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terça-feira, 4 de outubro de 2016

cotidianas #468 - Uma História Genial



"Isso é simplesmente genial!"
Foi assim que Theo D'Angelo definiu o material que lera, quase sem fôlego, na noite anterior e para o qual agora diante do autor, não conseguia disfarçar o entusiamo.
- Simplesmente fantástico! Como conseguiu? - e não esperando a resposta - Olha, sinceramente eu achei que você estava acabado, que nunca mais ia conseguir escrever nada que prestasse mas, meu caro, você me surpreendeu. - e prosseguiu - Isso aqui é coisa de gênio! Uma obra-prima!
O escritor que ouvia satisfeito a manifestação de seu editor, só fazia agradecer levemente encabulado.
- Obrigado, Theo. Ainda bem que gostou.
- Se gostei? Eu adorei. - exclamou entusiasmado e continuou, agora baixando a voz como se não quisesse ser ouvido por mais ninguém - Olha, aqui tá um pequeno adiantamento. - tirando um gordo envelope da gaveta - Só pra garantir que publique conosco.
- Mas é claro, Theo. - fez questão de assegurar o escritor - Como nos velhos tempos.
- Como nos velhos tempos. - confirmou o editor.
O escritor deixo o prédio logo em seguida. Na calçada olhou para os dois lados como que procurando algo. Pareceu ter encontrado. Colocou o espesso envelope em um dos bolsos internos do casaco e tomou o caminho pela direita. Andou alguns metros até uma banca de revistas. Olhou rapidamente as capas dos jornais e comprou um. O mais barato, o mais popular. Daqueles do jornalismo mais rasteiro repletos de fococas, inutilidades e sangue. Ali mesmo, em frente à banca, examinou atentamente a capa, folheou rapidamente algumas páginas e deteve-se por fim à seção policial. "TARADA-CANIBAL COME A BUNDA DE MAIS UM"; "MULHER FAZ PICADINHO DO MARIDO PRA PODER TER UMA NOITE DE SILÊNCIO", "HOMEM MATA NOIVA COM A COISA DE MIJAR" e, muito discreta, sem nenhum destaque, uma pequena nota sobre um morador de rua queimado vivo.
Nada demais. Nada com o que se preocupar. A polícia provavelmente nem levaria adiante qualquer investigação. Só mais um mendigo morto, provavelmente por algum playboyzinho cheirado, desocupado ou revoltadinho. Ninguém jamais desconfiaria. Jamais fizera algo do tipo antes mas... fora obrigado. Aquilo era simplesmente brilhante. A partir do momento em que punha os olhos no caderno rabiscado daquele miserável, só pela curiosidade, em um instante que o infeliz dormia debaixo de sua costumeira marquise, teve a convicção de que aquilo era algo genial e que não era justo que pertencesse a um desgraçado que nunca iria chegar a lugar nenhum. Aquilo tinha que ser seu. Aquilo lhe traria o sucesso que sempre ambicionara. Há anos não escrevia nada que prestasse, há meses não conseguia escrever nada. Nem uma linha, um parágrafo. E agora aquilo... Aquilo era sua oportunidade.
Já havia visto o vagabundo rabiscando naquele caderno espiral inúmeras vezes mas naquela tarde, com aquela chuva, com a rua praticamente vazia e uma garrafa de bebida repousando preguiçosamente ao lado do corpo nocauteado do infeliz, era sua chance de matar a curiosidade e descobrir o que aquele pobre-diabo tanto escrevia naquele amontoado de papel ensebado. Assim que começou a percorrer as primeiras linhas, se é que dava para chamar de linhas, a sequência quase ilógica traçada pelo mendigo, teve a impressão de que o que lia era algo excepcional. Não quis perder muito tempo. Sem perder o fio da meada passou à frente alguns trechos, avançou apressadamente algumas páginas e confirmando sua impressão de que estava diante de algo genial, não teve dúvidas do que deveria ser feito.Ninguém daria por falta de mais um sem-teto fedorento e indesejável. Seria mais um ato de vandalismo, de covardia social, de intolerância humana. Provavelmente, no fim das contas, colocariam a culpa em algum filhinho-de-papai bêbado rebelde sem causa e a morte de um indigente qualquer não mereceria  mais que uma notinha curta na seção policial da publicação mais rasteira do jornalismo local.
A vibração do celular em um dos bolsos internos do casaco o fez sair de seus pensamentos. Atendeu.
- Amor...
- Oi, amor.
Era a esposa.
- Querido, você demora pra chegar?
- Acho que demoro um pouco ainda. Acho que vou me encontrar com os rapazes. - o que queria dizer que iria para o bar gastar um tanto do que acabara de ganhar de adiantamento - Por que?
- É que eu tô limpando o sótão e queria saber o que fazer com algumas coisas aqui. - falava enquanto revirava as coisas no sótão empoeirado - Tem umas latas de tinta, umas garrafas, umas pastas, um caderno gosmento todo rabiscado... Isso aqui não é a sua letra. Eu posso jogar isso fora?
- Não! - apressou-se ele - Não mexe nisso. Deixa isso aí.
- Tá bom mas...
- Você leu? - quis saber ansioso.
- O que?
- O caderno?
- Não. Mal dá pra ler iss...
- Mostrou pra alguém? Falou sobre ele com alguém? Algum vizinho?
- Não. Por que? é alguma coisa...
- Não mostra pra ninguém - ordenou com veemência interrompendo-a novamente - Não fala pra ninguém sobre isso.
- Tá, tá bom. Eu hein!
- Não sai daí que eu já tô indo pra casa. Não faz nada.
E desligou sem se despedir nem dar mais atenção a mais um resmungo da mulher.
E agora? O que faria? No jornal não mencionaram nada sobre o caderno. Mas se alguém tivesse dado falta? E se alguém o tivesse visto em pé ao lado do mendigo bêbado  embaixo daquela marquise naquele dia de chuva? E se a mulher achasse o caderno familiar? Lembrasse de já ter visto um parecido em algum lugar? No caminho para a padaria, talvez. O mendigo! O mesmo que morreu. Queimado. E se...?
Não podia deixar que nada pusesse em risco seu sucesso. Nada!
Ia pegar um táxi mas desistiu. Era melhor que não houvesse testemunhas de que fora para casa naquele horário. Resolveu ir a pé.


Cly Reis


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