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quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Ella Fitzgerald and Louis Armstrong - "Ella and Louis" (1956)



"Homem, mulher ou criança,
Ella [Fitzgerald] é maior que qualquer um."
Bing Crosby

"Se houve alguém que foi um mestre,
esse alguém foi Luis Armstrong."
Duke Ellington



Um encontro de titãs de dois dos maiores nomes da música. Ella Fitzgerald, diva do jazz, uma das maiores cantoras de todos os tempos e dona de interpretações inigualáveis juntava-se a Louis Armstrong, cantor de voz inconfundível, de recursos vocais interessantíssimos e trompetista de estilo moderno e ousado para sessões de gravação que originariam o extraordinário “Ella and Louis”.
Composto basicamente por canções românticas e baladas de compositores como Gershwin e Irving Berlin, “Ella and Louis” (1956) é puro deleite. As interpretações de ambos, sustentadas por nada menos que o Oscar Peterson Trio, carregam o talento pessoal de cada um somados às suas respectivas grandes capacidades de improvisação, demonstrando um impressionante entrosamento e uma gostosa descontração de estúdio.
A lindíssima “Can't We Be Friends?” tem interpretação destacada da diva; “Isn't This a Lovely Day?” tem um daqueles belos solos econômicos, básicos e precisos de Louis, seus improvisos vocais característicos e um dueto lá-e-cá adorável entre os dois cantores; e ainda a ótima “Tenderly” que com uma performance solo arrasadora do trompete de Armstrong abre e prepara terreno para que Ella deslize sua voz doce sobre a canção, e igualmente fecha com outra demonstração de talento e inspiração no instrumento de sopro. Na adorável “Cheek to Cheek”, uma das minhas favoritas do álbum, mesmo reconhecendo que no quesito cantar Ella é muito mais completa que o Louis, o destaque é para a atuação vocal dele. Muitíssimo bem “A Foggy Day” dos Gershwin não pode deixar de ser mencionada assim como a melancólica “April in Paris”, que numa interpretação cheia de sentimento de Ella Fitzgerald, com um solo choroso do trompete de Louis Armstrong e com uma performance magistral de Oscar Peterson ao piano, encerra a obra de forma perfeita.
“Ella and Louis” só não é um documento musical único porque, por conta do sucesso do lançamento, a gravadora encomendou um novo encontro da dupla para o álbum “Ella and Louis Again”, que é considerado por muitos até mesmo melhor que o original.
Talvez. Não sei. Gosto muito do outro também. Talvez seja assunto para outro A.F.. Mas por hora fiquemos com este registro mágico onde a graça da Primeira Dama e a originalidade do Satchmo garantem um dos momentos mais célebres que a música já viveu.
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FAIXAS:
01. Can't We Be Friends? (Paul James, Kay Swift) – 3:45
02. Isn't This a Lovely Day? (Irving Berlin) – 6:14
03. Moonlight in Vermont (John Blackburn, Karl Suessdorf) – 3:40
04. They Can't Take That Away From Me (George Gershwin, Ira Gershwin) – 4:36
05. Under a Blanket of Blue (Jerry Livingston, Al J. Neiburg, Marty Symes) – 4:16
06. Tenderly (Walter Gross, Jack Lawrence) – 5:05
07. A Foggy Day (G. Gershwin, I. Gershwin) – 4:31
08. Stars Fell on Alabama (Mitchell Parish, Frank Perkins) – 3:32
09. Cheek to Cheek (Berlin) – 5:52
10. The Nearness of You (Hoagy Carmichael, Ned Washington) – 5:40
11. April in Paris (Vernon Duke, Yip Harburg) – 6:33


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Ouça:

Cly Reis

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Dinah Washington - "After Hours with Miss D" (1954)



"Não há dois caminhos sobre  isto:
'After Hours  With Miss D' ainda é a prova rítmica, rebelde mais robusta
de que a  Srta. Washington
é uma das artistas mais incomparáveis
nos mais altos escalões da canção popular moderna."  
trecho do texto da contracapa
original do álbum de 1954


