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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“Filme sobre um Bom Fim”, de Boca Migotto (2014)






Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter assistido ao documentário “Filme sobre um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal. Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”. Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia cultural recente da cidade.

Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional, cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno deste.

Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80.
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de 1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super 8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80, quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana. Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler, João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).

Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda), embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita, mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti, Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto, deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).

Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade.
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes, o hardcore d’Os Replicantes ou o pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil, que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.

E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”, “desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do município, e isso por causa de muita insistência. 

Peninha, ferino e hilário.
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um momento tão efervescente e interessante na cidade.

Sabemos que não se repetirá.

A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola. Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente, não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo, na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade. Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.

No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”, a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto Alegre de uma forma ou de outra como eu.

Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em 2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.


trailer de "Filme sobre um Bom Fim"



segunda-feira, 5 de outubro de 2015

“Rock Grande do Sul: 30 Anos”, de Lucio Brancato e Fabrício Almeida (2015)



Capa da coletânea de 1985
Não venho falando que o bairro Bom Fim e sua história andam recorrentes pra mim? Pois pouco tempo depois de ter assistido a "Filme Sobre um Bom Fim" e visitado a Lancheria do Parque nas vésperas da despedida do garçom Ildo, ambos assuntos que me motivaram a escrever aqui para o blog, outro acontecimento envolvendo o bairro me impele a falar a respeito do Bonfa de novo. É o documentário “Rock Grande do Sul: 30 Anos”, para o qual tivemos a honra de sermos convidados para a pré-estreia por um de seus diretores, meu amigo e jornalista Lucio Brancato, o que aconteceu no simpático Panama Estudio Pub, na Cidade Baixa, numa (mais uma!) noite chuvoso de setembro na capital.
Dentre os que assistiram, estavam o codiretor e também jornalista Fabrício Almeida, os colegas de Grupo RBS Alexandre Lucchese e Porã Bernardes, que ajudaram na pesquisa e entrevistas, e um dos protagonistas do filme, o DJ e produtor musical Claudinho Pereira, responsável pelos contatos que fizeram com que Rock Grande do Sul acontecesse 30 anos atrás. O disco impulsionou as bandas gaúchas dos anos 80, as quais já mobilizavam multidões por aqui, mas ainda não tinham projeção nacional. A trajetória começa em setembro de 1985 com um show no Gigantinho, o “Rock Unificado”, que reuniu pela primeira vez somente bandas locais e um público de mais de 10 mil pessoas. Disso, culmina com a escolha de cinco desses conjuntos para participarem de uma coletânea, engendrada por Claudinho junto a Tadeu Valério, executivo da RCA Victor, que veio a seu convite como olheiro assistir ao espetáculo. Convencido por Claudinho, se valesse a pena, Valério os lançaria um disco. Valeu. Assim, gravariam pela primeira vez em um LP nacional TNT, Garotos da Rua, Engenheiros do HawaiiOs Replicantes e DeFalla (este último, que não participou do tal show no Gigantinho, mas era visivelmente um destaque na cena pela sonoridade, visual e postura).
Antes da avant-première
Vendo o filme, impossível não compará-lo a “Filme sobre Um Bom Fim”, tendo em vista a quase simultaneidade em que foram lançados. A temática, que faz ambos passarem necessariamente pelo bairro e pela cena cultural da época, os une numa leva de realizações que se completa com outro documentário desde ano, “Sobre Amanhã”, de Diego de Godoy e Rodrigo Pesavento, a respeito da banda DeFalla, lançado também faz pouco, em agosto, no Festival de Gramado. Vários entrevistados são, obviamente, os mesmos, visto que nomes como Biba Meira, Carlos Gerbase, Carlos Eduardo Miranda, Claudinho e Edu K, por exemplo, são essenciais para a história dessa efervescência cultural vivida por Porto Alegre num passado recente.
