e moral do país: “Quando a gente tá contente/ Tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz”. E finaliza, numa exclamação: “Quando a gente tá contente/ Nem pensar que está contente a gente quer/ Nem pensar a gente quer, a gente quer/ A gente quer, a gente quer é viver”.

Como todo grande disco, “Cantar” larga com uma de encher os olhos. O que virá a seguir superará ou se equiparará? Pois o lirismo da cantora estava realmente germinado. Ela arrebenta na interpretação da clássica “A Rã”. É a primeira das quatro de autoria de Caetano no disco, e justo uma em parceria com outro personagem fundamental desta obra: João Donato. Ele, além desta, assina o arranjo da canção de ninar que finaliza o disco, “Chululu” (de autoria da mãe de Gal, Mariah Costa, que costumava cantá-la para a filha na infância), e de outras duas: “Até quem Sabe”, só piano e voz, lindíssima e altamente erudita; e “Flor de Maracujá”, um soul funkeado ao estilo de “A Bed Donato” (referencial álbum gravado pelo acreano nos Estados Unidos em 1970). Esta, última do lado A do vinil, dialoga maravilhosamente com a primeira da segunda face: “Flor do Cerrado”, que, assim como “Barato Total” é das melhores composições de Gil não gravadas por si próprio, também é das mais belas de Caetano nunca registradas por ele mesmo. Letra de poesia caetaneana, vocal cristalino de Gal e uma rica incursão do autor contracantando “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinícius. No refrão, ainda, Gal, afinadíssima, executa um portamento de notas muito bonito e técnico, subindo gradualmente até finalizar lá em cima da escala na última palavra: “Mas da próxima vez que eu for a Brasília/ Eu trago uma flor do cerrado pra você”.

Antes, entretanto, o primeiro lado ainda guarda duas ótimas faixas. Lua, lua, lua, lua”, mais uma de Caê, que, junto com outra que vem mais adiante, “Joia” (um espetacular trabalho de percussões africanas e piano monotonal que antecipa trabalhos de Caetano de 1997 e 2000, “Livro” e “Noites do Norte”, respectivamente, quando ele aproxima a vanguarda erudita às raízes da África), foram gravadas por Gal um ano antes do próprio usá-las no seu disco – por sinal, intitulado “Joia”. E diferentemente da versão barroca que gravaria para si, “Lua...” traz um elemento interessantíssimo: sob a voz dela, Caetano exercita uma espécie de beat-box, expediente que o mesmo se valera na concepção da trilha sonora do filme “São Bernardo”, dois anos antes, encomendada pelo cineasta Leon Hirszman a ele quando ainda no exílio.

A outra maravilha que completa a primeira parte de “Cantar” é “Canção que morre no ar”, clássico da bossa-nova de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, somente com a voz e um apaixonante e ornado arranjo de cordas de Perinho e regência de Mário Tavares. Aqui, Gal encarna Billi Holliday acompanhada da orquestra de Ray Ellis em "Lady in Satin"; Ella Fitzgerald conduzida pela batuta de Nelson Riddle em “Sings the George and Ira Gershwin Songbook”; ou Dalva de Oliveira com o conjunto sinfônico de Roberto Inglez. Gal está jazzística e lírica em seu timbre de soprano. A letra faz uma fusão entre as atmosferas lunar e flórea do disco como um todo: “O mundo é sempre amor/ O pranto que desliza/ No seio de uma flor/ É a luz lá do céu”.

Também síntese do álbum é “O Céu e o Som”, do cantor, compositor e poeta Péricles Cavalcanti. Ritmada e gostosa, contrapõe cantos entre ela e um coro masculino (que desconfio seriamente serem Os Golden Boys, embora não haja crédito disso). “Cantar, cantar/ Há uma asa na alma no ar/ Me ensina a cantar, amor”. E, lá pelas tantas, perguntam retoricamente: “Quem foi que disse que a mulher não voa?” Voa, sim.

Tanto voa que, antes de terminar o disco, Gal faz o ouvinte levitar no sensualíssimo jazz “Lágrimas Negras”, composição de Jorge Mautner e Nelson Jacobina. Das melhores do álbum, sua cadência suave remete (e serve muito bem para isso, diga-se de passagem) ao momento de uma transa embalada ao ritmo da guitarra-ponto dedilhada por Perinho. E quando Gal, diz, num compasso hiper sexy: “E você, baby, vai, vem, vai...”, é de arrepiar até o tal “astronauta da saudade” mencionado na letra!

“Cantar” gerou um show que não foi bem recebido pelo público por ser taxado de “muito suave”, contrastando com a imagem forte que a cantora criara a partir do movimento tropicalista. À época, bom que se lembre, artistas de sucesso como ela eram exigidos pela opinião pública burra de permanente e abertamente lutarem contra a Ditadura na concepção de suas obras. Queriam canções de protesto, não arte. Uma bobagem tamanha, uma vez que a premissa do artista é exatamente a liberdade tão desejada por estes que os retalhavam. Afora isso, visto noutro enfoque, há formas distintas de se lutar e se engajar sem necessariamente bater de frente com a força bruta – e sair perdendo, como geralmente acontece. Foi o que Gil e Caetano, enquanto tropicalistas como ela, fizeram a seu modo. E venceram. Hoje, completando 40 anos de seu lançamento, “Cantar” é um trabalho de uma riqueza descomunal que tem ainda muito a se revelar e cuja participação destes protagonistas foi fundamental. Uma flor que não morreu e ainda colore o jardim de quem entende que “o caminho do céu” está “no caminho do som”. Gal nos ensina a cantar e voar.

"Barato Total" - Gal Costa



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FAIXAS:

1. Barato Total (Gilberto Gil) - 3:48
2. A Rã (Caetano Veloso, João Donato) - 3:52
3. Lua, Lua, Lua, Lua (Veloso) - 3:02
4. Canção que Morre no Ar (Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli) - 1:50
5. Flor de Maracujá (Veloso/Lysias Ênio) - 2:56
6. Flor do Cerrado (Veloso – música incidental: “Garota de Ipanema”, Tom/Vinicius) - 3:13
7. Joia (Veloso) - 3:24
8. Até Quem Sabe (Ênio/Donato) - 3:39
9. O Céu e o Som (Péricles Cavalcanti) - 3:00
10. Lágrimas Negras (Jorge Mautner/Nelson Jacobina) - 3:31
11. Chululu (Mariah Costa) - 0:56
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Ouça:








quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Gal Costa - "Recanto" (2012)

