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segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Deixe a meta do poeta Chico Buarque

Chico, lançando novo disco e nova polêmica
Toda unanimidade é burra, diz o jargão popular. No caso de Chico Buarque, entretanto, esta máxima vale para os dois lados: a quem o idolatra e a quem o odeia. A quem idolatra, porque acha, infantilmente, que seu gosto tem que valer para todo mundo, fazendo com que qualquer crítica ao “intocável” Chico se transforme num manifesto político de esquerda. Uma burrice sem tamanho. Do outro lado, os que odeiam não têm nenhum pudor em deixar transparecer que todos os que, na sua visão, infantilmente gostam de Chico são burros, haja vista que se trata de um velho ultrapassado e enganador.

Primeiro, nem todo mundo gosta de Chico Buarque e de sua arte, o que, mesmo que raramente, escuta-se por aí. Até aí, ok, uma vez que é saudável que, por um motivo ou outro, haja quem discorde ou não se afine com o que o cantor, compositor e escritor faz. Por outro lado, contudo, a mesma unanimidade soa diferente – e não coincidentemente, mais burra ainda. Se praticamente toda a esquerda forma filas seguindo seus passos, há uma direita reacionária e raivosa que está permanentemente no encalço de Chico. Em tudo que ele faz, seja uma música, uma aparição pública ou algum posicionamento político. A direita não engole Chico, e por isso o persegue, tentando achar, sob a capa de uma artificial unanimidade, a ideológica, erros de conduta no artista que o incriminem.

E não conseguem, claro. São polêmicas vazias que, no instante seguinte, se esvaziam. Foi assim agora, em agosto, quando do lançamento da música “Tua Cantiga”, presente no mais recente disco de Chico, “Caravanas”. Livre dos estereótipos e dono de seu trabalho, Chico segura com açúcar e afeto essa turma irritadiça desde os anos 70, quando o patrulhamento sobre si já se manifestava com agressividade. Não foi diferente neste último episódio, quando, sem criatividade (visto que sem argumentos de fato), trouxeram mais uma vez a pecha de “machista” a ele, coisa que tentam desde o tempo em que não entenderam (ou fizeram de conta que não entenderam) a trágica ironia de “Mulheres de Atenas”. De 1976... Igual ao que tentaram imputar-lhe quando do seu até então último álbum, “Chico”, de 2011, ao implicaram com os versos: “Amar uma mulher sem orifício”. Fizeram-no idiotamente, sem fazerem questão de considerar as palavras que vinham antes: ”Hoje pensei em ter religião/ De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício/ Por uma estátua ter adoração...”.

Desta vez, a acusação da ala “feminista” foi a mesma, porém a polêmica foi maior. A letra de “Tua Cantiga”, um lindo maxixe moderno escrito por ele em parceria com Cristóvão Bastos, fala de um homem perdidamente apaixonado por uma mulher distante dele a quem, romanticamente, venera. Nela, os versos: “Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir”, entretanto, foram o estopim da avalanche de discussões. Desde julgamentos de que a atitude de “largar mulher e filhos” seria machista até a de que, por absoluta falta de interpretação de texto, a de que esse ato significaria um desrespeito às mulheres, por que ter uma “amante” seria inaceitável. Detalhe: em nenhum momento a letra diz que o homem ficaria com as duas mulheres ao mesmo tempo, e nem que “largar mulher e filhos” significaria precisamente isso, visto que a frase pode tranquilamente ser entendida como uma força de expressão. Ou seja, talvez nem mulher e filhos existam, apenas o arroubo romântico do personagem. Haja vista o não entendimento ou a forçada intenção de tentar não compreender o que foi dito, é fácil também de explicar porque confundem com tanta convicção este com o próprio autor.

