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sábado, 7 de outubro de 2017

cotidianas #530- Lábios Quentes




- Corta!
O diretor, que também era o cinegrafista, encarava com expressão impaciente a garota ajoelhada diante do homenzarrão nu à sua frente.
- E então, minha querida, isso vai rolar ou não? - perguntou subentendendo um ultimato.
- Vai, sim. É que eu meio que me desconcentrei e tal. - explicou-se a loirinha magra de aspecto frágil, toda embaraçada pelo fato de ter fracassado novamente.
- Olha aqui - começou  o diretor - a gente só tá aqui porque você disse que conseguia fazer a cena sem parar, sem engasgar do início ao fim. Agora, se não consegue, a gente desliga tudo, guarda tudo e vai embora pra casa. É isso que você quer?
A garota fez que não com a cabeça.
- Você quer seu dinheiro? - pressionou tocando num ponto fraco para a menina.
- Quero, sim. Eu garanto que agora vai sair bem. Eu juro. Vou até o fim. Custe o que custar.
O diretor gostou.
- Assim que eu gosto, menina!
Deu um tapa forte na própria coxa, levantou-se e exclamou com entusiasmo: 
- Então vamos lá. Todos em suas posições. - ordenou enquanto pegava sua câmera.
Um pequeno alvoroço, as três  pessoas da pequena equipe tratando de retomar suas posições e o homem à frente da filmagem passava então aquela última conferida.
- Luz?
- OK. - respondeu o rapaz magrela posicionando um holofote.
- Som?
- OK. - avalizou o senhor robusto de barba cheia que segurava uma grande haste de microfone.
- Entããão... aaaação!
A loirinha, que não  havia abandonado sua posição  em nenhum momento, apenas tratou de abrir a boca  e aproximar-se do homem em pé diante dela. Depois de algumas variações de velocidade, língua,  saliva, etc., chegaram ao momento crucial que o diretor tanto cobrava e que a garota por duas vezes falhara. O ator foi empurrando cada vez mais contra a garganta de sua parceira de cena. Ela sentia engasgar, sentia a ânsia precipitar-se mas sabia que não podia falhar desta vez. Seu cachê  estava em jogo e   precisava muito daquela grana. Tinha que aguentar. Precisava...
Era possível ver aquilo se avolumando em seu pescoço. A saliva escorria-lhe pelos pequenos vãos que se formavam nos cantos da boca.
O diretor ansioso por uma cena única que o levasse a outro patamar no gênero, exigia ainda mais:
- Segura o nariz dela. Prende a respiração.
O ator, mesmo com dúvida sobre o bom senso daquela ação, obedeceu.
Ela grunhiu. Tentou puxar um ar que não tinha por onde entrar.
Os olhos primeiro ficaram arregalados mas logo em seguida se reviraram numa aparência amedrontadora.
O técnico de luz foi o primeiro a chamar a atenção do diretor: 
- Eu acho que ela não tá bem.
- Só  mais um pouco, só mais um pouco. Ela aguenta...
Ela agora dava pequenos solavancos.
- Acho melhor parar. - desta vez foi o barbudo do som que  alertou.
- Continua, continua. - mandava o diretor.
Agora parecia ter uma espécie de convulsão. O rapaz da cena, verdadeiramente assustado, apenas permanecia rijo em sua tarefa estática por conta do estimulante que tomara antes do início dos trabalhos, porque se não  fosse isso já teria cedido à flacidez há algum tempo.
Ela grunhiu mais  uma vez, estremeceu-se toda e de repente parou como um brinquedo do qual acabam as pilhas.
- Que que houve? 
- Acho que ela não tá bem. 
- Aconteceu alguma coisa...
E o corpo da menina escorregou inanimado deslizando a boca pelo pênis do homem antes de se soltar dele e cair no chão.
Por alguns segundos, todos apenas ficaram olhando para o corpo alvo e franzino ali caído.
O iluminador rompeu o silêncio.
- Cara,... eu acho que ela tá.. 
- Não  pode ser. - exclamou o diretor do filme.
- Cara, ela não tá  respirando.
Foi o operador de som, minimamente com alguma lucidez e serenidade, que teve a iniciativa de se aproximar e verificar os batimentos. Levou dois dedos à veia jugular no pescoço, e apenas confirmou o que já suspeitava.
- Está morta. Mortinha.
- Como assim morta? Não  pode estar. E Agora, o que que a gente vai fazer? 
- Tem que, sei lá, chamar uma ambulância.
- Não. Ninguém chama porra nenhuma. - saltou exaltado o diretor.
- Mas como assim, cara, ela precisa de ajuda, de socorro...

