Curta no Facebook

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

cotidianas #552 - Pílula Surrealista #24



Espírito sonhador e infantil tinha Mia. Encantava-se pelos meninos da escola, um a cada mês diferente, praticamente conforme o tempo de tentativa pela atenção nunca recebida de volta. Esquecido o primeiro, então, partia para próximo, sempre com paixão e tesão renovados. Ao final do solitário flerte ao escolhido da vez, chorava e se entristecia. Eles só queriam saber de futebol, celulares e das meninas gostosinhas, não de gordinhas e retraídas como ela. Talvez fosse por causa das manias... Mia tinha manias, quase sempre inocentes, inofensivas. Hábitos estritamente particulares, mas os meninos deviam suspeitar. Comer pão com uma pitada de açúcar por cima, por exemplo. Pingar apenas uma gota de café para vê-lo espalhar-se aos poucos sobre o leite também. Igual, assistir tevê de ponta-cabeça no sofá, que lhe dava uma sensação divertida de suspensão.

Outra ideia meio besta que não lhe saía da mente de adolescente era também o seu maior temor: o de um inseto entrar-lhe ouvido adentro. Mosquitos, moscas, cigarras, abelhas, besouros, gafanhotos, escaravelhos, zangões. Todos lhe davam pavor só de imaginar. Por isso mesmo, punha-se a sondar as mais improváveis situações em que um bicho desses invadisse sua cabeça através das orelhas. Acampamento na natureza, passeios desavisados pelo parque, sonos profundos demais ou fechar os olhos por muito tempo na rua. Imaginava-os vindo voando ou rastejando seus cascos e asas lentamente sobre o travesseiro em direção a seu cérebro enquanto dormia à noite. A passos silenciosos chegavam e se acomodavam no novo lar.

Tanto foi, que aconteceu. A libélula copulou lá dentro, soltou seus ovos e fizeram-se as ninfas, que se desenvolveram durante meses até ganharem asas. Várias delas e ao mesmo tempo, todas batendo asas no interior da cabeça de Mia. De primeiro, sentira coceiras e zunidos incômodos dentro da caixa encefálica. A sensação ruim se dissipou quando as libélulas, afoitas pelo céu, ergueram a menina pelo crânio e a carregaram num voo sobre a cidade. Mia sobrevoara a estação do trem, o lago, a praça e a escola, vitoriosa como nunca tivera sido.

Daniel Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário