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terça-feira, 16 de setembro de 2014

Herbie Hancock - "Empyrean Isles" (1964)

 



Hancock estreita as fronteiras entre o hard bop, encontrando brilhantemente um sugestivo equilíbrio entre o bop tradicional, 

injetando-lhe grooves do soul,

e experimental, jazz pós-modal.” 

Stephen Thomas Erlewine,

crítico musical e biógrafo




O jazz já era o maior gênero musical norte-americano desde os anos 20, mas é inegável que as décadas de 50 e 60 foram memoráveis para sua história. A cada ano, vários artistas – muitos em seu auge; alguns, iniciando; outros, veteranos em plena forma – lançavam um ou mais álbuns impecáveis e inovadores, considerados fundamentais até hoje, fosse pela Impulse!, Blue Note, ECM, Atlantic, Columbia, Verve e outros selos. Destes, a passagem de 1963 para 1964 talvez seja a que reúna o crème de la creme pós-Segunda Guerra. Provavelmente, iguale-se apenas ao revolucionário ano de 1959, que presenteou o mundo com as inovações modais de "Kind of Blue", do Miles Davis, com o libelo free jazz de “The Shape of Jazz to Come”, do Ornette Coleman, e o petardo hard-bop “Giant Steps”, do John Coltrane. Se nem tanto em transformação do estilo, o quinto ano da década de 60 não fica para trás em qualidade e importância. Gravaram-se, durante seus 365 dias, por exemplo, joias como "Night Dreamer", do Wayne Shorter, "Matador", do Grant Green” (ambos já resenhados aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS), “Out to Lunch”, do Eric Dolphy, e “Witches and Devils”, do Albert Ayler. Todos completando expressivos 50 anos em 2014.

Um dos mais felizes desses cinquentões foi registrado a 17 dias do mês de junho daquele fatídico ano para o jazz. Foi quando, pela Blue Note, um dos maiores mestres da música moderna entrou nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, com um timaço que tinha Freddie Hubbard, no trompete, corneta e flugelhorn, Ron Carter, no baixo, e Tony Williams, na bateria. Aquele dia marcaria a sessão de gravação de mais uma obra-prima do jazz: “Empyrean Isles”, do pianista, compositor e arranjador Herbie Hancock. Um dos mais versáteis, influentes, celebrados e até controversos ícones da música mundial, Hancock, aos 64 anos de vida e mais de 50 de carreira, já foi do be-bop ao break, passando pelo afro-jazz, fusion, funk, modal, clássico e outros gêneros, seja pilotando o piano ou o sintetizador. E sempre com a maior integridade, sem perder seu fraseado característico e a complexidade harmônica inspirada em músicos de diversas vertentes como Bill EvansMiles DavisJames BrownGeorge GershwinTom Jobim e Sergei Rachmaninoff. Como seus mestres, serve de referência não só para a geração do jazz que lhe sucedera mas, igualmente, a músicos de outros estilos como Joni Mitchell, Jeff BeckStevie Wonder, Brian Jackson, Dom Salvador, Ike White, Marcos Valle, Public Enemy, entre centenas de outros.

Quinto disco solo do músico, “Empyrean Isles” é o exemplo máximo do hard-bop hancockiano e cuja influência e profusão através dos tempos é das mais fortes de sua trajetória ainda em plena atividade. A começar por dois monumentos do jazz moderno: "One Finger Snap" e "Oliloqui Valley". A primeira, ritmada e pulsante, começa com Hubbard arrebentando na corneta sobre uma base swingada de Williams, que, com as baquetas, conjuga com equilíbrio caixa, chipô e prato de ataque. Mas, como o próprio título sugere, a preciosidade está nos dedos de Hancock. Como diria Ed Motta, “a mão esquerda mais inteligente do mundo”. Um show de agilidade e engenhosidade de improviso. La no fim, quando se pensa que tocaram o chorus derradeiro, Tony Williams ainda apresenta um arrasador solo para, daí sim, desfecharem. Uau!