Canto. Cantar. Recanto. Recantar

Caetano Veloso lança seu melhor disco desde os anos 70. Ops! Ato falho. Desculpem: não foi ele, e sim a também baiana, também tropicalista, também cantora Gal Costa com o CD “Recanto”, certamente seu melhor trabalho desde “Cantar”, de 1974. Porém, meu engano não foi à toa: assim como o mencionado LP dos anos 70, marcante obra do tropicalismo a qual Caetano dirigira e dera o norte de todo o trabalho, este novo projeto repete a fórmula engendrada pela dupla: Gal pondo seu belo canto a serviço de uma ideia coesa e verdadeira e Caetano com a batuta, produzindo e concebendo.
As semelhanças vão além do formato, uma vez que, a princípio, o colorido e tropical “Cantar” – cujo repertório inclui, entre outros compositores, quatro canções de Caetano –, parece não ter nada a ver com o obscuro e ruidoso “Recanto”, totalmente construído com novas composições do “mano Caetano”. “Recanto Escuro” (assista ao vídeo abaixo), sua mais nova obra-prima – que entra para o time de “Sampa”, “Gema” e “Trilhos Urbanos” – abre o disco dando o tom soturno e introspectivo que perfará boa parte do restante do disco. Uma melodia quase invariável, bela e triste, sem refrão. Seca. Letra de reflexão, de lamento, como que ecoada de um recanto escuro de onde saem confissões vasculhadas na alma tanto dele quanto dela. Mas o que poderia ser feito só ao violão e voz, ganha, no arranjo eletrônico texturado de Kassin, uma cara de peça da vanguarda erudita, um Stockhausen, um Xenakis, um Varèse. Absolutamente genial!
O tom de vanguarda, ora com ares de Velvet Underground, ora Brian Eno, ora Silver Apples, perpassa todo o disco, dando-lhe um caráter moderno e duro, que responde ao estilo introspectivo da maioria de suas faixas, como o rock “Cara do Mundo”, a bossa-modernista “Autotune Auterótico” e a genial eletro-monofonia “Neguinho”, um 9 Inch Nails menos pesado mas tão corrosivo quanto que remete também ao krautrock de Neu! e Faust. Clima sujo que encaixa totalmente com a letra, mordaz e ferina. Caetano solta o verbo com sentenças como: “Neguinho compra 3 TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz”, ou ainda: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo. mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”. No rim.
Belas também a bossa com pitadas eletrônicas, “Mansidão”, a mais “Gal” de todas, e “Segunda”, um xote só ao cello e prato de cozinha, totalmente acústico. Mas outra surpreendente é “Miami Maculelê”, um funk carioca estilizado na qual o ouvido apurado de Caetano consegue extrair uma das coisas que sempre me chamaram atenção neste estilo dito vulgar e pobre musicalmente, que é a intenção de abrasileirar o ritmo estrangeiro. O funk carioca não é só a batida funkeada do rap, pois contém, no repique da batida, uma pitada de samba, o que, nessa salada toda, acaba por remeter aos sons e danças africanos e indígenas da raiz brasileira, uma embolada, um coco, um batuque, um... maculelê.
As referências ao período heróico da MPB não ficam só em Gal, mas em Caetano e na Tropicália como um todo. E é aí que se dão as semelhanças entre o histórico “Cantar” e o atual “Recanto”. Se antes Rogério Duprat ou Guilherme Araújo eram os maestros que davam corpo aos arranjos , agora é o jovem Kassim que destila seus computadores para cumprir esta função. Outra autoreferência está em “Tudo Dói”, que dialoga com “Lindoneia”, do Tropicália 1 (1967) ao transmitir o mesmo sentimento de depressão de uma mulher solitária (não sem querer, “Lindoneia” também tinha sido dada a uma intérprete cantar, Nara Leão).
Venho notando certo furor quanto a este Caetano rocker e tecnológico, que, desta vez, não se concretizaram em críticas, mas em elogios. Um pouco porque, com Gal interpretando tão bem, obviamente, os méritos são muito dela. Porém, novamente parece que Caetano nada de novo contra a corrente, pois os que elogiaram não parecem saber por que o fazem, uma vez que estranham algo que não é de hoje, basta ter um pouquinho de interesse – ou coragem. A parceria com Kassin, por exemplo, vem desde o pouco comentado “Eu não peço desculpa”, dele e de Jorge Mautner (2002). A veia experimental e vanguardista, igualmente, vem desde o concretista “Araçá Azul” (1972) e está claramente em músicas como a parafraseada “Doideca” (brincadeira com o termo “dodeca-fonia”), do CD “Livro” (1997), ou no “Rap Popcreto”, do Tropicália 2 (1993).
O fato é que gostei por demais de “Recanto”. Outro dia, em conversa com outro colaborador deste blog, meu primo Lúcio Agacê, ele me ponderou algo com certa razão. Para ele, o fato de a “finada” Gal voltar dando um salto tão grande diante daquilo que vinha conseguindo produzir se deve exclusivamente a Caetano, alguém que, além de um amigo generoso, é um cara que está sempre se renovando. Concordo se comparado com a fraca Gal que veio degringolado nos anos 80 e se instaurou na mediocridade nos 90. Mas tropicalista é tropicalista. Se compararmos àqueles primeiros idos dela, “Gal” (1969), “Fa-Tal” (1971), “Índia” (1973) e, principalmente, “Cantar”, seu ápice, a musicalidade não está muito diferente. Mais avançada em certos aspectos, menos explosiva do que antes, mais high-tech em texturas; porém a Gal de “Recanto” recupera a Gal daquela época - mesmo com 40 anos de atraso.
Num ano de um ótimo Chico Buarque novo, de um surpreendente Criolo e de um elogiado Lenine, 2012 começa também com uma nova Gal recantando-se. Antes tarde do que nunca.

vídeo de "Recanto Escuro", Gal Costa



Ouça o disco:
Gal Costa Recanto

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Música da Cabeça - Programa #41


O que se faz numa semana em que se comemoram os nascimentos de várias figuras importantes para a música pop, como David Bowie e Elvis Presley? A gente celebra com música, claro! É o que vamos fazer no programa de hoje, às 21h, pela Rádio Elétrica. Do samba-fado de Jorge Mautner ao samba-enredo de João Bosco; do punk-rock de Patti Smith ao pop-rock do Skank. E A gente também repercute o emocionante discurso de Oprah Winfrey na festa do Globo de Ouro no “Música de Fato” e um "Sete-List" que revela a impressionante força de "Sgt Peppers Lonely Hearts Club Band", dos Beatles, 50 anos depois de seu lançamento. Coisa pra caramba, hein? Ouve lá, então. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

"Como Nosso Pais", de Laís Bodanzky (2017)



"Como Nossos Pais", grande vencedor do Festival de Cinema de Gramado, é um filme melhor do que eu apostava que fosse, mas menor do que poderia ser. Na ânsia de abordar o máximo de assuntos pertinentes à condição da mulher na sociedade, a diretora Laís Bodanzky acaba sobrecarregando o próprio filme e endurecendo-o, deixando pouco espaço para  ou para a imaginação e interpretação. Sei que quem vem "apanhando" há tempos tem pressa, tem necessidade de se expressar, de mandar o seu recado da maneira mais clara possível, mas essa literalidade, muitas vezes, sacrifica a poesia e é bom lembrar, cinema é arte. Por outro lado, mesmo um tanto endurecido por essa escolha da diretora, o filme consegue ter um bom ritmo e na maior parte do tempo, mantém-se atraente para o espectador.
No filme, Rosa (Maria Ribeiro) é uma mulher que, como muitas no mundo de hoje, vê-se completamente sufocada e perdida diante de todas as suas atribuições, o que é ainda mais agravado pela total falta de comprometimento do marido, por problemas com a mãe e pelas situações complicadoras do dia a dia que não escolhem hora para aparecer. Maria Ribeiro, conforme já era comentado, está realmente muito bem em seu papel, transmitindo com muita verdade todas as angústias daquela mãe-dona de casa- profissional-cozinheira-chofer de filhos-contadora de histórias-psicóloga-filha-esposa-sonhadora-gente. E aí vai outro mérito à diretora na construção da personagem fazendo com que no início quase a odiemos, tamanha sua irracionalidade, mas que logo venhamos a compreender que aquelas atitudes iniciais refletem seu estado emocional absolutamente no limite. Já Paulo Vilhena, também bastante elogiado no seu papel de Dado, o marido, a mim pareceu-me o mais do mesmo. Gostaria que ele tivesse me surpreendido mas não foi dessa vez. Foi o mesmo surfista de sempre só que desta vez sem prancha. A praia era outra. Eram reservas indígenas mas ele era o mesmo "carinha" lóki de sempre. Pro papel... serviu. Mas gostaria um dia de ver esse ator fazendo algum personagem que não seja ele mesmo.
Jorge Mautner, ao contrário, num papel menor, quase uma participação especial, é um show à parte, esbanjando carisma como o pai de Rosa, artista plástico doidão garantindo as cenas mais gostosas e divertidas do filme.
Embora não confirme o grande filme que prometia entregar, "Como Nossos Pais" é sem dúvida um filme importante no atual contexto e no presente momento de debate da condição da mulher dentro da atual configuração de sociedade na qual vivemos. é uma obra urgente e necessária que suscita uma série de reflexões especialmente por parte de nós, os marmanjos, mas que, não se engane, propõe sim, também bons questionamentos e reavaliações direcionados às mulheres. Talvez por sua relevância neste momento de discussão e afirmação da mulher, independente de ser maravilhosos ou não, "Como Nosso Pais" venha a ser lembrado como um daqueles filmes que marcaram época. Talvez... O tempo dirá.
Rosa tendo que enfrentar, além de todos os problemas "normais"
do dia a dia, situações difíceis com a mãe.