- É, isso! Daí os caras perguntam como foi que aconteceu e aí  a gente diz que matamos ela sufocada numa cena de sexo oral. - ironizou  o diretor do filme - E de mais a mais ela já  tá  morta mesmo. Não ia adiantar porra de ambulância nenhuma.
- Mas então?...
O diretor ficou pensativo com os olhos fixados no vazio por alguns instantes.
-  Nada disso aconteceu. -disse.
- Como assim.
- A gente nunca esteve aqui. Não existe filme nenhum. A gente nunca viu essa  garota. Aliás, ela nem existe. 
- Você tá louco? A gente tem que chamar alguém. Contar o que aconteceu. Foi um acidente! - interveio o sonorizador.
- Louco tá você! Quer voltar pra cadeia, quer? Pensa que eu não sei da tua condicional?
- Mas aquilo foi...
- Não  interessa o que foi. A polícia  não vai querer saber. Temos que dar um jeito de eliminar a cena. - e com um olhar tresloucado como que recebendo uma iluminação - Vamos botar fogo em tudo. Queimar tudo aqui. Tudo, a casa, o corpo, o equipamento.  Ninguém  nunca pode saber que a gente esteve aqui e o que estávamos  fazendo.
-Agora sim você pirou de vez. Eu não vou permitir que se faça  isso com um ser humano. Ela tá  morta mas não  podemos fazer isso. - argumentou o da luz.
- E o meu equipamento, cara? É  tudo novo. Tudo de primeira. De jeito nenhum.
- E o teu amigo, o dono da casa? Ele sabe que a gente esteve aqui.
- Não existe amigo nenhum. Eu sabia que essa casa tava desocupada e resolvi filmar aqui.
- Por isso aquela dificuldade pra entrar...
- É, eu eu fui pelos fundos e arrombei a porta. Aí abri a da frente pra vocês. - admitiu o diretor.
- Mas e a menina, os pais dela? Alguém vai procurar...
- Não, é  uma dessas caipiras mortas de fome que veio de lugar nenhum. Ela me contou que ninguém  sabia que ela tava aqui. A mãe  morreu, o padrasto abusava dela e aí ela fugiu de casa há alguns meses e caiu na estrada. Podia estar aqui como no Japão. - exagerou o diretor para deixar bem claro a imprecisão do destino da garota.
- Mas é muito cruel, cara. Eu não posso simplesmente...
- Cara, você  não  entende? Ela era menor! Mesmo que a gente se safasse de arrombamento, se eles entendessem que ela se engasgou por acidente, se encontrarem o corpo e as nossas gravações a gente tá ferrado. Não tem outro jeito.
Finalmente os outros pareceram perceber a gravidade da situação. Sem mais protestos, puseram-se num silêncio consternado, a providenciar a eliminação das evidências. Um foi à despensa, à área de serviço ver se encontrava algum inflamável, outro juntou todo o equipamento numa pilha única no tapete da sala. O corpo deixaram onde estava. Saíram como entraram. Por um portão de serviço que dava para um terreno baldio. A van da equipe de filmagem descia a colina e perdia-se na noite de Los Angeles. Não demorou muito para que o incêndio pudessem ser visto até mesmo da Sunset Boulevard. As chamas, implacáveis e fulgurantes subiam. Seu brilho só dividia atenções na noite de Los Angeles com a do famoso letreiro de Hollywood que brilhava imponente e vaidosos na encosta não muito distante dali, indiferente a qualquer drama real que pudesse estar acontecendo naquele momento sob seus pés.




Cly Reis

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