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terça-feira, 11 de julho de 2017

"O Inquilino", de Alfred Hitchcock (1927)


Não é sempre que um artista consegue, desde cedo, estabelecer um estilo próprio de produzir sua arte. Isso pode acontecer com pintores, músicos, escritores e, claro, com cineastas. Não se trata de demérito, afinal, na maioria das vezes, para se chegar a uma síntese de elementos conceituais que pertençam ao universo do autor e se manifestem com inteireza na obra, carece, sim, que se percorra algum chão.

A inconsistência das primeiras obras, entretanto, parece não valer para todos os criadores do cinema, principalmente, quando se está falando de gênios como o inglês Alfred Hitchcock. “O Inquilino” (The Lodger: A Story of the London Fog), de 1927, seu primeiro longa-metragem – ainda da fase muda e rodado na Inglaterra 13 anos antes de ele se radicar nos Estados Unidos –, guarda muito dos elementos estilísticos que adotaria em sua extensa, exitosa e referencial filmografia. Descontada, claro, a ainda pouca experiência que os 28 anos lhe ofereciam, bem como a carência de recursos de toda a Europa do período entre-Guerras, nota-se no filme tanto as trucagens técnicas criativas quanto os elementos narrativos que consagrariam o “mestre do suspense” e, mais do que isso, ajudariam a formatar a linguagem do cinema comercial no decorrer do século XX.

A começar pela história: pequena, tensa e baseada em temáticas que se sustentam em conflitos psicológicos. Um serial killer, ao estilo Jack, O Estripador, inicia uma série de assassinatos em Londres, tendo como fator em comum o de suas vítimas serem todas mulheres loiras. Um novo hóspede, Jonathan Drew (Ivor Novello), chega ao hotel do casal Bounting e aluga um quarto. O homem tem estranhos hábitos, como o de sair em noites nevoentas. Ele também guarda a foto de uma moça loira, o que faz com que a suspeita das mortes facilmente recaiam sobre ele. Daisy (June Tripp), a filha dos Bouting, também loira, é modelo e está noiva de um detetive. Incomodado com a presença de Jonathan e pressionado a achar uma solução para os crimes, o policial o prende, acusando-o de ser o assassino.

O esquisito inquilino Jonathan (Ivor Novello): acusação, culpa e crime
O argumento é suficiente para Hitchcock desenvolver os conflitos internos dos personagens e as naturais consequências desse desequilíbrio, que tanto sustentarão seus filmes subsequentes. A dúvida e a ambiguidade, por exemplo, estão no centro da história de “O Inquilino”. O comportamento esquisito de Jonathan, que coloca interrogações no que se refere a sua sanidade, intenções e até gênero sexual, desencadeiam a desconfiança da polícia e da sociedade e, consequentemente, a imputação da culpa. Não é difícil encontrar em toda a filmografia de Hitchcock personagens levianamente acusados antes de poderem se explicar, casos de “Os 39 Degraus” (1935), “Interlúdio” (1946), “O Homem Errado” (1956), “Cortina Rasgada” (1966) ou “Frenesi” (1972), pegando-se um por década.

Em sequência, tomadas de escada de "O Inquilino", "Chantagem e Confissão" e "Um Corpo que Cai"
Igualmente, “O Inquilino” já apresenta a inventividade na utilização dos recursos técnicos, pelos quais Hitch não apenas surpreendeu espectadores muitas vezes ao longo dos anos como, mais que isso, ajudou a inventar soluções, tornando-se um dos precursores dos efeitos visuais tal qual se convencionou no cinema. Assinaturas de sua direção, como a fotografia expressionista, os enquadramentos bem pensados, detalhes de objetos, zoons, close no rosto de uma mulher gritando e até travelling dentro de um automóvel dão ao filme um ritmo bastante atrativo e pop. Ainda, as vertiginosas tomadas em plongée de escadaria, fator narrativo imprescindível a filmes dele de épocas distintas, como "Chantagem e confissão" (1929) e "Um Corpo que Cai" (1958), Além disso, a agilidade da montagem em momentos de clímax, colocando o espectador em uma espiral de tensão, fazem lembrar a perseguição no parque de diversões de “Pacto Sinistro” (1951) ou a famosa cena do assassinato do chuveiro de “Psicose” (1960), para ficar em dois exemplos.

Close em mulher gritando, uma das
marcas de Hitch
Afora isso, outras semelhanças com filmes que rodaria posteriormente chamam atenção. A cena inicial da aglomeração de pessoas diante de um corpo no rio lembra direto a também primeira cena de “Frenesi” (1972), que Hitchcock rodaria já em final de carreira, 45 anos depois deste debut cinematográfico. Fácil associar ainda a cena final, em que Jonathan, em apuros, fica pendurado na grade e prestes a cair, com as sequências também conclusivas de “Intriga Internacional” (1959) e de “Janela Indiscreta” (1954), quando o diretor usa o mesmo precedente como catarse dramática. Além, é claro, da fixação pelas loiras – as blond girls Kim Novak, Doris Day, Tippi Hadren e Ingrid Bergman, entre outras – e da sempre presente culpa da sensualidade feminina, associada a desejos tanto carnais quanto letíferos.

Vários elementos narrativos e técnicos presentes em “O Inquilino” seriam aperfeiçoados pelo diretor no decorrer de mais de 50 anos de carreira – aliás, tal qual fizera em toda sua obra, num incansável aprimoramento metalinguístico. Mas é fato que, já em seu primeiro projeto atrás das câmeras, Alfred Hitchcock lançara as bases daquilo que lhe tornaria uma marca: o hoje largamente conhecido gênero triller psicológico. Sua estética apurada, exigência técnica e a constante intenção de mexer com as emoções do espectador fizeram de Hitchcock uma referência, haja vista que buscara permanentemente a associação entre uma linguagem própria e sustentada na gramática original do cinema a um diálogo com o público. Não à toa, por isso, vários de suas realizações se tornaram clássicos, visto que respondem não apenas ao cinema enquanto arte, mas também como entretenimento. E se obras-primas como “O Homem que Sabia Demais” ou “Um Corpo que Cai” são como quadros irretocáveis, é porque estas devem bastantemente ao bem-acabado esboço “O Inquilino”.

Assista ao filme "O Inquilino"



por Daniel Rodrigues

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