Cly Reis

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

“Imprensa Cantada Segunda Edição: Tribunal do Feicebuqui” – Tom Zé (2013) e “Abraçaço” – Caetano Veloso (2012)



Se para todos os tropicalistas a bossa nova foi o motivo propulsor para que seguissem pelo viés da música, o tropicalismo exerceu este poder de forma ainda mais penetrante no universo pop. Jorge Mautner, o pré-tropicalista igualmente influenciado pelos acordes dissonantes de João Gilberto  pelas harmonias engenhosas de Tom Jobim e pela poesia lírica de Vinícius de Morais, um dia afirmou: “não há possibilidade de escapar do tropicalismo”. Esta frase exaltadora, ainda mais vinda de alguém tão ligado ao movimento, poderia soar exagerada. Mas não é. A Tropicália sempre se mostrou uma corrente musical que, inteligentemente, soube se construir aberta, conectada com a pós-modernidade e sem preconceitos, abarcando todas possíveis e imagináveis referências da arte (música, cinema, artes plásticas, literatura, poesia, teatro) e do contexto sociopolítico, fazendo com isso a mais bem elaborada “geleia geral”, o mais bem acabado “lixo lógico” jamais assemelhado no mundo. Um produto tão abrangente e conceitualmente elaborado que, desde o histórico “Tropicália”, de 1968, que une ópera e Luiz Gonzaga, samba-de-roda e poesia concreta, Beatles  banda marcial, tudo-junto-e-misturado, nunca mais a música brasileira deixou de andar conforme seus passos. No exterior, a ação vanguardista do tropicalismo para com o que é produzido por estrangeiros deu-se de forma diferente mas não menos elogiosa: quando não bebem diretamente na música brasileira (Brian EnoTalking HeadsBeck, Suzane Vega, Björk, Jamiroquai, Beastie Boys, a repetem e/ou a referenciam mesmo sem saber que o estão fazendo.


Ao longo dos anos seus três principais compositores, os baianos Gilberto GilCaetano Veloso e Tom Zé,vêm provando isso através de suas obras, sempre um passo à frente do resto de todas as tendências, sejam cults ou populares. Os dois últimos mostram isso novamente em seus mais recentes trabalhos: o CD “Abraçaço” (2012) e o EP “Tribunal do Feicebuqui” (2013), respectivamente. A começar pela semelhança conceitual das capas (adoração ou achincalhamento?), cada um a seu jeito e com pontos em comum, ambos os trabalhos trazem a inovação estilística e a liberdade criativa que não se nota em nenhum outro lugar do planeta com a mesma integridade de proposição. 

Começando pelo de Tom Zé: surgido por um incidente em que o artista, ao autorizar que uma música sua fosse usada para um comercial da Coca-Cola, sofreu, por conta disso, críticas severas pelo Facebook de ditos “fãs“ acusando-o de “vendido ao sistema”, “Tribunal do Feicebuqui”, além do evidente sarcasmo do título, já nasce impregnado com essa tensão. Tensão, porém, que parece ter feito bem a Tom Zé como autor, pois o motivou a se reencontrar com a agudez de sua obra popular, e não uma obra popular marcada pela agudez. Estudado em música erudita pela linha da vanguarda, Tom Zé é, antes de tudo, um filho dos sons populares, das cantigas de cortejo, do samba urbano de Adoniran Barbosa, do canto das lavadeiras, dos trovadores nordestinos e, principalmente, da bossa nova. Porém, como todo músico ligado a avant-garde, vinha, nos últimos tempos, progressivamente, evoluindo para uma música excessivamente hermética em que o percentual de erudito se sobrepunha ao de popular – basta ouvir os dificílimos e chatos “Estudando o Pagode” (2005) e “Danc-Êh-Sá” (2006), excessivamente rebuscados e distantes do ouvinte. Processo igual ao que invariavelmente acontece com músicos desta linhagem, basta ver a obra de Pierre Boulez (do dodecafonismo ao serialismo ao estrtuturalismo figurativo) ou Stockhausen (do atonalismo à eletroacústica à música de influência “esotérica”).

