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terça-feira, 26 de setembro de 2017

Carlos Dafé - “Pra que Vou Recordar” (1977)



“A refavela/ Revela o passo/ 
Com que caminha a geração/ 
Do black jovem/ Do Black Rio/ 
Da nova dança no salão”. 
Gilberto Gil, da letra de "Refavela", de 1977

O ano de 1977 foi cheio para a Banda Black Rio. Formada a não muito da fusão de músicos de diferentes origens – os conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição –, eles eram os reis dos bailes black da Zona Norte carioca, que eclodiram nos anos 70. Além das festas,  começaram a ser bastante requisitados para outros projetos. Só entre janeiro e março, gravaram todo o primeiro disco e foram até tema de novela da Globo, Locomotivas. Era o momento deles. Junto com nomes como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo, Hyldon, Toni Tornado, Dom Mita e outros, a Black Rio não só representava como levava o nome da onda sociocultural que mobilizava milhares de negros excluídos pela sociedade. Eram jovens oriundos das "refavelas" em recente processo de ascensão social num Brasil de Ditadura Militar, que passavam agora a demonstrar seu orgulho pela raça, pelo cabelo crespo, pela dança, pela cor da pele, pelo sotaque, pela linguagem. E pelo seu som: brasileiro, mas universal.

Todos da Black Rio eram músicos excepcionais, mas nenhum sabia (pelo menos, ainda) cantar. E para incendiar a galera dos passinhos durante os bailes tinha que ter alguém chamando nos microfones e com presença de palco. Mais do que um crooner. A voz feminina a banda de Oberdan Magalhães achara: uma jovem cantora de voz rouca e potente digna das melhores da black music norte-americana chamada Sandra Sá. Porém, precisava de um gogó masculino também, o que coube perfeitamente a Carlos Dafé.

Cantor de elegância e gingado, Dafé é compositor e multi-instrumentista, capaz de mandar ver no violão, guitarra, baixo, piano, acordeão e vibrafone. Nascido no subúrbio de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, teve no pai (José de Sousa, um funcionário público tocador de chorinho) e na mãe (Conceição Gonçalves, poetisa) o incentivo à musicalidade. Tanto que, aos 11 anos, já estudava no Conservatório de Música e, na fase do serviço militar, fez turnê com o grupo Fuzi 9, do Corpo de Fuzileiros Naval. Toda essa bagagem deixava evidente que Dafé era a figura perfeita para acompanhar a Black Rio. Tanto que não ficou apenas restrito aos bailes. Assim como ocorrera com a própria banda naquele início de 1977, eles correram para o estúdio, quando se concebeu o brilhante “Pra que Vou Recordar”. Igualmente a “Maria Fumaça”, a também estreia da Black Rio, o disco de Dafé completa 40 anos de lançamento em 2017, formando o mais célebre duo de discos da soul music brasileira de todos os tempos.

A lendária Banda Black Rio: grupo de apoio de Dafé em sua estreia
Dançante mas altamente sofisticado, o álbum abre com uma das maiores canções pop já escritas no Brasil: a irrepreensível “De Alegria Raiou o Dia”. Parceria dele com outro craque da soul, Dom Mita, é um arraso em execução, timbres, sonoridade, ritmo. Que tabelinha de Luis Carlos na bateria e Jamil Joanes no baixo! Adicionado a isso, o Fender Rhodes de Cristóvão Bastos, a levada de guitarra de Claudio Stevenson, os sopros: tudo perfeito, encaixado, sonoro, musical. Mesmo sendo seu primeiro registro fonográfico, o já experiente Dafé mostra de largada toda a habilidade como compositor e cantor. A voz rasgada e de pronúncia aberta é, sobretudo, símbolo da afirmação daquela negritude adormecida e, agora, autovalorizada. O fraseado malandro, que opera propositais supressões de fonemas e adiciona ginga noutros, é de visível inspiração a nomes consagrados da música brasileira, como Seu Jorge e Criolo. Como se não bastasse o funk irresistível, na segunda parte, a “cozinha” entra com um samba-rock que, convenhamos, não tem ninguém que saiba, faça ou entenda como um músico brasileiro – quanto mais se tratando de Black Rio. Também nisso o disco de Dafé guarda semelhança com o debut do conjunto carioca, haja vista que as duas faixas de abertura trazem essa fusão dos ritmos típicos norte-americano e brasileiro como proposta conceitual.

“Tudo Era Lindo” (“Era lindo vagar, me perder de amor/ Correndo a enfrentar um mundo de loucos”) e “A Cruz” (“Se existe uma barreira/ Entre os nossos corações/ Não ligue pra essas coisas/ O importante somos nós”) dão a devida diminuída no ritmo em duas balada cheia de suingue e romantismo. Afinal, todo baile funk pede também aquela hora de dançar de rosto colado! A empolgação volta para homenagear o genial autor de “Superstition” com “Hello Mr. Wonder”, mas a um modo bem brasileiro: soul com muita carga de samba, assim como já haviam apresentado em “De Alegria...”.

Voltando para a pista, “Bem Querer” une a elegância do jazz soul com pitadas de samba, ou seja, tudo o que a turma domina. O coro feminino faz uma tabela perfeita com a voz de Dafé, enquanto Oberdan “apavora” num solo de sax. Merece ainda realce o baixo sempre incrível de Jamil, que não se restringe a simplesmente manter uma base, e, sim, desenhar linhas harmônicas sobre a escala.

A faixa-título (adicionada do complemento “o que chorei”), outro clássico do disco e da black music brasileira, faz jus ao mito. Além de trazer aquele clima das baladas dos mestres “gringos”, como Marvin Gaye e Bobby Womack, ainda adiciona-lhe a “cadência bonita do samba”. E mais uma interpretação impecável de Dafé, cheia de sentimento. Destaque para a levada de Luis Carlos e a guitarra solada de Claudio Stevenson.

“Zé Marmita” começa somente com Cristóvão ao piano elétrico e Dafé introduzindo os primeiros versos para, logo em seguida, cair num novo samba, agora bem suingado. A letra fala de um brasileiro pobre e trabalhador que se deixa levar pela alegria do Carnaval sem pensar que tem que pegar no batente no dia seguinte: “Cantando na avenida, você nem vê que amanheceu/ Esquece até da vida/ Pensa que o mundo agora é seu/ Quero só ver quando a festa acabar/ Coragem pra trabalhar”.