Conversei sobre isso com Lucio, que me revelou ter sido, de fato, apenas um feliz acaso. As semelhanças existem, tanto que tiveram que evitar de usar imagens e vídeos repetidos em uma obra e outra. Mas a ideia de “Rock...” surgira entre seus idealizadores há pouco tempo, quando Porã se dera conta do aniversário do disco, sendo que o projeto de “Filme...”, consideravelmente maior, já vinha sendo tenteado há uma década. E é aí que as coisas começam a se diferenciar. Por tratar de um tema menos complexo, o lançamento do disco e suas consequências (“Filme...” remonta parte da história e vivências do Bom Fim e arredores em mais de duas décadas), “Rock...” exige um menor número de entrevistados (menos de 20 ao todo) e recortes temporal e narrativo idem.
Começando a projeção.
Talvez por esses fatores, “Rock...” tenha ficado tão agradável e lúdico. Não que “Filme...” também não o seja; mas a complexidade que seu tema central levanta, bem como os vários desvelamentos que não se pode deixar de fazer (política, cultura, boemia, história, antropologia, comunicação, literatura, cinema, arquitetura histórica, urbanismo, etc.), lhe dão necessariamente um caráter mais denso – desafio este que o diretor Boca Migotto cumpre muito bem, diga-se. No caso de “Rock...”, essa exigência é menor, pois os caminhos para dissecar o assunto tornam-se naturalmente menos intrincados, ajudando, inclusive a detectar com mais facilidade os pontos a serem destacados no decorrer da narrativa. Dá até para fazer “firulas”. É o que acontece, por exemplo, na hora em que King Jim, d’Os Garotos da Rua, levemente “desmemoriado”, recorda que até havia plateia no Gigantinho na fatídica noite de 11 de setembro de 1985, depoimento imediatamente reconsiderado por Charles Master, do TNT, a quem era óbvio que havia um grande público. Momento engraçado e bem construído pela montagem.
O tempo recorde em que foi produzido – desde a concepção do roteiro, entrevistas, decupagem e montagem levou-se apenas sete semanas (algo como menos de dois meses), conforme Lucio, impressionado com o próprio feito, me relatou – não prejudicou o resultado final. Muito pela experiência dos realizadores, talhados nas várias mídias do jornalismo (tevê, jornal, rádio, etc.), “Rock...” ganhou agilidade e fluência, contando desde o surgimento das bandas e o furor da cena gaúcha dos anos 80, passando pelo “Rock Unificado”, os bastidores da assinatura do contrato com a RCA e o sentimento dos protagonistas quanto àquela conquista. Além disso, remonta o que aconteceu dois anos depois da coletânea como resultado: a gravação do disco de cada uma das cinco bandas que integraram a “Rock Grande do Sul”, dentre estes os clássicos “Papaparty”, da DeFalla, "O Futuro É Vortex" (1987), d’Os Replicantes, e o LP homônimo da TNT.
Bem interessante esse momento do filme, em que contam sobre a aventura de ir para o Rio de Janeiro para gravarem os discos, o que rende histórias engraçadas e com sabor nostálgico. Charles fala da reação “jeca” dos rapazes da TNT ao se depararem com o rico aparato do estúdio e, logo em seguida, voltarem ao hotel onde estavam hospedados e esconderem os seus instrumentos de vergonha que ficaram. Ou das sacanagens que Os Garotos da Rua, suburbanos também no jeito de ser, faziam no quarto do hotel dos membros do Engenheiros do Hawaii, que, universitários intelectualizados, respondiam às brincadeiras testando-lhes o conhecimento, tal como relataram Jim e Humberto Gessinger. Eu, que sou especialmente fã de Replicantes, adorei saber das condições que a banda de Gerbase impôs à gravadora. Punks cientes – e orgulhosos – de sua inaptidão técnica como músicos, embora extremamente criativos e donos de uma música inteligente e pungente, tinham critérios desde a escolha do repertório até o método de gravação, em que a banda tocava junta (sem overdub) e escolhiam, ao final, o take “menos pior”, como relatara engenheiro de som que os apadrinhara, o Barriga.
Master, Gessinger e Gerbase,
três das figuras centrais do filme.
Detalhes cuidadosos estabelecem o ritmo da montagem, da fotografia e locações, mantendo tempos regulares e bem conduzidos das falas – um exemplo simples mas que denota essa delicadeza é o lettering que credita cada entrevistado, o qual aparece apenas depois da primeira ideia dita por estes. Ao final, fica um sabor de “quero mais”, e não pela sensação de ter sido pouco, pois, mesmo sendo um curta, o filme supera esse fator uma vez que conta muito bem a história. Fica, sim, o sentimento de “que pena, passou tão rápido!”
O filme desfecha com uma rodada de percepções de vários dos entrevistados sobre o que a coletânea “Rock Grande do Sul” representava para eles hoje. Com o a capa do vinil na mão, num exercício psicológico tátil, cada um dá seu depoimento que vai do orgulho ao carinho. Olhando-os nessa sequência, hoje todos mais velhos de quando realizaram a obra, fica a sensação de que parece ter passado pouco tempo de lá para cá, o que é imediatamente contrariado pelo fator cronológico, o qual relembra serem caprichosas três décadas. Não é pouco, de fato. A sensibilidade dos diretores e o carinho com que trataram do tema é provada no desfecho: percebendo essa atmosfera nostálgica que permeia a psique coletiva, o que se escuta no final não é "Segurança", "Entra Nessa" ou “Surfista Calhorda”, faixas do disco que automaticamente são ligadas a este – e com as quais seria óbvio demais encerrar. Ouve-se, sim, apenas o chiado da agulha no sulco do vinil, metáfora de uma obra que não inicia, pois seus ecos, na verdade, ainda não terminaram.
Afora isso, foi saboroso assistir a esse tributo a um dos discos que foi um dos principais responsáveis por fazer a mim e a meu irmão a gostarmos de rock e pelo qual guardo um sentimento especial até hoje. Pelo visto, não só eu.