O trabalho atual de Tom Zé, entretanto, parece, por causa da provocação gerada, tê-lo movido a buscar uma resposta inteligível (ou seja, popular) para que sua mensagem fosse compreendida e, bingo: de volta o Tom Zé inovador e ferino da MPB. E, claro, valendo-se da carga erudita e de seu vasto intelecto, que sempre foram muito bem vindos quando não usados para que só meia dúzia de intelectuais entendessem. É o caso de “Zé a Zero”, parceria com Tim Bernardes (“Mas será revolução?/ Pocalipse se pá?/ Quando ligo na TV/ Caio duro no sofá/ Ô rapá, qualé que é?/ A copa aqui co qui calé?/ É coco colá/ Aqui copa coca acolá/ Fazendo propaganda do Tom Zé”), e a brilhante faixa-título, em que se vale das contribuições do rapper Emicida mais Marcelo Segreto, Gustavo Galo e Tatá Aeroplano para compor um arranjo bastante moderno que alia hip-hop, rock, samba, atonalismo e xote com recortes e ferramentas eletrônicas. Nela, a resposta aos críticos vem em forma de puro sarcasmo: “Não ouço mais, eu não gostei do papo/ Pra mim é o príncipe que virou sapo/ Onde já se viu? Refrigerante!/ E agora é a Madalena arrependida com conservantes”. E, então, completa: “Bruxo, descobrimos seu truque/ Defenda-se já/ No tribunal do Feicebuqui/ A súplica:/ Que é que custava morrer de fome só pra fazer música?”

A briga com os internautas parece ter trazido de volta a Tom Zé, inclusive, a coerência com sua própria obra e não apenas uma reapropriação da mesma como um mero arremedo disfarçado de metalinguagem, caso dos últimos CD’s. Isso porque “Tribunal...” é a continuação de outro EP lançado pelo artista em 1999, o “Imprensa Cantada”. Na ocasião, Tom Zé sentiu-se na obrigação cívica de fazer um registro musical para outro incidente: o da inconcebível vaia proferida ao mestre João Gilberto durante um show em São Paulo em que este, indignado, discutiu com a plateia e encerrou a apresentação. A canção era "Vaia de Bêbado Não Vale", e nela está um dos pontos de ligação de todos os tropicalistas e que, inclusive, tem eco no novo CD de Caetano: a devoção à bossa nova: “no dia que a bossa nova inventou o Brasil/ No dia que a bossa nova pariu o Brasil/ Teve que fazer direito/ Teve que fazer Brasil...”. “Tribunal...” é coerente com este primeiro volume por colocar novamente em questão um assunto do momento em forma de crônica, ligeira e fugaz como a elaboração dada pela própria imprensa. Porém, desta vez, numa plataforma mais moderna da mídia, a internet, mais precisamente, o Facebook, este tribunal e palanque aberto e incontrolável, lembrando, até mesmo, uma outra antiga obra sua: a psicopatológica “Todos os Olhos”, de 1973.

Mas a melhor faixa do novo trabalho de Tom Zé é, justamente, a que melhor responde às descabidas críticas dos detratores, pois a pergunta a que a canção rebate indiretamente é: como Tom Zé teria se tornado “vendido” a uma multinacional se ele mesmo já a tinha, como bom tropicalista (ou seja, coerente com sua ideologia), se apropriado dela? Para além dos engajamentos xiitas, em 1979 (para esclarecimento daqueles que não têm memória ou não se preocupam em tê-la), quando trabalhava para a agência DPZ, de Washington Olivetto, como publicitário, Tom Zé criara para a marca de guaraná Taí, da “bendita” Coca-Cola, um jingle em que, muito “tropicalistamente”, reelabora o clássico cantado por Carmen Miranda (ela, a própria pré-história da Tropicália) para vender o produto. Se falta memória e conhecimento aos críticos, pelo menos pesquisem um pouco antes de achincalhar! Será que esses que criticam sempre acharam que a estocada de “Parque Industrial” era apenas para a direita? A ver por este caso, ingenuamente, talvez sim. A atual versão de "Taí" , além de resgatada com muita pertinência – dando uma resposta melhor do que a própria carta de justificativa publicada por Tom Zé no Facebook explicando que o cachê seria doado à banda de sua cidade-natal, Irará, num ato um tanto descabido de autoculpabilidade, uma vez que não há culpa a se admitir –, traz cores novas ao arranjo que ele mesmo, metalinguisticamente, elaborou em 1992 em “The Hips of Tradition”, mantendo a base da melodia original e os ares de cantiga-de-roda que lhe atribiuíra naquela ocasião, porém, agora, aglutinando outros elementos pop, como rap e rock. Um destes elementos é outro ponto de convergência com “Abraçaço”, de Caetano: a apropriação do funk carioca. Sob uma base vocal que repete o tradicional: “tchum tshack tchum tchum tchum tchum tshack” do ritmo popularesco, Tom Zé reinventa a própria música de forma crítica e tropicalista na melhor acepção do gênero. 