Ainda mais especial é “Bichos e Crianças”, que intercala uma doce melodia (“Dia de domingo/ Quem vai passear?/ Bichos e crianças vão”) com uma disco animada e lúdica cujo ritmo a Black Rio repetiria a dose na trilha do filme “Sábado Alucinante”, de 1979. Já “O Metrô”, última faixa, é o característico funk temperado com pitadas de brasilidade. A timbrística da Black Rio é algo realmente impressionante e improvável: une a sonoridade da Motown, com o padrão Steely Dan, recupera o samba telecoteco de Miltinho e o samba-rock da turma da Tijuca para chegar àquilo que eles mesmos se autodenominam: Black Rio. Ainda, é claro, a qualidade do band leader nos microfones. Um final com o que havia de melhor na cena. Em "Pra que...", Dafé e o time de Oberdan atingem um nível de musicalidade poucas vezes visto no mundo, haja vista que passa pelo funk, pela soul e pelos ritmos brasileiros em constante namoro com o jazz fusion, mas sem ser pedante nem difícil. Pelo contrário: é pop e sofisticado ao mesmo tempo.

Se 1977 ainda era tempo de Ditadura, é de se imaginar que, se a repressão recaía fortemente sobre adolescentes universitários de classe média, imagina se não iria exercer a mesma força a jovens negros da periferia? Bastou os bailes começarem a mobilizar muito mais gente que o esperado e, ainda por cima, ganhar espaço também na “branca” Zona Sul do Rio, que se resolveu dar um basta. Essa coisa de “movimento Black Rio” ou “Black o que fosse” estava começando a ficar perigosa para o governo. Então, para que os donos de equipes de som e artistas começassem a ir para o DOPS foi um passo.“Quando viram aqueles caras dançando junto, com aquelas roupas e cabelos, os militares perceberam que se nasce um líder ali no meio ia dar uma grande merda para o governo”, conta DJ Marlboro, que presenciou a cena. O movimento se tornava, da noite para o dia, subversivo.

A onda Black, pelo menos naquele momento, se esvaziara. Seguiram-se, nos anos seguintes, a última década de Governo Militar, a redemocratização, a era Collor, a ascensão do PT. Paralelamente, entretanto, o grito da periferia não se calara. Vieram o hip-hop, o break, o melô, o funk carioca, o charme, o punkadão. Se a qualidade das manifestações culturais da negritude não acompanhou aquele embrião animador e altamente musical, paciência. A bandeira pela liberdade dos negros havia sido hasteada. Dafé, Black Rio e Cia. cumpriram o papel daquilo que Gilberto Gil captara naquele sociologicamente fatídico 1977 para o Brasil negro: conceber um “samba paradoxal. Algo que só nossa “escola” é capaz. Ou seja: “Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional”.

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FAIXAS:
1. “De Alegria Raiou o Dia” (Carlos Dafé/Dom Mita) - 3:40
2. “Tudo Era Lindo” (Dafé/Jomari) - 3:34
3. “A Cruz” (Dafé/Tânia Maria Reis) - 5:52
4. “Hello Mr. Wonder” (Dafé/Claudio Stevenson/Luiz Carlos dos Santos) - 3:44
5. “Bem Querer” (Dafé/Lucio Flavio/Tião da Vila) - 3:11
6. “Pra Que Vou Recordar o que Chorei” (Dafé) - 3:46
7. “Zé Marmita” (Dafé/Vandenberg) - 3:34
8. “Bichos e Crianças” – (Dafé/Marilda Barcelos) - 2:45
9. “O Metrô” (Dafé/Lucio Flavio/Oberdan) - 2:58

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OUÇA

por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Banda Black Rio - "Maria Fumaça" (1977)




“A Banda Black Rio é um dos maiores acontecimentos musicais desse planeta”.
Lucas Arruda


“Coisa mais séria que tem! Um dos discos instrumentais mais bem feitos no Brasil. Tudo absolutamente certo aqui: temas, timbres, só acerto.”
Ed Motta


O jazz no Brasil teve de caminhar alguns quilômetros em círculos para que obtivesse uma identificação real com o país do carnaval. Em termos de indústria fonográfica, até os anos 70 as apostas sempre estiveram sobre o samba e derivados ou outros gêneros comerciais, como o bolero, a canção romântica, a bossa-nova carioca, os festivais, a MPB e até o rock. Mesmo presente na sonoridade das orquestras das gafieiras ou na bossa nova, o jazz se misturava aos sons brasileiros mais pela natural influência exercida pelos Estados Unidos na cultura latina do que pelo exemplo de complexidade harmônica de um Charlie Parker ou Charles Mingus. Expressões bastante significativas nessa linha houve nos anos 50 e 60, inegável, mas jazz brasileiro mesmo, com “b” maiúsculo, esse ainda não havia nascido.

Por essas ironias que somente a Sociologia e a Antropologia podem explicar, precisou que o gênero mais norte-americano da música desse uma imensa volta para se solidificar num país tão africanizado quanto os Estados Unidos como o Brasil. Essa solidificação se deve a um simples motivo: assim como na criação do jazz, cunhado por mentes e corações de descendentes de escravos, a absorção do estilo no Brasil se deu também pelos negros. No caso, mais de meio século depois, pela via da soul music. O chamado movimento “Black Rio”, que estourava nas periferias cariocas no início da década de 70, era fruto de uma nova classe social de negros que surgia oriundos das “refavelas”, como bem definiu Gilberto Gil. Reunia milhões de jovens em torno da música de James Brown, Earth, Wind & Fire, Aretha Franklin e Sly & Family Stone. DJ’s, dançarinos, produtores, equipes de som, promoters e, claro, músicos, que começavam a despontar da Baixada e da Zona Norte, mostrando que não eram apenas Tim Maia e Cassiano que existiam. Tinha, sim, outros muitos talentos. Dentro deste turbilhão de descobertas e conquistas, um grupo de músicos originários de outras bandas captou a essência daquilo e se autodenominou como a própria cena exigia: Black Rio.

