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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

8º Mississipi Delta Blues Festival – Largo da Estação Férrea – Caxias do Sul/RS (28/11/2015)



Com Dylan no peito,
nada melhor para uma
noite de blues.
Quando assisti ao ótimo bluesman Kenny Neal em São Paulo mês passado pensei que aquele breve mas impecável show fosse uma compensação por não poder ir ao Mississipi Delta Blues Festival, que ocorreria dali a semanas na cidade gaúcha de Caxias do Sul. Mas era, na verdade, um bom presságio. Tal sentimento se dava por um misto de falta de disponibilidade e a possibilidade de se fazer outra boa programação mais próxima – e mais fácil. É que teria também o festival Som de Peso, que ocorreria em Porto Alegre justamente no mesmo dia e hora e onde tocariam bandas célebres do punk nacional, como Cólera e Olho Seco, e, além destas, a Vômitos & Náuseas, a grande banda de hardcore do meu primo Lucio Agacê. Dúvida cruel. Depois de muita combinação, tive que suplantar a vontade de ir ao Som de Peso, pois conseguimos Leocádia e eu nos organizar para subir a Serra e conferir pela primeira vez o MDBF, vontade alimentada há anos.

Stroger, comandando o grupo no baixo.
E o esforço não poderia ter sido mais bem recompensado. Com uma programação cuidadosa e qualificada, tanto no que se refere a atrações internacionais quanto nacionais, além de uma estrutura planejada e eficiente, o MDBF, em sua 8ª edição, provou (pelo menos a nós, que ainda não o conhecíamos) que é o melhor festival de música do Rio Grande do Sul do momento. Prova disso é que o dia em que fomos, o terceiro e último da edição de 2015, não por isso ficou devendo. Dividido em sete palcos, o festival apronta um rodízio de apresentações dos artistas por vários destes durante os três dias de evento, fazendo com que se possa assisti-los em mais de uma oportunidade. Igualmente, o local não poderia ser mais adequado: a antiga estação férrea de Caxias, prato cheio para Leocádia fazer várias fotos pois empresta uma atmosfera onírica àquela sonoridade melancólica, antiga e sensual típica do blues. A chuva que caía ajudou a aumentar o clima cinematográfico.

Bob Stroger posando para as lentes.
O blues rolava por todos os cantos, dos alto-falantes, dos palcos, das pessoas cantando, assobiando, dançando. Chegava a emanar de algumas figuras que ali estavam. Um desses seres iluminados era Bob Stroger, o incrível baixista californiano de (acredite-se) 85 anos. Stroger, que havia estado em Porto Alegre na semana anterior – e que, novamente por agenda e correria, não pudera assistir –, foi um dos principais motivos de irmos ao MDBF. Artista “residente” do festival, participou de todas as edições deste até agora, o que certamente continuará fazendo até não poder mais, haja vista seu prazer em estar ali. Ele dizia, faceiro: “This is my house”. Um dos primeiros a se apresentar naquele dia, ele referia-se não somente a Caxias e ao festival como ao Front Porch Stage, um caracterizado palco que reproduzia o ambiente de uma sacada de um rancho do Sul norte-americano, aquelas que a gente vê em filmes sobre negros pobres e trabalhadores de fazendas de algodão de antigamente. Para alguém como ele, do início do século passado, certamente aquilo era bem familiar. Estava se sentindo em casa mesmo, acarinhado e admirado pelo público.

Cokeyne, à direita, e sua banda de ilustres convidados.
Na verdade, Stroger fazia o ambiente se tornar real, visto que ele em si é uma entidade em pleno palco. De terno risca de giz escuro, sapatos e chapéu, é a encarnação daquilo que o mundo conheceu no início do século XX chamado blues, o gênero musical afro-americano que coloca, em ritmo sincopado, repetitivo e simples, os sofrimentos e tristezas dos negros escravos e apartados de sua terra. Blues, com suas raízes religiosas, de trabalho ou de protesto. Um estado de espírito. E Bob Stroger é a representação viva disso. Ele mesmo, orgulhoso, diz várias vezes: “I’m the blues”. Quem há de contrariá-lo? Entre as maravilhas que escutamos de sua voz sôfrega, mas com o aveludado que somente os negros de lá conseguem ter, “Just a Sad Boy”, “Talk to me Mamma”, “Don't You Lie to Me” e uma canção que, além de fantástica, se tornaria especial naquela noite: “Blind Man Blues”, autoria do próprio Stroger. Um bluesão embalado num riff de baixo contínuo e cheio de groove, que lhe põe naquele limiar entre o blues e o rock. Esta, comporia outro episódio importante horas depois...

"Don't You Lie To Me" - Bob Stroger - Mississipi Delta Blues Festival 2015

Sherman Lee Dillon, pura energia.
Tinham mais coisas a se aproveitar ainda. Noutro palco, o Bus Stage, iriamos conferir o nosso amigo Cokeyne Bluesman (Beto Petinelli, ex-Cascavelletes), que havia reunido uma galera especial para uma das apresentações. E olha: que apresentação! Disparado a mais empolgante da noite e que, mesmo não estando num dos palcos principais, ensandeceu o público que assistia. Que energia que saída dali, a ponto de as pessoas serem tomadas por ondas de euforia, respondidas pelos músicos e vice-versa. A química foi precisa: Cokeyne, referencial na guitarra solo e slide guitar; Lucas Chini, no baixo, um cabeludo psicodélico e tomado pela música que parecia ter se congelado no tempo, pois era tal um integrante de banda de rock-blues dos anos 60, uma Canned Heat ou The Band; e o norte-americano Sherman Lee Dillon, de quem se pode dizer apenas uma coisa: nossa! Aquele velhinho branco de camisa, calça social e quepe poderia ser, como bem Leocádia observou, o vendedor da banca da esquina ou o dono da tabacaria. Só que quando empunha a guitarra, sai de perto! É um furação em forma de blues.