O mesmo funk carioca serve de tema para "Funk Melódico"  de Caetano em seu “Abraçaço”. A música, de abertura quase idêntica a “Taí”, se desenvolve não para uma reelaboração modernista de uma marchinha, como na de Tom Zé, mas, sim, para uma textura eletrificada e até pesada. O expediente, que já havia sido utilizado por Caetano em outra obra recente, a faixa “Miami Maculelê”, a qual escrevera para Gal Costa em seu CD "Recanto" (2011), novamente estreita fronteiras com os ritmos africanos, mas agora de uma forma mais áspera. Se antes eram as danças afro-brasileiras que se aproximavam do repique e da cadência do funk carioca, agora é outro estilo provindo dos negros que ele estabelece paralelo: o rock ‘n’ roll. Sob um riff de guitarra arábico, efeitos de sintetizador e bateria pulsante, “Funk Melódico” é das melhores do disco, terceiro do músico com o grupo Cê, formado por Marcelo Callado, na bateria, Pedro Sá, guitarra, e Ricardo Dias Gomes, baixo. Se não o melhor da trilogia (gosto muito do homônimo à banda, de 2006, e menos do apenas regular “Zii et Ziê”, 2009), é, certamente, o mais coeso para a roupagem roqueira que esta formação imprimiu a suas composições. A guitarra de Sá dá um show, pesada e, num solo técnico e bem sacado, faz as vezes de cuíca. Esta referência não é à toa, pois Caetano constitui na letra uma interessante analogia com o samba de Noel Rosa, “Mulher Indigesta” (“Mulher indigesta você só merece mesmo o céu/ Como está no samba de Noel”), aproximando de uma forma bem original os dois ritmos pop vindos do morro do Rio: o de outrora, o batuque, e o de hoje, o funk.

O CD traz ainda outras joias, como “Um Abraçaço”, reggae-rock de linda letra, ao modo lírico-modernista de Caetano, e onde Sá, exuberante mais uma vez, nos presenteia com um solo rasgado e ruidoso ao estilo de Neil Young ou Kurt Cobain. Outra de destaque é “O Império da Lei”, samba com toque nordestino, que lembra em sua letra a atmosfera dos contos sertanejos de Guimarães Rosa e as canções-estórias de João do Valle, e que também impressiona pela sonoridade forte dos instrumentos de rock executando uma música que, normalmente, seria arranjada para um grupo de pagode, principalmente na combinação do metal da guitarra com o som cheio do tambor da bateria. Ainda, o alegre samba-reggae “Parabéns”, de refrão delicioso e pegajoso (“Tudo mega bom, giga bom, tera bom...”) e a biográfica “Um Comunista”, que relata de forma sensível e épica, num andamento lento e marcial, a história do revolucionário brasileiro Carlos Marighella. Nela, novamente Caetano e Tom Zé se reaproximam. Caetano, ao dizer, com o verbo no passado, que os “os comunistas guardavam um sonho”, conversa com “Papa Francisco Perdoa Tom Zé”, canção em que este último usa sarcasticamente a figura icônica do Papa, novo dentro do circo capitalista da sociedade moderna, para clamar por aquele que pode ser a única salvação em um mundo em que “a diferença entre esquerda e direita/ Já foi muito clara, hoje não é mais”. Numa marchinha que se transforma em rock ao final, Tom Zé ainda punge inteligentemente: “Papa Francisco vem perdoar/ O tipo de pecado que acabaram de inventar/ O povo, querida, com pedras na mão/ voltadas contra o imperialismo pagão”. Ou seja, tanto Caetano quanto Tom Zé expressam em figuras de estilo diferentes (um, pela metáfora; o outro, pela ironia) a mesma percepção desacreditada da atuação ideológica das esquerdas. (Não é difícil remontar a figura de Caetano contra a plateia no festival de 1968 ao lado dos Mutantes bradando: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder?”...)