Formada da junção de alguns integrantes dos conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição, a Black Rio compunha-se com o genial saxofonista Oberdan Magalhães, idealizador e principal cabeça da banda; o magnífico e experiente pianista Cristóvão Bastos; os sopros afiados de José Carlos Barroso (trompete) e Lúcio da Silva (trombone); o não menos incrível baixista Jamil Joanes; Cláudio Stevenson, referência da guitarra soul no Brasil; e, igualmente impecável, o baterista e percussionista Luiz Carlos. Com uma insuspeita e natural mescla de samba, baião, funk, gafieira, rock, R&B, fusion, soul e até cool, a Black Rio inaugurava de vez o verdadeiro jazz brasileiro. Um jazz dançante, gingado, sincopado, cheio de groove e de rebuscamentos harmônicos.

Banda das mais requisitadas dos bailes funk daquela época, eram todos instrumentistas de mão cheia. Se nas apresentações eles tinham a luxuosa participação vocal de dois estreantes até então pouco conhecidos chamados Carlos Dafé e Sandra de Sá, tamanhos talento e habilidade não podia se perder depois que a festa acabasse e as equipes de som guardassem os equipamentos. Precisava ser registrado. Foi isso que a gravadora WEA providenciou ao chamar o tarimbado produtor Mazola – por sua vez, muito bem assessorado por Liminha e Dom Filó, este último, um dos organizadores do movimento Black no Brasil. Eles ajudaram a dar corpo a Maria Fumaça, primeiro dos três discos da Black Rio, a obra-prima do jazz instrumental brasileiro e da MPB, uma joia que completa 40 anos de lançamento em 2017.

Como se pode supor, não se está falando de qualquer trem, mas sim um expresso supersônico lotado de musicalidade e animação, que transborda talento do primeiro ao último acorde. Sonoridade Motown com toques de Steely Dan e samba de teleco-teco dos anos 50/60. Tudo isso pode ser imediatamente comprovado ao se escutar a arrasadora faixa-título, certamente uma das melhores aberturas de disco de toda a discografia brasileira. O que inicia com um show de habilidade de toda a banda, num ritmo de sambalanço, logo ganha cara de um baião jazzístico, quando o triângulo dialoga os sopros, cujas frases são magistralmente escritas e executadas. A guitarra de Cláudio faz o riff com ecos que sobrevoam a melodia; Jamil dá aula de condução e improviso no baixo; Cristóvão manda ver no Fender Rhodes; Luis Carlos faz chover na bateria. Quando o samba toma conta, praticamente todos assumem percussões: cuíca, pandeiro e tamborim.

Sem perder o embalo, uma versão originalíssima de “Na Baixa Do Sapateiro”, comandada pelo sax de Oberdan, que atualiza para a soul o teor suingado da melodia, e outra igualmente impecável: “Mr. Funky Samba”. Jamil, autor do tema, está especialmente inspirado, fazendo escalamentos sobre a base funkeada e sambada como bem define o título. Mas não só ele: Luiz Carlos adiciona ritmos da disco ao jazz hard bop, e Cristóvão mais uma vez impressiona por sua versatilidade na base de Fender Rhodes e no solo de piano elétrico. Uma música que jamais data, tamanha sua força e modernidade.

O líder Oberdan assina outras duas composições, a sincopada “Caminho Da Roça” e a carioquíssima “Leblon Via Vaz Lôbo”, em que Cláudio e o próprio improvisam solos da mais alta qualidade. Outros integrantes, no entanto, não ficam para trás nas criações, caso de Cláudio e Cristóvão, que coassinam uma das melhores do disco: “Metalúrgica”. Como o título indica, são os sopros que estão afiados no chorus. O que não quer dizer que os colegas também não brilhem, caso de Luiz Carlos, criando diversas variações rítmicas, Cláudio, distorcendo as cordas, e a levada sempre inventiva de Jamil.

A versatilidade e o conceito moderno da Black Rio revisitam outros mestres da MPB, como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Baião”), onde o ritmo nordestino ganha tons disco e funk; Edu Lobo (“Casa Forte”), de quem realçam-lhe a força e a expressividade das linhas melódicas; e Braguinha, quando o lendário choro “Urubu Malandro”, de 1913, vira um suingado e vibrante samba de gafieira. Nota-se um cuidado, mesmo com a sonoridade eletrificada, de não perder a essência da canção, o que se vê na manutenção de Cristóvão nos teclados e da adaptação das frases de flauta para uma variação sax/trompete/trombone.

Outra pérola de Jamil desfecha essa impecável obra num tom de soul e jazz cool, que antevê o que se chamaria anos adiante no Brasil de “charme”. Embora a canção seja de autoria do baixista, é o trompete de Barrosinho que arrasa desenhando toda melodia do início ao fim.

Talvez seja certo exagero, uma vez que já se podia referenciar como jazz “brazuca” o som de Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Airto Moreira, João Donato, Eumir Deodato, Flora Purim, Dom Um Romão, entre outros – embora, a maioria tenha-o feito e consolidado seus trabalhos fora do Brasil. Com a Black Rio foi diferente. Com todos pés cravados em terra brasilis, foi o misto de contexto histórico, necessidade social, proveito artístico e oportunidade de mercado que a fizeram tornar-se a referência que é ainda hoje. Uma referência do jazz com cheiro, cor e sabor latinos. Mas para além das meras classificações, a Black Rio é o legítimo retrato de uma era em que o Brasil negro e mestiço passou a mostrar a riqueza "do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão".

Banda Black Rio - "Maria Fumaça"


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FAIXAS
1. Maria Fumaça (Luiz Carlos Santos/Oberdan) - 2:22
2. Na Baixa Do Sapateiro (Ary Barroso) - 3:02
3. Mr. Funky Samba (Jamil Joanes) - 3:36
4. Caminho Da Roça (J. Carlos Barroso/Oberdan) - 2:57
5. Metalúrgica (Claudio Stevenson/Cristóvão Bastos) - 2:30
6. Baião (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga) - 3:26
7. Casa Forte (Edu Lobo) - 2:22
8. Leblon Via Vaz Lôbo (Oberdan) - 3:02
9. Urubu Malandro (Louro/João De Barro) - 2:28
10. Junia (Joanes) - 3:39

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de março de 2014

Tim Maia - "Nuvens" (1982)



“Arlênio pega a pelota/ E passa pro China/ Trindade pisa na bola/ Mas é bom menino.”
da letra de “Haddock Lobo, Esquina com Matoso”



Ed Motta, profundo conhecedor da música soul e, além de tudo, sobrinho de Tim Maia, disse certa vez: “’Nêgo’ tá de bobeira com negócio de [Tim Maia] Racional, muito menos musical. O lance é esse aqui.” O “lance” a que ele se refere é “Nuvens”, que seu tio gravara em 1982. Uma preciosidade da soul music brasileira da fase final da era black rio que Tim foi, se não o principal, um dos protagonistas juntamente com Cassiano, Hyldon, Dom Salvador, Érlon Chaves, Oberdan Magalhães, Carlos Dafé, entre outros craques. Tudo gente da maior categoria, músicos de primeira, a quem Tim, em “Nuvens”, faz questão de reverenciar de uma forma ou de outra.

