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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

cotidianas #525 - Dor dos Diabos



Mais uma noite.
Mais um plantão.
As noites do meu plantão costumavam ser tranquilas, silenciosas, até chatas pra ser bem sincera. A maioria dos pacientes, pessoas de idade, dormiam cedo fosse pelo avanço da idade que já lhes diminuía a energia e o vigor para ficaram acordados até tarde, fosse pelo efeito de seus medicamentos. E assim as noites se passavam na clínica: uma medicação a ser administrada aqui, um que pedia um copo d'água ali, um outro que reclamava de frio e as coisas iam como sempre. De vez em quando um gemia, reclamava alguma dor mas na maioria das vezes ou paravam sozinhos depois de algum tempo ou, mais carentes na verdade de alguma atenção do que propriamente com algum sofrimento, sossegavam com um afago ou uma palavra de conforto. Por isso, em princípio, nem estranhei quando a senhorinha do leito 32 começou a grunhir e praguejar alguma coisa. ela sempre o fazia. Seu caso já era conhecido de todos os pacientes,e por mais que às vezes exagerasse um pouco na intensidade, sua artrite no pé esquerdo com certeza a incomodava um bocado.
Fui atendê-la. Pelo menos era um motivo pra sair daquela cadeira, esticar as pernas, afastar o sono que começava a insistir em me dominar.
- Que que foi, Dona Cleide?
- Essa dor, minha filha. Essa dor... - reclamava a idosa apertando um Rosário entre os dedos.
- Descansa, Dona Cleide. Dorme que passa.
- Não adianta, minha filha. Hoje tá pior do que nos outros dias. Não sei se é por causa do tempo que tá pra virar ou o que, mas hoje tá insuportável. Não tem como me dar um daqueles remedinhos pra dor, não?
- Mas a senhora já tomou seus remédios da noite. Se tomar outro agora vai fazer mal pro seu coração. Não pode, tá bom?
- Ai, minha filha, eu faria qualquer coisa pra essa dor passar. Qualquer coisa.
- Descansa, Dona Cleide. Os remédios estão começando a fazer efeito. Já vai passar. - disse tentando confortá-la enquanto aproveitava para cobri-la melhor.
Afastei-me. Voltei para a sala dos enfermeiros. De lá ainda podia ouvi-la se queixar:
- Ai, meu Deus, que dor é essa? Que dor é essa? Ai, eu faria qualquer coisa pra essa dor passar. Eu daria minha alma pra essa dor passar. Ai, ai... já pedi tanto pra Deus... Já que não adianta pedir pra Deus, vou pedir pro Diabo pra ver se adianta.
E começou a levantar a voz:
- Diabo. Diabo. Eu tô aqui. Te dou minha alma se tu me tirar essa dor.
Não posso negar que me assustei um pouco. "Valei-me meu São Miguel Arcanjo", clamei.
Agora sua voz já era realmente alta e seu escândalo já começava a acordar e a assustar os outros pacientes.
- Diabo! Diabo! - invocava ela.
Mesmo já um tanto apavorada, acudi.
- Dona Cleide. Se acalma, se acalma.
- Leva a minha alma mas faz passar essa dor.
Não podia mais deixar que aquilo continuasse. Fui obrigada a recorrer ao calmante. O médico havia me recomendado que só usasse em último caso e acredito que aquilo se enquadraria numa situação extrema.
Tentando conter sua agitação apliquei a injeção e a idosa foi aos poucos foi arrefecendo. Sua voz alta e desesperada foi diminuindo, diminuindo, se reduzindo a quase um murmúrio até sumir.
- Diabo... Diab...
Pronto. ela adormecera. Acalmei um que outro paciente ainda um pouco impressionado pela cena toda e logo o silêncio voltou a tomar conta da noite na clínica.
Retornei à minha sala mas àquela noite não conseguiria voltar à tranquilidade habitual. A invocação feita por quela senhora definitivamente havia me perturbado. Qualquer barulho, movimento quase me fazia o coração saltar pela boca. Um galho batendo na janela com o vento, um cachorro que latia na rua, uma sombra. Passos no corredor... Devia ser o Jonas, o segurança da noite.
- Jonas, é tu que tá aí.
Não tive resposta. Apenas silêncio.
- Jonas...
Senti então uma mão em meu ombro.
Virei a cabeça sobressaltada.
- Tá tudo bem, Mari? - quis saber Jonas, o segurança, que me olhava com cara de estranheza - Parece que viu o demônio.
Sorri. Ele saiu rindo.
Mesmo naquele estado de tensão, o cansaço em algum momento devia ter me dominado. Devo ter descansado a cabeça sobre a mesa por um instante e adormecido. Aliás, acho que não fora tão pouco tempo assim, pois as primeiras luzes do dia já iam aparecendo. Era melhor que eu fosse ver os pacientes. Alguém podia ter precisado de mim à noite durante meu sono. Ai, se a dona da clínica soubesse...
Fui direto ao leito da Dona Cleide. Para minha surpresa ela já estava acordada e com um ótimo aspecto e bem disposta. Recebeu me sorridente:
- Bom dia, minha filha.
- Bom dia, dona Cleide. E as dores? Passaram?
- Dor? Que dor?
- As dores de ontem à noite. A senhora quase não aguentava. Reclamava muito, não lembra?
- Ah, sim, as dores... Já estou melhor. - respondeu em tom de indiferença como que somente para me satisfazer.
Enquanto tentava assimilar o que se passava com aquela senhora ali à minha frente, no fundo da enfermaria, uma voz chamava meu nome. Era outro paciente que acordara e decerto precisava de algum cuidado.
Ia levantando da cadeira ao lado do leito da Dona Cleide quando meus olhos bateram em algo que estava no chão, quase embaixo da cama.
Abaixei-me pra pegar.
- Dona Cleide, a senhora deixou cair seu Rosário. - disse-lhe estendendo a mão para entregar a corrente de contas.
- Deixa aí em cima, minha filha. - disse tranquilamente recostando-se no travesseiro e fechando os olhos - Deixa aí em cima...
Larguei o objeto sobre a mesinha de cabeceira e a deixei. Fui atender quem me chamava.
Verifiquei todos os pacientes e tomei todas as providências necessárias para a enfermeira do diurno. Meu plantão chegara ao fim. Era hora de ir para casa. Tentar descansar, tirar aquele episódio estranho da madrugada anterior da cabeça, dormir um pouco... Sim, dormir. Renovar forças, energia. Reunir coragem. Porque mais tarde, eu sabia, começaria tudo de novo.
Mais um plantão.
Mais uma noite.

Cly Reis
para Mari

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