Na bateria, Gutto Goffi.
Melhor amigo do saudoso B.B. King, Dillon, natural do Mississipi, mostrou ser um genuíno seguidor de Muddy Waters e Bo Diddley. Com sua harmônica e sua guitarra de metal, parecido com um banjo elétrico, ele incendiou o pequeno palco, pondo todo mundo pra se mexer. Uma das mais quentes foi a versão de “Maybelline”, clássico de Chuck Berry, que tocaram numa versão tão eletrizante quanto. Além disso, quem completava a banda na bateria era Guto Goffi, o baterista do Barão Vermelho, que estava ali animadíssimo tocando o que gosta e sem todo o aparato e multidões de que é acostumado. Cokeyne, o anfitrião, também não deixou por menos. Com solos arrebatadores, levantou a galera várias vezes, mesmo sem cantar como Dillon. Ainda teve a palhinha do músico gaúcho Andy Serrano, na gaita, o mesmo da banda de rockabilly que vimos anos atrás no Clube de Jazz Take Five, em Porto Alegre. Um empolgante e surpreendente show.

'Super Chikan' no palco principal do MDBF.
Entre uma programação e uma paradinha para comer, deu tempo de ver, no Moon Stage, palco principal, um bom pedaço da apresentação de outra das também principais atrações do MDBF desse ano: o norte-americano James "Super Chikan" Johnson, mais um filho do Mississipi. Outro arraso. O cara, que ganhou esse apelido na infância, quando ainda era jovem demais para trabalhar no campo e passava o seu tempo conversando com as galinhas, começou tocando o diddley bow, instrumento muito rudimentar que o ajudou a desenvolver sua capacidade de extrair sons de uma só corda. Essa forma de tocar é evidente em seu estilo, que aproveita ao limite uma sequência de notas, sempre com muito groove. Isso sem falar do característico grito que lança entre uma execução e outra imitando o cocoricó das galinhas com quem tanto conversava quando criança.

Eu com Rip Lee Pryor.
Voltando ao Front Porch Stage, pena que não deu tempo de assistir um pouquinho de outra lenda: o harmonicista Rip Lee Pryor (filho de Snooky Pryor), que ainda estava passando som e o pito na equipe técnica, que não acertava o que ele pedia. Na mesma hora – essas coincidências são inevitáveis, ainda mais para que foi em apenas um dos dias como nós – subiria no Magnolia Stage outra das que nos motivaram bastante a escolher por essa e não outra programação: a cantora Zora Young. Igualmente produto do Delta do Mississipi, é daqueles vários artistas de blues cujas famílias, depois da 2ª Guerra, migraram para Chicago em busca de novas oportunidades. Criada dentro das igrejas gospel, foi tomando com o passar do tempo gosto pelo Rhythym n' Blues a ponto de não o largar mais. A explicação talvez esteja no sangue: Zora tem em sua árvore genealógica uma das lendas do blues, Howlin' Wolf. No festival, ela mandou ver num show pulsante e dançante, com sua poderosa voz rouca muito trabalhada nos corais religiosos e nos pubs de blues. Interagindo com a plateia, Zora e sua banda fizeram um espetáculo daqueles que não dá vontade de sair mais (tanto que, quando vimos, já tinha acabado o de Pryor), com repertório de primeiríssima qualidade, solos afiadíssimos e, claro, a excelência da voz de Zora.

A divina cantora de raízes gospel e rythm'n blues,
Zora Young e o privilégio de ter na banda Stroger, ao fundo.
Mas por falar na banda de Zora Young, aqui vai aquela parte que havia ficado faltando sobre “Blind Man Blues”, de Bob Stroger. Aconteceu que, com receio de que sobrasse para nós algum daqueles esporros de Rip Lee Pryor com a equipe, saímos logo do Front Porch Stage e chegamos minutos antes para assistir Zora. Porém, para nossa surpresa quem sobre no palco são três músicos mais... Bob Stroger! ”Ué, será que mudaram o lugar do show dela?”, pensamos. Fomos perguntar a um rapaz do staff e ele nos confirmou que era ali, sim, o show da cantora. Pois não é que Stroger, nos seus já mencionados (mas que não custa relembrar) 85 anos foi, horas depois de ter aberto o festival, formar a banda de Zora Young? Na maior simplicidade e humildade. Coisa de músico de verdade. Já no final da noite, ele abriu com a mesma música que já tinha tocado no outro palco para depois tocar, como apenas mais um integrante, mais uma hora e meia – sem se sentar nem pedir água. Pelo contrário: no centro do palco, estava lá ele postado, elegante em seu terno risca de giz e chapéu, abrilhantando ainda mais o show da companheira de blues.

"The Thrill Is Gone"/ "I'm Freee" - Zora Young - Mississipi Delta Blues Festival 2015

Foi o próprio Bob Stroger que disse se sentir em casa. Sentimento compartilhado com muita gente ali, entre músicos e espectadores, que fazem o MDBF crescer a cada ano, sempre com a expectativa pela edição seguinte. Eu mesmo já estou me vendo, lá em novembro de 2016, cantando para convencer Leocádia: “Oh, baby, don't you want to go? Back to the land of Caxias do Sul/ To my sweet home, festival?”
Front Porch Stage, "this is my house".