O disco, assim, é uma volta às raízes da errante carreira desse junkie total chamado Tim Maia (afinal, o cara, cheirava, fumava, bebia e comia, tudo em excesso). Tim já era uma lenda desde o final dos anos 50, antes mesmo apresentar seu gogó de veludo ao mundo do entretenimento. Nos anos 60, viajou, no peito e na raça (negra), para os Estados Unidos em plena ebulição de Luther King e Black Panthers e em uma época que não era comum um preto sul-americano pobre fazê-lo (ainda não é...) para viver no gueto de Nova York fazendo música “y outras cositas mas”. Foi, evidentemente, deportado por porte de drogas... Voltou ao Brasil, foi gravado pelo já ícone Roberto Carlos e fez dueto com outro ícone, Elis Regina. Tudo isso antes do seu aguardado – e confirmado – debut solo, "Tim Maia" (1970) (já resenhado aqui no ClyBlog). Entre sucessos estrondosos ao longo da década seguinte (“Primavera”, “Não Quero Dinheiro”, “Você”, “Azul da Cor do Mar” e mais uma dezenas de hits), Tim também amargou fracassos homéricos, fosse pela sua inabilidade como empresário à frente da gravadora própria, a Seroma, fosse pelo comportamento de toxicômano ou pelo seu temperamento irascível, o que lhe indispunha diretamente com toda a indústria fonográfica. O limite da “irracionalidade” se deu em 1975, quando, em uma séria crise de abstinência, parou com todas as drogas químicas para se viciar na Cultura Racional, uma espécie de seita ocultista cuja filosofia ia do nada ao nada, mas que o motivou a gravar os dois históricos discos “Tim Maia Racional Vol. 1” e “Vol. 2”.

Após o (óbvio) fracasso do projeto (o Racional virou cult no mundo 30 anos depois sem render, no entanto, nenhum centavo ao bolso de Tim) e de um retorno com tudo às drogas, ele limpou-se de novo e ainda se recuperou nas paradas no final dos anos 70, mas tudo com mais baixos do que altos. Curiosamente, a despeito do caixa zerado, esse período de sua carreira é extremamente rico e fértil. Maduro como músico (tocava quase todos os instrumentos, do violão à bateria, além compor, arranjar e de dominar a mesa de estúdio), Tim enfileira discos excepcionais, como os homônimos de 1976 (que contém “Rodésia”) e 1978 (o todo em inglês) e “Reencontro”, de 1979 (o da linda “Lábios de Mel”). “Nuvens”, como Ed Motta ressalta, é o ápice dessa fase, e um dos segredos para tal êxito está justamente na volta às origens. Tim, então chegado aos 40 anos, parecia ter compreendido que era necessário não se afastar de todos, como fizeram na fase Racional, mas, sim, se reaproximar (física ou espiritualmente) daqueles que construíram sua história, expondo, assim, o que ele realmente era: um cara de talento ímpar, excêntrico e difícil, mas generoso e amigo.

Assim, voltam à cena Hyldon, Robson Jorge e, principalmente, o “genial Genival”: Cassiano, cuja participação já lá no primeiro álbum de Tim é fundamental. A faixa-título e de abertura, parceria de Cassiano com o “gringo brasileiro” Deny King, evidencia seu toque refinado. Como destaca Ed Motta: “tema do Cassiano lindaço, moderno harmonicamente”. De fato, a harmonia bossa-novista, com sinuosidades a la Marvin Gaye, ao mesmo tempo romântica e espacial, tem a sua cara. O paraibano contribui ainda com seu falsete e arranjo vocal no refrão, no qual forja, numa improvável alocação, a palavra “você” dentro de apenas meio tempo do compasso sobre um riff de metais matador. Genial. Genival. Cassiano.

O álbum segue com temas interessantíssimos: o sambão romântico “Outra Mulher”, ao estilo “Gostava Tanto de Você”, “Réu Confesso” e “Vou Correndo te Buscar”, característico de Tim; a foliosa “A Festa”, com uma levada de baixo em escala que é de um groove impressionante; a autoavaliativa “Ninguém Gosta de se Sentir Só”, cuja gostosa melodia lembra outra de Tim, “Brother, Father, Sister and Mother” (presente em “Tim Maia”, de 1976); e a balada quase bolero “Deixar as Coisas Tristes pra Depois”, também com a mãozinha de Cassiano no coro. Mais uma fruto de parceria com um “brother”, Robson Jorge, “Ar Puro”, de letra ecologicamente consciente numa época em que não era moda este termo (“Mas eis que estão matando o verde/ E o quê irá sobrar?/ Sujando os mares e os rios/ O volume do ar/ Ar.”), é daqueles soul super dançáveis, igualmente às versões de “O Trem”, tanto o tema instrumental (infalível em qualquer disco de Tim) quanto o “falado”, que tem improvisos super bacanas da banda Vitória Régia.