Meu primeiro contato com Dinah Washington, lembro, foi proporcionado pela minha amiga Mari, que era secretária num escritório onde eu trabalhava. Ela me emprestou uma fita cassete do namorado dela da época que era um geólogo que havia excursionado à Antartida e que, segundo ele, havia gravado a fita a bordo do navio Barão de Tefé, o que exigia que eu devesse ter cuidado redobrado com a fita. Levei para casa, ouvi, adorei e por ter gostado tanto e para não correr nenhum risco de danificar aquela relíquia da história expedicionária brasileira, tratei de fazer uma cópia para mim e devolver aquele K7 o quanto antes possível. Fiquei muitos anos com aquela fitinha sem saber os nomes das músicas nem nada mas sempre curtindo muito aquela voz, aquela interpretação, aquela emoção, tudo!
O cassete caiu em desuso, a fita se perdeu e fazia alguns anos que não ouvia nada desta cantora até que há pouco tempo atrás, fuçando numa dessas lojas de LP's antigos por aí, topei com um bolachão da cantora. Um belo exemplar, capa de papelão duro, vinil pesadão, edição original americana dos anos 50... Devia custar uma nota! Caro? Paguei R$ 5,00 por aquela raridade. Eu estava levando comigo "After Hours With Miss D", de 1954, para casa e finalmente eu tinha um registro decente desta cantora que eu havia aprendido a gosatar mas que não tinha nada dela em casa para ouvir.
O disco é absolutamente sensacional! Com uma banda de primeira, a "Rainha do Blues" como era conhecida interpreta de forma brilhante e emotiva clássicos do jazz e rhytm'n blues dos anos 50 em jam-sessions soltas e inspiradas.
"Am I Blue?" é uma balada doce, inspirada, sentida, pontuada por um trumpete choroso e melancólico; "A Foggy Day" ao contrário, é um jazz ensolarado, embalado e cheio de vida; "I Let a Song Go Out of My Heart" é belíssima com destaque especial para a metaleira da retaguarda; mas em "Love for Sale", é Dinah quem dá ums show todo particular, mudando os tempos vocais com uma facilidade impressionante e até mesmo rasgando a voz o melhor estilo Satchmo.
Mas a que eu mais adoro no disco é "Blue Skies", clássico de Irving Berlin, numa versão longa com uma interpretação solta da diva e um grande interlúdio instrumental com espaço para performances individuais notáveis de cada um dos integrantes da banda.
Som delicado, delicioso para se ouvir  naqueles momentos de relax, nas horas de silêncio. Som para aquelas after hours.
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FAIXAS:
1."Blue Skies" (Irving Berlin) – 7:52
2."Bye Bye Blues" (David Bennett, Chauncey Gray, Frederick Hamm, Bert Lown) – 6:58
3."Am I Blue?" (Harry Akst, Grant Clarke) – 3:14
4."Love Is Here to Stay" (George Gershwin, Ira Gershwin) – 2:31
5."A Foggy Day" (G. Gershwin, I. Gershwin) – 7:59
6."I Let a Song Go Out of My Heart" (Duke Ellington, Irving Mills, Henry Nemo) – 7:02
7."Pennies from Heaven" (Arthur Johnston, Johnny Burke) – 2:17
8."Love for Sale" (Cole Porter) – 2:12


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vídeo de "Love For Sale"



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Ouça:
Dinah Washigton After Hours With Miss D



Cly Reis

sábado, 19 de novembro de 2011

John Coltrane - "My Favourite Things" (1961)



"John [Coltrane] era como um visitante a este
planeta.
Ele veio em paz e o deixou em paz."
Albert Ayler,
saxofonista norte-americano


Eu poderia falar aqui da importância de John Coltrane para a história do jazz.
(Ou tentar falar)
Ou mais, poderia falar da sua relevância para a história da música.
Eu poderia falar da relação de Coltrane com o saxofone e de sua deste artista para a consagração deste instrumento.
Poderia ressaltar todas as qualidades técnicas deste fantástico instrumentista.
Poderia tentar explicar suas grandes virtudes, seu estilo, características, mas como não sou um especialista, e sim apenas um apreciador, por certo, não conseguiria explanar tudo com precisão.
Poderia até...
Bom...
Poderia um monte de coisas.
Mas não vou.
Queria falar-lhes do disco "My Favourite Things" de 1961, mas... o que poderia dizer dele?
Falar da banda?
Do repertório de regravações de clássicos?
Porter, Gershwin, Rogers...? Hum...
Deixa pra lá.
Apenas dir-lhes-ei que "My Favourite Things" é uma daquelas obras que parecem preencher a alma d'a gente. Uma daquelas coisas que parecem não estar sendo tocadas por seres humanos. Que por vezes chega a parecer fazer-nos ficar em vias de desfalecer ou talvez, também, e não raro, sem nenhum aviso, fazer-nos apanharmo-nos inadvertidamante com lágrimas nos olhos.
Ah,
Dos meus favoritos.

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FAIXAS:
1."My Favorite Things" (Richard Rodgers) — 13:41
2."Everytime We Say Goodbye" (Cole Porter) — 5:39
3."Summertime" (George Gershwin) — 11:31
4."But Not for Me" (Gershwin) — 9:34

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Ouça:
John Coltrane My Favourite Things


Cly Reis

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

João Gilberto - “Amoroso” (1977)

 

"Esse disco tem um pouco esses negócios que a gente precisava. Tem a música da orquestra, eu tinha tanta vontade de ouvir um samba tocado por orquestra. A coisa é por todos os lados, música por todos os lados, enquanto estou cantando. Toda vestida, toda redonda. Tinha tanta vontade de ver a música do Brasil mais diretamente, o samba daquele jeito, que não fosse só o delicado, que fosse redondo, ligado, assim como o Claus [Ogerman] fez." 
João Gilberto, em telefonema a Zuza Homem de Mello, em 1977


Poucas coisas em música são mais sofisticadas que a bossa-nova. Na segunda metade do século 20, nada supera. A sintaxe harmônica, fruto de séculos de assimilação histórico-sociológica que forjam o ser brasileiro, deram à bossa-nova o status de estilo musical mais arrojado depois da invenção do jazz. Exemplos desta sublimação não faltam. O encontro de perfeições entre Tom Jobim e Frank Sinatra; a insuspeita ponte entre clássico e moderno de Elizeth Cardoso em “Canção do Amor Demais”; a junção direta de cool jazz e samba de “Getz-Gilberto”; a brandura potente de Nara Leão em sua estreia no acetato.

