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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Cartola - "Cartola" (1976)



"A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira é patente quer na composição, quer na execução. (...) Trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois conviveram civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza".
Carlos Drummond de Andrade



O escritor Ariano Suassuna, numa hilária passagem de uma palestra que proferira em 2012, comenta sobre a desqualificação da cultura no Brasil e cita como exemplo uma matéria do jornalista Carlos Eduardo Miranda, a qual dizia ser o guitarrista da banda pop-brega Calipso, Chimbinha, um “gênio”. Suassuna, do alto de sua sabedoria, ironiza indagando que, se for usar o termo “gênio” para alguém como o famigerado Chimbinha, o que lhe resta para qualificar Mozart? De fato, o adjetivo é forte e sofre de constante vulgarização nos tempos atuais, a ponto de chegar a uma total inadequação como esta. Porém, há casos em que chamar algo ou alguém de genial é mais do que cabível: é a única forma de classificar. É o caso de Angenor de Oliveira, um dos maiores compositores que a música (popular? Brasileira? Mundial?) já viu. De vida oscilante entre a fama e a dureza, foi nesta segunda que se consagrou. Os anos de lida difícil como pedreiro serviram se não por outro motivo pelo menos de uma coisa: por conta do justificável cuidado que tinha com a preciosa cabeça – de onde saíam as tais genialidades –, protegia-a dos dejetos de obra usando um chapéu coco. O suficiente para os colegas de broxa e argamassa lhe darem o apelido que viraria a alcunha artística definitiva deste Mozart do morro: Cartola.

Completando 40 anos de seu lançamento, o segundo disco do sambista é a consolidação de uma era iniciada na virada do século XIX para o XX quando negros ex-escravos e filhos deles migraram do Nordeste para o Rio de Janeiro, a capital brasileira que veria o nascimento do gênero musical essencialmente nacional: o samba urbano. Após gravar o também fundamental álbum de estreia, em 1974, igualmente homônimo e recheado de clássicos da MPB, Cartola viu-se, aos 67 anos de idade, finalmente alçar ao estrelato. Mas, como dito, antes de chegar a isso travou muitas batalhas com o destino. Sua vida cheia alegrias e tristezas foi o verdadeiro reflexo do negro pobre brasileiro: mesmo com tamanho talento, a discriminação e as dificuldades raciais e socioeconômicas muitas vezes se sobrepuseram. Aos 8 anos, nos anos 10, já tocava cavaquinho e acompanhava os blocos carnavalescos. Mas a fome atingia a ele e a sua família, tendo de dividir-se entre o pinho e o trabalho desde cedo. Na adolescência, em 1928, fundou a primeira agremiação de samba do Rio, a famosa Estação Primeira de Mangueira, época em que já compunha vários sambas, muitos deles sucessos na voz de Carmen Miranda, Francisco Alves e Mário Reis (mesmo que não recebesse crédito às vezes, ou seja, não fosse pago pela autoria). Pouco depois, tem de abandonar os estudos, pois a mãe morre e passa a se sustentar sozinho. Até que contrai meningite e, em seguida, fica viúvo, afastando-se por uma década do violão pelo desgosto. Volta à cena por acaso num café de Ipanema quando Sérgio Porto o descobre lavando carros num prédio do bairro. O ano era 1956, e corria pelos botecos a lenda de que mito Cartola havia morrido. Não: a vida não havia conseguido derrubá-lo. Pouco tempo dali, com ajuda de amigos e admiradores, monta com a segunda e derradeira esposa, D. Zica, o bar Zicartola, página importante na história da música popular brasileira que viu, por exemplo, jovens como Paulinho da Viola nasceram para a música. Claro, sob a bênção de Cartola, a partir dali fadado finalmente só aos aplausos.

Chegados os anos 70, o qual não se imaginava ser a última década da vida de Cartola (podia-se pelo menos suspeitar, dada a idade avançada e o organismo judiado), um de seus admiradores, o produtor musical João Carlos Bozelli, o Pelão, deu-se conta de uma coisa importantíssima: mesmo com o tardio mas devido reconhecimento, Cartola não tinha ainda um disco solo! Vários o gravaram dos anos 20 até então, tendo suas composições já imortalizadas na música brasileira mais do que o próprio autor. Mas ele mesmo, cantando e protagonizando, havia apenas uns poucos e esparsos registros. Diversas das joias compostas por ele ao longo de 60 anos e cantadas por outros intérpretes – “Não posso viver sem ela” (Ataulfo Alves, 1941), “O Sol Nascerá” (Isaura Garcia, 1964), “Sim” (Elizeth Cardoso, 1965), "Festa da vinda" (Elza Soares, 1973) – juntaram-se, então, a canções novas que, tal o poder operado pelos gênios, tornaram-se clássicos atemporais imediatamente. É o caso de “O Mundo É Um Moinho”, samba-canção que abre o segundo disco e que traz um dos mais belos poemas da língua portuguesa, algo do nível de Camões ou Vinícius. A exatidão formal dos versos sobre o requinte harmônico é aquilo que um Chico Buarque sempre buscou. “Preste atenção querida/ De cada amor tu herdarás só o cinismo/ Quando notares estás a beira do abismo/ Abismo que cavastes com teus pés.”. A melodia é primorosa, como se o amigo (e admirador) Heitor Villa-Lobos tivesse posto em partitura um samba. No luxuoso arranjo, assinado por Dino 7 Cordas, a flauta do virtuose Altamiro Carrilho e o violão solo de um então jovem chamado Guinga. Perfeição é pouco.

Na mesma linha temática de perda da amada, “Minha” (“Minha/ Ela não foi um só instante/ Como mentiam as cartomantes/ Como eram falsas as bolas de cristal”) traz a tradicional elegância poética e composicional de Cartola, a qual o poeta Drummond chamou de “delicadeza visceral”. É isso que se sente noutra de suas imortais canções, esta, um dos hinos da Mangueira: “Sala de Recepção”. “Habitada por gente simples e tão pobre/ Que só tem o sol que a todos cobre/ Como podes, Mangueira, cantar?”. Com esse questionamento, que percorre todo um paradigma sociocultural dos povos marginalizados e sua bravia cultura – a qual prescinde de estudo formal, haja vista que um poeta e compositor de fina estampa como Cartola tinha apenas o primário –, tem a ajuda do registro agudo da cantora Creusa, equilibrando o tom moderado e elegante do canto de Cartola. E com que beleza são cantados os versos! “Pois então saiba que não desejamos mais nada/ A noite e a lua prateada/ Silenciosa, ouve as nossas canções”.

Outra das antigas, sucesso já nos anos 40, “Não Posso Viver sem Ela” vem num arranjo redondo de partido-alto, favorecendo a voz declamativa de Cartola – esta, acompanhada, na segunda parte, por um coro feminino. O trombone inicia anunciando os acordes-base. Segue desenhando frases do sopro a faixa inteira com a majestosa “cozinha” que traz Elton Medeiros no ganzá e caixa de fósforos; Gilson de Freitas, no surdo; Jorginho do Pandeiro no seu instrumento originário; Nenê, na cuíca; mais Meira ao violão; Canhoto no cavaquinho e Dino 7 Cordas tangendo as próprias. Mais um samba romântico, cujo refrão é uma aula de uso poético do idioma lusófono: “Pode ser que ela ouvindo os meus ais/ Volte ao lar pra viver em paz”. Isso se chama “rima rica”, meus senhores. Paulinho da Viola, valorizador de Cartola desde sempre, a gravaria numa versão de igual qualidade em 1983.

Mais uma gloriosa é “Preciso me Encontrar”, única do disco não composta por Cartola junto com “Senhora Tentação” (de Silas de Oliveira, originalmente gravada por Elizeth Cardoso em 1967 com o título “Meu Drama”). Esta é de outro mestre do samba: o portelense Candeia. Abertura mais do que marcante ao som de um fagote e o dedilhado aberto do violão, erudita e melancólica. A versão choro de Marisa Monte, de 1989, é muito legal, mas inesquecível mesmo é a cena de “Cidade de Deus” em que esta, a original, faz trilha para a fuga frustrada do personagem Cabeleira: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar.” Simplicidade dos versos e uma síntese narrativa impressionante que caíram como uma luva ao filme.

“Peito Vazio”, outra das recentes à época da gravação, é mais uma de tirar o fôlego tamanha sua riqueza melódica, seja na estrutura harmônica airosa, seja na poética romântico-parnasiana. Chico Buarque, no documentário “Palavra (En)Cantada“, disse-se impressionado com tal capacidade inata de Cartola e desses sambistas do morro, uma vez que provavelmente jamais tiveram acesso à literatura parnasiana ou romântica. O belo samba “Aconteceu” (“Aconteceu/ Eu não esperava, mas aconteceu/ Todo o bem que fiz, se fiz, ela esqueceu”), também nesta linha, antecede outra prova da criatividade superior do Mozart da Mangueira: “As Rosas não Falam”. Assim como “O Mundo é um Moinho” (e outras composições sui-generis como “Acontece”, do álbum anterior, e “Nós Dois”, de 1977), pode-se classificar como uma obra-prima – é tida como a 13ª maior música da MPB em votação da revista Rolling Stone Brasil.

Ouvindo-se “As Rosas não falam”, a comparação com um músico erudito não parece exagerada, o que ratifica em carta medida a percepção manifestada por Chico. Quem conhece o "Vocalise, Op.34,Nº14", do compositor, maestro e pianista russo Sergei Rachmaninoff talvez nunca tenha percebido a semelhança da melodia desta com a música de Cartola. Não que o sambista não pudesse admirar algo deste tipo – pelo contrário, tinha sensibilidade musical suficiente para tal. Mas é bastante improvável que tenha se inspirado em Rachmaninoff ou mesmo escutado a peça – repetindo-a inconscientemente ou “chupando-a” conscientemente – antes de inventar os acordes deste samba. Proposital ou não, é-lhe elogiável. O arranjo, o qual conta novamente com a flauta de Carrilho, favorece o brilhantismo cristalino da melodia e da harmonia. E o que dizer da riqueza literária desses versos: “Queixo-me às rosas, que bobagem/ As rosas não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti, ai”?

“Sei Chorar”, de ritmo animado mas de letra igualmente sobre um amor desiludido, abre caminho para mais uma genial: “Ensaboa”. Lundu em dueto novamente com Creusa, se situa entre a reverência à linguagem ancestral africana, repetindo os cantos de trabalho das lavadeiras rurais, e a poesia modernista, no emprego fonético da sintaxe, no ritmo interno das palavras e na abordagem social do tema central. Marisa Monte também gravaria essa nos anos 90 numa linda versão em que lhe intensifica o aspecto rítmico. Finalizando o disco mais um clássico: “Cordas de aço”. Metalinguística, é a simbiose entre emoção e técnica, entre artista e sua arte. “Ai, essas cordas de aço/ Este minúsculo braço/ Do violão que os dedos meus acariciam/ Ai, esse bojo perfeito/ Que trago junto ao meu peito/ Só você, violão, compreende porque/ Perdi toda alegria”.

O historiador e pesquisador musical brasileiro José Ramos Tinhorão conta, em seu “História Social da Música Popular Brasileira”, que, na Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, “as camadas populares urbanas viviam um dinâmico processo de grande riqueza cultural”.  Foi nesta época que surgiram os primeiros blocos carnavalescos e os primeiros nomes do samba, tanto na Zona Portuária e arredores quanto no Estácio de Sá e nas periferias e morros, como o da Mangueira, o que deu a luz à Cartola. Tardios, os dois primeiros discos dele, além de conterem a mais alta qualidade musical, formam um arquivo de importância documental e antropológica incomensuráveis dentro da cultura brasileira e dos processos sociais da América negra. Por razões socioculturais e econômicas nefastas e vergonhosas, demorou meio século para que o óbvio acontecesse, processo idêntico ao ocorrido com outros bambas como Clementina de Jesus, Nelson Sargento, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva e Adoniran Barbosa. Todos só gravariam trabalhos solo na terceira idade e na última década de suas vidas. Se isso é um resultado das tais desvalorização e vulgarização da cultura a qual Suassuna diz ainda acometer o Brasil, ao menos, em algum momento, os moinhos do mundo sopraram a favor da genuína genialidade. E se a fama chegou até a porta de Cartola sem ser procurada, como frisou Drummond, o fez com o devido respeito e deferência, enquanto que o discreto Cartola recebeu-a com a cortesia de um verdadeiro nobre.


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FAIXAS:
1. O Mundo é um Moinho
2. Minha
3. Sala de Recepção
4. Não Posso Viver sem Ela (Cartola/Bide)
5. Preciso me Encontrar (Candeia)
6. Peito Vazio (Cartola/Elton Medeiros)
7. Aconteceu
8. As Rosas não Falam
9. Sei Chorar
10. Ensaboa
11. Senhora de Tentação (Meu Drama) (Silas de Oliveira)
12. Cordas de aço

todas as faixas compostas por Cartola, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:



quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Paulinho da Viola - “Prisma Luminoso” (1983)



 

“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.” 
Zuenir Ventura


Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.

A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.

Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.

Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor. 

Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.

A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.

Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.

Irokô definitivamente sabe das coisas.

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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Monarco - "Terreiro" - Participação da Velha Guarda da Portela (1980)

 

“Compadre Monarco, se não confeitarem tua voz com clarinadas, violinadas e gastas dissonâncias violonísticas, o pessoal vai sentir o que é samba.” 
Juarez Barroso, escritor, poeta e produtor musical

“Monarco foi mais do que um grande sambista: trata-se de um grande brasileiro.” 
Sérgio Cabral, crítico e escritor

Posso dizer que estive muito próximo de Monarco desde bastante tempo. Certamente não tanto quanto os amigos, parceiros, moradores da comunidade de Madureira ou Oswaldo Cruz, dos portelenses que tinham o privilégio de conviver com ele. Mas meu contato com o mestre, que nos deixou no último dezembro, certamente foi muito maior do que para com muitos artistas que admiro mas que, como acontece na maioria dos casos, uma admiração somente à distância. Por isso, arrisco em afirmar que estive, pelo menos três vezes, quando não a metros, por um fio de distância de Monarco. Tão próximo que seria possível ouvir-lhe, como um bumbo de samba, a batida do coração.

Primeira vez que o vi presencialmente foi em 2014 quando este, juntamente com a Velha Guarda da Portela, presenteou Porto Alegre em uma apresentação ao vivo – e de graça – em pleno parque da Redenção para a celebração dos 80 da UFRGS. Já havia ficado um tanto frustrado em 2010 quando, com minha mãe, fui á quadra do bloco Cordão da Bola Preta, no Rio de Janeiro, para uma feijoada em que tocaria a Velha Guarda da Portela, mas ele foi um dos ausentes. Na Redenção, no entanto, a alegria foi completa. Que momento histórico aquele! Lembro que foi uma sexta-feira, em que Leocádia e eu saímos de nossos compromissos e rumamos direto para o local do show, próximo ao espelho d’água. Com seu barítono em dia, mesmo com os mesmos 80 anos da universidade que o convidara, o baluarte, acompanhado das pastoras e de uma competente banda, fez sua escola do coração tomar conta do parque com sambas clássicos de sua autoria e de outros bambas como ele tanto da Portela quanto de outras agremiações.

Aliás, abrindo um parêntese aqui: igual a ele, talvez não tenha existido. Hildemar Diniz cruzou praticamente todos os momentos importantes nos últimos 70 anos do samba carioca e da Portela, agremiação da qual tinha apenas 10 anos menos. Monarco conviveu e cambiou com os principais nomes da sua comunidade e do samba carioca: Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Candeia, Natal, Cartola, Manacéia, Nelson Sargento, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Tia Vicentina, Dona Ivone Lara, Casquinha, Áurea Maria, Surica entre tantos outros. Uma simbiose que muitos não tiveram talento, nem perseverança e nem tempo de vida para tanto. Presidente de Hora da escola, Monarco tinha mais do que somente um título honorário mas sem propósito prático. Era quase como um cacique, um pai de santo, um líder religioso, uma majestade cujo respeito foi conquistado durante a vida e a quem todos recorriam para pedir-lhe a benção. A autoridade de um monarca do samba. 

Mas voltando às minhas vezes com Monarco, a segunda em que o vi bem de perto foi dois anos depois do show em Porto Alegre numa apresentação no CCBB do Rio de Janeiro celebrando os 100 anos do samba, quando, além de Leocádia, ainda tive o prazer da companhia de minha mãe, que, sempre antenada na programação cultural carioca, nos levou àquele deleitoso momento que contava também com a participação de Nei Lopes. O velho mas lúcido Monarco, então com apenas 18 anos menos que o próprio samba, não só cantou como contou histórias, o que fazia com maestria tanto quanto seus sambas, verdadeiras crônicas cotidianas.

Da discografia de Monarco, no entanto, “Terreiro”, seu segundo dos sete solo, de 1980, é talvez o mais especial. Com os companheiros de Velha Guarda, mas também outros craques como Mestre Marçal, Valdir 7 Cordas e o filho e parceiro Mauro Diniz, o disco desfila em azul e branco sambas de todas as épocas invariavelmente com a maestria de sua interpretação. Nas composições, as elegantes melodias de nuanças eruditas se juntam às letras que namoram com a melhor poesia parnasiana de um “sambista-historiador”, como definiu Sérgio Cabral. Dos temas do próprio Monarco tem “Homenagem À Velha Guarda” (“Vi os sambistas de fato/ Manacéia e Lonato e outros mais/ Juro que fiquei boquiaberto/ Nunca me senti tão perto/ Da Portela dos tempos atrás”), “Você Pensa Que Eu Me Apaixonei” (com Alcides), “Proposta Amorosa” e a clássica “Passado de Glória” (“A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu/ O Estácio de Ismael, dizendo que o samba era seu/ Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”), daquelas que não podem faltar em qualquer apresentação da Velha Guarda.

No disco tem também espaço para outras escolas que não só a Portela: “Silenciar a Mangueira”, numa interpretação inédita do amigo Cartola que morreria naquele mesmo ano, e “Estácio de Sá Glória do Samba”, em que Monarco, como era de sua natureza, deixa o clubismo de lado e homenageia uma das comunidades fundadoras do carnaval carioca. Prevalecem, no entanto, as composições de portelenses como ele. A linda “Chuva” (Hortêncio Rocha), a lírica “Conselho de Vadio” (Alvarenga) e a ufanista “Feliz Eu Vivo no Morro” (Josias/Pernambuco/Chatim). Tão bom quanto, o pot-pourri “Temporal” (Tia Doca), “Mulher Vai Procurar Teu Dono” (Rufino), “Caco Velho” (Caetano), e “Serei Teu Ioiô” (Paulo da Portela/Monarco) é uma mostra mais do que perfeita da grandiosidade poética e melódica da turma de Madureira.

Fora isso, as audições, tantas e tantas. “Tudo Azul”, da Velha Guarda da Portela, de 1999, furei de tanto ouvir. E quantos sambas, quantas joias da nossa cultura! “Lenço”, “O Quitandeiro”, “Coração em Desalinho”, "Obrigado pelas Flores", “Portela Desde Que Eu Nasci”, “Ingratidão”, “Agora é Tarde”, “De Paulo a Paulinho”, “Pobre Passarinho”... Ah, tanta beleza, que se for falar mais de Monarco, hoje eu não vou terminar.

Ah, mas faltou falar da terceira ocasião em que me vi junto a Monarco. Pois bem: embora mais longe fisicamente, foi a vez em que, curiosamente, tive-lhe mais perto. No início de 2019, minha irmã Kaká Reis, produtora cultural, trabalhava com o velho bamba e, por ideia de meu outro irmão e coeditor do blog, Cly Reis, arranjou-me para meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, uma entrevista com Monarco, com quem ela estaria em São Paulo para um show. Kaká não apenas viabilizou a conversa e a gravação como mediou a entrevista a partir das questões que cuidadosamente elaborei. No camarim, horas antes de subir ao palco, Monarco, com toda sua simpatia e sabedoria, prestou-lhe(me) uma entrevista deliciosa, que marcou a centésima edição do meu programa. A se considerar que irmãos são nós mesmos em outro corpo, posso dizer que estive, sim, com Monarco. Bem próximo, a seu lado, falando com ele. A centímetros do coração. E ele – como sempre fez através de sua obra grandiosa – falando comigo.

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Monarco
(1933-2021)



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FAIXAS:
1. "Homenagem À Velha Guarda" (Monarco)
2.a. "Temporal" (Tia Doca)
2.b. "Mulher, Vai Procurar Teu Dono" (Rufino)
2.c. "Caco Velho" (Antonio Caitano)
2.d. "Serei Teu Ioiô" (Paulo da Portela/Monarco)
3. "Sofres Por Querer Liberdade" (Mijinha/Monarco)
4. "Estácio De Sá, Glória Do Samba (Monarco)
5. "Conselho De Vadio" (Alvarenga)
6. "Feliz Eu Vivo No Morro" (Chatim/Josias/Pernambuco)
7. "Silenciar A Mangueira" (Cartola) - Participação: Argemiro
8. "Você Pensa Que Eu Me Apaixonei" (Alcides Lopes/Monarco)
9. "Chuva" (Hortênsio Rocha)
10. "Proposta Amorosa" (Monarco)
11; "Falsa Recompensa" (Mijinha/Monarco)
12. "Passado De Glória" (Monarco)

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OUÇA O DISCO:
Monarco - "Terreiro"

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O Jogo da Sua Vida #4 - Grêmio 0 x Flamengo 0 (1989)

A Jogada do Zico

Não é de hoje que digo que meu interesse por futebol se restringe ao Sport Club Internacional. Cada vez mais, ao longo dos anos, desde que, guri, fui ao Gigante da Beira-Rio, em meados dos anos 80, assistir a um Inter e Coritiba levado por meu pai e meu irmão, percebo que não gosto propriamente do esporte em si, mas do meu time. Minha impressão é que, nascido em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, como sou, se, por acaso do destino, os irmãos Poppe não tivessem fundado uma agremiação que sustenta, até hoje, o desígnio sincero de “clube do povo”, e isso significasse que restasse apenas o arquirrival como alternativa, não torceria por clube nenhum. Por isso, deve ser estranho para quem está lendo ver no enunciado que, justamente, no jogo que considero o da minha vida o Inter não seja um dos disputantes. E pior: não só não ser jogo do Inter como ser do Grêmio! E um 0 a 0?
Pois essa aparente incoerência tem explicação, inclusive a ausência de gols. O referido jogo, quartas-de-final do Campeonato Brasileiro de 1988-1989, tinha, sim, direta ligação com o Inter. E com a minha vida, ou melhor, com a preservação dela. Grêmio e Flamengo disputavam uma das vagas na semifinal do certame nacional, enquanto o Inter enfrentava o Cruzeiro mirando a mesma finalidade. E o Inter daquele ano, treinado por um jovem técnico chamado Abel Braga, tinha boas chances de avançar. Contávamos com um centroavante goleador, Nílson, um ponta-direita rápido e atrevido, Maurício, o goleiro da Seleção Brasileira, Taffarel, além de um meio campo e uma zaga de qualidade. Depois de uma ótima campanha (1º colocado, com 47 pontos, considerando os dois primeiros turnos), estávamos embalados e chegávamos às quartas confiantes.
Porém, avançar de fase também significava, além do esperado aumento da dificuldade do confronto, a possibilidade de dar um Gre-Nal inédito numa semifinal de Brasileirão. Podíamos topar com o Grêmio logo à frente, e isso era bem provável. Meu irmão e eu havíamos ido a todos os jogos ocorridos no Beira-Rio naquela campanha, fosse na geral, fosse na saudosa “coreia”, ora acompanhados de amigos e parentes, ora somente nós dois. Não perdemos uma partida, e comungávamos da mesma confiança de todos os colorados naquele ano. Entretanto, se para meu irmão assustava a possibilidade de cruzar com o Tricolor na fase seguinte, a mim, mais irresponsável, agradava. Queria a emoção de derrotá-los num confronto inédito e sem precedentes na história.
Aconteceu de o jogo de ida do Inter contra o Cruzeiro ser no Mineirão, em Belo Horizonte, num domingo. Assistiríamos pela TV uma partida que terminou em 0 x 0. Entretanto, no dia anterior, sábado, num fatídico 28 de janeiro de 1989, Porto Alegre receberia outra partida, ou seja, nós dois não ficaríamos sem atração naquele fim de semana, mesmo que não fosse diretamente do nosso time. Era o primeiro enfrentamento da outra chave, o tal Grêmio e Flamengo. Queríamos ver de perto nosso possível adversário, fosse um ou outro. Então decidimos assistir ao jogo no estádio Olímpico. Na torcida do Grêmio.
Isso não foi uma escolha, bom que se diga. Tendo definido em cima do laço de irmos ao jogo, não deu tempo de articularmos a compra de ingressos na seção destinada aos torcedores visitantes, no anel superior. Aliás, seria quase trocar seis por meia dúzia, uma vez que compartilhamos ainda hoje quase da mesma antipatia com relação ao Flamengo a que dedicamos ao Grêmio. Resultado: usando camisetas de cores neutras (dois colorados usarem azul, jamais!), eu e meu irmão, sem nenhum outro colorado corajoso que tenha aceitado nos acompanhar, compramos entradas para a geral do Olímpico e sentamos atrás de uma das goleiras. Rodeados de gremistas. Ali assistimos ao jogo “na nossa”, sem falsas manifestações de exaltação, como se fôssemos torcedores pacatos e concentrados no evento.
Essa junção de fatos fez toda a diferença para este episódio.
O estádio estava inexplicavelmente não-lotado, e eu e meu irmão, sem dizer uma palavra, nos entreolhamos com cumplicidade e espanto crítico como que dizendo: “como esses gremistas conseguem não lotar o próprio estádio num fim de semana e numa quartas-de-final de Brasileiro?”. Assistimos a uma partida morna. Os adversários se equiparavam, o que motivou um jogo de meio campo, com poucas oportunidades para os dois lados. A não ser por uma jogada. Do Zico.
Arthur Antunes Coimbra, o Zico, já era um dos maiores jogadores que a história do futebol havia visto. Craque desde os anos 70, havia comandado seu Flamengo, em 1981, na conquista do título Mundial, e, no ano seguinte, embora derrotado pela Itália, fez parte da inesquecível Seleção Brasileira ao lado de Sócrates, Júnior, Falcão, Éder e outros – para muitos, o melhor selecionado canarinho de todos os tempos. Artilheiro, driblador, armador, exímio cobrador de faltas. Jogador inteligente, rápido e habilidoso, havia quem o apelidasse de “Pelé branco”, alcunha que por si só já fala tudo. Mesmo a desclassificação para a França na Copa do Mundo de 1986, a qual foi um dos principais responsáveis ao perder um pênalti no segundo tempo que selaria a vitória brasileira, não ofuscara a idolatria a Zico. Somava-se a essa mitologia o fato de, um ano antes da Copa do México, um zagueiro chamado Márcio Nunes ter-lhe propositadamente quebrado o joelho esquerdo numa jogada covarde e criminosa. À época, de pré-informatização e de uma medicina esportiva ainda pouco avançada, uma contusão como aquela geralmente tirava um jogador para sempre dos gramados. Zico, no entanto, com persistência, curou-se, ajudou seu Mengo a ganhar o Módulo Verde da Copa União, em 1987 (em cima do Inter!) e, naquele 1989, disputava mais uma vez a temporada nacional.
E ele estava em campo naquele sábado. Além dos jogos pela TV e da Copa de 86 – a primeira a qual me lembro com clareza de assistir e torcer –, já o tinha visto jogar duas vezes ao vivo, ambas contra meu Inter. Gabo-me disso. Uma, em 1987, num 2 x 0 para nós (contra um Flamengo treinado por Telê Santana e que tinha ainda em campo Renato Gaúcho, Zinho, Leonardo, Andrade e Jorginho); e num histórico 3x1, já válido por aquele campeonato, em que, afora os dois gols de Nilson e um de Edu, foi ele, Zico, quem marcou pelo Rubro-Negro. Numa jogada na ponta da grande área, do lado direito, o Galinho cortou o zagueiro para dentro e, na frente da área, enfiou um chute seco e certeiro no ângulo, descontando. Nunca me esqueci da habilidade e velocidade de movimentos e pensamento de Zico naquele lance, que calou por uns instantes todo o estádio, ainda eufórico com o segundo gol do Inter um minuto antes. Eu assistia, coincidentemente, também atrás do gol.
Era onde eu e meu irmão estávamos. Mas não na nossa casa, Beira-Rio, e, sim, no Olímpico em uma tarde nublada em todos os sentidos. Quase o mesmo ângulo. Porém, ao contrário do movimentado confronto do time carioca com o Inter (com quatro gols, três só no primeiro tempo), aquele Grêmio e Flamengo chegava a dar sono. Intervalo, e zero a zero. Na segunda etapa, as equipes voltam a campo com uma tentativa de jogar melhor. Tentativa. Seguia o mesmo marasmo, e já se começava a ouvir reclamações aqui e ali por conta de uma jogada mal concluída, um passe errado, um chute não arriscado. Os torcedores gremistas já perdiam a paciência – e nós, ali, secadores enrustidos, na maior satisfação.
Até que, por volta dos 35 minutos, uma jogada marcaria para sempre a mim, não necessariamente por sua beleza futebolística, mas por outro motivo. Zico, pouco inspirado naquele dia como todos os companheiros, havia mudado seu estilo de jogo depois que voltou das contusões, substituindo seu ímpeto e dribles rápidos pela cadência, toques de primeira e lançamentos. Mas, como diz Jorge Ben naquela música dedicada ao Camisa 10 da Gávea: “quando não está inspirado, ele procura a inspiração”. Afinal, craque é craque, né, meu amigo? De repente, mesmo num dia ruim, pode tirar da cartola uma jogada e mudar o destino. E, além do mais, um Zico com 60% de capacidade equivale a 100% da maioria dos jogadores. Pois, numa surpreendente arrancada da intermediária, Zico, a quem os defensores gremistas não esperavam tal atitude, driblou um e avançou rápido rumo ao gol, carregando a bola, como nos velhos tempos. Havia outros dois adversários à sua frente, e seria difícil supô-los. Pois foi que ele se livrou do primeiro na velocidade e, já chegando na ponta da área, do lado esquerdo, aplicou o mesmo drible curto e ligeiro sobre o zagueiro tal qual havia executado meses antes contra o Inter. Parecia que via a repetição da jogada, porém do lado inverso. Mas dessa vez era contra o Grêmio, então, pensava na minha cabeça de torcedor: Zico tinha a minha permissão para acertar. Ele disparou o chute seco mirando o ângulo do goleiro Mazzaropi.
Ao contrário da primeira ocasião, no entanto, Zico, dessa, não fez o gol. O chute bateu na rede, mas pelo lado de fora. Aquele tradicional: “uhhhh!!” ecoou no estádio. Foi só um susto para a torcida tricolor, que terminou quando a bola foi para fora. Porém, para nós dois, o susto permaneceu. Meu irmão, empolgado com a jogada e com a possibilidade de o Flamengo abrir vantagem contra o Grêmio fora de casa (podendo administrar o jogo no Maracanã no jogo de volta e, assim, eliminar os gaúchos), acompanhou a investida de Zico de pé na arquibancada feito um torcedor flamenguista, mas sem dar bandeira até então. Quando o atacante errou o alvo, porém, ele não conteve a “coloradisse” e, apontando o dedo para o campo, gritou, a plenos pulmões: “Filho da puuuuutaaaa!...” Sim, as reticências colocadas por mim após o xingamento são propositais. Foi exatamente isso que aconteceu naquele momento: reticências. Dando-se conta do que acabara de fazer, ele congelou. E eu junto. A impressão era de que toda a geral havia silenciado para entender aquela reação. Foram segundos intermináveis, que demoraram mais tempo do que aqueles sonolentos 80 minutos de partida até ali. “Como vamos sair dessa?”, pensei incrédulo, olhando-o sentado e boquiaberto com o rabo de olho. Haviam visto que estávamos juntos, e, afora isso, somos bem parecidos de rosto. Não tinha como negar que eu não conhecia aquele cara. Então, se ele apanhasse, eu apanhava também. De toda a geral do Olímpico.
Senti cerca de 30 mil pares de olhos gremistas nos olhando sem entender aquela atitude do meu irmão, todos já armando um ar de fúria de quem está prestes a atacar caso se confirme a suspeita: a de que nós éramos infiltrados. Estávamos prestes a sermos linchados em plena arquibancada. No entanto, por alguma graça enviada pelos deuses colorados, meu irmão teve a espirituosidade que só o instinto de preservação oferece nessas horas e completou aquela desastrosa e obscena fala com um: “Mas coooomo vocês deixam o cara entrar assim na área?!”. A expressão enrubescida de raiva dos gremistas, ao ouvir aquilo, passou em milésimos da confusão para concordância e indignação mútua. Um de nosso lado falou: “É! Isso mesmo: coooomo vocês deixam o cara entrar assim na área?! Mandou bem, cara”, parabenizando meu irmão. Olharam-nos orgulhosos por aquela reação incontida de indignação por amor a seu time, coisa que só um gremista de verdade poderia manifestar... Meu irmão sentou-se novamente com a promessa de não abrir mais a boca até a eternidade e só levantou de novo para irmos embora quando acabou o jogo. Entreolhamo-nos novamente em silêncio, dizendo um para o outro com os olhos: “Ufa! Escapamos dessa!”.
Meu irresponsável desejo se realizara. O Grêmio bateu o Flamengo em pleno Maracanã e o Inter venceu o Cruzeiro no jogo de volta diante da sua torcida. Em 1º de fevereiro, o aguardado e temido Gre-Nal, o do Século (depois de um 0 x 0 no primeiro jogo), aconteceu. Vencemos o Grêmio: 2 x 1, um jogo que ficou marcado na história, o qual também tive a felicidade de presenciar, porém desta dentro do nosso Templo. Perdemos o campeonato para o Bahia na final, mas o melhor já tinha vindo. Afinal, depois de termos passado aquele sufoco em nome da paixão pelo Internacional, nós merecíamos pelo menos essa recompensa.
Agora imaginem o que aconteceria se o Zico tivesse acertado aquele lance...

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Jorge Ben - "Camisa 10 da Gávea"


(A meu quase-algoz Clayton)
torcedor do Internacional



sábado, 5 de novembro de 2022

Copa do Mundo Gilberto Gil - Campeã

 



Chegou o grande momento.
Conheceremos a grande canção campeã.
Nossos especialistas se debruçaram sobre o confronto, ouviram e reouviram as duas concorrentes e chegaram às suas conclusões.
Querem saber qual a melhor música de Gilberto Gil?
Vamos lá, então!

(Esse suspense é que me mata.)


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PALCO 
X
REALCE



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Cly Reis

Final muito justa. Duas das canções mais significativas de Gilberto Gil chegam a esse momento máximo da nossa Copa. Dois times que jogam pra cima, duas músicas alto-astral, positivas. "Palco" com sua exaltação ao lugar sagrado do músico, onde ele se sente mais vivo, renovado, e "Realce" uma evocação do nosso poder interior e uma conclamação às belezas da vida.
Dentro do campo, se Palco começa com aquele seu "Papapapabaia, papapa pabaia, papapa papá...", Realce não deixa por menos e manda o seu "Hey-ah mama, hey-ah..."; letra por letra, ambas trazem toda a mestria da poesia de Gil, com seu jogo de palavras inigualável e recado repleto de sabedoria; se Realce tem aquela guitarra marcante, estridente, que já se apresenta logo na abertura, os metais precisos e o refrão muito disco; Palco traz um suingue rico e embalado, também cheio de metais e, por sua vez, uma pegada soul contagiante. O 0x0 persiste mas, o refrão decide o jogo: apesar do ótimo refrão de Realce, do título repetido entre as linhas de metais, o "fora daqui" de Palco é uma das coisas mais fantásticas da música brasileira. 1x0, apertado, no limite, no detalhe, mas o suficiente para despachar Realce. Vitória de Palco.
PALCO 1 x REALCE 0


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Joana Lessa

O jogo já começa quente, com duas músicas na disputa que são o suprassumo de Gilberto Gil. O clássico dos clássicos. 
E como acontece nas finais de campeonato, que vença o melhor:
PALCO 2 x REALCE 3

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Leocádia Costa

Final de campeonato é sempre muito disputado, por isso o placar costuma ser taco a taco. Aqui não poderia ser diferente. Duas grandes finalistas foram pra decisão. Ambas muito identificadas com Gil, o maestro genial de toda essa temporada. Mas depois de muita torcida, desclassificações e reviravoltas, chegamos no essencial. Isso foi bonito! A canção vitoriosa foi Palco que traduz Gil por inteiro: essa voz que resgata com dignidade e crítica a história do povo negro, essa voz que eleva os ouvintes quando canta e nos coloca a repetir palavras e refrões supermelodiosos, essa voz que revela um artista completo, atemporal e genial. Palco é o lugar de Gil, é lá onde ele sempre estará, pra fora dos nossos corações.
PALCO 4 x REALCE 3


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Kaká Reis

Final mais que apertada, com duas das mais emblemáticas músicas do gênio Gil, que ambas trazem a essência musical do artista, ainda que de épocas muito parecidas (final de 70/inicio de 80) individualmente cada uma carrega um Gil diferente. Em comum, a celebração e a energia… Dito isso, adversarias no campo, Palco começa o jogo marcando 1 e na sequência Realce empata.. à medida que se passa os minutos da música, Realce marca mais um, dininuindo a diferença… e nos segundos finais, é um “real teor de belezaaa” Realce emplaca o terceiro, sendo a grande vencedora dessa emocionante disputa!
PALCO 1 x REALCE 3


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Daniel Rodrigues

É chegada a hora da grande decisão! “Realce” e “Palco” entram em campo sob os efusivos aplausos das torcidas. De um lado, a galera de “Realce”, toda colorida e entusiasmada pela Coligay. Do outro, a torcida mais cheirosa do campeonato rufava o louco bum-bum do tambor da arquibancada. O jogo nem parece uma final, pois ambas as equipes são propositivas, afirmativas, sem medo de serem felizes. Tanta igualdade, que 1 x 1 é o placar da primeira etapa. Na volta do intervalo, “Realce”, empurrada pela torcida, que jogou quilos de serpentina no gramado, vai pra cima e marca o segundo. Será que temos uma campeã? Mas, calma, que tem muito jogo – e muita música – pela frente! Consciência é o que não falta para “Palco”, que põe a bola no chão e, no ritmo do “la la ia”, entra na área adversária de pé em pé e empata novamente. Faltam apenas 5 minutos mais os acréscimos para terminar! Será que vamos para os pênaltis? Que nada. Valendo-se do talento de um tal de Lincoln, tipo meio magrão mas muito bom armador, “Palco” tira da cartola aquele que seria o gol definitivo. O gol da vitória. O gol do título. Final: “Palco” 3, “Realce” 2. No palco montado sobre o campo, “Palco” levanta a taça! Sua torcida, em respeito, vibra mas não canta o “Fora daqui!” como fez pras outras adversárias durante o torneio, e a torcida de “Realce” responde com festa em embalo disco, porque a essas alturas tudo é tipo Parada Gay. “Palco” campeã da Copa Gil!
PALCO 3 x REALCE 2


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Rodrigo Dutra

Como não amar “Realce”? A campeã poderia ser qualquer uma de “Refazenda”, qualquer uma de “Tropicália”, poderia ser “Domingo no Parque”, qualquer releitura de João, de Bob, qualquer parceria com Caetano... mas o fato é que “Realce” é a beleza em si. “Palco” é a beleza no todo. A razão por Gil estar em nossas vidas. Onde tudo faz sentido pra criador e criaturas. “Palco” ganha com eficiência. Tem o melhor elenco de palavras e versos. Viva Gil! Viva “Palco”!
PALCO 2 x REALCE 0



E Palco conquista a Copa do Mundo Gilberto Gil!
E agora, o próprio homenageado sobe ao PALCO para receber
a taça.
Pode soltar o grito de É CAMPEÃ!!!



PALCO CAMPEÃ
DA 
COPA DO MUNDO
GILBERTO GIL




E ficamos com o som da campeã:


segunda-feira, 30 de abril de 2018

Copa do Mundo The Smiths - Final


Chegou o grande momento!
Chegou a hora da tão  esperada final.
"Girl Afraid", canção  que oficialmente  não  saiu em álbum, mas aparece na compilação Hatful of  Hollow mas que aparece em outras coletâneas da banda de Manchester, com bravura, derrubando adversários difíceis, chega à final para encarar "There's A Light That Never GosOut", canção do clássico disco "The Queen Is Dead", considerado por muitos o melhor do grupo, e por outros tantos até mesmo, o melhor álbum de rock de todos os tempos. Será?
Mas aqui não importa fama, cartaz, favoritismo. Tudo se decide dento de campo e, como diria aquele antigo narrador, "Você quer bola rolando? Ta aí o que você queria!". 

***

GIRL AFRAID
x
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT


Fernanda Calegaro: No início, pensei que a competição acabaria em uma final sarcástica entre Heaven Knows I’m Miserable Now e This Charming Man, por exemplo. Mas nossa final transporta ao parque de diversões, sendo assim, There’s a Light That Never Goes Out desempata no início do segundo tempo e avança com dois golaços pra montanha-russa alguma ficar entediante. 5X3.
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Eduardo Almeida: E chegamos a final. Grandes equipes ficaram pelo caminho. Confesso ter ficado surpreso com essa final. Mas como já diziam: futebol é uma caixinha de surpresas. Duas equipes fortes com táticas distintas. Ritmos de jogo diferentes. E com calma, There's a Light marca seu gol e termina o primeiro tempo na frente. Pra quem achava que com seu ritmo mais acelerado, Girl Afraid não iria manter a velocidade do seu jogo, se enganou. Voltou pro segundo tempo com um ritmo mais cadenciado, e empata o jogo logo no início. Ambas as equipes tem boas oportunidades de marcar, mas suas defesas estão atentas. Até que dá um apagão na defesa de There's A Light, e Girl aproveita e vira o jogo. TIALTNGO parte pra cima, aperta GIRL, coloca duas bolas na trave, mas não tem sorte. O goleiro chega ir para a área adversária para tentar um gol que levaria a um empate e a decisão por penaltis. Mas não conseguem..... Final: Girl Afraid 2 X 1 There's A Light That Never Goes Out.
GIRL AFRAID vence!

José Júnior: Estádio lotado, garotas e garotos medrosos... chegou a grande final. Girl Afraid começa o jogo com um ataque melódico. There's A Light That Never Goes Out toma a posse da bola e começa o jogo marcando um gol de letra. GA reage empatando o placar. Dois timaços, duas músicas emblemáticas dividem a atenção da platéia, onde não há vaia, somente gritos de torcidas unidas. E a bola corre como se um caminhão de dez toneladas a mantivesse no chão. There's A Light dribla, num estilo Garrincha, e manda o gol da vitória!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Patrícia Ferreira: O jogo que tem There Is A Light That Never Goes Out com a força da torcida. Encara Girl Afraid que vai pra cima atacando com veemência. Quase há um empate ... Ops!!! Mas o tira-teima mostrou a real vencedora: There is light 😍
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Daniel Rodrigues: O placar pode até dar a entender que foi um jogo de igual pra igual. De dois adversários de qualidade, foi com certeza. “Girl”, mais que o azarão que chegou até a final depois de passar por clássicos como “The Queen is Dead” e “The Boy With The Thorn In His Side”, é, sem dúvida nenhuma, uma grande música dos Smiths. Guarda vários dos elementos essenciais da banda: guitarra original de Marr, bateria possante de Joyce, baixo surf music de Rourke e, claro, a performance e letra irrepreensíveis de Morrissey. No outro lado do campo, no entanto, tem “There’s”, das mais célebres canções da banda, um de seus hinos. Balada sensível daquelas que tocam sempre que se escuta. Como disse no início, parecia um jogo equilibrado. Foi assim que o primeiro tempo transcorreu: “There’s” larga na frente ali pelos 25 min e 10 min depois “Girl” empata. Tudo igual. Só que no segundo tempo, pesou a camiseta. Para bem e para mal. “Girl”, atrevida e de jogo contagiante, mostrou que tinha dado tudo que podia na Copa, e não conseguiu resistir ao volume de jogo coeso e bem estruturado de There’s”. O hit de “The Queen is Dead” impôs seu estilo cadenciado e marcante e guardou, aos 32 min, o gol da vitória. O gol do título. 2 x 1 para “There’s”, que se consagra a campeã da Copa Smiths!
THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!

Cly Reis: Duas grandes equipes chegam à final. Girl Afraid menos badalada quando se fala em paradas de sucesso ou predileção dos fãs, e There's A Light That Never Goes Out gozando do status de megahit e semi-hino smithiano. Nessa avaliação, vemos TIALTNGO com um leve favoritismo, mas o rock'n roll é uma caixinha de surpresas e, como já diria aquele folclórico cartola, o jogo só acaba quando termina. 
Pois bem, e não é que Girl Afraid já sai surpreendendo com um gol na primeira jogada? Aquele riffzinho inicial de Johnny Marr garante 1x0 no placar antes do primeiro minuto de jogo. Mas There's A Light não deixa por menos e também em sua primeira incursão ao ataque, aquela introdução que precede o primeiro verso de Morrissey, e que sempre me faz amolecer as pernas, garante o empate. 1x1 em menos de três minutos. Que jogo, senhoras e senhores!!!
O jogo continua com as equipes trocando ataques nas suas caraterísticas, Girl Afraid um pouco mais impetuosa, TIALTNGO mais cadenciada, mas ambas levando perigo ao gol adversário. Até que o refrão de There's A Light That Never Goes Out desequilibra: "And if a double-decker bus/ Crashes into us/ To die by your side/ Is such a heavenly way to die". Aquele desprendimento da vida em noe de ficar ao lado da pessoa amada é um golaço indefensável. Girl Afraid sente o gol, fica meio perdida em campo e na seuqência, na segunda parte do refrão, "And if a ten-ton truck/ Kills the both of us/ To die by your side/ Well, the pleasure - the privilege is mine", leva outro. É a pá de cal. There's A Light dá números finais ao jogo. 3x1. Soa o apito final e THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT vence!



THERE'S A LIGHT THAT NEVER GOES OUT
CAMPEÃ DA 
COPA DO MUNDO 
THE SMITHS



Obrigado aos convidados Patrícia Ferreira, Fernanda Calegaro, Eduardo Almeida, José Júnior, Cláudia B. Melo e João Carneiro que participaram dessa nossa brincadeira. Vocês foram demais!

segunda-feira, 30 de março de 2020

"A Fantástica Fábrica de Chocolate", de Mel Stuart (1971) vs. "A Fantástica Fábrica de Chocolate", de Tim Buton (2005)



Sabe aqueles velhos que vem com aquele papo, "Bom mesmo era o futebol no meu tempo!"?  Pois é... É mais ou menos a sensação que tenho em relação a "A Fantástica Fábrica de Chocolate". Embora reconheça todos os méritos da refilmagem de Tim Burton, de 2005, não consigo deixar de gostar mais da versão original de 1971. Acho que por uma espécie de Síndrome da Sessão da Tarde, uma vez que este foi um dos filmes que mais assisti, e tenho certeza que não somente eu, nas tardes globais dos anos oitenta, numa época em que a sessão vespertina do mais popular canal aberto era tudo o que se tinha e não havia toda essa avalanche de canais exibindo filmes 24 horas por dia, sem falar streaming, aplicativos , plataformas e todas essas coisas que essa meninada de hoje em dia gosta.
Com uma grade de filmes muito menos ampla que as que os canais possuem hoje em dia, volta e meia repetia o filme daquele excêntrico proprietário de uma famosa fábrica de chocolate que permitia que cinco crianças que encontrassem a etiqueta dourada na embalagem nas barras do seu produto, espalhadas ao redor do mundo, visitassem sua empresa e as instalações de produção. O filme revelava, através da personalidade e cada criança e seu respectivo caráter, bem como dos pais que os acompanhavam no tour, uma crítica não somente à sociedade consumista e de aparências, como também à criação e educação que muitos pais dão a seus filhos fazendo delas criaturas mimadas, glutonas, prepotentes e alienadas. Lá, só o humilde Charlie, um garoto pobre que conseguira seu ticket dourado por pura sorte, com míseros trocados que achara na rua, fugia a essas características e por isso mesmo, aos poucos, vai ganhando a simpatia do dono da fábrica.
Mas minha preferência pelo antigo não se limita a uma mera nostalgia infanto-juvenil. O filme original é, na minha opinião, superior a seu remake em diversos pontos, a começar pela atuação sóbria e precisa no equilíbrio entre o cômico e o perturbador de Gene Wilder como Willy Wonka, em contraste com as expressões caricaturais de Johnny Depp, quase sempre exibindo um sorriso maníaco forçado e aquele olhar abobalhadamente distante. Prova dessa competência de Wilder no papel, é que um dos memes mais conhecidos da internet tem ele, em uma cena do filme, com uma cara tão cínica, tão enfadada, que o quadro passou a ser utilizado nas mais diversas situações de sarcasmo, descrença e desprezo. Outro ponto a favor do antigo é a concisão. O novo filme se alonga demais em coisas desnecessárias, tem flashbacks que não acrescentam nada, e acrescenta uma historinha da infância do chocolateiro que, ainda que remeta a família, a união, a compreensão, ok!, é, no fim das contas, de pouca contribuição para o resultado final ou para formar uma "mensagem". Pra ser justo, a origem dos Oompa-Loompas, que revela a origem dos pequenos pigmeus que trabalham na fábrica, e faz velada menção à escravidão dos povos negros, é uma dessas cenas de recuperação que é válida, interessante e é um gol a favor do filme de Tim Burton. Por outro lado, os homenzinhos do filme original, anões com seu tamanho natural, são melhores, na minha opinião, que os da refilmagem, onde um também anão é infinitamente multiplicado para representar todos os funcionários da fábrica e digitalmente reduzido ainda mais que sua estatura original, sendo que em algumas cenas o efeito não fica lá muito convincente.
Apesar do efeito discutível dos minúsculos funcionários da fábrica, a parte técnica é um dos pontos a favor do novo filme. Os efeitos especiais e sonoros são na maior parte das vezes muito bons e prestam bom serviço às pretensões do diretor. A propósito, a direção de Burton também é bastante competente, com suas tradicionais cores, ordem, profundidade e atmosferas soturnas. Os cenários e a direção de arte são bem característicos com distorções, maquinários e bizarrices que são a cara do diretor.
"Mas como assim? Se o remake é tão bom nisso, naquilo e naquilo outro, como é que o original ganha?". Eu disse que o original ganhava, eu não disse que seria fácil!
Pois bem, vamos então lance a lance, decidir esse confronto:
E a garota Violet, digo..., a bola rola na grama comestível do Wonka Stadium...
Gene Wilder em relação a Johnny Depp, pelos motivos já listados lá no início, é gol para o time de 1971; em compensação Freddie Highmore, que viria a ser o Norman Bates de "Bates Motel" e o médico de "The Good Doctor", ainda pirralho, como o garoto Charlie, é um ganho do remake: 1x1 no placar. A cena do garoto encontrando o bilhete é melhor na primeira versão: 2x1; mas a cena da entrada na fábrica com a musiquinha dos bonecos mecânicos e os mesmo derretendo nas chamas, numa cena de um estranhamento macabro tipicamente timburtiano, garante novo empate para o remake: 2x2.
Com um ganho aqui, outro ali, os passeios de visitação se equivalem, mas os "acidentes" com as crianças fazem o placar se movimentar novamente: o do gordinho Augustus, que funciona melhor no primeiro filme e causa um grande impacto no espectador por ser o primeiro acidente e o da chicleteira chata Violet, exagerado demais na nova versão, garantem mais um tento para o time de Mel Stuart. Só que do outro lado tem treinador, quero dizer, diretor e o time de Tim Burton contra-ataca com a macabra cena dos esquilos atacando a pedichona mimada Veruca Salt e a levando para o buraco das nozes ruins. Cena de filme de terror perturbadoramente fantástica. 3x3 para o original. E o remake passa à frente do placar pela primeira vez por conta do número musical do incidente com o garoto Mike Teavee que depois de ser teletransportado para dentro de um televisor, invade programas de culinária, de esportes, de música e tudo mais. 3x4. Que jogo, senhoras e senhores!

Oompa-Loompa -
número musical para Mike Teavee



Mas por falar em musical, voltando aos Oompa-Lumpa, embora o filme de 2005 tenha praticamente um videoclipe ultra-produzido para cada intervenção dos nanicos, mesmo sem todo o aparato técnico da nova produção, as performances musicais dos baixinhos do filme de 1971 são, no âmbito geral, mais marcantes e sua canção é daquelas que não sai da memória de quem já assistiu ao longa. 4x4 para os baixinhos de Gene Wilder. E a galera canta "Oompa Loompa, doompadee doo..."!

Oompa-Loompa - 
número musical para Augustus Gloop

Finalzinho do jogo e a cena do elevador define a partida: a do filme original é muuuito mais impactante. A primeira vez que vi aquilo, lá pelos meus 8 ou 9 anos fiquei surpreso, fascinado e emocionado. Charlie ganhado o prêmio final, aquele elevador rompendo o teto da fábrica e sobrevoando triunfalmente a cidade. Golaço para o antigo, até porque no novo a ideia do elevador é muito mal utilizada fazendo com que a inusitada máquina apareça antes do final levando os visitantes restantes à sala de TV e, depois, torne-se praticamente um elemento ordinário, perdendo um tanto de seu caráter extraordinário por servir como uma espécie de transporte particular comum para Willy Wonka, estacionado numa esquina à sua espera para ir pra lá e pra cá.
A essas alturas o treinador Mel Stuart já está no banco gritando, "Acabou, acabou!!!", pois o filme dele acabou, mesmo ali no voo do elevador, mas o time de Tim Burton quer jogo e tenta alguma coisa nos acréscimos com aquela história toda de família é bom, é ruim, de dou a fábrica, não dou a fábrica, olha meu dentinhos, perdão papai e tudo mais. Willy Wonka ainda tentou tirar alguma coisa da cartola apostando na experiência do craque Christopher Lee nos minutos finais, mas não foi o suficiente para empatar o jogo. E o placar ficou assim mesmo: 5x4 para o filme original, para o antigo, para o filme de '71. Aquilo é que era futebol, digo..., aquilo é que era filme!

"Então você é do ramo de doces...
Conte-me então como é o sabor da derrota."

Não foi um nenhum chocolate,
mas o time de Gene Wilder e companhia pode saborear 
o doce gosto da vitória.







por Cly Reis