Ainda no espírito de resgates, Tim chama Hyldon para tocar na regravação do maior sucesso do amigo, “Na rua, na chuva, na fazenda (Casinha de Sapê)”, em que empresta seu vozeirão com direito a ouverdub para a pegajosa letra da canção: “Jogue suas mãos para o céu/ E agradeça se acaso tiver...”. Mas para muitos críticos e fãs é “Haddock Lobo, Esquina com Matoso” – endereço do bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio, ponto de encontro de uns moleques que se tornariam algumas maiores nomes da MPB dos anos 50 até os dias de hoje – o verdadeiro hit de “Nuvens”. “Foi lá que toda a confusão começou”, alerta Tim! Pois foi lá que Tim formou seu primeiro grupo musical juntamente com Roberto Carlos, Arlênio Lívio (aquele que “pega a pelota”), o “bom menino” Edson Trindade (um dos grandes parceiros de Tim ao longo da carreira, autor do clássico “Gostava Tanto de Você”, gravada por Tim em 1973) e Wellington Oliveira, Os Sputniks, posteriormente, renomeado The Snakes, já sem Tim e Roberto mas com as substituições de outro Roberto, o China, e de outro Carlos, o Erasmo. Ele recobra esta origem de subúrbio ao trazer situações e personagens, como Jorge Ben (“A turma estava formada/ Com lindas meninas/ E o Jorge com um camarada/ Era o Babulina”) e os próprios Roberto e Erasmo (“Erasmo, um cara esperto/ Juntou com Roberto/ Fizeram coisas bacanas/ São lá da esquina...”). Como se vê, uma das lembranças gostosas desse tempo está relacionada a futebol, nas peladas que batiam pelas ruas quando meninos. Uma menção breve acerca do esporte, mas bastante simbólica no que se refere ao conceito de resgate emocional (Tim era um jogador de futebol frustrado) que o disco carrega.

Depois dessa passagem nostólgico-futebolística, merecem atenção dois funks. O primeiro,  “Apesar dos Poucos Anos”, de Tim e Cajueiro, mas que quem dá a roupagem caprichada é Cassiano na fineza da harmonia e da linha vocal com sutilezas de Nile Rodgers e Quincy Jones. Por último, justamente a faixa que encerra o disco, “Sol Brilhante”, uma canção, simplesmente, solar, tal seu colorido e boas energias que transmite: “Vê que dia lindo/ Com muito amor, viver sorrindo/ Com este sol da manhã/ Com este sol penetrante/ Sol brilhante...”. Tudo numa execução exata da banda, num ritmo swingado e com vocal aberto, cantado pra fora. Inspiração total. O jornalista e escritor Marcello Campos, admirador e conhecedor da obra do artista, que diz: “’A musica do Sol’ é uma das coisas mais lindamente felizes e inspiradoras que eu já ouvi. Lindo demais.”

Definitivamente, “Nuvens” é um dos mais ricos e bem-acabados trabalhos da longa e sinuosa carreira de Tim Maia, seja pelas interpretações, pelos arranjos perfeitos, pela diversidade rítmica – percebida antes com tanta variedade, a bem da verdade, somente nos Racional – ou pelas referências que absorve, que vão desde Banda Black Rio até Gaye, James Brown, Curtis Mayfield e Stevie Wonder, passando pelos companheiros de rock e soul dos anos 60-70 e o samba carioca. Tudo isso não quer dizer, entretanto, que “Nuvens” tenha sido um sucesso. Marcello Campos confirma isso: “Esse disco é ensolarado como a capa, mas, por questões ‘tim-maianas’, um fracasso de mercado“. Mas, como de costume na obra te Tim Maia, virou mitológico tempo depois. Qual a validade disso? Em relação a Tim Maia, “só não vale dançar homem com homem e nem mulher com mulher”. O resto vale.

"Haddock Lobo, Esquina com Matoso" - Tim Maia


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FAIXAS:
1. "Nuvens" (Cassiano/Deny King) - 3:05
2. "Outra Mulher" - 3:11
3. "Ar Puro" – (Tim Maia/Robson Jorge) - 3:08
4. "O Trem - 1ª Parte" - 1:56
5. "A Festa" - 4:26
6. "Apesar dos Poucos Anos" (Tim Maia/Beto Cajueiro)- 3:24
7. "Deixar as Coisas Tristes para Depois" (Pedro Carlos Fernandes) - 2:58
8. "Ninguém Gosta de se Sentir Só" - 3:13
9. "Haddock Lobo, Esquina com Matoso"- 3:53
10. "O Trem - 2ª Parte" - 1:56
11. "Na Rua, na Chuva, na Fazenda (Casinha de Sapê)" (Hyldon) - 3:38
12. "Sol Brilhante" (Tim Maia/Rubens Sabino) - 2:50
Todas de Tim Maia, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO





quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Música da Cabeça - Programa Especial #135


"O princípio básico de toda arte é a liberdade". Poderia até ser do Música da Cabeça essa fala, mas é mesmo do nosso entrevistado da edição 135 do programa: o poeta, escritor, jornalista e agitador cultural carioca Paulo Sabino. E é ele mesmo quem nos dá o aviso do programa no vídeo. Além disso, muita gente boa pra nos acompanhar nessa vibe sem amarras: The Beatles, Adriana Calcanhotto, Beck, Carlos Dafé, Garbage e mais. Tá imperdível. É às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Música da Cabeça - Programa #313


Não precisa nem entender ideograma  pra sacar que a gente tá falando de Ryuichi Sakamoto, o genial artista japonês que perdemos esta semana. O MDC presta homenagem ao mestre destacando a sua música, mas também as de Carlos Dafé, Som Imaginário, Cássia Eller, John Cale, Sergei Rachmaninoff e outros. Lamentando as perdas, mas celebrando a arte, o programa hoje vai ao ar às 21h, na nipônica Rádio Elétrica. Produção, apresentação e konnichiwa: Daniel Rodrigues





www.radioeletrica.com

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Música da Cabeça - Programa #81


Se o teu celular achou que o horário de verão já tinha começado, não acredita nele e se programa pra ouvir o Música da Cabeça de hoje. Tem coisa legal pra caramba pra que deixar de escutar só por causa de uma máquina perdida no tempo! Vê se não é verdade: terá Air, Luiz Gonzaga, Echo & the Bunnymen, Carlos Dafé, Elastica, Carlinhos Brown e The Clash – só pra ficar em parte do que vai rolar. Ainda, os quadros “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e “Sete-List”. É ou não é motivo pra não perder o programa? Então, te agenda pras 21h, na Rádio Elétrica, que não vai ter confusão. Produção e apresentação (sem fuso horário): Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Música da Cabeça - Programa #319

Isso aí, Vini Jr.: mostra pra eles que o negócio é mais embaixo! Sem se calar, o MDC vem hoje com as vozes de João Donato, De Falla, The Fall, Carlos Dafé, Sepultura e outros. No Cabeção, uma homenagem ao jazzista da vanguarda Archie Sheep. Denunciado todos os preconceitos, o programa vai ao ar às 21h na consciente Rádio Elétrica. Produção, apresentação e #forçavinijr: Daniel Rodrigues 


(www.radioeletrica.com)

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Gilberto Gil - "Refavela" (1977)



“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil

Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra” do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.

Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.

Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição (menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.

Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/ Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/ Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se enfrentar.

Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual, posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.

Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”. Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de “Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico, uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o farol dos olhos iluminando a visão interior.”

“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.

A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/ Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/ Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.

Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso, Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.

Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros, buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa nova era/ Quase esquecem do eterno é”...

Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira, Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.

Provavelmente estarei presente no show em celebração ao aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que, cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar, isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.

Gilberto Gil comenta e canta "Babá Alapalá"


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FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas

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OUÇA

por Daniel Rodrigues

sábado, 29 de agosto de 2015

Gerson King Combo – Festa Voodoo – Quadra da Escola de Samba Bambas da Orgia – Porto Alegre/RS (22/08/2015)



A lenda da soul brasileira
na quadra dos Bambas.
Mais um privilégio que tenho como morador de Porto Alegre e admirador da black music do Brasil. Depois de assistir ao memorável primeiro show do pernambucano Di Melo, em julho, agora, a festa Voodoo, responsável por trazer essa turma malemolente à minha cidade, presenteou os porto-alegrenses como eu com a vinda de outra lenda da soul brasileira: Gerson King Combo. Mais um dos artistas que caiu no ostracismo com o declínio do estilo nos anos 80, King Combo foi redescoberto no estrangeiro (Inglaterra e Japão) e, atualmente com 70 anos, voltou a ser cult de alguns anos para cá ao universo do entretenimento.

O dançarino SoulBalaMachine
ditando o ritmo da galera.
Dono de uma voz possante, que salta daqueles senhores pulmões, o carioca Gerson Côrtes (irmão de outro precursor da soul no País, Getúlio Côrtes) entra no palco muito bem iluminado da Quadra dos Bambas da Orgia vestindo sua tradicional capa, esta azul-claro misto de boxeur e super-herói, mais calças do mesmo tecido lânguido e da mesma cor, casaco, colete, camisa de golas largas, colares no pescoço, sapatos bicolor e chapéu. Uma figura exótica e impressionante. A imponência do porte e do vozeirão, no entanto, se amenizam com o tratamento educado e a simpatia, que dão o clima alegre da festa. A animação foi bastante ampliada  ainda pela presença do dançarino Rafael SoulBalaMachine, que, vindo especialmente do Rio, ajudou a ditar o ritmo com seus passos mágicos e incentivando o público a fazer o mesmo.

Nós curtindo o balanço de Gerson King Combo.
Sem voltar a Porto Alegre desde 2001, o Rei da Soul Brasileira (que leva o reinado já no nome), não poderia começar a apresentação com outra música: “Estou voltando”. Os versos dizem tudo: “Está voltando com mais força (força)/ Pois nunca teve ausente/ Presente nessa guerra/ Esperou o tempo certo pra voltar”. “Uma chance”, do seu grande álbum de 1977, fez o clima ficar ainda mais quente, mesmo com a torrencial chuva que caía lá fora. “Deixe Sair o Suor” e, mais ainda, “Eu vou Pisar no Soul”, traduzem o sentimento do seleto público que, corajoso, não se intimidou com o temporal e compareceu: “Já separei a minha beca, engraxei os meus sapatos/ Espichei os meus cabelos, detonei os caras chatos/ Por que.../ Eu vou pisar no soul/ Eu vou dançar um Black”.

O mestre da soul com  a cozinha afiada da Ultramen.
O irresistível groove de “Funk Brother Soul”, outro de seus clássicos – este, do LP “Gerson King Combo Volume II”, de 1978 –, antecipa “Soul da paz” e a pacífica “Força e poder”. Das surpresas do show, King Combo, com toda autoridade que tem, encarna o conterrâneo e contemporâneo Tim Maia e manda uma brilhante versão de “Rational Culture”, a faixa em inglês da viagem esotérica de Tim presente no disco “Racional Vol.1”. A banda, os rapazes da Ultramen (Júlio Porto, guitarra; Pedro Porto, baixo; Zé Darcy; bateria; e Leonardo Boff, teclados) mais dois sopros (sax e trompete excelentes, diga-se de passagem), funcionaram perfeitamente bem assim como ocorrera no show de Di Melo, no mesmo formato. Apreciadores e fãs, eles sabem de cor as canções dos mestres – segundo King Combo, ensaiaram com ele apenas uma vez na tarde daquele mesmo dia. O “síndico” foi novamente revisitado com a cover de um de seus maiores hits, “Sossego”, num dos melhores momentos do show. King Combo convidou da plateia duas pessoas para cantarem com ele, uma delas a cantora gaúcha Nani Medeiros, que o incentivou a tocar a balada “Foi um sonho só”, que contém na original um coro feminino e que havia sido tirada do set-list por não ter quem o acompanhasse. Achou-a.
Chamando Nani Medeiros ao palco
para dividir o microfone.

Herdeiro de James Brown no Brasil, King Combo, que integrou as bandas de Erlon Chaves e de Wilson Simonal e grupos seminais da soul brasileira, como a Black Rio e a Fórmula 7, é dos poucos que tem procuração para cantar o Godfather of Soul. E foi o que fez em dois momentos. Primeiro, numa quente “I Feel Good”, dos maiores clássicos da música negra mundial. Claro que todo mundo cantou e dançou junto. A outra foi dentro do maior sucesso do próprio King Combo: “Mandamentos black” (“Dançar, como dança um black/ Amar,como ama um black/ Andar, como anda um black/ Usar, sempre o cumprimento black/ Falar, como fala um black...”), um dos hinos da cena dos anos 70. Nesta, inseriram “Sex Machine”, outro hit de Brown, incendiando de vez a quadra dos Bambas.