Já "Oliloqui...” quem começa incrivelmente é Carter, com seu toque trasteado inconfundível. Mais cadenciada e bluesy, nesta é o pianista quem inicia os trabalhos de improvisação, novamente (e como sempre!) com a mais alta qualidade que se pode esperar. Um fraseado limpo, cristalino, soul mas erudito ao mesmo tempo. Hubbard, por sua vez, também não deixa por menos, com um solo de emoção crescente que concilia lirismo e agilidade. O mestre Carter, que havia iniciado tão marcantemente a faixa com sua assinatura sonora, tem a chance de desenvolvê-la ainda mais. É tão bonito e impactante que o restante da banda para que ele toque, voltando, em seguida, todo o conjunto ao riff inicial. Mais um solo de trompete, atilado e curto, para terminar o número em desce-som.

E o que dizer da maravilhosa "Cantoloup Island"? Um colosso da música do século XX. Que base do piano, que harmonia, que groove, que chorus! Os quatro parecem saber tocar a melodia desde crianças tamanha a naturalidade do arranjo, que se resolve entre o quarteto intuitivamente, sabendo com exatidão a hora de cada um entrar, a precisão da cadência, o ataque ou a supressão certa em cada solo. No chorus, repetido a cada estampido seco de Williams na caixa, como um comando, é de uma beleza indecifrável a delicadeza do quase sugestivo último acorde ao final de cada frase, pronunciado propositadamente fraco, como uma respiração, como um suspiro que o ouvido já sabe como será – a adora confirmar o que já sabia depois que o escuta. A sensação que se tem em "Cantoloupe ..." é rara em música. Como Dear Prudence, dos Beatles, seu riff é tão natural e sugestivo que é como se sempre estivesse ali, no ar; só nós que, seres limitados, não o ouvimos. É preciso esses gênios mal acionem as moléculas para que, atritadas, gerem o som e percebamos o óbvio. Longe da conjectura matemática do serialismo dodecafônico, intricada e lógica, a previsibilidade delas é sentida no coração.

Mas mais do que o conhecido riff funky (muito bem “chupado” pelo grupo Us3 em sua “Cataloop”, em 1993, porém inevitavelmente inferior), Hubbard e Hancock desenvolvem solos que experimentam os limites do hard-bop. Hubbard, logo após o primeiro chorus, sobe um tom e entra rasgando, guinada inteligentemente acompanhada por toda a banda no mesmo instante. Um dos solos mais clássicos do cancioneiro jazz. Em seguida, cabe ao próprio Hancock, criador da obra, imprimir-lhe uma carga descomunal de groove como até então não se vira no jazz. Era James Brown materializando-se na “simplicidade complexa” do jazz.

Para fechar, “The Egg”, em extensos mas nem de longe monótonos 14 minutos, um exercício minimalista brilhante e desafiador. Primeiro, pela base de piano repetitiva em um esquisito tempo 4 + 3. Junto a isso, a bateria de Williams, não menos criativa, mantém o compasso em curtos rufares. Por fim, claro, as improvisações individuais de cada um: prolongadas, em que cada músico usa da inventividade de forma livre, namorando com o avant-garde que Coltrane, Ayler e Don Cherry desenvolveriam a partir de então. O diálogo com a vanguarda já se sente quando Carter surpreende e saca um arco para fazer de seu baixo uma espécie de cello, tangendo as cordas ao invés de dedilhá-las. Nisso, Hancock faz a música ganhar outras dimensões, passeando pelo free jazz, retornando ao cool dos anos 50, mas, mais do que isso, remetendo aos eruditos contemporâneos em lances de pura atonalidade. Quanta musicalidade! Em “The Egg”, Hancock antecipa o jazz fusion que ele mesmo ajudaria a criar anos depois. O fim da faixa, que também encerra o disco, é tão arrojado quanto sua abertura, como se um piano tivesse quebrado e repetisse somente e justo aqueles acordes.