trailer "Rock Grande do Sul: 30 anos" 




segunda-feira, 17 de abril de 2017

Elza Soares - "A Mulher do Fim do Mundo" (2015)



"Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou, eu vou,
eu vou cantar
Me deixem cantar até o fim."
da letra de
"A Mulher do Fim do Mundo"




Devo admitir que fui com um certo ceticismo para ouvir "A Mulher do Fim do Mundo", disco da veterana Elza Soares, desconfiado de que grande parte da badalação em torno dele viesse a dever-se muito mais à simpatia das "minorias" ou da parcela da sociedade engajada por assuntos que o disco aborda e causas que, direta ou indiretamente, defende como igualdade racial, feminismo, justiça social, etc., do que propriamente por suas suas qualidades musicais. Para minha felicidade o disco não limita-se a ser um grito dos oprimidos. Aparatada por um time de jovens músicos, compositores e produtores, antenados com o momento musical, com os novos recursos e possibilidades, a veterana Elza Soares tem a oportunidade de ter seu trabalho atualizado e por conta disso revalorizado através das inovações propostas por essa impetuosa retaguarda técnica. Bases e batidas pré-gravadas, guitarras, distorções, incorporação de outras tendências musicais como rap e o funk são algumas das novidades que vemos no trabalho de Elza, impulsionadas, é claro, pelo talentoso grupo de músicos já de bom trânsito e reconhecimento pela cena musical paulistana nos últimos anos.
Mas antes que digam que estou dando todos os méritos para a equipe técnica e inventem outra polêmica, como se já não bastasse da famosa discussão sobre o fato do álbum ter sido todo concebido e executado por homens brancos,  é importante que se saliente que "A Mulher do Fim do Mundo" é um disco DE Elza Soares, feito PARA Elza Soares como muitos discos são feitos para outros intérpretes por diversos compositores, independente de seu gênero, raça ou condição social, e ELA é a estrela maior do disco. Os temas, as letras, a obra foi entregue a ela, personificada nela porque, possivelmente, no Brasil, poucas artistas representariam tão bem a imagem de luta de uma mulher negra de origem humilde julgada pela sociedade como ela. E nada mais autêntico do que entregar esse repertório a uma mulher que, mesmo antes disse projeto, ao longo de sua carreira sempre fez questão de mostrar estas realidades fosse nos repertórios escolhidos, fosse em entrevistas.
Provando que sabem que Elza é quem tem que brilhar e que não tem a intenção de reivindicar a obra, os "garotos" fazem questão de enfatizar isso logo na primeira faixa: o que surge primeiro é a voz. Apenas a voz. Nada mais. Numa emocionante interpretação à capela de "Coração do Mar", poema de Oswald de Andrade, musicado por José Miguel Wisnik, Elza brilha solo mostrando que seu "instrumento de trabalho" permanece como uma marca registrada na música brasileira.
Imediatamente após a introdução vocal, a faixa que dá nome ao disco surge solene e melancólica com cordas chorosas logo integradas a um riff minimalista que não tarda a explodir num samba potente como um terremoto, um cataclismo, um apocalipse. É o fim do mundo e Elza está lá. No meio dele, no olho do furacão. Cantando. Com aquele rasgo de voz característico dela, como se fosse um trompete, ao melhor estilo Louis Armstrong, ela anuncia, inapelável, "Eu vou cantar até o fim". E, amigos, tal é a força, que a partir daquele momento ficamos com a certeza de que nada irá pará-la.
E pra confirmar essa volúpia incontida, a excelente "Maria da Vila Matilde", um "samba-de-breque" cheio de elementos eletrônicos, guitarras e metais, vem dando o papo-reto sobre violência contra a mulher botando o dedo na cara do machão covarde e avisando com todas as letras "Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim". É a afirmação da postura da mulher do novo século, da mulher do fim do mundo.
Em "Pra Fuder" a linguagem que num primeiro momento pode parecer desnecessária, tipo criança boca-suja, meio Dercy Gonçalves nos últimos anos de vida, mostra-se imperativa num dos refrões mais intensos dos escritos no Brasil desde as sentenças primais de "Cabeça Dinossauro" dos Titãs.
"Luz Vermelha" é visceral, agressiva, caótica e traz um refrão embalado por uma espécie de drum'n bass sambado; a simpática "Firmeza?!" reafirma a contemporaneidade de linguagem, não somente sonora mas também verbal, proposta pelos compositores e produtores, num amistoso diálogo entre dois "parças" na "quebrada" onde vivem; a mórbida "Dança" talvez seja a que mais se aproxima de um samba canção tradicional; e "Canal" com uma poesia sutil aborda a questão da falta d'água com destaque para o brilhante trabalho de percussão.
"Benedita" (ou seria Benedito?), outro dos granes destaques do álbum, de estrutura quebrada e imprevisível, acompanha as desventuras de um transexual pelo submundo e seus recursos para sobreviver naquele meio selvagem e implacável ("Ela leva o cartucho na teta/ ela abre a navalha na boca") .Uma jornada underground comparável às mais sujas histórias de Fausto Fawcett com suas fantásticas personagens malditas como Kátia Flávia, a amazona loura terrorista, ou a falsa-santa traficante de armas Judith Raquel: ou mais realisticamente, com o personagem de mesmo nome criado por Itamar Assumpção em "Beleléu", mais conhecido como Nêgo Dito.
Sob acompanhamento de cordas "Solto" encaminha com melancolia o final do disco e, assim como começou ele termina, conduzido apenas pela voz de Elza na belíssima "Comigo". A voz está um pouco envelhecida, deve-se dizer a verdade, mas assim como Billie Holliday em "Lady in Satin", que com a voz hesitante e débil ainda conseguira gerar uma obra-prima, Elza Soares talvez tenha conseguido finalmente, em tempo, a sua.
Um disco que já nasceu histórico e que já coloca-se de imediato entre os grandes álbuns da música brasileira. Um projeto musicalmente ousado e que torna-se urgente e essencial no presente contexto político, social e humano por suas temáticas e abordagens. "A Mulher do Fim do Mundo" é o disco da nova mulher, de uma nova atitude, de um novo som, o disco de um novo século e, oxalá, quem sabe não o disco do fim do mundo, mas de um novo mundo.
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FAIXAS:
  1. "Coração Do Mar"
  2. "Mulher Do Fim Do Mundo"
  3. "Maria Da Vila Matilde"
  4. "Luz Vermelha"
  5. "Pra Fuder"
  6. "Benedita"
  7. "Firmeza"
  8. "Dança"
  9. "Canal"
  10. "Solto"
  11. "Comigo"

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OUÇA:
Elza Soares A Mulher do Fim do Mundo



Cly Reis


quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Live “Na Antessala do Fim do Mundo", com Boca Migotto, Tabajara Ruas e Roger Lerina - Ed. BesouroBox - 66ª Feira do Livro de Porto Alegre

 Qual o seu lugar no mundo?


O autor Boca Migotto: do cinema para a literatura

"À direita do carro, bem ao lado de Diego, que estava sentado no banco do carona, a Cordilheira dos Andes e suas neves eternas seguem presentes, acompanhando a viagem dos aventureiros que por ali passam. É fim de tarde, o pôr do sol avermelhado reflete sobre o cume das montanhas e pinta de dourado a neve. Esse primeiro trecho da viagem ainda é feito sobre uma Ruta 40 asfaltada, que corre por entre montanhas verdejantes, contorna lagos e, por vezes, acompanha o fluxo natural de rios e córregos originários do degelo dos Andes. 'Engraçado como a água sempre encontra o caminho mais fácil para seguir seu destino'", pensou Diego."
Trecho de “Na Antessala do fim do Mundo” 

Diego é um homem bonito, lembra pela descrição um típico latino, com a virilidade e a força do homem americano. Ele nos faz acreditar que o final do mundo deve ser no Ushuaia, um lugar construído para prisioneiros perigosos dada a sua distância, intempéries e maior dificuldade de uma convivência humana mais cotidiana como as dos grandes centros urbanos. Mas ao viajar na RUTA 40 que avança na companhia silenciosa da Cordilheira dos Andes, entre montanhas e águas, ele descobre algo muito especial. A viagem tem motivação após a morte da sua mãe. Ele que é a personagem principal e, portanto, está proibido de morrer busca por seu irmão que ganhou o mundo, para lhe contar sobre o desaparecimento da mãe, pois esse seria a única pessoa a entender o seu sofrimento. Será? 