Mas é quando o assunto volta a ser bossa nova que as parecenças conceituais entre os dois se tornam ainda mais visíveis. “A Bossa Nova é Foda”, disparado melhor música do álbum e talvez a melhor do ano no Brasil, é não um samba cadenciado, como fielmente Tom Zé o fez em “Vaia...”, mas, sim, um rock com riff minimalista e criativo em que o efeito do pedal wah-wah ressoa dois acordes em alturas diferentes, dando a sensação de movimento. Só mesmo um rock ‘n’ roll para dizer um elogio desta forma! A letra, além do costumeiro desbunde poético e filosófico típicos do Caetano inspirado de uma "O Estrangeiro", “Vaca Profana” ou “Uns”, traz a mesma ideia de Tom Zé de valorização da bossa nova e da pungência de sua assimilação no Brasil e no mundo, em que, como afirma, “lá fora o mundo ainda se torce para encarar a equação”, referindo-se à capacidade de unir diferentes referências musicais e socioantropológicas em um estilo tão sucinto e denso como o fez com maestria de alquimista “o bruxo de Juazeiro”, ou seja, João Gilberto. A semelhança com os versos da primeira “Imprensa Cantada” é direta: “E a Europa, assombrada:/ ‘Que povinho audacioso’/ ‘Que povo civilizado’”

Em “A Bossa Nova é Foda” Caetano ainda expõe outra ideia interessante em que é possível notar-se concordância com Tom Zé, que é o exemplo popular que a bossa nova legou. Quando diz que a velha bossa nova foi capaz de transformar o “mito das raças tristes” em “produtos” pop como os lutadores de MMA, os deuses olimpianos da era contemporânea, está apontando o mesmo que Tom Zé diz em “Vaia...”, de que, então apenas exportador de matéria-prima, “o grau mais baixo da capacidade humana”, “criando a bossa nova em 58/ O Brasil foi protagonista/ De coisa que jamais aconteceu/ Pra toda a humanidade/ Seja na moderna história/ Seja na história da antiguidade.” Tom Zé ratificava a importância social, histórica e antropológica da bossa nova para um país que passava, naquele ano, a exportar, como diz depois a letra, “o grau mais alto da capacidade humana”: a arte. O mesmo entendimento de Caetano.

Tanto “Tribunal...” quanto “Abraçaço” são dois grandes discos que valem a pena ao menos serem ouvidos com atenção e repetição, pois contêm muitas mensagens e percepções de dois artistas que nunca perderam a verve crítica e pensadora das coisas que os rodeiam. Concorde-se com eles ou não, goste-se deles ou não, o fato é que eles são, sim, muito coerentes com suas próprias obras e posturas, e isso é o que, visivelmente, mais indigna os críticos, pois não é por aí que eles podem ser criticados. Eu abertamente os admiro e não brigo com isso. Apenas discordo de Caetano em uma coisa: não é só a bossa nova: também ‘a Tropicália é foda’!


clipe oficial de “A BOSSA NOVA É FODA” - Caetano Veloso:




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FAIXAS “Tribunal do Feicebuqui":

1. Tribunal Do Feicebuqui (Marcelo Segreto/Gustavo Galo/Tatá Aeroplano/Emicida)
2. Zé A Zero(Tom Zé/Marcelo Segreto/Tim Bernardes)
3. Taí (Joubert De Carvalho/Tom Zé/Marcelo Segreto)
4. Papa Francisco Perdoa Tom Zé (Tim Bernardes/Tom Zé)
5. Irará Iralá (Tom Zé)

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FAIXAS “Abraçaco”:

1. A Bossa Nova é Foda
2. Um Abraçaço
3. Estou Triste
4. Império da Lei
5. Quero ser Justo
6. Um Comunista
7. Funk Melódico
8. Vinco
9. Quando o Galo Cantou
10. Parabéns
11. Gayana

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