Na despedida do público.
Se “Estou voltando” iniciou o show, o recado final foi dado com “Good Bye”, outra bem conhecida do King of Brazilian Soul, que, particularmente, considero sua melhor música. Funk da melhor qualidade: ritmo contagiante, sopros inteligentes, letra romântica e cantarolável e aquilo que só quem faz funk no Brasil sabe: um toque de samba. Ah! Aí é insuperável, e Gerson King Combo é um dos principais representantes! Quando eu pensei que, por não ser a banda original de Kink Combo, a Ultramen não incluiria a pitada brasileira, o baterista Zé Darcy, na segunda parte, engendra um ritmo de samba. Um final perfeito.

Se continuarem assim as promoções da Voodoo, trazendo lendas da soul brasileira, vou querer ver também Hyldon, Carlos Dafé, Toni Tornado, Cassiano, Bebeto, Tony Bizarro, Arthur Verocai... Estão me acostumando mal.



fotos: Jord Hare

sábado, 25 de abril de 2015

Di Melo - "Di Melo" (1975)




Meu som não deixa nada a desejar para o que houve,
há e haverá no mercado musical. 
Digo, repito, atesto e assino embaixo,
sem medo de errar e sem falsa modéstia.
É muito swing, balanço, molho, charme e malemolência,
pois nem Santo Antonio com gancho consegue segurar,
nem o boato ou disse-me-disse de que
eu havia morrido de desastre de moto.
Se esqueceram de uma coisa: que eu sou imorrível!”

Di Melo



Assim como não seria exagero dizer que tudo em Seu Jorge que não é João Nogueira é Carlos Dafé, a mesma comparação dialética serve muito bem para outro ídolo da música brasileira da atualidade: tudo que não é Sabotage em Criolo é Di Melo. A constatação, embora um tanto capciosa, denota o quanto a arte musical de hoje no Brasil anda a reboque daquilo que já foi produzido e, principalmente, o quanto artistas do passado foram, de fato, precursores. No caso de Di Melo, este é pioneiro de muito do que se considera “inovação” na música brasileira de hoje e, novamente em comparação a Criolo, a poética afiada e o ecletismo que se percebem neste último chegam a quase parecer uma cópia.

Todo o pioneirismo de Di Melo está, curiosamente, em apenas um disco, o álbum homônimo produzido por ele em 1975, um marco na história da música pop brasileira. Idolatrado por artistas como Otto, Nação Zumbi, Leo Maia, Simoninha, Max de Castro e Charles Gavin (que, como produtor, o verteu para CD em 2004), “Di Melo” é tomado de lendas para os apreciadores e colecionadores, assim como a própria figura do simpático e bonachão músico pernambucano. Saído de sua Recife natal nos anos 60 para São Paulo, onde gravou este álbum em alto estilo, Roberto de Melo Santos é daqueles músicos cheios de talento e criador de uma única grande obra que, com o passar do tempo, caíram no ostracismo. Porém, como muitas vezes acontece com artistas brasileiros esquecidos no seu próprio país, o retorno de Di Melo à mídia tem a ver com a apreciação que veio de fora. Nos anos 90, seu LP tornou-se sucesso entre DJ’s europeus e teve uma de suas faixas incluída numa coletânea da gravadora norte-americana de jazz Blue Note. O suficiente para a galera tupiniquim voltar correndo para conhecer aquilo que desprezava. Logo “Di Melo” passou a ser valorizado nas lojas de bolachões paulistanas até esgotar e virar raridade no mercado negro, chegando a custar 300 Reais em média um vinil.

Os músicos que participaram de sua gravação dão ao disco uma aura ainda mais épica: contou com uma cozinha com Cláudio Bertrame (baixo), Bolão (sax), Luiz Melo (teclado), Geraldo Vespar (maestro, arranjos e violão), José Briamonte (maestro), Waldemar Marchette (arregimentação) e ainda participações de gente do calibre de Hermeto Paschoal nos arranjos (!) mais Heraldo Dumont, Capitão, Ubirajara (pai do Taiguara) e até de um músico da banda de Astor Piazzola.

Já para com Di Melo, a falácia chegou ao nível de este ser considerado morto após um hipotético acidente de moto. Tudo boato: Di Melo mora no subúrbio de Recife com filha e esposa, vive da venda dos quadros que pinta e, segundo o próprio, tem mais de 400 canções prontinhas para serem gravadas (inclusive parcerias com Geraldo Vandré). Dessas, as que conseguiu pôr no acetato no famoso disco de 1975 são verdadeiras joias da música brasileira moderna, onde demonstra uma versatilidade e um groove de deixar muito medalhão da MPB com inveja.

“Di Melo” começa com a gostosa “Kilariô”, um arrasador jazz-funk com uma pitada caribenha e cuja melodia de voz é daquelas que pegam no ouvido de cara: “Kilariô, raiou o dia/ Eu fiz chover em minha horta/ Ai ai meu Deus do céu, como eu sofri ao ver a natureza morta”. A voz de timbre abençoado de Di Melo, algo entre o tom metálico de Moraes Moreira e a pronúncia aberta de Wilson Simonal, é ainda mais realçada pelo belo sotaque pernambucano (com suas pronúncias “holandesas” do “T” como “Tí” e do “D” como “Dí”). Além disso, Di Melo canta ao estilo dos mestres da soul music norte-americana, mas também referenciando-se em artistas nordestinos como ele, desde o swing de Jackson do Pandeiro até o vocal rasgado de Genival Lacerda.

Em seguida, outra que vem ratificar definitivamente a veia soul: “A vida em seus métodos diz calma“, seu maior sucesso tanto na época quanto na sua “retomada”, visto que foi esta a faixa que os gringos escolheram para a coletânea de “novidades” da Blue Note. A letra, igualmente pegajosa, é um destaque, tanto pela mensagem quanto pela melodia de voz que lhe é empregada: “A vida em seus métodos diz calma/ Vai com calma, você vai chegar/ Se existe desespero é contra a calma, é/ E sem ter calma nada você vai encontrar”. Nesta fica evidente a afinação da banda e a qualidade da produção de Zilmar R. de Araújo. Tudo certo, tudo no lugar: o groove da batida, os timbres, a levada da guitarra, o arranjo dos sopros.