Mas talvez todos estes exemplos tenham servido de embasamento para um produto ainda mais bem acabado: “Amoroso”, de João Gilberto. O disco, lançado pelo mestre baiano em 1977 e considerado por muitos sua obra-prima, consegue aglutinar os melhores elementos legados por todos os artistas da bossa-nova – inclusive o próprio João – tanto em arranjo, repertório quanto em, claro, execução. A começar pela química improvável cunhada e aperfeiçoada por ele próprio desde que “inventou” a bossa-nova. A genial síntese harmônica e rítmica, a simbiose entre violão e voz, a emissão do canto sutil e sem vibratos, a exatidão da dicção e dos timbres, a redefinição da métrica musical. João foi, num tempo, arquiteto e bruxo. 

Porém, “Amoroso” guarda peculiaridades que justificam ainda mais estas características joãogilbertianas que por si já seriam (eram, são) suficientes. Gravado no aparelhado Rosebud Recording Studio, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, o disco tem participações que o engrandecem e favorecem o produto final. A começar pela produção de Helen Keane e Tommy LiPuma, este último, o premiado e lendário produtor de artistas como George Benson, Al Jarreau, Paul McCartney, Barbra Streisand e outros. Na banda de apoio, três gringos: Jim Hughart, no baixo; Joe Correro, bateria; e Ralph Grierson, teclados. O mínimo e o suficiente para João desfilar seu violão. Mas isso se junta a outro fator importantíssimo: a orquestra, arranjada e conduzida pelo brilhante alemão Claus Ogerman. Compositor de mão cheia, requintado e arrojado, Ogerman foi o responsável, dentre outros feitos, pelos arranjos dos memoráveis discos de Tom Jobim pela A&M Records, “Wave” e “Tide”, outros dois marcos da saga de sofisticação da bossa-nova na música mundial. Até a capa de “Amoroso”, algo externo às gravações, acompanha tal elegância: uma pintura de uma figura feminina em tons modernistas do artista trinitino Geoffrey Holder.

Cenário montado para João entrar com sua arte. No repertório, sagazmente escolhido a dedo por ele, de standarts do folclore norte-americano, passando por canções em italiano e espanhol até samba antigo e, claro, o cancioneiro bossanovista. Uma releitura de Gershwin abre o disco. Dois acordes dissonantes da orquestra: é “'S Wonderful”, escrita em 1927 para o musical “Funny Face”, que aqui ganha a pronúncia do inglês deliberadamente abrasileirada, que dá a este cartão-de-visitas um toque ainda mais próprio. É como se a letra funcionasse e suas palavras para a intrincada construção harmônica proposta ao se verter o popular song para o gingado do samba. Quanta sabedoria de João ao estender o corpo do perfil sonoro desde seu ataque até sua queda justa e sem ondulações. É a Broodway subindo o morro. 

A orquestra de Ogerman vem intensa e abre caminho para a voz e violão de João em “Estate”, num lindo arranjo que conta, além das cordas, madeiras e metais, com frases do teclado de Grierson. Levantando o astral – afinal, para ser “amoroso”, não precisa sempre sofrer chorando –, João resgata o saboroso samba da década de 40 do multiartista carioca Haroldo Barbosa, autor invariavelmente valorizado pelo criador da bossa-nova. “Tin Tin Por Tin Tin”, com seus marotos versos iniciais, fala de um rompimento de relação (“Você tem que dar, tem que dar/ O que prometeu meu bem/ Mande o meu anel que de volta/ Eu lhe mando o seu também”), mas de uma forma tão graciosa (e malemolente), que até dá a impressão de tratar-se de um amor feliz. O canto de João, que agrega sutis síncopes e vocalises, integra-se de tal forma ao toque do pinho, que parecem provir da mesma natureza. E quem há de dizer que não?

João Gilberto tocando "Tin Tin por Tin Tin", em vídeo do "Fantástico", à época do lançamento do "Amoroso"

Melancólico, o popular bolero “Besame Mucho”, de 1940, remonta ao México sentimental e apaixonado onde João viveu anos antes – país onde, inclusive, ele gravou o excelente disco “João Gilberto en Mexico” ou “Farolito”, de 1970. Mais uma vez, a orquestra carrega na intensidade mas, na sequência, engendra uma delicada transição para Joãozinho brilhar. Isso sem contar com a parte da orquestra no meio da música, nada menos do que deslumbrante. Não é exagero dizer que, a se considerar a inteligência melódica de João neste número, está-se diante de uma das cinco melhores interpretações deste tema incontáveis vezes regravado em todo o mundo.

Para finalizar a segunda parte ou o correspondente ao lado B do vinil original, João escolhe reverenciar aquele que é indiscutivelmente o mais importante compositor da bossa-nova: o amigo Tom Jobim. São de autoria dele as últimas quatro faixas, a metade do álbum, como a marcante versão do clássico “Wave” e a igualmente classuda “Triste”. Em ambas nada está fora do lugar. Tudo é perfeitamente exato. A voz calma, quase silenciosa, mas firme e inteira, se entrelaça às cordas e a banda numa combinação cristalina.

Além destas, outras duas parcerias do Maestro Soberano em que João destila sua personalidade ao mesmo tempo forte e sutil. Primeiro, uma emocionante “Caminhos Cruzados”, coescrita com Newton Mendonça, em que João arrasta o compasso, dando alto grau de sensibilidade para o romântico tema que fala de encontros e desencontros da vida amorosa. O filho musical Caetano Veloso, em seu “Verdade Tropical’, considera esta música uma das mais emblemáticas da bossa-nova, dizendo que “é uma aula de como o samba pode estar inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizada; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba”.  

A outra, que fecha o disco, é “Zingaro”, escrita em 1965 originalmente instrumental e que ganhou letra de Chico Buarque anos depois para virar “Retrato em Branco e Preto”. Nesta, João empresta dramaticidade à dolorida carta de despedida de um relacionamento: “Novos dias tristes, noites claras/ Versos, cartas, minha cara/ Ainda volto a lhe escrever/ Pra lhe dizer que isso é pecado/ Eu trago o peito tão marcado/ De lembranças do passado e você sabe a razão”. E desfecha: “Vou colecionar mais um soneto/ Outro retrato em branco e preto/ A maltratar meu coração”.

Compêndio de canções românticas de diversas vertentes, “Amoroso” é, acima de tudo, o refinamento daquilo que já era refinado. O “crème de la crème” da bossa-nova, esta corruptela do samba que já nasceu apurada. João, autor da batida-motriz do gênero, algo mecanicamente simples, mas musicalmente complexo visto que capaz de sugerir uma infinidade de fruições melódicas e harmônicas, avançou ainda mais com este disco. Se seu violão já era capaz de condensar o novo e o antigo, com a adição da orquestra esse poder simbólico da bossa-nova se redimensionou. Não se trata do pastiche americanizante do arranjo dos “samboleros” dos tempos da Rádio Nacional, descaracterizadores muitas vezes da raiz africana da cultura brasileira pela vergonha de si próprio, mas, sim, a modernidade em prol do estilo musical que abraçou a essência nacional e a propagou mundo afora. Consciente de seu papel policarpiano, João devolve ao samba a dimensão eloquente (aventada por Francisco Alves e Pixinguinha) que lhe foi negada. Assim como a bossa-nova, símbolo de um Brasil possível, João, como um Robin Hood, resgata o que é de direito desde que o samba é samba. Quem mais poderia supor a ligação de uma ponte assim, tão mágica e intrincada de se realizar? Somente um arquiteto ou um bruxo. João era os dois.

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“Amoroso” saiu conjuntamente com o disco “Brasil”, de 1981, já resenhado nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. em edição em CD em 1993, porém, mantendo-se como capa a sua arte e alterando-se apenas o enunciado do título para “Amoroso/Brasil”. As mesmas gravações de "Amoroso" aparecem também na íntegra, porém em ordem diferente e intercaladas com parte das faixas de "Brasil", na coletânea da série "Mestres da MPB - João Gilberto", editada em 1992.

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FAIXAS:
1. “'S Wonderful” (George Gershwin/Ira Gershwin) - 4:07
2. “Estate” (Bruno Brighetti/Bruno Martino) - 6:30
3. “Tin Tin Por Tin Tin” (Geraldo Jaques/Haroldo Barbosa) - 3:37
4. “Besame Mucho” (Consuelo Velaquez) - 8:43
5. “Wave” (Antonio Carlos Jobim) - 4:35
6. “Caminhos Cruzados” (Jobim/Newton Mendonça) - 6:12
7. “Triste” (Jobim) - 3:35
8. “Zingaro (Retrato em Branco e Preto)” (Jobim/Chico Buarque) - 6:23


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 12 de março de 2018

John Pizzarelli - Porto Alegre Jazz Festival - Centro de Eventos BarraShoppingSul - Porto Alegre/RS (08/03/2018)



Meu amigo Roger Lerina acertou em cheio em sua resenha do show de John Pizzarelli no último dia 8 de março no Centro de Eventos do BarraShoppingSul, dentro da programação especial do Porto Alegre Jazz Festival: Ele "é diversão na certa”. Tocando para um público de meia idade – mesclado salutarmente com alguns jovens mais atentados –, o guitarrista inovou desta vez. Misturando aquele feijão-com-arroz gostoso de standards clássicos como “They Can’t Take That Away From Me” e “I Got Rhythm”, dos irmãos George & Ira Gershwin, com músicas de Nat King Cole e dos Beatles, o músico provou que sabe cativar uma plateia com sua simpatia, com arranjos bem escolhidos e de fácil assimilação pelo público. Seu grupo, apesar de não ter nenhum virtuoso, mostrou ser correto e direto ao ponto, sem firulas. O pianista Konrad Paszkudzki, o baixista Mike Karn e o baterista Andy Watson cumpriram muito bem seu papel de coadjuvantes da grande estrela.

Mas as semelhanças com os shows anteriores terminaram aí. Escorado um scat singing junto com sua guitarra, Pizzarelli usou a técnica aperfeiçoada por George Benson a seu favor. Usando este expediente em quase todos os solos, o guitarrista mostrou ter amplo conhecimento da história de seu instrumento no jazz, circulando pelos estilos dos sóbrios, Jim Hall, Barney Kessel e Herb Ellis num momento e na exuberância do já citado Benson e de Wes Montgomery no outro. Após começar o espetáculo suavemente com as composições dos Gershwin e de seu ídolo King Cole, Pizzarelli apresentou suas novidades. Primeiro, uma versão de “Honey Pie” dos Beatles quase irreconhecível. Na sequência, talvez o grande momento musical da noite, a versão de “I Feel Fine”, de Lennon & McCartney, utilizando-se do tema clássico do funky soul da gravadora Blue Note, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan como base do arranjo.

O virtuoso Pizzarelli e sua competente banda
Em compensação, pra mim soou estranha a versão “bossanovística” de “Silly Love Songs”, dos Wings de Macca. Talvez porque a composição esteja tão entranhada no universo pop que “abrasileirá-la” tenha parecido forçado. Outra novidade foi a apresentação de “Oscar Night”, composta pelo falecido pianista de Pizzarelli, Ray Kennedy, em homenagem a Oscar Peterson. Totalmente instrumental, a música faz um passeio/homenagem pelo estilo do grande pianista canadense, abrindo espaço para todos os músicos mostrarem sua destreza.

A partir daí, o guitarrista chama ao palco o neto de Tom Jobim, Daniel – cada vez mais parecido com o avô – para emular o encontro de Frank Sinatra com Jobim há 50 anos atrás. E se saem bem. Como no disco, as clássicas “Dindi” e “Água de Beber” dividem espaço com “Baubles, Bangles and Beads” e “I Concentrate on You, de Cole Porter, mas Pizzarelli tem o cuidado de acrescentar outras pérolas jobinianas no repertório, como “Bonita”, “Two Kites” e “Wave”. Daniel, pouco à vontade somente ao microfone, deslanchou ao piano e voz. No final, a indefectível “The Girl From Ipanema”, que suscitou mais um dos engraçados comentários do guitarrista sobre a onipresença desta canção no mundo inteiro.

Pra finalizar, o número que Pizzarelli sempre apresenta em sues shows: a homenagem ao seu estado natal, New Jersey, com “I Like Jersey Best”, onde brinca com “as versões” de Bruce Springsteen, Bob Dylan, Paul Simon, Lou Reed, Lou Rawls, Billie Holiday, James Taylor, Bee Gees e, até mesmo, João Gilberto e João Bosco. Um final divertido para um show muito musical. Tudo isso começou com o duo da voz de Dudu Sperb com o piano de Luiz Mauro Filho. Como se esperava, dados os talentos do cantor e do pianista, a noite iniciou maravilhosa com clássicos como "Ilusão à Taa", de Johnny Alf; "Stardust", de Hoagy Carmichael, e da linda "Mistérios", de Joyce. Primeiro, a sobriedade gaúcha armando a plateia para a animação de John Pizzarelli. “Volte logo, Pizza”, como disse meu querido amigo Sepeh de los Santos.

Porto Alegre já está aguardando o retorno de Pizza

por: Paulo Moreira
fotos: Opus Promoções

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Hiromi – Jazz All Nights 2016 - Teatro do Bourbon Country – Porto Alegre/RS (29/09/2016)



A virtuose Hiromi, em um show espetacular em Porto Alegre.
(foto: divulgação/Teatro Bourbon Country)
Foi um show espetacular o da pianista japonesa Hiromi no Teatro do Bourbon Country,. Cercada de expectativa, pois é considerada uma virtuose no seu instrumento, Hiromi não deixou por menos. Ela começou a apresentação, que integra a programação Jazz All Nights 2016, fazendo um longo passeio pelas sonoridades do ragtime e do boogie-woogie até chegar ao tema "I Got Rhythm", dos irmãos Gershwin, construindo e desconstruindo a canção ao bel prazer de sua técnica apurada.
Alguém poderia imaginar que Hiromi jogaria pra torcida, fazendo pirotecnias pianísticas bem ao gosto do leigo. Não foi o que aconteceu! A japonesa passeia por inúmeros estilos e tem um approach diferenciado para cada música. A faixa-título do disco “Place To Be” tem todo o clima de lirismo apropriado de Keith Jarrett, Brad Mehldau e, em alguns momentos, chega a lembrar Bill Evans.
Outra influência no trabalho é de Chick Corea, com quem gravou um CD de duo de pianos. O interessante é que, mesmo com todas estas influências, o toque pianístico de Hiromi é totalmente pessoal e intransferível.

Esforçando-se para falar em português algumas frases, a pianista demonstrou também uma total empatia com o público. O concerto encerrou com a suíte em três movimentos "Viva Vegas" (também do álbum “Place To Be”) e que, em sua terceira parte, "The Gambler", permite à pianista imitar os sons de um cassino, com seu piano transformado em máquinas caça-níqueis e roletas. Como se não bastasse, Hiromi voltou ao palco no bis para interpretar uma peça que não estaria deslocada em qualquer disco mais recente de Keith Jarrett. Uma noite luminosa de música onde a plateia foi brindada com uma overdose de notas boas!



terça-feira, 16 de setembro de 2014

Herbie Hancock - "Empyrean Isles" (1964)

 



Hancock estreita as fronteiras entre o hard bop, encontrando brilhantemente um sugestivo equilíbrio entre o bop tradicional, 

injetando-lhe grooves do soul,

e experimental, jazz pós-modal.” 

Stephen Thomas Erlewine,

crítico musical e biógrafo




O jazz já era o maior gênero musical norte-americano desde os anos 20, mas é inegável que as décadas de 50 e 60 foram memoráveis para sua história. A cada ano, vários artistas – muitos em seu auge; alguns, iniciando; outros, veteranos em plena forma – lançavam um ou mais álbuns impecáveis e inovadores, considerados fundamentais até hoje, fosse pela Impulse!, Blue Note, ECM, Atlantic, Columbia, Verve e outros selos. Destes, a passagem de 1963 para 1964 talvez seja a que reúna o crème de la creme pós-Segunda Guerra. Provavelmente, iguale-se apenas ao revolucionário ano de 1959, que presenteou o mundo com as inovações modais de "Kind of Blue", do Miles Davis, com o libelo free jazz de “The Shape of Jazz to Come”, do Ornette Coleman, e o petardo hard-bop “Giant Steps”, do John Coltrane. Se nem tanto em transformação do estilo, o quinto ano da década de 60 não fica para trás em qualidade e importância. Gravaram-se, durante seus 365 dias, por exemplo, joias como "Night Dreamer", do Wayne Shorter, "Matador", do Grant Green” (ambos já resenhados aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS), “Out to Lunch”, do Eric Dolphy, e “Witches and Devils”, do Albert Ayler. Todos completando expressivos 50 anos em 2014.

Um dos mais felizes desses cinquentões foi registrado a 17 dias do mês de junho daquele fatídico ano para o jazz. Foi quando, pela Blue Note, um dos maiores mestres da música moderna entrou nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, com um timaço que tinha Freddie Hubbard, no trompete, corneta e flugelhorn, Ron Carter, no baixo, e Tony Williams, na bateria. Aquele dia marcaria a sessão de gravação de mais uma obra-prima do jazz: “Empyrean Isles”, do pianista, compositor e arranjador Herbie Hancock. Um dos mais versáteis, influentes, celebrados e até controversos ícones da música mundial, Hancock, aos 64 anos de vida e mais de 50 de carreira, já foi do be-bop ao break, passando pelo afro-jazz, fusion, funk, modal, clássico e outros gêneros, seja pilotando o piano ou o sintetizador. E sempre com a maior integridade, sem perder seu fraseado característico e a complexidade harmônica inspirada em músicos de diversas vertentes como Bill EvansMiles DavisJames BrownGeorge GershwinTom Jobim e Sergei Rachmaninoff. Como seus mestres, serve de referência não só para a geração do jazz que lhe sucedera mas, igualmente, a músicos de outros estilos como Joni Mitchell, Jeff BeckStevie Wonder, Brian Jackson, Dom Salvador, Ike White, Marcos Valle, Public Enemy, entre centenas de outros.

Quinto disco solo do músico, “Empyrean Isles” é o exemplo máximo do hard-bop hancockiano e cuja influência e profusão através dos tempos é das mais fortes de sua trajetória ainda em plena atividade. A começar por dois monumentos do jazz moderno: "One Finger Snap" e "Oliloqui Valley". A primeira, ritmada e pulsante, começa com Hubbard arrebentando na corneta sobre uma base swingada de Williams, que, com as baquetas, conjuga com equilíbrio caixa, chipô e prato de ataque. Mas, como o próprio título sugere, a preciosidade está nos dedos de Hancock. Como diria Ed Motta, “a mão esquerda mais inteligente do mundo”. Um show de agilidade e engenhosidade de improviso. La no fim, quando se pensa que tocaram o chorus derradeiro, Tony Williams ainda apresenta um arrasador solo para, daí sim, desfecharem. Uau!

Já "Oliloqui...” quem começa incrivelmente é Carter, com seu toque trasteado inconfundível. Mais cadenciada e bluesy, nesta é o pianista quem inicia os trabalhos de improvisação, novamente (e como sempre!) com a mais alta qualidade que se pode esperar. Um fraseado limpo, cristalino, soul mas erudito ao mesmo tempo. Hubbard, por sua vez, também não deixa por menos, com um solo de emoção crescente que concilia lirismo e agilidade. O mestre Carter, que havia iniciado tão marcantemente a faixa com sua assinatura sonora, tem a chance de desenvolvê-la ainda mais. É tão bonito e impactante que o restante da banda para que ele toque, voltando, em seguida, todo o conjunto ao riff inicial. Mais um solo de trompete, atilado e curto, para terminar o número em desce-som.

E o que dizer da maravilhosa "Cantoloup Island"? Um colosso da música do século XX. Que base do piano, que harmonia, que groove, que chorus! Os quatro parecem saber tocar a melodia desde crianças tamanha a naturalidade do arranjo, que se resolve entre o quarteto intuitivamente, sabendo com exatidão a hora de cada um entrar, a precisão da cadência, o ataque ou a supressão certa em cada solo. No chorus, repetido a cada estampido seco de Williams na caixa, como um comando, é de uma beleza indecifrável a delicadeza do quase sugestivo último acorde ao final de cada frase, pronunciado propositadamente fraco, como uma respiração, como um suspiro que o ouvido já sabe como será – a adora confirmar o que já sabia depois que o escuta. A sensação que se tem em "Cantoloupe ..." é rara em música. Como Dear Prudence, dos Beatles, seu riff é tão natural e sugestivo que é como se sempre estivesse ali, no ar; só nós que, seres limitados, não o ouvimos. É preciso esses gênios mal acionem as moléculas para que, atritadas, gerem o som e percebamos o óbvio. Longe da conjectura matemática do serialismo dodecafônico, intricada e lógica, a previsibilidade delas é sentida no coração.

Mas mais do que o conhecido riff funky (muito bem “chupado” pelo grupo Us3 em sua “Cataloop”, em 1993, porém inevitavelmente inferior), Hubbard e Hancock desenvolvem solos que experimentam os limites do hard-bop. Hubbard, logo após o primeiro chorus, sobe um tom e entra rasgando, guinada inteligentemente acompanhada por toda a banda no mesmo instante. Um dos solos mais clássicos do cancioneiro jazz. Em seguida, cabe ao próprio Hancock, criador da obra, imprimir-lhe uma carga descomunal de groove como até então não se vira no jazz. Era James Brown materializando-se na “simplicidade complexa” do jazz.

Para fechar, “The Egg”, em extensos mas nem de longe monótonos 14 minutos, um exercício minimalista brilhante e desafiador. Primeiro, pela base de piano repetitiva em um esquisito tempo 4 + 3. Junto a isso, a bateria de Williams, não menos criativa, mantém o compasso em curtos rufares. Por fim, claro, as improvisações individuais de cada um: prolongadas, em que cada músico usa da inventividade de forma livre, namorando com o avant-garde que Coltrane, Ayler e Don Cherry desenvolveriam a partir de então. O diálogo com a vanguarda já se sente quando Carter surpreende e saca um arco para fazer de seu baixo uma espécie de cello, tangendo as cordas ao invés de dedilhá-las. Nisso, Hancock faz a música ganhar outras dimensões, passeando pelo free jazz, retornando ao cool dos anos 50, mas, mais do que isso, remetendo aos eruditos contemporâneos em lances de pura atonalidade. Quanta musicalidade! Em “The Egg”, Hancock antecipa o jazz fusion que ele mesmo ajudaria a criar anos depois. O fim da faixa, que também encerra o disco, é tão arrojado quanto sua abertura, como se um piano tivesse quebrado e repetisse somente e justo aqueles acordes.

Um disco memorável que, afora a data comemorativa, merece ser reouvido e revisto a qualquer época, tamanha sua qualidade e importância. Junto com outro trabalho definitivo do soul jazz, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan (do mesmo ano!), “Empyrean Isles”, com seus riffs e levadas funk somados à sua engenhosidade harmônica, inspiraram toda a geração posterior de jazzistas (Chick CoreaVince Guaraldi, Hubert Laws, irmãos Marsalis) e não-jazzistas, como a Blacksplotation dos anos 70, o pop dos anos 80 e músicos de todas as partes do planeta até hoje que chega a ser difícil até dimensionar. E essa força perdura desde aquele longínquo 1964. A fase era tão fértil que, pouco menos de um ano depois, Hancock comandaria a mesma banda no também espetacular “Maiden Voyage”, avançando ainda mais alguns passos em estética e forma. Mas os 50 anos desta outra obra-prima serão completos somente ano que vem...


Herbie Hancock - "Cantaloupe Island"


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FAIXAS:
  1. "One Finger Snap" – 7:20
  2. "Oliloqui Valley" – 8:28
  3. "Cantaloupe Island" – 5:32
  4. "The Egg" – 14:00
todas as faixas compostas por Herbie Hancock

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OUÇA O DISCO









segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Mulheres Negras - "Música e Ciência (1988)


“Um marco na ciência aplicada à música pop no terceiro mundo.”
 Maurício Pereira


Semana passada tive uma notícia que alegrou a mim e a um bocado de gente nas redes sociais: Os Mulheres Negras vão voltar. Esses paulistanos, que já vinham ensaiando um retorno desde 2009, agora se reúnem novamente para, provavelmente, lançar um novo disco – o provavelmente intitulado “Música, Guerrilha e Quitanda”. Esta incerteza toda é porque, quando se trata de Os Mulheres Negras, nada é lá muito confiável, pois tudo que sai deles carrega um quê de palhaçada. O provável nome do novo trabalho, por exemplo, segue a linha dos únicos outros dois lançados pela banda: “Música Serve Pra Isso” (1990) e “Música e Ciência” (1988), este último o grande disco de estreia da “terceira menor big band do mundo”, como se autointitulam (não me perguntem quem são as duas primeiras, pois acho que nem eles fazem ideia).
Banda totalmente atípica, já começa espirituosa tanto no nome como na formação e visual: Os Mulheres Negras é composta por apenas dois homens brancos, e a concordância errada se deve a uma esquisita homenagem às cantoras afrodescendentes. Versáteis e criativíssimos, o magro Maurício Pereira, vocal e sax, e o gordo André Abujamra, vocal e todos os outros instrumentos, se apresentam sempre de capa e com um chapéu que parece um xaxim. “Música e Ciência”, saborosamente eclético e artesanal, é experimental na medida certa, misturando diversos estilos ao toque cênico e cômico típico da Lira Paulistana (Maurício e Abujamra são também atores, constantemente vistos ou ouvidos em comerciais de TV, filmes, teatro, etc.). Seu título pode ser entendido como “Diversão e Técnica”, pois é evidente o quanto a dupla se diverte nas gravações, porém executando tudo com a técnica de ótimos músicos que são. Ou seja, no fundo, é um trabalho realmente sério e criterioso.
Inteligente e engraçado, o disco é delicioso de se ouvir de cabo a rabo. A primeira faixa já dá indício dessa mescla de musicalidade e humor. “Orelhão”, uma salsa eletrônica com cara de trilha de festinha infantil, chama-se assim porque sua letra é a reprodução de uma conversa telefônica entre Maurício e o pizzaiolo Seu Luciano, que se esqueceu de atender ao pedido deles. Na sequência, depois de alguns segundos ao som de uma gargalhada, aquele ritmo alegre e dançante da canção inicial dá lugar à enfurecida “Método”, um hardcore vociferado por Abujamra ao estilo João Gordo. Em seguida, o tom baixa de novo e vem o grande sucesso do grupo: “Sub”, uma versão swingada de “Yellow Submarine” dos The Beatles. Com um lindo solo de sax com os acordes de outra clássica dos Beatles, “While My Guitar Gently Weeps”, novamente traz o aspecto de música de criança ao reforçar o caráter lúdico da original – e superando-a em qualidade, inclusive.
A diversidade estilística está em todo o álbum. Tem bossa-nova (“Elza”), jazz (as belas instrumentais “Summertime”, “Mãoscolorida” e “19h30”), tango (“Feridas”, hilária), funk (a ótima “Eu vi”, outro sucesso) e rithim'n blues (“Gambá”, super bem cantada mas que não diz coisa com coisa). Mas não só o ecletismo prevalece, e sim o dueto de música e besteirol. “Milho”, com sentenças quase idiotas (uma mostra: “Atrás de um trilho reside um velho milho”), é minha preferida: um sertanejo caipira eletrificado com um incrível duelo de guitarra e acordeom. Matadora e hilariante. “Porquá Meciê”, num francês medonho, é outro destaque. Versos de pura bobagem do tipo: “Só hoje cedo eu já comi uns três tucanos” são musicados com maestria num pop swingado com uma batida bem marcada e uma gostosa levada de guitarra, além de detalhes brilhantes, como a variação timbrística e a afinação dos vocais da dupla e os solos de bateria (feitos com a boca!) de Abujamra.
Nesta linha, também há a vinheta “Samba do Avião”, clássico de Tom Jobim cantado à capela por Maurício. Até aí, tudo bem; se ele, além de pronunciar as palavras, não imitasse como a boca também o som da percussão! Outra, “Lobos para Crianças”, um jazz moderno que se transforma em rap, é exatamente o que seu título sugere: uma aula sobre Heitor Villa-Lobos para os pequenos. A letra diz: “Villa-Lobos, que cara legal/ Segura aí, moçada, vâmo sentá o pau/ Usou o charuto e escreveu a Bachiana/ E mais uma porrada de música bacana.” Como sempre, o negócio não fica só no gracejo: o solo de guitarra, reproduzindo “O Trenzinho Caipira”, é lírico e emocionante.
O desfecho tem a talvez mais engraçada do disco: “Xarope, a Levada”, cuja letra resume-se à genial frase: “Nosso objetivo é fazer música pop e, quem sabe, algum dia, ficar rico e xarope”. Um soul divertido ao estilo Motown pra mexer o esqueleto em clima de gravação caseira: falas ao fundo, risadas, palmas e chamamento para quem estiver ouvindo acompanhá-los naquela festa. Antes de tocarem este último número, porém, no espírito de improviso do disco, Abujamra chama o colega para dar um recado àqueles que escutaram “Música e Ciência” até o fim. É neste momento que ele diz a frase destacada no começo desta resenha e que, salvo o tom de autobrincadeira, é a mais pura verdade.
A banda é um daqueles casos da música brasileira que, sem grandes pretensões (tal como fora com o Tropicalismo, o “heavy-core” do Ratos de Porão ou a turma do Clube da Esquina, para ficar em apenas três exemplos), anteciparam tendências, tornando-se vanguarda na música mundial. Antes d’Os Mulheres Negras, não se tinha produzido em nenhum lugar do mundo algo que tivesse incorporado sem preconceito e com tamanha densidade, clareza de objetivo e leitura crítica a então recente ideia de “globalização” com tudo o que foi produzido em música pop até ali. Eles atualizaram o conceito de world music. Mostraram que, para ser moderno, não precisa ser high-tech; que para ser atualizado, não precisa viver no primeiro mundo; que para fazer um trabalho sério, não precisa ser sisudo. O segredo é enxergar as coisas com liberdade e rir um pouquinho delas.
Mesmo que “Música e Ciência” não tenha tido força comercial para chegar a ouvidos estrangeiros àquela época pré-Internet, Björk e Beck lançariam seus excelentes e avançados "Debut" e “Mellow Gold” apenas cinco e seis anos depois, respectivamente – aí, sim, revolucionando a música pop a partir de então. Talvez tenha sentido uma brisa dos ventos soprados pel’Os Mulheres Negras... Quem sabe? Porém o que “o gordo e o magro” sabiam muito bem era que não ficariam nem ricos e, muito menos, xaropes. Por isso sua retomada está sendo tão comemorada. A dupla retorna para mostrar o quanto continuam à frente de seu tempo e o quanto o terceiro mundo ainda é fonte de muita coisa nova que se faz por aí. Então: sejam benvindos de volta!
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FAIXAS:
1. Orelhão (Coruia, Maurício Pereira, André Abujamra)
2. Método
3. Sub [Yellow submarine] (Lennon, McCartney)
4. Summertime (Gershwin)
5. Feridas
6. 3 músicas coladas [Peter Gun](Henri Mancini, André Abujamra)
7. Purquá mecê
8. Eu vi
9. 19:30 (Agnaldo Valente Rocca, Maurício Pereira, André Abujamra)
10. Elza
11. Milho
12. Gambá
13. Lobos para crianças
14. Samba do avião (Tom Jobim)
15. Mãoscolorida
16. Xarope, a levada

todas de Maurício Pereira e André Abujamra, exceto indicadas


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Clipe de "Milho"


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Ouça o Disco:
Os Mulheres Negras Música e Ciência