Um disco memorável que, afora a data comemorativa, merece ser reouvido e revisto a qualquer época, tamanha sua qualidade e importância. Junto com outro trabalho definitivo do soul jazz, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan (do mesmo ano!), “Empyrean Isles”, com seus riffs e levadas funk somados à sua engenhosidade harmônica, inspiraram toda a geração posterior de jazzistas (Chick CoreaVince Guaraldi, Hubert Laws, irmãos Marsalis) e não-jazzistas, como a Blacksplotation dos anos 70, o pop dos anos 80 e músicos de todas as partes do planeta até hoje que chega a ser difícil até dimensionar. E essa força perdura desde aquele longínquo 1964. A fase era tão fértil que, pouco menos de um ano depois, Hancock comandaria a mesma banda no também espetacular “Maiden Voyage”, avançando ainda mais alguns passos em estética e forma. Mas os 50 anos desta outra obra-prima serão completos somente ano que vem...


Herbie Hancock - "Cantaloupe Island"


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FAIXAS:
  1. "One Finger Snap" – 7:20
  2. "Oliloqui Valley" – 8:28
  3. "Cantaloupe Island" – 5:32
  4. "The Egg" – 14:00
todas as faixas compostas por Herbie Hancock

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OUÇA O DISCO









sábado, 24 de agosto de 2013

Herbie Hancock - Credicard Hall - São Paulo/SP (22/08/2013)



Desde que eu soube que Herbie Hancock viria ao Brasil, fiquei com vontade de ver o show. Gosto tanto da fase Blue Note quando da Headhunters. Aí, vi um vídeo no YouTube do show de Montevidéu e o Gopala, o baterista Julio Falavigna, colocou suas impressões do espetáculo em Buenos Aires no Facebook. Posso dizer que em São Paulo, no Credicard Hall, as coisas não foram diferentes, mas acabei vendo um outro show.

Ao começar com "Actual Proof", do disco "Thrust", Herbie mostrou que teríamos uma espécie de viagem nostálgica aos seus "greatest hits". Digo isso porque não faltaram, entre outras, "Watermelon Man" - aqui na versão Headhunters e mesclada com "Seventeen", do guitarrista africano Lionel Loueke. Ao apresentar a música, HH destaca a qualidade dos três músicos que estiveram com ele no palco: o baixista James Genus - irreconhecível, portando um baixo elétrico, ele que sempre tocou acústico, especialmente com Michael Brecker; o cultuado baterista Vinnie Colauita, realmente um músico de exceção; e o percussionista indiano Zakir Hussain, armado de um arsenal de tablas, kalimba e outras milongas mais. Herbie se revezava entre o piano acústico e o teclado e as programações. E resgatou do limbo - para alguns, de onde nunca deveriam ter saído - o keytar, aquela mistura de teclado com guitarra, de muito sucesso nos anos 80, e o vocoder, o sintetizador de voz, também muito em moda naquela década maldita. Não sou um purista, mas tendo um piano de qualidade para tocar, foi decepcionante ver HH, aos 70 anos, desperdiçar seu tempo com estes jurássicos gadgets de antão.
foto: Manuela Scarpa
Photo Rio News

Pode-se dizer que as passagens em quarteto foram muito mais interessantes do que os solos. Concordo pela metade com o Gopala. Afinal de contas, o especialista em tabla é ele e não eu. Mas confesso que cortaria meio solo de Zakir, que parecia não saber onde terminar, apesar de possuir uma técnica exuberante. Dez minutos de tablas solo foram um pouquinho demais pra mim. Assim como Hancock, que começou sozinho uma digressão pianística muito interessante do conhecido tema "Maiden Voyage", mas logo trocou o piano Steinway pelo Korg e pelo vocoder. A partir daí, Hancock resolveu disputar o espaço destinado a chatos insuportáveis como Kitaro e Yanni, num clima da pior New Age. Felizmente, o grupo voltou ao palco e partiu para mais uma das viagens de Hancock sobre temas conhecidos. Agora em cima de "Cantaloupe Island", que deu espaço para Colaiuta mostrar porque é adorado pelos bateristas de todo mundo. Ele alia uma supertécnica a um approach muscular, surrando sem dó nem trégua aqueles couros e pratos. E no bis, Hancock, jogando pra torcida, entrou com "Rockit", seu hit dos anos 80 e, de repente, invadiu sua própria praia com "Chameleon" do disco "Headhunters", um clássico do funk-jazz dos 70's, que levantou a plateia do Credicard Hall.


Entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Mas eu gostaria de um pouco mais de música acústica. A culpa é minha. Esqueci que Herbie Hancock sempre fez estas misturas a vida inteira. E não seria aos 70 que ele iria mudar.




quinta-feira, 3 de maio de 2012

Aniversário de 30 anos do Club de Jazz Take Five - Porto Alegre - RS (18/04/2012)



Dona Ivone Pacheco solo ao piano
Deve haver algum mistério divinal guardado no nome Ivone que faz com que algumas delas, Ivones, sejam iluminadas. Só pode! Pois se não bastasse dona Ivone Lara, a sambista bachiana da MPB, eis que tenho a honra de conhecer e ver tocando a também dona Ivone, esta de sobrenome Pacheco, intitulada como a Diva do Jazz de Porto Alegre. As semelhanças entre as duas não se encerram aí: longevas (ambas ultrapassam as 80 primaveras), ainda são mestres na música e, acima de tudo, verdadeiras entidades, pessoas que ao se olhar se percebe que excedem este plano aqui, de nós mortais. Há uma espiritualidade que as eleva e que, justamente, conseguem transpor em arte.
Foi um pouco disso que vi durante o encontro do Club de Jazz Take Five no último dia 18 de abril, data em que o clube completou 30 anos. Promovido por d. Ivone, o Take Five teve início quando ela se juntou ao músico Marcos Ungareti (que, claro, estava lá na comemoração). Na época, as performances musicais de d. Ivone se restringiam às festas da família. Só depois de criar os filhos, cursar a faculdade de música e lecionar, Lady Ivone teve a ideia de fazer as jams sessions no porão de sua casa. Foi então que tudo começou.
Grupo tocando Hancock, um dos
pontos altos da noite
O ambiente é totalmente mágico, misto de clube de jazz nova-iorquino ou parisiense com loja de antiguidades. Um espetáculo. Diversos quadros, espelhos, capas de disco, móveis antigos, objetos, tecidos, pôsters que vão de Charlie Parker ao de Humphrey Bogart e, claro, o piano. Pouca luz; suficiente. Cheiro de magia no ar. Pessoas felizes que te sorriem sem saber quem tu és: o fazem só pela simples alegria de estar compartilhando aquilo ali seja com quem for. Tomado por essa atmosfera, escutei números de jazz tocados com muita emoção. Teve “Summertime”, “Hello, Dolly” e uma versão de “Ins’t She Lovely” do Stevie Wonder com a mesma banda que tocou uma outra que me tirou do chão: “Cantaloupe Island”, do Hancock. Uau!





"Summertime"

O pessoal do
rockabilly
Como funciona em rodízio de bandas/artistas, cada um vai lá ao palco e manda ver algumas músicas. Numa dessas trocas, um simpático trio de rockabilly se apresentou, tocando coisas bem legais, como “Summertime Blues” (Eddie Cochran) e “Can´t Help Falling In Love”, clássico imortalizado por Elvis Presley, em que todo mundo entoou o refrão.
D. Ivone e Ramiro Kersting tocando
"As Time Goes By"
Mas o melhor desta noite onírica não podia vir de uma pessoa: d. Ivone. Ao piano, ela, numa concentração astral, emanou com extrema delicadeza e sensibilidade peças emocionantes. Lembrava a fineza dos dedilhados de Paul Bley, Toshiko Akyioshi, Bill Evans, Sonny Clark. Mas antes de qualquer coisa era Ivone Pacheco. Como se não bastasse, juntou-se a ela o trompetista Ramiro Kersting, e ali se deu algo realmente mágico. Sem trocar uma palavra, mas em total sincronia, presentearam o público com pérolas como “As Time Goes By” e “When The Saints Go Marchin' In”, para ficar em dois ótimos exemplos.
Amante de jazz como sou, confesso que não sabia da existência de um grupo tão antigo na minha própria cidade e em plena atividade e, principalmente, do quão secreto é o evento. Entre as regras que regem o clube, como o caráter não-comercial e o fato de todos levarem sua própria bebida, o endereço é mantido em sigilo: só vai quem sabe ou se conhece alguém que já foi – situação na qual me enquadro. Um critério seletivo que todos respeitam e que só faz valorizar o clube, além de lhe dar ainda um charme especial.
Foi um momento de se respirar jazz, de se inalar a “música da alma”. De se sentir música. Saí de lá com uma certeza: na próxima encarnação, quererei vir Ivone.

Dona Ivone ao piano - comemoração dos 30 anos do Take Five


Um pouco mais sobre o Take Five
Take Five: casa que completa 
30 anos
Sexto Take: Eu, totalmente intergrado
na atmosfera do clube
Depois de pôr em funcionamento o Take Five, em 1982, Ivone Pacheco começou a se apresentar em bares e fazer shows em Porto Alegre, interior gaúcho e até em outros estados e fora do Brasil, tocando em ruas, metrôs e pubs. No início, as reuniões do Club de Jazz eram semanais. Nos anos 90, auge do Take Five, os encontros passaram a ser mensais, pois o local começou a lotar e perder um pouco sua essência. Ivone Pacheco sempre incentivou novos e conhecidos artistas a se apresentarem naquele espaço.Muitas bandas se formaram lá durante os encontros, que avançavam até as altas horas da madrugada. Já passaram pelo palco bandas como a Tradicional Jazz Band que, quando vinham se apresentar em Porto Alegre, faziam questão de tocar no "porão da Ivone". Hoje, as reuniões do Take Five são realizadas apenas em datas especiais quatro vezes por ano: o aniversário do clube, a noite de São João, a chegada da primavera e a festa de encerramento com o Natal.





fotos: Leocádia Costa

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)



"O esplendor de um navio marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a compor a música “Maiden Voyage”



Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que, em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente, chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua estreia como band leader, em 1962, aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador. É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de 1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.

Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências sonoras. O jazz modal, o be-bop, a música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George Coleman;  Freddie Hubbard, no trompete, outro monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.

E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros, enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais, noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo, quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E, por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.

Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo. Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal, quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia lhe autoriza.

Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco anterior de Hancock, seu trompete trazia um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o clima astral desse passeio musical proposto por Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares: oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada, adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante. Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma esfinge ainda a ser totalmente desvendada.

Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the Hurricane”, hard-bop efervescente, como o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado chorus da introdução no final.

A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante, arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos 3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de “Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.

O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica maneira de terminar a “viagem inaugural”.

O ano de 1965 foi de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage” certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50 melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu, já estava nadando pelos mares do pós-bop, do fusion e do funk para mudar novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem volta e com destino à eternidade.
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FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance

todas as canções de autoria de Herbie Hancock.

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OUÇA O DISCO:




segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 4 de abril de 2016

Herbie Hancock e Wayne Shorter - Brasil Jazz Fest - Vivo Rio - Rio de Janeiro (01/04/2016)



A permanente reinvenção
por Daniel Rodrigues

As lendas vivas do jazz apaludidas de pé pelo Vivo Rio.
foto: Leocádia Costa
No final do longo documentário “Jazz”, que soma mais de 12 horas de registros e documentação, Ken Burns, seu realizador, lança o questionamento de que rumos o jazz tomaria no futuro. Entre promessas e incertezas, um dos argumentos era o de que o estilo sempre soube se reinventar, e que seus artífices têm gravado em seu espírito essa incumbência. Não que se trate da criação de um novo gênero no jazz, mas o que se viu no Vivo Rio na noite do último dia 1º de abril foi, certamente, fruto dessa alma inquieta e pulsante dos verdadeiros jazzistas. Herbie Hancock e Wayne Shorter, justamente dois dos músicos mais revolucionários do jazz e da música moderna do século XX, subiram ao palco para justificar que o estilo ainda tem muito, mas muito fôlego em ternos de criação e improviso.

Em apenas sete números, presenciou-se dois músicos completamente absorvidos por sua arte. Mesmo num espaço amplo e lotado (não apenas de fãs, mas infelizmente também de protoadmiradores que, claro, não tiveram paciência para apreciar o que estava acontecendo), Hancock e Shorter exibiram uma apresentação intimista. Altamente concentrados em cada nota, em cada ataque, em cada hesitação para, aí sim, entrar no tempo certo que sua emoção diz. Hancock, mais vivaz, era quem comandava a harmonia, fosse em seu piano de cauda, em seu teclado Korg ou no sintetizador, do qual extraía climas em loops e efeitos não raro desconcertantes. Shorter, um pouco fechado no início (intimidado não é o mais adequado ou provável), soltou-se de tal forma que foi ele quem, por outro lado, conduziu a emoção do público em vários momentos. Os improvisos são econômicos e nunca extensos; às vezes, quase lacônicos. Há quem possa lhe atribuir à idade avançada e a inevitável perda de capacidade pulmonar (82 anos, enquanto Hancock, mesmo também vovô, tem sete a menos), mas a sensação nítida que me ficou foi a de um Shorter ainda mais dominador dos tempos e das figuras sonoras que cria. Muitas vezes, foi possível ver Miles Davis no palco, o mestre que ensinou à dupla a arte do essencial – embora ambos tenham aprendido também a intempestividade do free-jazz.

Aliás, uma reelaboração do free-jazz talvez seja uma definição possível para o show apresentado pelos jazzistas norte-americanos. Entretanto, a classificação não é assim tão simplória, visto que não deixaram de lado as vivências do fusion, da música clássica, da vanguarda erudita e, por que não, do próprio jazz que lhes formou, o hard bop e o modal, que tanto dominam. Em meio a improvisos e construções baseadas nessa premissa, houve momentos de viagens cósmicas, motivados pelo piano e teclado transcendentes de Hancock, e da mais fina delicadeza, seja no dedilhado sensível ou nas frases budistas do sax soprano de Shorter. Uma montanha-russa de emoções.

O que se viu foi, de fato, duas entidades, duas velhas entidades da música em pleno exercício de liberdade, como amadores cheios de vida. Propondo um conteúdo denso e hermético, com altas cargas de musicalidade, Hancock e Shorter tiveram a jovial e admirável coragem de inovar. Com aplausos garantidos somente pelo que representam, eles podiam muito bem tocar para a galera apenas os clássicos, quando muito intercalando algum tema mais “difícil” para facilitar a deglutição do público. Não. Eles seguiram o caminho de seus corações e da arte que tanto respeitam e militam. Entraram e fizeram aquilo que se propunham, que faz sentido para eles. E se fizer sentido para alguém do público, que bom: intenção atingida. No meu caso, foi mais do que plenamente. A honestidade deles era tanta que até mesmos no meio de solos engendrados ali, no calor do improviso, era possível identificar seus estilos, seus modos e até referenciar a alguns temas do passado em que tocaram juntos, como “The All Seeing Eye”, composição de Shorter de 1965, na abertura do show.

O bis não poderia ter sido melhor: no mesmo clima free, a dupla lançou "Encontros e Despedidas", de Fernando Brant e Milton Nascimento – este último, na plateia prestigiando os amigos como já o vi fazendo. O riff da canção se funde ao próprio solo do saxofone, diluindo-se nos acordes e no andamento. Se por um lado esse número foi o único respiro àqueles que esperavam standarts cantaroláveis para contar aos amigos que ouviram a música que conheceram no Youtube, o clássico da MPB (e do jazz moderno mundial) fechou com a mesma dignidade de toda a apresentação: com densidão e alma. Herbie Hancock e Wayne Shorter nos presentearam com uma celebração do jazz em seu estado essencial: o da permanente reinvenção.

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Enterprise de sons e timbres
por Paulo Moreira

Herbie manipulando os teclados e sntetizadores.
foto: Leocádia Costa
Foi um começo de luxo! O Vivo Rio esteve completamente lotado para ver a abertura do Brasil Jazz Fest com Herbie Hancock e Wayne Shorter. O zum-zum vinha de São Paulo: eles não tocam nenhum hit. Nem "Cantaloupe Island", nem "Footprints". Nem música reconhecível. "É só viagem...". Por mais de 70 minutos – e com direito a DOIS bis – Herbie & Wayne transportaram a plateia para um outro universo. Um outro estágio. Basicamente fazendo uso de um piano e um sax soprano - e intervenções esporádicas de um teclado - os veteranos músicos mostraram que a idade avançada (Herbie tem 75 anos e Wayne 82!) não é sinônimo de acomodação. Ambos tiveram a coragem de apostar no desconhecido e nas habilidades técnicas e de feeling para nos carregar a outro patamar sensitivo-musical.

Percebendo o convite, os presentes embarcaram nesta Enterprise de sons e timbres e se deixou viajar no cosmos musical sem precisar de gasolina. Até mesmo as eventuais explorações do teclado foram digeridas pelo público. Em certo momento, Herbie & Wayne me lembraram outra parceria de piano e sax soprano que também se utilizou do free-jazz como base nas improvisações: Mal Waldron & Steve Lacy, que tocaram no início dos anos 2000 no falecido e saudoso Chivas Jazz Festival.

Como bônus, Wayne troca de palheta em pleno palco e ataca de "Encontros e Despedidas", de Milton Nascimento, que estava na plateia, brincando com a melodia e fazendo um jogo de gato-e-rato com citações de músicas do repertório do amigo brasileiro. A reação do público foi tão carinhosa que Hancock, ao final, espantado, perguntou se tinha sido divertido. Claro que foi, seu Herbert. Quem esteve lá compreendeu que grandes instrumentistas e criadores estão sempre de olho no futuro. Mesmo tendo uma bagagem de 50 e tantos anos de serviços prestados à música dos Séculos XX e XXI.

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A Magia da Música
por Cly Reis


Hancock e Shorter em pleno improviso.
foto: Leocádia Costa
Um daqueles momentos sublimes que se vive poucas vezes na vida. A oportunidade de presenciar a apresentação de dois gênios da humanidade justificando plenamente toda a expectativa que se cria quando se fala em verdadeiras lendas da música reunidas em um palco. E digo gênios sem medo de pecar pelo exagero porque tudo o que desfilaram na noite gloriosa no palco do Vivo Rio não foi nada menos que genialidade. Numa apresentação memorável Wayne Shorter empunhando seu saxofone e Herbie Hancock comandando seu piano e eventualmente um teclado, exibiram técnica, criatividade e ousadia em números longos inspirados e cheios de improvisações quase impensáveis para nós pobres mortais. Podem ter decepcionado um pouco aos que já tivessem ido com alguma preconcepção do espetáculo e com expectativas prontas de repertório, uma vez que não tocaram seus clássicos ou suas obras mais badaladas, mas tenho certeza que todos que perceberam o verdadeiro espírito do show e que deixaram suas sensibilidades os guiarem não só não tiveram nenhum tipo de desapontamento, como, pelo contrário, ficaram gratos pela opção da dupla. Alguns foram embora cedo, é verdade, e lamento por eles, não penas por não terem entendimento para o que estava ocorrendo ali mas também pelo que perderam pois nós que ficamos pudemos nos regozijar com aquela magia que pairava no ar a ponto de quase abandonarmos nossos corpos levados pela música.
Uma noite mágica em que dois gigantes da música nos proporcionaram momentos de prazer e elevação espiritual e, em meio a este universo atualmente tão saturado de coisas pobres, repetitivas, insignificantes e descartáveis, fizeram o favor de nos lembrar porque a música é, antes de mais nada, arte.