Na sequência, vêm três maravilhas altamente críticas à sociedade moderna e à condição do homem oprimido pela cidade grande, algo que a percepção de nordestino na gigantesca São Paulo ajuda a enxergar com mais clareza. Primeiro, “Aceito tudo”, de poética letra que remete ao modernismo e ao fraseado de um estilo musical que ainda nem existia, o rap, visto seu jeito de cantar e organizar os versos na melodia. Música que lembra muito a maneira de escrever e cantar de Chico Science (até por causa do sotaque) e que provavelmente é tudo o que Criolo sempre quis fazer: espécie de repente moderno marcado na guitarra com letra sacaca e de sinapses ligeiras (Aí eu pensei que ia indo caminhando mas não fui/ para um sonho diferente que se realiza e reproduz/ E pensando fui seguindo num caminho estreito cheio de toco/ Esqueci de lembrar de pensar que todo penso é torto...”). No fim, desemboca em um funk irrepreensível comandado pelos vocais espertos de Di Melo.

A outra é mais uma pérola: "Conformopolis". Mas, peraí: essa melodia é uma... milonga?! Sim, uma milonga, ritmo hispano-ibérico típico do Rio Grande do Sul e dos vizinhos portenhos Uruguai e Argentina. Esta gravação é algo sem precedente dentro da MPB fora dos pagos gaúchos. Não eram os irmãos Ramil, não era Hartlieb, não eram os Almôndegas nem Ellwanger. É um pernambucano em terras paulistanas totalmente sintonizado com a arte musical – pois, afinal, música boa não tem fronteira. Pungente, realista, melancólica: “A cidade acorda e sai pra trabalhar/ Na mesma rotina no mesmo lugar/ Ela então concorda que tem que parar/ Ela não discorda que tem que mudar...”. Das grandes do disco, que já foi motivo de Cotidianas aqui no ClyBlog.

Mais um apelo crítico à vida maquinal e desumanizadora da sociedade moderna, desta vez na balada marcial “Má-lida”. Os versos, confessionais, traduzem através da repetição fonética e de sentenças curtas o deslocamento existencial de um homem no mundo: “Ah! tenho de pouco surrados miúdos malditos/ Fui entrelaçado e já fui casado/ Um tanto inibido/ E pra muita gente sou um depravado.” E completa: “Ah! julgo não ser enxerido nem intrometido/ Tampouco ousado/ É que estou saturado de tanta má-lida/ Mesmo trabalhando como um condenado”. E os arranjos de cordas são preciosos.

E se pensa que as surpresas param por aí, é porque não se tem noção do que vem a seguir. Depois de três exemplos de soul, de uma canção mais contemplativa e de uma surpreendente milonga, Di Melo manda ver um tango! Sim, “Sementes” é um tango, ainda mais platino que “Conformópolis”. É nesta em que toca um dos músicos da banda de Piazzola que Di Melo em entrevista diz não lembrar do nome, mas que, afora esse detalhe importante, dá um show de acordeom. Os versos acompanham a elegância dramática deste estilo musical: “Vai, flor que se mata a espera do amanhã/ Vai, desembaraça teu sorriso a uma irmã/ Vai, que quando passas tu perfumas chão ardente/ Vai, que o tempo atrai de ti sua semente...”.

“Pernalonga” retoma o swing num balanço irresistível, o mesmo com outra ótima do disco: “Minha Estrela”, de letra romântica mas no ritmo chacoalhante da soul. De novo, a voz variante de Di Melo, que vai do som aberto ao aveludado, bem como a pronúncia pernambucana, se sobressai: “Minha estrela/ Girai na noite até o raiar do dia/ Se tiver fossa vem que eu canto a melodia/ Não quero ver o teu sorriso magoado”. O samba-rock “Se o mundo acabasse em mel” pode ser considerado uma "Construção" pop, porém não narra a morte repentina de um trabalhador pobre como no clássico de Chico Buarque, mas sim de um milionário do mundo do business publicitário. “Deu pane no nervo do cérebro/ Taquicardia e reverbério/ Momentos trágicos, instantes sórdidos/ Tombou perplexo em pleno orbe”. Que versos!

Bucólica, “Alma gêmea” começa com um dedilhado de violão a la Bach que marca sua base, acompanhado de acordes de flauta que explicitam a tocante canção. É outra que faz lembrar bastante Moraes e Chico Science, mas também da MPB rural da época. Em “João”, a força melódica e letrística de Di Melo volta com tudo para uma nova análise existencial do homem, um “João” qualquer que vive submerso nas exigências sociais (trabalho, casamento, amigos, lazer) e naquilo que ele deve ou não ser mas que, justamente por isso, faz com que se perca de si como indivíduo. Na alta variedade de ritmos do disco, ele finaliza com um xote. “Indecisão” ainda termina com versos quase proféticos vindos de um artista que conheceria o estrelato e o ostracismo, mas que nunca deixaria de seguir pelo caminho da música: “Tem gente que nasce pra ter e tem gente que vem pra cantar”.

Pode-se tranquilamente colocar “Di Melo” junto a outros grandes álbuns da soul music brasileira como os “Tim Maia Racional”, “Pra que vou recordar o que chorei”, de Dafé, ou “Saci Pererê”, da Black Rio. Esse sentimento é compartilhado por vários apreciadores desta obra, o que pode ser visto no bom curta documentário “Di Melo, O imorrível”, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, realizado em 2011 e que retrata a vida do compositor hoje, relembrando histórias, coletando depoimentos de fãs e amigos e mostrando sua ainda tímida volta aos palcos. Oxalá Di Melo possa tornar a gravar e, quem sabe, fazer o sucesso que lhe é cabido. Para quem já foi dado como morto e que, de certa forma realmente “reviveu”, nada é tão improvável assim. Certo é que sua obra, mesmo passados tantos anos (40 anos), segue sendo cada vez mais admirada. E, afinal, como Di Melo diz de si próprio: “Para o imorrível nada é impodível”.
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 documentário “DI MELO, O IMORRÍVEL”

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FAIXAS:
1. Kilariô
2. A vida em seus métodos diz calma
3. Aceito tudo (Vidal França - Vithal)
4. Conformópolis (Waldir Wanderley da Fonseca)
5. Má-lida
6. Sementes
7. Pernalonga
8. Minha estrela
9. Se o mundo acabasse em mel
10. Alma gêmea
11. João (Maria Cristina Barrionuevo)
12. Indecisão (Terrinha)

todas composições de Di Melo, exceto indicadas.

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Ouça o disco: