Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Eisenstein. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Eisenstein. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

sábado, 14 de abril de 2018

"Sergei M. Eisentein", de Arlindo Machado - ed. Brasiliense (1978)



"(...) O orgasmo sexual não é senão a via mais fácil e corrente
de se obter o êxtase, mas este não se restringe ao prazer sexual,
podendo ocorrer até mesmo sob a forma
de um ataque epilético ou obra de arte."
Sergei Eisenstein



Dei a sorte de, numa dessas bibliotecas comunitárias, na frente da escola da minha filha, encontrar entre alguns outros títulos interessantes, um que me atraiu sobremaneira dada a minha admiração pelo biografado. Trata-se do cineasta russo Sergei Eisenstein, um dos diretores mais importantes dos primórdios do cinema, ainda no início do século XX, e que ajudou a tornar o ato de filmar e contar histórias com imagens em movimento em arte. Eisenstein não via o cinema apenas como uma sucessão de fotogramas e por isso tentava aplicar seus conceitos riquíssimos de intenções formais e artísticas a suas obras criando assim um cinema diferenciado, admirado e imitado por muitos até hoje. Apesar de ser um bolchevique, o cineasta vivia em constantes conflitos com Stálin e com as autoridades culturais do Partido Comunista por conta de sua luta por maior liberdade de expressão artística, por discordâncias pontuais em relação à política imposta, e, por incrível que pareça, por razões conceituais e estéticas de sua obra, que segundo os órgãos culturais, mesmo não representando oposição aos ideais do regime implantado há não muito tempo, na Revolução de 1917, não se enquadravam na propaganda que o Partido pretendia
Muito interessante conhecer e observar os critérios e técnicas de montagem de Eisenstein, um dos primeiros cineastas a dar ênfase e importância a este recurso fazendo dele um elemento fundamental e marca registrada em sua obra, inspirando com sua genialidade gerações futuras de diretores a partir dele. Além disso, a preocupação com a linguagem, com a semiótica, com a captação dos sentidos do espectador, o erotismo e a sensualidade em sua obra, sua busca pelo êxtase, tudo isso é contemplado e examinado com muita profundidade, critério e propriedade pelo estudioso Arlindo Machado.
Como curiosidade, na seção final da edição que eu tive em mãos, de 1978, na parte de filmografia recomendada, o autor lista os filmes de Eisenstein e ao lado de títulos como "Outubro", "O Encouraçado Potemkin", "A Greve", aparece a infame observação "Filmes proibidos no Brasil". Era o medo do comunismo privando as pessoas de obras de arte como aquelas.
Qualquer semelhança com certo país nos tempos atuais não é mera coincidência.
Diagrama de montagem desenhado por Eisenstein para "O Encouraçado Potemkin".
Ordem, movimento e conflitos de direções e formas.


Cly Reis

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Sergei Prokofiev - "Pedro e o Lobo" (1936)



Duas capas de "Pedro e o Lobo":
acima, a primeira gravação, com a 
Boston Symphony Orchestra, de
1939, e abaixo, versão em português
narrada por Rita Lee, de 1989
”Na Rússia, há um grande esforço para a educação musical das crianças. Uma das minhas peças orquestrais, ‘Pedro e o Lobo’, foi uma experimentação. As crianças recebem impressões de diversos instrumentos da orquestra apenas ouvindo a peça sendo apresentada”. 
Sergei Prokofiev

“[O estilo de Prokofiev é uma] combinação do simples com o intrincado, da complexidade do conjunto com a simplificação do particular”. 
V. Karatygin, crítico musical

“Todo o instável, transitório, acidental ou caprichoso foi excluído de sua obra (...) Nada efêmero, nada acidental. Tudo é distinto, exato, perfeito. Por isso, Prokofiev é um dos maiores compositores do nosso tempo”. 
Sergei Eisenstein

O compositor russo Sergei Prokofiev pode ser considerado um artista moderno em vários aspectos. Não apenas por ter contribuído para a construção da música contemporânea uma vez que pertencente à geração modernista, mas por ter sentido na pele o maior dos dilemas de um artista dos tempos atuais: ser pop ou não ser pop. Eis a questão. Para quem vivia de arte na Rússia de Stálin, o estrelato até era possível, mas não sem preço. O instituído conceito de Realismo Socialista exigia dos artistas maior comunicação com o publico. Trocando em miúdos: que suas criações servissem, como em qualquer ditadura, de propaganda política. Entre os grandes músicos de sua geração, todos, sem exceção, tiveram problemas para exercer justamente aquilo que os fazia importantes inclusive para o governo bolchevique, que se aproveitava de seus talentos para potencializar o discurso comunista. Stravisnky, Rachmaninoff e Shostakovitch, por exemplo, sofreram ora com a apropriação do Estado, ora com a ferrenha vigília do mesmo. Se não obedeciam, eram postos numa geladeira mais fria do que a Sibéria: aquela destinada aos traidores da nação. Fosse numa prisão domiciliar ou mesmo no autoexílio, não raro o resultado era uma depressão pela falta de liberdade ou, pior, pelo nacionalismo ferido. Não havia o que lhes salvasse.

Com Prokofiev ocorreu tudo isso também: talento descoberto cedo, alçamento à estrela, tentativa de doutrinação, contrariedade a esta condição, longo período sabático no exterior, amadurecimento artístico e... retorno para a Rússia. Nessa ordem. O bom filho, ainda mais um nacionalista como todos da sua geração, à casa tornaria hora ou outra, mesmo que o cenário não fosse dos mais favoráveis como aquele de 1933, 16 anos após a Revolução Socialista. Produzir? Podia, só que dentro dos ditames que o estado determinava. Passar a compor marchas diatônicas, corais para amadores e cantatas meramente comemorativas era o que lhe restava se quisesse trabalhar. Neste processo de simplificação linguística e aproximação com o lirismo tradicional russo escreveu trilhas para cinema em contribuições memoráveis nos filmes “Alexandre Nevsky” e “Ivan, o Terrível”, ambos de Sergei Eisenstein. Mas longe daquilo que gostava: dissonâncias, polifonia, riqueza harmônica e exageros aqui e ali. 

Só que, diferentemente dos seus pares, Prokofiev tinha dentro de si um anjo para lhe salvar. Compositor desde os 5 anos de idade, quando surgiu como pianista prodígio, Prokofiev resgata da memória as tenras melodias folclóricas que ouvia dos camponeses quando criança em Sontsovka, na Ucrânia, onde nascera, e do incentivo dos pais para a vida musical para se inspirar e pincelar com cores vivas a sua inevitavelmente intrometida obra. É neste contexto que nasce aquela que, além de ser sua obra mais conhecida, é também uma das mais revolucionárias da música erudita de todos os tempos: o conto sinfônico infantil “Pedro e o Lobo”, de 1936, para narrador e orquestra, Opus 67.

Capa do livro original 
em russo, de 1936
Na história, Pedro é um jovem pastor de ovelhas que vive com o seu avô no campo. Um dia, farto de algo mais divertido, decide gozar com as pessoas da aldeia, mentindo que estava sendo atacado por um lobo. Desmascarado, ele não é acudido pelos camponeses irritados com sua atitude mentirosa quando, de fato, o perigoso animal espreita. O lobo engole o pato, que havia fugido por descuido do menino, e só não o faz o mesmo com o gato porque este, ágil, sobe à árvore. 

O sucesso universal que “Pedro...” obteria século XX adiante faz com que seja difícil imaginar o quanto foi penoso para Prokofiev compô-la. Autor acostumado às construções intrincadas de melodia e harmonia, subvertidas com perícia e austeridade, o que geralmente lhe dificultava o entendimento, Prokofiev via-se agora diante da encomenda de Natalya Sats, diretora de um teatro infantil de Moscou, em um projeto no qual era necessário ser compreendido por todos os públicos, principalmente o infantil. Desta forma, o compositor usa toda sua inteligência musical para, num processo cartesiano, limpar as complexidades desnecessárias e edificar uma peça que, devido à sua beleza lúdica e clareza conceitual, passou a servir de referência a obras voltadas para crianças. Na Rússia e no mundo! Sendo forçosamente pop, Prokofiev inferiu de maneira inapagável na cultura pop.

Ledo engano, no entanto, supor que o compositor russo apenas despiu de experimentalismo sua música para criar um mero número fácil e vulgar. O grande mérito dele está em, sabendo valer-se de toda sua sensibilidade musical e extenso cabedal técnico – adquirido desde a infância com mestres como Glière, Rimsky-Korsakov e Stravisnky, e mais tarde, no convívio com figuras como Picasso, Cézanne, Diaguilev e Maiakowsky –, não desfazer a inteligência do público a quem se dirigia: as crianças. Situando-se entre a música absoluta, a realização de uma paisagem sonora ideal desvinculada do ambiente externo, e a música programática, gênero instrumental criado no período romântico que transforma o espaço natural em sala de concerto, “Pedro...” tem o objetivo pedagógico de ensinar música às crianças.

