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quarta-feira, 19 de julho de 2017

cotidianas #519 - Uma História Brilhante


Uma história brilhante. Um tanto confusa, é verdade, mas muito inegavelmente brilhante. Algo sobre um cara que coexistia consigo próprio no mesmo espaço de tempo e matava seu outro. Era engenhoso, criativo e saborosamente inusitado. Ninguém jamais diria que um romance tão bem escrito e original poderia vir daquele mendigo maltrapilho e fedegoso que habitava aquela marquise, próxima à padaria do bairro. Mas aquele insólito enredo era o que estava contido no caderno de espiral amassado e gorduroso do qual o vagabundo não se desgrudava em momento algum e no qual passava os dias inteiros rabiscando. Na verdade, ninguém nunca se interessou em saber o que tanto escrevia naquele amontoado de papel sebento. Devia ser alguma loucura qualquer até porque o que comentava-se que era doido varrido. Dizia-se que teria ficado assim, desnorteado, sem razão, depois que matara a própria mulher no sótão de casa. Seria mesmo verdade? Se fora um assassino não parecia e de qualquer forma não importava agora para os moradores do bairro. Não incomodava ninguém e ninguém o incomodava. Só o abordavam muito de vez em quando para dar um pão, uma marmita, um cigarro, uma cachaça até. A meninada do colégio ali perto é que de vez em quando zombavam do pobre coitado, mas mesmo assim, o caderno, seu companheiro inseparável, devia a um daqueles garotos que todos os dias passando por ali e vendo-o tentando escrever no chão com um pedaço cascalho ou tijolo, resolveu presenteá-lo com um espiral pouco usado. Desde então nunca parara de escrever no caderno. Escrevia, escrevia. Talvez só escrevesse por escrever, talvez só escrevesse a mesma palavra o tempo inteiro e quem sabe até, sequer fossem palavras. Vai lá saber. Dizia-se que havia sido escritor e por isso não parava de rabiscar. Constava até que havia escrito um grande livro, não me recordo do nome agora. O fato é que ninguém nunca havia se interessado verdadeiramente pelo que estava escrito lá, com exceção daquele sujeito que permaneceu parado debaixo daquela marquise naquele dia chuvoso folheando avidamente as páginas sujas daquele manuscrito enquanto o mendigo dormia nocauteado pela cachaça.
Por conta dessa indiferença que fazia para a vizinhança por seu comportamento pacífico foi que todos estranharam e ficaram extremamente chocados ao saberem que, num dia daqueles, o vagabundo amanhecera com o corpo completamente carbonizado. Uma barbárie!
A polícia investigou pouco, fez poucas perguntas. Afinal, quem se importa com um sem-teto morto? Poucas informações, nenhum parente, nenhum inimigo, nenhum suspeito e só uma pequena nota na seção policial do jornal mais sensacionalista.
Mais um desses atos cruéis que infelizmente vemos nos dias de hoje. De certo devia ter sido obra de um algum playboyzinho cheirado, desocupados ou revoltadinho, algum filhinho-de-papai bêbado, rebelde sem causa.
Ninguém fez qualquer ligação entre o cruel assassinato do mendigo com o sujeito que estivera parado ao lado do pobre-diabo debaixo daquela marquise dias antes, tampouco deram falta do caderno que, não sem razão, qualquer um imaginaria ter sido obviamente consumido pelas chamas. Talvez devessem pois curiosamente dias após o assassinato o homem que lera o caderno com tanto interesse, entregava a seu editor seu primeiro trabalho em muito tempo, o que arrancara do editor a exclamação entusiástica, "Isso é simplesmente genial!".
Naquele final de tarde, ao sair do prédio da editora, com um gordo adiantamento pela exclusividade de publicação do livro, o homem, aquele que estivera ao lado do indigente naquela tarde chuvosa, recebia uma ligação de sua mulher. Ela que, naquele momento limpava o sótão livrando-se de tralhas e inutilidades, dera com um caderno imundo e estropiado, queria saber o que deveria fazer com "aquela porcaria", segundo ela. O marido apenas disse para que ela esperasse onde estava, que não saísse dali e não comentasse com ninguém sobre o alfarrábio. Desligou e apressou-se para casa. Ia pegar um táxi mas achou melhor não ser visto por ninguém. Resolveu ir a pé. Conhecia um caminho rápido. Esgueirou-se para entrar em sua própria residência de modo que não fosse visto pelos vizinhos e subiu para o sótão. 
Sua esposa nunca mais foi vista depois daquele dia. Ele mesmo deu queixa do desaparecimento. Chegou a ser ouvido, interrogado mas nunca chegou a ser suspeito. Sua mente de escritor, conhecedor de romances policiais, encontrara um meio de ocultar o corpo e isentá-lo de qualquer crime. Saía completamente impune de mais um crime.
Mas se escapara da justiça dos homens das garras de sua mente, torturada pelo assassínio da própria esposa, não  conseguiria fugir. Desde que a mulher "desaparecera" começara a dar sinais de insanidade, nem sequer conseguira desfrutar do sucesso de seu livro. Não saía mais de casa, esquecera a higiene, a comida, os compromissos, subia ao sótão e começava a gritar coisas incompreensíveis, a casa agora era uma verdadeira pocilga.
Depois de consumida toda a pouca comida que tinha em casa, meses depois, deitado no meio do lixo dentro da sala percebeu que tinha fome. Foi ao bolso do casaco que usava quando saíra da editora naquele dia há quase três meses atrás e pegou um envelope cheio de dinheiro. Rasgou, pegou uma ou duas notas e deixou cair o envelope ali mesmo pelo chão.
Saiu. Fez o caminho que tantas vezes percorrera cada vez que a esposa pedia que fosse à padaria. Sujo, esfarrapado, malcheiroso, foi barrado na entrada do estabelecimento. Não o reconheceram. Com fome e sem motivos para voltar para casa, parou debaixo de uma marquise ali perto, deitou-se e ali ficou. Dali a pouco já era conhecido dos moradores da região que iam à padaria. Volta e meia um apiedava-se de sua situação e dava-lhe um pão, uma marmita, um cigarro, até uma cachaça de vez em quando. Houve até um garoto, da escola da rua de trás, que vendo-o insistentemente tentar escrever no chão com um cascalho, deu-lhe um caderno espiral com umas poucas folhas usadas. Desde então nunca parara de escrever naquele caderno. O que escrevia? Por certo alguma loucura. Diziam que era louco. Diziam também que havia sido escritor.


Cly Reis

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