Diego nos mostra o que a morte provoca num núcleo familiar restrito, onde mãe, pai e irmão somem lentamente. Numa rota em sentido único que o levará ao Ushuaia, ele encontra pessoas que lhe trazem reflexões sobre a forma de estarmos no mundo, aprende com eles sobre si mesmo e inicia inúmeras reflexões. Música, política, história, sexo, morte, cinema, conflitos e vida estão na história de Diego que carrega um pouco do escritor Boca Migotto e um pouco de Léo, o ator Leonardo Machado que faleceu em 2018 de câncer. Esse livro era um filme onde Léo seria Diego, num road movie pela RUTA 40 realizado entre os dois amigos. Porém a morte interrompeu a ideia, mas não o propósito de contar a história. 

Algum tempo depois, Boca que está totalmente mergulhado no cinema e realizou alguns filmes, tais como: "Pra Ficar na História", "O sal e o Açúcar", "Já Vimos esse Filme" e "Filme sobre o Bom Fim", lança seu primeiro livro a partir do argumento do filme que não aconteceu “Na Antessala do fim do Mundo”. Ele traz de uma forma sensível e com uma atmosfera muito autoral esse homem em estado de conflito que carrega fragmentos da sua vida, das suas ideias e o que ele valoriza como ser humano para dentro de uma narrativa agora literária. Diego é um pouco do Boca, um pouco do Léo e um pouco de todos nós, leitores que buscamos compreender o que a vida nos oferece. No cinema, Boca tem impresso essa questão autoral faz uns anos é só observar os temas que ele elege para transformar para as telas, todos tem ressonância nele mesmo e depois vazam para o coletivo porque encontros e desencontros fazem parte da viagem, né? 

Chegando ao final desse livro entendi porque numa entrevista recente na Rádio da UFRGS ele comentou sorrindo que teve alta da terapeuta após ela ler o livro. Boca encontrou o seu lugar no mundo. E o melhor é que cada um de nós tem o seu lugar. Mas não pense que estou falando de algum lugar externo, de uma paisagem dessas que ele visitou na viagem de Diego, do lado de fora. Falo de algo muito mais sutil e que está na contramão da morte e olha que não me refiro a vida, portanto não fique inquieto ou curioso demais. Estou falando de uma descoberta que explica toda uma existência e que é revolucionária em todos os sentidos. Ela está contida dentro de um processo maior que só você saberá identificar. Se você está buscando o seu lugar no mundo, já encontrou um livro que vai te levar até o final dele, num espaço onde tudo recomeçará pra valer! Aproveita a companhia e te lança nessa viagem, com certeza valerá muito a pena. 

A live com Boca Migotto recebe os convidados, o escritor e cineasta Tabajara Ruas, e o jornalista Roger Lerina que fará a mediação. A apresentação da LIVE é dessa que aqui escreve para vocês. Agenda aí: dia 11 de novembro (quarta) às 19h30, no canal do YouTube da BesouroBox Editora Oficial.

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o que: Live "Na Antessala do Fim do Mundo"
quando: 11 de novembro, 19h30
apresentação: Leocádia Costa
mediação e participação: Roger Lerina e Tabajara Ruas
evento: Feira do Livro de Porto Alegre

Leocádia Costa

terça-feira, 24 de agosto de 2010

cotidianas #43 - A Menina do Bolo de Cenoura


Não dava tempo de almoçar então pegou alguns pedaços do bolo de cenoura que estava na geladeira, botou num pote qualquer e levou, pelo menos, para não morrer de fome no trabalho. A mãe fizera no dia anterior, na tarde de domingo, mas não tinha conseguido provar. Correira, sabe? (Mas adorava aquele bolo de cenoura da mãe).
Desde que chegara na loja naquele início de tarde a coisa foi pegada; loucura total. Clientes, gerente, experimenta aqui, compra ali, crédito ou débito?, quanto a senhora calça?, 35?, 38?, o 37 fica melhor, volte sempre. Ufa!
Quatro da tarde: hora do lanche. Estava azul de fome. Aquele bolo de cenoura ia salvar a vida. Um pedaço na boca: hummm!!! Caiu na asneira de oferecer à amiga que lanchava junto e esta, curiosa, por tamanho orgasmo gustativo, aceitou provar " só um pedacinho". Hummm!!!
-Nossa! Quem foi que fez?
-Minha mãe.
-Caraca, muito bom!
-Só peguei uns pedaços que tinham sobrado de ontem na geladeira. Da próxima vez que a minha mãe fizer eu trago mais - mas nisso já a supervisora já estava apressando as duas por causa da demora e tiveram que retomar todo aquele experimenta aqui, compra ali, crédito ou débito?, quanto você calça?, 35?, 38?, o 37 fica melhor, volte sempre...
Dias depois a mãe fez outro bolo de cenoura, desta vez a pedido, para que a filha pudesse dividir com a amiga. Levou para o lanche da tarde mas desta vez uma outra, nova na loja, foi junto. Tudo bem, tinha levado um pedaço maior e daria para ceder um pedacinho à nova colega, que até mesmo tinha levado um sanduíche natural e por certo não iria comer muito.
-Hummm!!!
-Hummmmm!!!
-Já provou o bolo de cenoura que a mãe dela faz?
-Não.
-Prova.
...
-Hummm!!! Muito bom!  Hum! Bom, bom! - disse com a boca cheia abandonando de vez o sanduíche. Não sobrou nada e a própria dona do bolo, no fim das contas, não pôde, lá, desfrutar muito do próprio lanche.
Passara então a ser hábito comerem bolo de cenoura nos intervalos sempre que a mãe fazia. Quando sentiam falta, quando espaçava muito d'a mãe fazer, chegavam mesmo a cobrar: "não vai trazer mais bolo, é?". Havia já encomendas das amigas, "pede pra tua mãe fazer um só pra mim. eu pago pra ela".
E o tal do bolo de cenoura virou lenda.
Vendedoras da pequena galeria comercial onde trabalhavam comentavam entre si, espalhavam a notícia que a menina daquela loja do 3° levava um bolo de cenoura para o lanche da tarde, hummm, maravilhoso! E a mãe dela que fazia.
Chegavam a ir perguntar pelo bolo na loja, "é aqui que trabalha a menina do bolo de cenoura?". Abordavam-na no elevador, "você que é a garota do bolo de cenoura? Como é que eu faço pra sua mãe fazer um pra mim? Ouvi dizer que é muito bom." E a mãe que fazia o bolinho despretensiosamente, para os filhos, para as tardes de domingo, se divertia, ao mesmo tempo que se surpreendia e se orgulhava um pouco do tamanho da fama da guloseima.
Um dia chegou uma moça na loja e perguntou pela menina do bolo de cenoura e responderam-lhe que não trabalhava mais lá. A loja tinha cortado funcionários, coisa e tal e os mais novos tinham sido mandados embora. Agradeceu a informação e saiu da loja com cara de decepcionada.
O desemprego não foi problema por muito tempo. Ela e a mãe acharam de fazer o bolo pra vender por aí. Primeiro foi em lojas nos horários de intervalo dos funcionários, depois na praia, depois já tinham uma banca, depois alugaram um espaço na Tijuca, e dali partiram pra ter a sua própria loja na Zona Sul. Hoje a "Menina-Cenoura" é uma rede de confeitarias espalhada pelo Rio de Janeiro inteiro. Tem até propaganda na TV. O bordão da moça do comercial é bem assim: "Hummm!!! Bom! Muito Bom! Todo mundo repete por aí.


* baseado em fatos reais;
mais precisamente no bolo de cenoura que a minha mãe faz
e que as colegas da minha irmã adoram.



Cly Reis

terça-feira, 7 de maio de 2013

cotidianas #221 - Aipim

para Lúcio



A coisa toda começou quando a irmã do Ângelo, que havia ouvido falar em algum lugar sobre cachaça de mandioca, resolveu produzir em casa a bebida. O problema é que na cabeça dela, o processo era simplesmente fazer um combinado de aguardente com o tubérculo e estaria pronta a poção. O fez. Deixou então a raiz curtindo na cachaça por algum tempo pra pegar bem o sabor. Nesse meio tempo, o irmão, abrindo a geladeira, topou ali com aquela espécie de conserva muito bizarra. Achou esquisito mas vendo que tratava-se de algum tipo de bebida alcoólica, resolveu provar. O cheiro não era lá aquelas coisas mas o gosto... hum!!! Até que era bom. Descobrindo com a irmã do que era feita aquela poção, surpreendeu-se mas nem de perto se arrependeu de ter provado. Pelo contrário, acrescentou mais alguns ingredientes para ficar mais interessante. Um pouco de limão, gengibre, quem sabe alguns butiás... Gostando do estranho resultado, passou um pouco para uma garrafa menor e foi para a rua. Encontrando a gurizada na esquina, logo foi solicitado a dividir a bebida:

- Ô. Ângelo, vai ficar te fazendo com essa mixaria? Passa logo esse trago pra cá – intimou um.

- Ó, só vou avisando que é um negócio estranho que a minha irmã fez, hein.

- Ah, dá logo isso aqui – disse o Lúcio, parceiro velho de baderna e bebedeiras, arrancando a garrafa da mão do outro.

Porém, assim que o Lúcio destampou e tentou levar à boca, o cheiro, já originalmente desagradável e agora piorado pelos ingredientes adicionados pelo Ângelo, quase o fez desistir.

- Mas o que é que tu botou aqui???

- Eu disse que o negócio era brabo – riu o Ângelo e continuou – Foi a minha irmã que tentou fazer cachaça de mandioca e deixou curtindo no aipim. Aí ficou isso. Mas tá bom. Eu coloquei mais uns troço aí. Prova, prova aí – insistiu.

O Lúcio, taura, índio-velho, gaudério, velho de guerra, não ia arregar pra um cheirinho de uma cachaça fedorenta e não se intimidou metendo o tal trago goela abaixo.

- Hmm... Pior é que é bom. Hehe! Toma aí, Black – passando a garrafa.

- Bah, ‘tisguei’! – exclamou o Black, com aquela expressão que ele tinha inventado mas que significava, mais ou menos, que havia ficado positivamente impressionado

Os outros, mesmo um tanto desconfiados de início, foram provando e por fim compartilharam da opinião que tinha ficado muito bom. Muito bom mesmo. Tanto que ficaram até horas da madrugada bebendo aquele troço, até mesmo pra se esquentar no frio de Sapucaia do Sul no inverno. E naquela de ‘me passa o aipim pra cá’, ‘passa o aipim pra ele’, ‘não vai virar o aipim’, o nome da beberagem ficou sendo mesmo Aipim.

Quando resolveram que era hora de voltar pra suas casas tinha sobrado pouco do aipim na garrafa. Mas tinha ficado tão bom. Tinham que ter mais Aipim pras próximas madrugadas de frio falando besteira na esquina. Como ima fazer pra reproduzir aquela fórmula. O Pereba se prontificou a resolver. Levou a garrafa pra casa e no dia seguinte acrescentou mais cachaça. Vendo que havia perdido as propriedades exóticas, resolveu adicionar mais algumas coisas. Algum legume, um pouco de Ki-Suco, casca de maçã.... O troço ficou com uma aparência medonha e com um cheiro ainda pior. Levou então pra galera.

- Ó, aí, o aipim – anunciou com aquele seu jeito quase impassível.

O Lóki foi o primeiro a provar.

- Bah, esse cheiro tá horrível...- disse virando a cara para evitar o odor que exalava do gargalo- Tá pior do que ontem.

Mas bebeu.

- Porra, mas ainda tá bom! – disse com entusiasmo.

E a bebida correu de mão em mão entre exclamações de satisfação e risadas.

Pra quem chegava e se interessava pelo que estavam bebendo, valia sempre a advertência:

- Não cheira. Se tu cheirar tu não bebe.

E outro completava:

- Mas se beber, não cheira.

E caíam todos na risada.

E aquilo, “se tu cheirar não bebe, mas se beber, não cheira”, virou praticamente o slogam da bebida.

O fato é que a invenção etílica correu os bairros de Sapucaia ganhando fama e adeptos. Sempre que estava para acabar, alguém levava a garrafa pra casa e acrescentava cachaça e mais alguma coisa tipo agrião, vagem, suco de frutas, uísque, orégano, macela, maconha, de modo a manter o brilho e o encanto da conserva.

Agora dividiam o conteúdo em recipientes menores, em pequenas embalagens de sal de frutas Eno, de modo que todos da turma tivessem um pouco e pudessem levar para qualquer lugar. Para as festas, para o trabalho, para praça pra andar de skate, ou mesmo para a escola. O problema é que a bebida era cada vez mais popular no colégio e não raro se encontrava algum aluno entornando um potezinho de sal de frutas. Começaram a haver queixas de professores que alunos estariam assistindo às aulas completamente embriagados, o que motivou o diretor a convocar uma reunião pública no pátio para expor a situação e dar um basta naquilo;

- Temos informações que alunos tem consumido bebidas alcoólicas no interior deste estabelecimento de ensino e têm freqüentado às aulas em condições lastimáveis de embriaguez. Quero declarar aqui que condutas como estas são inadmissíveis e que a partir de hoje o aluno que for encontrado portando alguma bebida ou em condições suspeitas será suspenso...

O Lúcio e o Ângelo, no pátio, bem lá atrás, só se olharam um para o outro meio de lado.

- Vamos largar fora?

- Vamo. – concordou o Ângelo

O Lúcio tirou um pote de sal de frutas Eno da mochila, deu um gole, fez cara feia, passou pro Ângelo que também fez careta no talagaço, e saíram os dois para matar mais uma aula.




*Salvo algum exagero, alguma fantasia, alguma licença poética, algum personagem fora do lugar ou que eu tenha errado ou esquecido, os fatos descritos aqui são absolutamente verdadeiros e o Aipim efetivamente existiu.



Cly Reis

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Porto Alegre Vista do Ônibus



Osvaldo Aranha, Redença

ICBS UFRGS

Centro de Porto Alegre

Av. Farrapos

Museu da UFRGS

Centro Histórico

Cidade Baixa

Parque Marinha do Brasil

Perimetral

Bom Fim

Largo da Epatur - Largo Zumbi dos Palmares

Redenção - Parque Farroupilha

Igreja Senhor Jesus do Bom Fim

Centro Histórico

Viaduto Otávio Rocha

Ponte de Pedra


Leocádia Costa
out-dez 2019

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

cotidianas #323 - A Devoradora de Corações



- E a propósito, souberam do Rodrigo? - Cris lançou ao ar a pergunta, na mesa para as duas amigas que, assim como ela, saboreavam seus sucos naturais depois da academia.
- O que que foi? Conta o babado! - interessou-se uma delas, Amanda, quase saltando da cadeira.
- Parece que tá numa clínica para recuperação de drogas, álcool, alguma coisa do tipo – informou então.
- Culpa da Rafa, ali – comentou Amanda, incluindo então a terceira amiga que até então parecia desinteressada do ocorrido com o tal rapaz.
- Ih, eu não tenho nada a ver com isso – disse a acusada se defendendo - Me inclua fora dessa – brincou completando.
- Ah, “não tem nada a ver com isso”! Imagina!!! O coitadinho ficou assim depois que você deu um pé na bunda dele – sentenciou Cris - Ai, chegava a dar dó. Nunca mais foi o mesmo depois que vocês acabaram. Era um gato, todo saradinho. Menina,... nos últimos tempos tava irreconhecível. Um fiapo de gente.
- E agora isso... - completou Amanda.
- Mas isso não é nada perto do que aconteceu com o Thiago – lembrou a Cris.
- Ah, vai querer me culpar por aquilo também – se defendeu Rafa.
- Culpar culpar, não, mas que ele se matou pouco depois de você ter despachado ele...
- Ai, cruzes, nem gosto de lembrar – arrepiou-se Amanda.
Depois de um breve silêncio quase que me respeito pelo falecido, Cris, disposta a voltar a incendiar o assunto prosseguiu:
- Mas quem parece que não sentiu nada foi o Alex...
De súbito, Rafaela, até então fingindo uma certa indiferença pelos destinos dos ex-namorados e de certa forma com o ego inflado pela responsabilidade que as amigas lhe imputavam, saltou interessada.
- Que que tem o Alex?
Satisfeita com a curiosidade que causara, Cris fez questão de explicar:
- Vi ele com uma morena ontem. Bonita – fez uma pausa entre um gole e complementou – Corpão.
- Onde? - perguntou Rafa tentando passar um certo ar de interesse casual.
- No Veleiros, ontem de noite. E pareciam bem à vontade juntos – apimentou ainda mais a amiga.
Àquelas alturas o disfarçado descaso de Rafaela havia desaparecido e agora perguntava com verdadeira curiosidade;
- Mas... E estavam juntos, tipo, abraçados, beijando, ficou com ela?
- Ih, nem parece que foi você que acabou com ele. Tá toda interessada – entrou no assunto Amanda.
- Não é interesse, é curiosidade – deu um gole brusco no suco engolido com dificuldade e completou – Só.
- Bom, primeiro tavam bem pertinho, mas depois a coisa esquentou. Um agarramento! Até saíram cedo do bar. Com aquele fogo todo, imagino para onde foram.
E caíram na risada, à exceção de Rafaela, que, se muito, tentava esboçar um sorriso amarelo de canto de boca.
De repente, como que lembrando de algum compromisso, Rafa levantou da cadeira recolheu suas coisas e declarou:
- Gente, tenho que ir. Eu tenho que... Tenho... umas coisas pra resolver.
Saiu apressada e de um canto atrás do academia fez uma ligação.
Enquanto o telefone chamava, ajeitou o brilhante cabelo louro e ensaiou um sorriso como se a pessoa do outro lado pudesse vê-la naquele instante.
- Alô?
- Alô, Alex?
- Eu.
- Tudo bom?
- Tudo.
- Hum, um “tudo”, assim com tanta convicção. Acho que nem fez diferença pra você a gente ter acabado se tá TUDO tão bem.
- Rafa, a gente tem que seguir em frente. Gostar eu não gostei, mas tem que tocar a vida.
- Aham, sei... - Rafa fez uma pausa e prosseguiu – Mas, o que tem feito da vida?
- Nada demais – respondeu o rapaz.
- Tem saído? - perguntou a moça mesmo já sabendo a resposta.
- É, dou umas saidinhas de vez em quando. Arejar a cabeça.
- Sei...
Um breve silêncio na linha.
- Um passarinho azul me contou que te viu com uma pessoa.
- Estou sempre com pessoas.
- Uma mulher.
- Conheço muitas mulheres, minha chefe, minha irmã...
- Uma morena, num bar...
- Ah, sim, é verdade. A Luana. Quem foi o “passarinho”? Eu tava sim, com uma morena no Veleiros.
- Ah, e você confirma?
- Ué, claro! Por que não confirmaria? Não tenho nada a esconder.
- Mas assim tão rápido você já tá saindo com outra?
- E o que é que tem? A gente acabou. Aliás, você terminou.
- Ai, mas não deixou nem esfriar a cama - reclamou ela em tom choroso.
- Não é bem assim.
- E por falar em cama, pelo que eu sei vocês não ficaram no bar, né?
- É, não ficamos muito tempo, não... - mas interrompeu-se observando - Mas esse passarinho cantou muita coisa, hein.
- Pois éééé!
Parou um pouco esperando por alguma reação do ex, mas percebendo que não teria, prosseguiu com a reclamação:
 - Pôxa, nem bem terminamos e você já tá aí, assim, galinhando por aí. Você devia guardar, tipo, um luto ou algo assim. Parece que nem liga.
- Ligo. Mas até pra não ficar muito com a cabeça no que aconteceu com a gente, em tudo rolou, eu já parto pra outras.
- Pra outras?
- É modo de dizer.
- Tá bom – soltou, cansada e sentida – Que bom que tá “tudo bem”. Fico feliz por você.
- E com você, como estão às coisas? - indagou Alex, por sua vez.
- Ah, ótimo, também. Às mil maravilhas. Ainda mais sabendo que o meu namorado tá saindo com outras pra arejar a cabeça.
- Nós não somos mais namorados. Você mesmo não quis me dar uma nova chance – fez questão de lembrar o rapaz.
- Tá bom, tá bom. Tudo de bom pra ti e pra... Luana – pronunciou o nome num misto de asco com ódio e completou – Tchau, Alex.
- Tchau, Rafa. Beijo.
Desligou o celular enfurecida. Seguiu para o estacionamento, pegou o carro e saiu.
Tão imediatamente chegou em casa, dirigiu-se ao banheiro, abriu a farmacinha no armário e pegou algumas pílulas. Estava uma pilha de nervos. Tomou duas num primeiro momento. Meia-hora depois tomou mais duas. Dali a pouco mais algumas e seguiu assim nos dias que se seguiram.
As amigas estranharam sua ausência na faculdade, na academia, no clube, nas festas. Foi encontrada em casa dias depois entre pílulas, vômito, fezes e lixo. Não comia há dias e havia feito suas necessidades pelo chão. Um estado lastimável.
Não se recuperou mais depois daquele dia. Olhava apenas para o vazio e não dirigia uma palavra sequer a ninguém. Comia apenas o suficiente para continuar viva e mesmo assim só com a ajuda de alguém. Emagreceu. Tinha um aspecto quase cadavérico. Por fim, a família, não vendo reação, optou por colocá-la em uma clínica de repouso, onde por certo, dariam um tratamento mais adequado a ela.
O que teria acontecido, de uma hora para outra, com aquela garota linda, atraente, viva, cintilante, alegre, era um mistério para todos.





sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Coluna dEle #43




Tamo na área, filharada!
Como é que 'tão vocês?
Bom, Eu devia saber, né? Eu é que devia estar livrando-os de todo male amém mas, enfim...
Aqui em cima tudo em cima.
Sempre tem uma guerrinha aqui, um ciclonezinho ali mas Nóis vai administrando como a Minha graça.

***

Estive por aí nas Olimpíadas.
Olha, tirei o chapéu pra vocês aí do Brasil.
Sinceramente tinha Minhas dúvidas se iam conseguir fazer o negócio direito e ficou de primeira.
Uns nudes que Eu andei tirando, aí,
parece que andaram vazando na rede.
Tô fu!

***

Só o que não tava muito bom foi essa coisa de ingressos. Comprei com antecedência pela eternet e clonaram Meu cartão. Deu uma trabalheira pra cancelar, conseguir reembolso e tudo mais mas, no fim das contas, consegui ver algumas provas.
Tinha coisas que aconteciam ao mesmo tempo, em outras arenas, estádios e tal mas felizmente, como sou onipresente, consegui assistir a todas.

***

Teve um jogo do futebol masculino que não deu pra ir e eu tava assistindo na TV, que eu tomei um susto. Tô lá trabalhando, fazendo o mundo girar, quando ouço o narrador gritar, "É goooooooool, de Jesus!". Eu pensei, "Ué!, Como assim?". Corri pro quarto do Meu guri conferir e pra Minha tranquilidade Ele tava lá na dele jogando videogame.
Ufa!
Aí foi Ele quem me explicou que tinha dois Gabriéis na Seleção e que o narrador chamava assim pra diferenciar.
Ah, bom!

***

E por falar em videogame, curtiesse tal de Pokémon Go! 
A galera aqui de cima se amarrou também. Tá todo mundo tropeçando por aí, dando uns encontrões, se topando uns nos outros, literalmente com as cabeças nas nuvens. 
Geral tá dizendo que é coisa do Demônio e tudo mais mas, ó, se é coisa dele então Eu poso dizer que tô possuído porque Eu não paro de jogar esse troço.

***

Mas voltando ao assunto das Olimpíadas. Fui na final do futebol, o masculino, é claro, e aí tô lá no Maraca e tal, o Brasil ganha e tudo mais e na hora da medalha, pra Minha surpresa vem o Neymar com aquela faixa "100% Jesus".
Eu não sabia que ele era parça do Meu filho também.
Já disse milhares de vezes pro JC não andar esse tipo de gente.

***

E o Bolt, hein?
Aquilo não é coisa de Mim!!!
Meu Eu do céu!
Fui Eu que fiz aquilo?
Será que eu misturei essência de de guepardo no líquido amniótico da mãe daquele negão?
Eu fico zoando a Babi (Santa Bárbara pra vocês) porque um cara que Eu criei, um humano, é mais rápido que os raios dela.

***

Tenho que admitir que um dia, depois das provas, fui dar uma esticada porque afinal de contas Eu tava lá na Cidade Maravilhosa com aquelas cariocas bronzeadas, aquelas holandesas fantásticas, aquelas russas espetaculares e, na boa, Eu também sou filho de ... Bom, não sou filho mas... Vocês entenderam. Enfim: tomei umas que outas a mais, perdi o rumo, toquei terro num posto de gasolina e quando Eu vi já tava quase na hora de fazer o sol raiar.  Pior que Eu sabia que chegando em casa a Dona encrenca ia estar na porta me esperando com o rolo de massa.
Bom, né, tive que aplicar aquele caô: "Puxa, Maria, fui assaltado. Um horror! Aquele Rio de Janeiro é uma violência absurda. Graças a Mim tô conseguindo chegar em casa com vida. Não fiz B.O. porque ia demorar mais ainda. Olha a hora que Eu já tô chegando.. e blablablá e cousa e tal". Ela achou estranho, meio mal contado, mas passou. Mas mulher é bicho triste e ela foi conferir a Minha história. Foi buscar as imagens da câmera de segurança da entrada do Paraíso mostrando eu chegando doidão com uma holandesa de um lado e uma russa do outro na hora que Eu alegava que "estaria sendo assaltado". Deu ruim! Tô dormindo na sala.

***

Sei que pisei na bola mas espero que mesmo depois dessa a gente se entenda por aqui e não entremos, Eu e a Nega Véia, na lista de casais famosos separados desses que pareciam eternos, tipo Bonner-Fátima, Brad-Angelina...
2016 tá foda!

***

E essas agora dos vazamentos de foto peladão de um, de vídeo com traveco de outro...? Neguin', a coisa tá sinistra! Até corri pra esvaziar Meu HD, fiz um back-up remoto pra não correr o risco de vir um fidaputa hakear Meu computador, achar uns podres meus e botar na rede.
Aí sim ia ser divórcio na certa.

***

Se bem que, na boa: onde no universo Ela ia encontrar outro igual a Mim.
Eu sou único.
(pelo menos entre os monoteístas)

***

E por falar em monoteísta, politeísta, ateístas, é impressionante como o número de ateus tem crescido.
Ninguém acredita mais em Mim. Bom, se nem Minha esposa acredita (e com razão) como é que Eu quero que os outros acreditem?
Mas é verdade. Não posso culpar vocês. A última vez que Eu dei o ar da graça foi a mais de dois mil anos, mandei Meu filho aí, ele fez umas graças, providenciou vinho pra todo mundo quando a festa já ia acabar, fez um jet-ski com os pés por cima da água, saiu de cena com estilo, disse esperem que Eu  já volto e nisso já faz uma caralhada de tempo e nada. Sei que é brabo. E enquanto isso a coisa só piora e parece que não tem ninguém no comando. Sei, sei. Entendo vocês. Pra falar à verdade nem Eu mesmo acredito muito em Mim.
Mas queria dizer pra esse pessoal que Eu não posso provar minha existência, mas que Eu tenho convicção, Eu tenho (ou pelo menos acho que tenho).


***

Assim ó, se vocês 'tão com a vida ganha Eu tenho um mundo inteiro pra administrar. É véi, tá pensando o que? A vida não tá fácil não. Tenho uma mulher e dois bilhões de filhos pra criar.
Vou nessa.
Meti o pé.
Ralei peito.
Deitei o cabelo.
Larguei fora.
Fui.
'Té mais, crianças.
Que eu lhes abençoe e fiquem Comigo.


Rezas, simpatias, trabalhos, amarrações pro amor, declarações de amor, solidarizações, pedidos, delações, fofocas, multas, boletins de ocorrência, vídeos caseiros e nudes para
god@voxdei.gov



por Ele