Prokofiev: um revolucionário
entre o erudito e o popular
Prokofiev deu a cada personagem da história a representação por um instrumento: Pedro, o quarteto de cordas; passarinho, a flauta transversal; pata, oboé; gato, clarinete; vovô, fagote; lobo, três trompas; e os sons dos caçadores, tímpanos e bombo. Através da linguagem musical plástica e literária, faz-se entender e entreter. No espaço simbólico entre a elite e o povo, Prolofiev optava pelos dois. Como Richard Wagner, o russo vale-se da aliteração poética para fazer com que a música participe do enredo, evocando sugestões e harmonias. Uma das ferramentas usados é outra técnica largamente usada pela ópera: o leitmotiv. Elemento recorrente na composição de “Pedro...”, ajuda Prokofiev a desenvolver temas que constituem, cada um, um “motivo”, isto é, uma reiteração ao longo da composição, que apela com frequência ao resgate de trechos e sons anteriores.

Ao suavizar sua estética geralmente arrojada por uma simplificação estilística, Prokofiev marca uma viragem que, talvez sem perceber, provocaria uma revolução na música mundial. Quantos artistas posteriores a ele oriundos do meio alternativo, da vanguarda ou do erudito também se depararam com a dicotomia entre popular e alta cultura? Manterem-se fiéis aos preceitos e restringir sua comunicação a poucos ou mudar de paradigma e expandir o alcance de suas obras? E quantos, sem saber lidar, se perderam nisso? Beatles, Salvador Dalí e Federico Fellini, cada um em sua área, sabem bem do que se trata. 

O fato é que é certo dizer, por exemplo, que “Fantasia”, realizado três anos após o lançamento de “Pedro...”, jamais sairia do raff de Walt Disney não fosse o conceito linguístico cunhado por Prokofiev, que foi aos Estados Unidos em 1938 apresentar-lhe a peça ao piano especialmente. Tanto que o próprio Disney produziu, em 1946, sua versão para a obra, introjetando seus ensinamentos. “Pedro...” influenciou as cabeças de Hollywood, que perceberam naquela “fórmula” de casamento música-imagem um poderoso elemento narrativo de comunicação com o público espectador, e não só o infantil. Filmes, animações, publicidade, televisão e tudo que se imagine da relação som/personagem bebem até hoje nesta inaugural sinfonia para crianças – e adultos, claro. Não precisa ir muito mais longe para notar essa influência. Os acordes de cordas que designam Pedro são exaustivamente copiados em praticamente todas as trilhas sonoras cinematográficas de filmes minimamente voltados ao público infanto-juvenil, visto que o principal reinventor do conceito musical do cinema moderno, John Williams, é claramente um adepto de Prokofiev.

"Pedro e O Lobo", de Walt Disney (1946)

Além disso, é possível ouvir versões de “Pedro...” nas mais diversas línguas e culturas, que se identificam com a história independentemente do local e tempo dada sua universalidade. David Bowie, Sean Connery, Bono Vox, Boris Karloff (inglês), Gérard Philipe, Pierre Bertin (francês), Antonio Banderas (espanhol), Sophia Loren (italiano), Paul de Leeuw (holandês), Rita Lee e até Roberto Carlos (português) já narraram a peça em seus respectivos idiomas em mais de uma centena de gravações.

O feito de Prokofiev, mesmo que a duras penas, foi o de contribuir sobremaneira para a cultura pedagógica da música na sociedade e para a popularização da música erudita, taxada de difícil e chata (muitas vezes, não sem razão) pelo grande público. Em “Pedro...”, sem abrir mão da tradição clássica e da veia vanguardista, Prokofiev, salvo pela própria alma infantil, ajudou a democratizar a música de alta qualidade, tornando-a popular no melhor sentido da palavra. Fez o que talvez camarada Stálin nem suspeitasse ser possível sem rigidez: uma obra literalmente “comuna”.

**********************************

FAIXAS:

1. "Parte 1" - 00:56
2. "Parte 2" - 01:25
3. "Parte 3" - 02:17
4. "Parte 4" - 01:49
5. "Parte 5" - 01:47
6. "Parte 6" - 01:04
7. "Parte 7" - 01:43
8. "Parte 8" - 01:25
9. "Parte 9" - 02:31
10. "Parte 10" - 01:31
11. "Parte 11" - 01:11
12. "Parte 12" - 00:33
13. "Parte 13" - 01:55
14. "Parte 14" - 00:19
15. "Parte 15" - 01:50

**********************************

OUÇA O DISCO:
Sergei Prokofiev - "Pedro e o Lobo"*

*Versão com a New Philharmonia Orchestra, narrada por Richard Baker com dondução de Raymond Leppard, de 1971, considerada pela revista de música clássica Gramophone como a melhor gravação de "Pedro e o Lobo"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Jesus e o Diabo na Terra do Pop

 

Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.

Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.

Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.

filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha


O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).

Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção. 

Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com
"Barton Fink": referências diretas

Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.

Miklos: atuação que
enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.

Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.

Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.

teaser de "Jesus Kid"



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Claquete Especial de Natal



Papai Noel passou por aqui


Nesta época de final de ano, o cinema, essa representação encenada e diegética da realidade, reforça sua função, seja ela de ajudar a refletir ou simplesmente entreter (ou os dois juntos, por que não?). Como n’"O Poderoso Chefão - Parte 2", em que os acontecimentos da máfia e da política estão fervilhando em plena virada de 1959 para 1960 em Cuba, ou em “Boogie Nights”, quando todos interrompem a chegada da década de 80 por causa de um suicídio em plena festa de Réveillon, o dia de Natal também (ou a passagem de 24 para 25) aparece em alguns filmes não necessariamente como tema central, mas como um pano de fundo essencial àquilo que se quer contar. Às vezes é um detalhe, mas extremamente simbólico para determinada obra de cinema. Um nexo narrativo que contribui para a história de forma a lhe trazer os ícones que a data representa (o nascimento e o significado simbólico de Cristo, a figura pop do Papai Noel, a valorização dos sentimentos de fraternidade e compaixão, a representação do consumismo, o pertencimento à sociedade capitalista ocidental, etc.).

Por isso, o Clyblog registra aqui algo nessa linha: não aquelas comédias natalinas típicas que, embora divertidas, são óbvias. Aqui, fugimos da obviedade. Listamos, sim, filmes que se nutrem dos elementos natalinos mais profundos por assim dizer, ainda que apenas como instrumento para dar um toque à trama, para gerar contraste entre a aparência e real ou apenas para contar melhor uma história. Se você está cansado de assistir as franquias “Esqueceram de Mim” ou “Meu Papai é Noel”, aqui vão alguns títulos que não esquecem da data, mas vão além da mesmice – e que, justo por isso, merecem ser vistos mesmo em outras épocas do ano. Mesmo que, porventura, apenas passem pelo tema, o Natal, com seus significados, está lá.


“Duro de Matar” (“Die Hard”, John McTiernan, EUA, 1988) 

Provavelmente o melhor filme de ação dos anos 80 junto com “Um Tira da Pesada”, “48 Horas” e alguns outros poucos, tem o Natal como pano de fundo para uma trama inteligente que mescla policial, comédia e realismo (sim, realismo) na medida certa. O policial nova-iorquino John McClane (Bruce Willis) vai visitar a esposa em Los Angeles, que está numa festa de Natal da empresa onde trabalha, no edifício Nakatomi Plaza. Durante a festa, terroristas alemães, liderados por Hans Gruber (Alan Rickman) invadem o prédio e sequestram todos os convidados com a intenção de roubar milhões em ações da companhia. McClane escapa de ser aprisionado pelo grupo de Gruber e, com grande dificuldade, mas com perícia e astúcia, passa a combatê-los.

A fórmula é muito parecida com o que Hollywood fazia de muito tempo no gênero ação/policial – as sequências com o gancho da tensão e as explosivas cenas de ação, entremeadas por tiradas engraçadas que aliviam a seriedade e a periculosidade – mas adiciona-lhe algo que passaria a servir de exemplo para trocentas produções posteriores: a pegada realista. McClane derrota os terroristas neste dia de Natal atípico, mas o consegue a custas de muito esfolamento. O conceito de anti-herói, humano e mortal, é uma quebra de paradigma no cinema norte-americano do gênero. Se há estilhaços de vidro no chão e McClane está descalço, ele vai cortar o pé, ora essa! É exatamente isso que acontece, numa ressignificação do tipo James Bond, perfeito e inatingível. Tanto é que, por tudo que passa, McClane sai um trapo no final do filme, o qual finaliza emblematicamente com o jazz natalino “Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!” na voz de Vaughn Monroe. Igualmente, o contraste dos elementos visuais e alegóricos da data com a violência (o vermelho da roupa do Papai Noel com o sangue dos ferimentos) funciona muito bem. Daqueles que sempre que estão passando na TV se assiste, inevitável.


  • "Duro de Matar" - "Ho-Ho-Ho!"




“Morte e Vida Severina” (Walter Avancini, BRA, 1981)

Uma obra-prima da teledramaturgia mundial (vencedora do Emmy daquele ano), é a encenação do poema de João Cabral de Melo Neto, o qual se chama também “Auto de Natal Pernambucano”. Com músicas primorosas de Chico Buarque e aproveitando parte do elenco que Zelito Viana usara na filmagem da história quatro anos antes para o cinema, esta é, sem dúvida, a mais bela versão do texto clássico do poeta pernambucano.

De forte cunho social e denunciador, narra a trajetória do retirante nordestino Severino (José Dumond, impecável) do sertão árido à capital Recife através de versos musicados ou recitados em busca de respostas à vida miserável que leva. O que encontra em muitas das etapas dessa cruzada é apenas morte através do descaso e da desassistência do povo, de “Severinos iguais em tudo na vida”, o que o faz pensar em “saltar fora da ponte e da vida”. Mas o nascimento de mais um “Severino”, filho de um carpinteiro pobre mas sábio, vem trazer cores à desesperança. É a “boa nova” que o Natal ensina, o Cristo incutido naquela pequena e franzina vida que se rebenta. “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida?”.





“A Felicidade não se Compra” (“It's a Wonderful Life”, Frank Capra, EUA, 1946)

Capra é um dos mestres do primeiro cinemão norte-americano. Era capaz de criar filmes de marcantes conceitos estético e narrativo a um espírito fortemente nacionalista, seja na valorização dos símbolos de seu país, seja no recorrente tom moral típico daquele povo, o qual vai da puerilidade à arrogância. No caso, mais para onírico, “A Felicidade...” conta a história de um espírito candidato a anjo que, para ganhar suas asas, recebeu a missão de ajudar um empresário (James Stewart) que, em virtude de grave problema financeiro, tinha a intenção de se suicidar. O aspirante a anjo aparece-lhe na véspera do Natal quando este está prestes a saltar de uma ponte. Ele fala de sua missão e comentou que seria um desperdício matar-se, pois ele era importante para muita gente. Ante o ceticismo de seu protegido, que se sentia um fracassado, o amigo espiritual mostrou-lhe várias situações que teriam acontecido se não fosse sua interferência: a morte do irmão, o desespero da II Guerra (recém terminada quando o filme foi rodado), a tristeza da esposa, a situação lastimável de sua cidade, entre outras.

Com fotografia P&B impecável – bastante forjada no cinema soviético de Eisenstein e Vertov –, Capra amarra uma história cheia de acontecimentos com um domínio narrativo espantoso sem deixá-la confusa ou chata. Trata-se de um típico clássico natalino, eu sei, mas com tamanha qualidade não daria para deixá-lo de fora – até por que, atualmente, está em desuso assistir a filmes antigos ainda mais nessa ditatoriamente colorida época natalina. No final, a mensagem é evidente, o que não lhe tira a emoção – até por que muito bem escrito e realizado.



“Cortina de Fumaça” (“Smoke”, Wayne Wang e Paul Auster, EUA/Alemanha, 1995)

Uma ode à solidariedade e ao respeito às diferenças, sejam elas raciais, de gênero ou qualidades pessoais. Tem coisa mais a ver com Natal isso? Pois esta pequena obra-prima com cara de Jim Jarmusch traz isso e mais um pouco. O “isso” é a história envolvente e coral: Auggie Wren (Harvey Keitel) tem uma tabacaria onde circulam tipos bem peculiares (olha aí as diferenças subtextualizadas). Ele também tem um hábito próprio: o de fotografar, às oito da manhã, a fachada de sua loja. É assim que ele conhece o escritor em crise criativa e emocional Paul Benjamin (William Hurt), que, por um momento fortuito, acaba conhecendo um jovem negro morador de rua a quem ajuda a encontrar seu pai. A história é, na verdade, um reencontro das raízes pessoais e dos laços afetivos mal resolvidos no passado.

O “um pouco mais” a que me referi é, além desse instigante subtexto, há a célebre cena em que Auggie vai parar na casa de uma senhora cega cujo neto furtara-lhe a loja. Ela, amorosa e sem os pré-conceitos de quem enxerga apenas com os olhos, o recebe e o convida para cear com ela naquela véspera de Natal. Tudo ao som da belíssima canção “Innocent When You Dream”, de Tom Waits. Cena emocionante. Uma história tão linda que, renovadas as emoções de todos na trama, motiva o até então travado escritor Paul em seu novo romance, chamado: “Auggie When’s a Christmas Story”.


  • "Cortina de Fumaça" - História de Natal de Auggie Wren



“O Natal do Charlie Brown” ou “Feliz Natal, Charlie Brown” (“A Charlie Brown Christmas”, Bill Melendez, EUA, 1965)

Já havia me referido ao filme indiretamente aqui no blog no Natal de 2013 quando escrevi sobre a magnífica trilha sonora de Vince Guaraldi nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Pois além da preciosidade que musica o episódio, a própria animação merece destaque. Com os elementos característicos da série de Charles Schulz, o curta “O Natal do Charlie Brown” é o primeiro desenho animado da turma dos Peanuts. Quando o questionador Charlie Brown reclama sobre o sentido materialista que as pessoas dão à data, Lucy sugere que ele se torne o diretor de uma peça teatral no colégio. Charlie Brown aceita, mas, claro, sua insegurança e os ingovernáveis fatores externos fazem com que ele perca o controle, frustrando-se. “Que puxa!” O amigo de todas as horas Linus, entretanto, lhe consola relembrando o verdadeiro sentido natalino.