Mallu Magalhães: fez clipe mas não soube
resistir às críticas
A repercussão que tomou redes sociais e depois a imprensa e a sociedade de um modo geral foi, de fato, surpreendente. Até para o próprio Chico Buarque, que, sem ter o que esconder, entrou no circuito de manifestações, não para explicar-se, tal qual infantilmente fizera recentemente Mallu Magalhães ao defender-se de ter posto dançarinos negros em um videoclipe, como se, de maneira racista, os tivesse “rebaixando” ao relegá-los a meros figurantes “exóticos” a seu serviço, uma mulher branca e bem sucedida (!). A inconsistente artista caiu na rede “deles”: acusou culpa por algo que, se fosse imbuída do seu próprio conceito artístico ou, simplesmente, tivesse raciocinado melhor, não tinha absolutamente nada de errado. Chico, no seu caso, entrou na jogada para, educadamente, estabelecer contrapontos às criticas. Primeiro, postou em suas redes sociais um vídeo do professor de Literatura Sérgio Freire, da UFAM, que defende, com argumentos bem embasados, a expressão “largar mulher e filhos” como uma figura de linguagem (hipérbole), e que a confusão personagem/autor é proposital e saudavelmente literária. Noutra postagem, Chico, não sem atiçar mais discórdia, propôs uma interessante leitura ao caso postando um comentário que ele mesmo ouvira num supermercado quando duas mulheres dialogavam sobre “Tua Cantiga”:

“- Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante?

- Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante.”

Todo esse debate em torno da música nova de Chico Buarque é um verdadeiro espelho da sociedade brasileira, contudo. Não há, por parte de uma fatia (considerável, poderosa e midiática) da sociedade uma real vontade de que as coisas mudem: a desigualdade social, a corrupção, a hipocrisia, o preconceito e o próprio machismo pretensamente atacado. Ao invés de se preocupar e brigar por coisas que afetam a vida do brasileiro de forma estrutural, como o crítico cenário político atual e as desigualdades sociais que se dão a cada esquina, “neguinho” presta atenção no problema periférico ou naquilo que nem problema é. Porque dar atenção demasiada ao que Chico Buarque está falando na letra da música é, sim, desviar do que importa. Afinal, é mais fácil isso do que fazer um mea culpa por bater panela e alçar ao poder o primeiro presidente julgado por corrupção no exercício do mandato. E que ainda está lá.

Jack Nicholson em "O Iluminado"
Para além das interpretações positivas ou não, a questão, porém, nem devia ser esta, o que adensa ainda mais a percepção de que o Brasil idiotizou-se. É ridículo, se não, maldoso e tendencioso, deslocar o discurso de uma obra artística e jogá-la num contexto sociopolítico para que esta responda a problemáticas outras que não lhe dizem respeito. Fosse assim, todo ator que fizesse o intrigueiro e invejoso Iago, do “Othelo” shakesperiano, seria linchado em praça pública. Ou mesmo todo mundo correria de Jack Nicholson após vê-lo violento e ensandecido em "O Iluminado", ainda mais porque o primeiro nome do personagem leva o mesmo do ator. É claro que tem sempre um pouco de criador na criatura, mas, convenhamos: menos, né?

O que está escrito em “Tua Cantiga” e todas as interpretações que a obra suscita são, impreterivelmente, do âmbito artístico. São da obra, e devem ser vistas como tal. Mesmo que fosse (e não é) um trabalho autobiográfico de Chico Buarque, ainda assim exigiria que fosse visto como arte. Que interessa se o “eu-lírico” da letra é ou não machista, ora essa! Se o é ou não, é objeto da obra, e assim foi intencionalmente escrita. E ponto. É sinal de um retrocesso descomunal observar que algo desta natureza ainda gere controvérsia e, ainda mais triste, precise ser explicado. De outra música da safra nova de Chico, "As Caravanas", uma denúncia do preconceito racial e social, ninguém comenta.

Desculpem, mas não é por aí que se defende o “empoderamento feminino” – ou pior: não é por aí que se usa a moda do “empoderamento” para atacar ideias políticas divergentes. A questão é que, em época de evidente crise moral brasileira, o mínimo suspiro de linguagem culta só vem confirmar o empobrecimento cultural no qual nos forçam a afundar todos os dias. “Porcaria na cultura tanto bate até que fura”, né, Itamar Assumpção? Outro poeta, Gilberto Gil, sabiamente esquivo, escreveu certa feita: “Uma meta existe para ser um alvo/ Mas quando o poeta diz: Meta/ Pode estar querendo dizer o inatingível”. Não atingir isso é burrice. Unanimemente.

Clipe de "Tua Cantiga" - Chico Buarque



por Daniel Rodrigues

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