Tem um Charlie Brown e Snoopy novo por estrear no Brasil que aproveita o Natal (comercialmente, inclusive) como pano de fundo, mas este aqui é insuperável, não só pela trilha original de Guaraldi mas pela precisão de Melendez na direção, que sempre imprimiu à série de TV a dose certa de doçura, comédia, entretenimento e ludicidade. Atração – e ensinamento – para crianças e adultos.


  • "O Natal do Charlie Brown" 






“Fanny e Alexander” (Ingmar Bergman, SUE/FRA/ALE, 1982)

Sou um tanto suspeito em falar desse filme, pois trata-se de meu preferido da longa, profícua e expressiva filmografia do gênio Bergman. Entretanto, como deixar de fora essa obra-prima que, além de alinhar-se bastante com o recorte que proponho, é o amadurecimento total de um artista que já nascera maduro para o cinema. Superprodução que encerra a carreira do cineasta na grande tela, transcorre-se em dois anos da primeira década do século XX na família Ekdahl. Após um alegre Natal, o pai de um casal de crianças morre. Deste momento em diante Alexander (Bertil Guve), o menino, passa a ver o fantasma do pai frequentemente. Tempos depois, sua mãe casa-se com um extremamente rígido religioso e as crianças são obrigadas a deixar a casa da avó paterna para viverem com a família do padrasto de hábitos severos, onde são tratados como prisioneiros. Na casa do padrasto o sensível e inventivo Alexander passa a ver o fantasma da primeira esposa dele e suas filhas, que haviam morrido tentando escapar dele. Decorrido algum tempo, a mãe se conscientiza da real personalidade do marido e de quanto seus filhos sofrem naquela casa e planeja um modo de tirá-los daquele lugar e levá-los de volta para casa.

O proposital clima espiritualista de toda a história faz cama para a impactante sequência da fuga, em que as forças divinas operam um milagre de Natal e os três conseguem escapar da prisão domiciliar. Haveria muito a se falar sobre “Fanny e Alexander” (a relação entre pais e filhos, a espiritualidade imanente, a percepção afinada da criança, a metáfora da vida como palco – e vice-versa –, os limites entre vida e morte, etc.) mas destaco aqui um fator primordial: o fato de o Natal estar presente no início e no final do filme. A data do nascimento de Jesus demarca dois momentos psicológicos e emocionais dos personagens, numa significação das possibilidades de mudança e desenvolvimento da vida e das pessoas. Cada um com suas qualidades e dificuldades, com suas personalidades e jeitos, mas passíveis de enxergarem o mundo para além de si mesmos. Afinal, é Natal.


  • "Fanny e Alexander" - Ceia de Natal









O ClyBlog deseja um
Feliz Natal a todos!

segunda-feira, 2 de março de 2015

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 80




Enfim, chegamos à terceira e última listagem de filmes brasileiros essenciais para se entender o nosso cinema no final do século XX, terminando com a safra dos 80. Mais do que para com os anos 60 e 70, a década de 80 foi a que mais tive dificuldade de escolher entre tantos títulos que considero fundamentais. Talvez pelo fato de, dos anos 60, embrionários e revolucionários, haver mais clareza quanto ao que hoje é tido como essencial, bem como pela até injusta comparação com os sofridos e minguados anos 70. O fato é que a produção dos 80 vem justificar, justamente, o decréscimo quali e quantitativo da sua década anterior. Tanto é verdade que, com os reflexos visíveis da Abertura Política e já se enxergando a tão sonhada democracia não apenas como uma miragem, os cineastas brasileiros – mesmo com a menos rígida mas ainda existente censura – passam a ter uma até então inédita estrutura através de verba do próprio Governo via Embrafilme.
Foi aí, então, que os cineastas daqui mostraram o quanto são, de fato, brasileiros. Se já haviam conseguido, nos 60 e 70, realizações memoráveis sem uma Atlântida ou Vera Cruz por trás, quando tiveram um tantinho mais fizeram “chover pra cima”. Desfalcados a maior parte da década da tempestuosidade de ideias de Glauber Rocha, falecido em 81, além de Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, também vitimados cedo, outros cabeças do cinema nacional avançaram em temática, nível técnico, concepção e apelo com o público. Ironicamente, entretanto, se os 80 justificaram a baixa dos 70, também herdaram o inevitável: justo na década que talvez melhor se tenha produzido para as massas até então, recaiu-lhes a pecha de cinema malfeito e sem qualidade, motivado, principalmente, pela herança das famigeradas pornochanchadas, naturalmente desvalorizadas com o declínio do discurso do Governo Militar – estigma do qual o cinema nacional tenta se livrar até hoje.
Para além das comparações, a diversidade do cinema nacional dos 80 é grande. As abordagens vão desde cinebiografias (pouco vistas até então), felizes adaptações do teatro para as telas (finalmente!), avanço do documentário, início da descentralização da produção eixo Rio-São Paulo e, principalmente, uma maior liberdade de expressão. Sem o fantasma constante das torturas e perseguições, as histórias tocavam agora direto nas feridas da ditadura. “Nos nervos, nos fios”. Ainda deu tempo, inclusive, de tanto Glauber quanto Leon produzirem as talvez obras-primas de ambos. Diretores surgiam; uns, despontavam; outros, afirmavam-se. Nesse contexto, sobraram títulos que, por restringirmos a 20, não puderam entrar na lista, mas que merecem menção: “Barrela”, “Cidade Oculta”, “A Dama do Cine Shangai”, “Quilombo”, “Um Trem Pras Estrelas”, “Gabriela”, “Índia, a Filha do Sol”, “O Romance da Empregada”, “Inocência”, sem falar nas produções televisivas de Walter Avancini. Mas, com esses 20 não tem erro: só filmaços.



1 - “A Idade da Terra”, Glauber Rocha (80) – Poesia total. O último e criticado filme de Glauber, fábula sobre as possíveis vidas e mortes de Cristo num Brasil moderno, pode ser visto até como uma metáfora visionária da morte do cineasta, que, entristecido com o Brasil e com a recepção a seu filme, sucumbiu um ano depois de lançá-lo. Esqueça os detratores: “A Idade...” é grande, potente, cáustico, catártico, altamente filosófico. Um dia será devidamente reconhecido.





2 - “Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (80) – Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que só fala besteira e produz coisas intragáveis e ininteligíveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.




3 - “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (80) – Outra feliz adaptação de peça, outra feliz adaptação de Nelson Rodrigues. Essa, no entanto, deixando de lado a linguagem metafórica e fantástica de “Os 7 Gatinhos”, investe numa história contada com rigor e direção segura, apoiada pelas ótimas atuações de todos: Ney, Tarcisão, Daniel, Torloni, Lídia. Daqueles filmes que, se está passando na TV, não se fixe por 15 segundos, pois senão acabarás terminando de assisti-lo inevitavelmente.



4 - “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (80) – Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassitência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.





5 - “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (81) – Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.



6 -Sargento Getúlio”, Hermano Penna (81) – Pouco lembrado, mas talvez o melhor filme nacional da década. Adaptação do romance de João Ubaldo, dá ares de tragédia shakesperiana à história em plenos sertão e Ditadura Militar. Crítico, poético e altamente literário, sem deixar o aspecto fílmico de lado, haja vista a fotografia, cenografia e a arte primorosos. E o que dizer de Lima Duarte, Melhor Ator em Gramado, Havana e APCA? Ponha sua atuação entre as 20 maiores do cinema mundial sem pestanejar. Ainda levou Melhor Filme e Crítica em Gramado.






7 - “O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (81) – A forte atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme conta a história do poeta popular, o nordestino Deraldo, quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers.




8 - “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (82) – Poético e divertido, “Bar...” é o típico filme do novo Brasil que se construía com a Abertura, o que significava transformações irrefreáveis, como o avanço da modernidade e a morte da antiga boemia poética. Junto com a companhia Asdrúbal Trouxe o Trambone, lançou toda a geração de atores que viriam a desembocar na TV Pirata e afins e no cinema que se constituiu no Brasil na pós-retomada. Cenas memoráveis, atuações impecáveis, diálogos idem. Música-tema de Caetano com Gal Costa. Vários prêmios em Gramado. Uma joia.





9 - “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (82) – Tijolaço na cara da ditadura, que, embora mais branda, ainda se mantinha no governo Figueiredo. Corajoso e sem dó, evidencia a desumanidade do regime militar ao contar a história de um homem confundido com um “subversivo” e que é dura e aleatoriamente torturado, fazendo um paralelo com o clima festivo da Copa de 70. Primeiramente proibido pela censura, depois de liberado arrebatou Gramado (Filme e Edição) e levou prêmio em Berlim, entre outras premiações e indicações.





10 - “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (84) – O letreiro inicial diz tudo, quando o título do filme se constrói de forma a se entender “Tão Felizes Nunca Fomos”. Estocada forte na Ditadura, rodado no último ano do Governo Militar, conta a história de um filho de um misterioso militante político que é retirado de um colégio interno para viver temporariamente num moderno e entediante apartamento. Alto nível técnico. Arrebatou Brasília e prêmio da Crítica em Gramado.






11 - “Verdes Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (84) – O cinema gaúcho, encabeçado pela galera da Casa de Cinema, começava nos 80 a mostrar suas qualidades: roteiros tratados literariamente, ares de cult movie europeu, técnicos competentes e sotaque diferente do “carioquês” ou “paulistês” que todos eram acostumados a ouvir no cinema nacional. Um sopro de criatividade que revolucionaria o audiovisual brasileiro a partir dos anos 90. Tema musical clássico de Nei Lisboa.






12 - ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (84) – Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.




13 - “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (84) – Prova de que Nelson Pereira não tinha “perdido a mão” depois de erros e acertos nos anos 70, se debruça novamente sobre Graciliano Ramos, mas desta vez não como fizera com seu grande romance, “Vidas Secas”, mas sobre o próprio escritor quando de sua prisão pelo Governo Vargas. Um épico que ganhou prêmio da crítica em Cannes.





14 - “A Hora da Estrela”, Suzana Amaral (85) – Exemplo de como se fazer um filme pequeno, com baixo orçamento, mas de muito, muito esmero de roteiro (baseado no forte texto de Clarice Lispector) e cenografia. Cartaxo interpreta a inocente Macabéa, noutra atuação espetacular dos anos 80 no cinema mundial, que a fez ganhar Urso de Prata em Berlim, onde a diretora também ganhou prêmio da crítica. O filme ainda levou tudo no Festival de Brasília.






15 - “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (85) – Uma história improvável em uma produção brasileiro-americana ainda mais improvável de dar certo. Mas Babenco, talentoso e sensível, amarra tudo com maestria. De roteiro primoroso, é mais uma pungente crítica ao Governo Militar e que tem nas atuações dos estrangeiros John Hurt e Raul Julia e na dos brasileiros, Lewgoy, Sônia Braga e Milton Gonçalves sua base. Cannes e Oscar de Ator para Hurt, mas concorreu também a Filme, Direção e Roteiro na Academia e a Palma de Ouro.





16 - “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (86) – Na sua longa filmografia, Rezende se especializou em rodar temas ligados à história do Brasil. Porém o seu maior acerto é justamente o primeiro com esta temática. Sobre o controverso político de Duque de Caxias, Tenório Cavalcanti (Wilker, incrível), é um exemplo a se seguir de cinebiografias, as quais hoje tanto se fazem mas que resvalam na superficialidade. Grande vencedor de Gramado.






17 - “O Grande Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (86) – Das melhores comédias do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”, direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães, Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante. Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e EUA.




18 - “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (86) – Ruy é o cara que sempre produziu com alto padrão de qualidade desde que surgiu, nos anos 60. Em “Ópera...”, coprodução da Embrafilme com a França, ele eleva ainda mais o nível. Numa adaptação da peça de Chico Buarque (por sua vez, baseada em Brecht e Gay), ele se vale do apoio do amigo e parceiro não só para os maravilhosos temas musicais como até para os diálogos. Tiro certeiro. Musical que não te cansa, pois integra tanto a cenografia às canções que todos os atores se saem bem cantando.






19 - “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr, (87) – Lenda popular e realidade se misturam nessa fábula contada com muita poesia sobre a beleza do imaginário e da sexualidade feminino, tema que Lima Jr. recuperaria 10 anos depois em “A Ostra e o Vento”. Dos primeiros filmes brasileiros que me arrebataram. Nunca me esqueci da lindeza da fotografia das cenas noturnas, com a claridade (muito bem fotografada) da lua na praia. Outra ótima trilha de Tiso.






20 - “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (89) – Terminando a década, Murilo acerta a mão em cheio de novo, desta vez adaptando Best-seller de Sabino. O resultado é um drama policial potente e não menos crítico no que se refere ao sistema. Atuações memoráveis de José Lewgoy, Pedro Vasconcelos e Paulo José, principalmente. Direção, Fotografia e prêmios técnicos em Gramado, além de Filme em Natal e Rio.




**********************
Embora goste menos desses títulos ou até não goste de alguns, acho justo, por uma questão jornalística e histórica, ao menos citá-los, pois cada um tem seu grau de importância dentro do período dos anos 60, 70 e 80 que abordamos:
60: “Macunaíma” (Joaquim Pedro, 69); “Cara a Cara” (Bressane, 67); “A Falecida” (Leon, 65); “Porto das Caixas” (Saraceni, 62); “Bahia de Todos os Santos” (Triguerinho, 60); “A Grande Feira” (Pires, 61); “A Grande Cidade” (Cacá, 66)
70: “A Lira do Delírio” (Walter Lima. 78); “O Amuleto de Ogum” (Nelson Pereira, 74); “A Dama da Lotação” (Neville, 78); “Toda Nudez Será Castigada” (Jabor, 73); “Doramundo” (Tizuka, 78); “A Rainha Diaba” (Fontoura, 74)


80: “Eu te Amo” (Jabor, 80); “Eu Sei que Vou te Amar” (Jabor, 86); “Festa” (Giorgetti, 89); “A Marvada Carne” (Klotzel, 85); “Amor Estranho Amor” (Khouri, 82); “Das Tripas Coração” (Ana Carolina, 82); “Superoutro” (Navarro, 89); “Bonitinha, mas Ordinária” (Chediak, 81)