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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

cotidianas #326 - Carmo



Nossa Senhora do Carmo no altar
Na sua acepção, o termo “milagre” quer dizer “fato sobrenatural oposto às leis da Natureza”. Ouro Preto, fruto de um “caos geológico”, é, de certa forma, provocado por um destes. Cidade secular encravada no meio de morros líticos, suporta, muito por isso, creio, tamanha energia em sua composição geológica, vegetal e espiritual que esta chega a emanar-lhe, favorecendo as manifestações excelsas dos Céus. Céus, estes, aliás, que parecem apenas ter descido alguns degraus do firmamento em direção àqueles cerca de 1200 metros de altitude para se acomodarem no solo dessa cidade de ruas íngremes e relevo complexo, haja vista toda a forte cultura devota, as numerosas e ricas igrejas, a grandiosidade de sua arte sacra, a arquitetura comovente, a fé material e imaterial do povo, as referências nascedouras e permanentes do catolicismo. E se isso não convence os mais céticos da aura divinal daquela terra, é porque tal não presenciou a bruma espessa que repousa magnânima e cinematográfica à noite, pondo, aí sim e de vez, o céu no chão. Há de se ter olhos metafísicos quando mal se vê o próprio pé para percorrer-lhe os dificultosos calçamentos, montados pedra a pedra por negrinhos filhos de escravos com senhores. Só assim para poder enxergar.
Dentre os maravilhosos e exuberantes templos a Deus e santidades com que se deparam os viventes visitantes que vão até lá, está a Igreja do Carmo. Impossível, aliás, não deparar-se com ela. A Carmo se impõe à visão de quem quer que seja, privilegiada e inteligentemente edificada justamente onde pode obter tal realce. Nossa Senhora, nas suas inúmeras formas, merece este posto, acreditaram os antigos da Vila Rica colonial. Neste caso, a do Carmo. Portugueses, africanos, índios, mulatos, cafuzos, etc. (brasileiros) ergueram a construção em louvor à santa, fosse por vontade, crença, esbanjamento ou obediência. Mas, de fato, a ergueram; e linda, deslumbrante. Privilegiada à vista.
Trata-se de um dos últimos projetos do arquiteto Manuel Francisco Lisboa, pai de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, datada de 1766 a 1772. Foi construída em estilo rococó, menos carregada de ouro e a única do estado mineiro com painéis de azulejos portugueses na capela-mor. Há nela obras do próprio Aleijadinho, negrinho filho de escrava com senhor, um “gênio da raça”, como disse Mário de Andrade. Há também afrescos de Mestre Athaíde, outra referência da arte da época. O escritor francês Dominique Fernandez, em seu livro “O Ouro dos Trópicos – Passeios pelo Portugal e o Brasil Barrocos”, suspeita seriamente como eu de que todo este conjunto de belezas da Minas colonial, algumas até sobre-humanas como a vastidão quanti e significativa da obra de um escultor portador de uma doença degenerativa e deformante, favorecem sim uma leitura de compreensões incorpóreas. “Tudo é insólito na aventura dos arquitetos e dos decoradores de Minas”, sentenciou. Quanto a Aleijadinho, Fernandez escreve que, mesmo com as incertezas quanto à sua obra (especula-se que tenha criado mais de 400 durante toda a vida) e a autoria das mesmas, “o brilho de sua obra seria suficiente para colocá-lo entre os maiores criadores de cenários de todos os tempos, entre Michelangelo, Mathias Braun, Puget, Serpotta, os irmãos Asam”. Concordo.
Mas o que se sucedeu conosco no primeiro dos três dias em Ouro Preto não foi exatamente um “milagre”. Nem tão a céu e mais à terra. Porém, também não dá pra dizer que se trata de um ocorrido comum, rotineiro, qualquer. Não, longe disso. Não diminuo o inusitado do feito. Acho, sim, que talvez tenha presenciado um... um... portento, um prodígio diferente desta realidade vulgar daqui do chão.
A começar pela direção a qual tomamos. Leocádia e eu, exaustos e felizes das horas de caminhada atenta de quem quer comer com os olhos todos os centímetros de uma novidade tão bela quanto estranhamente familiar, já restávamos com as pernas cansadas, o estômago solicitando reposição e a cabeça zonza de fascínio. Porém – e aí provavelmente começa a operar aquilo que me foge à explicação lógica e pouco virtuosa –, ao invés de dirigirmo-nos a nossos aposentos, invertemos a rumo. Não para a direita, mas para a esquerda. E isso sem nenhum comentário, sem nenhum questionamento, sem nenhum alarde. Apenas fomos, como que guiados.
Ao que se chega ao topo da Praça Tiradentes, atrás do Museu da Inconfidência, há a escadaria traseira da Igreja do Carmo. E foi com ela que nós nos demos, de portões escancarados. Evidentemente que não é nada estranho a uma cidade católica e turística os portões de uma de suas mais visitadas igrejas estar aberto, não fosse o fato de já serem, aproximadamente, 6 horas da tarde e, a este adiantado do horário, TODAS as igrejas de lá já terem fechado. Mas, estranhamente, encontrava-se descerrada, convidativa. Embora a Carmo constasse, certamente, em nosso roteiro, não a tínhamos visitado ainda; seria agenda para o dia seguinte. Então, se a chance nos surgia, o certo era seguimos. Fomos naquele passo autômato de quem o cansaço já toma conta a ponto de bloquear qualquer raciocínio racional de autopreservação – inclusive o de desperdício da própria energia corporal, visto que poderíamos bater com a cara na porta e voltar sem sucesso e ainda mais desgastados desnecessariamente. Todavia, como nada nos impedia, avançamos, porém, com a máquina fotográfica guardada na mochila; afinal, é expressamente proibido fotografar o interior das igrejas, preservadas pelo patrimônio histórico.
Ao chegar próximo do prédio duas coisas nos chamaram atenção. Primeiro, que havia uma movimentação de pessoas vestidas de preto, visivelmente trajadas assim a trabalho, entrando pela porta lateral da igreja metros adiante de nós. Suspeitamos que fossem da organização do festival que acontecia na cidade, que também trajavam roupa escura e com quem já tínhamos nos topado em vários lances durante o dia. A segunda observação foi a de que, além de perceber que a porta lateral tinha acesso à igreja naquela hora avançada – mesmo que fosse permitido somente a algumas pessoas como as que avistamos –, igualmente, havia uma peça acesa lá dentro. E tinha gente. Movimentava-se e executava ali algo. Como a janela tinha altura suficiente para uma pessoa comunicar-se com de fora para dentro, Leocádia não se fez de rogada e, aproximando a cabeça do parapeito, perguntou àquela pessoa:
- Com licença, o sr. sabe nos dizer se a igreja está aberta?
A resposta veio rápida e descomplicada:
- Já está fechada, mas vai ter uma formatura aqui mais tarde e se vocês quiserem entrar, podem entrar ali pela porta do lado. Está aberta, disse o senhor preto de estatura mediana, compleição consistente e expressão firme adiantando-se à nossa intenção e incluindo-me no questionamento feito por Leocádia por já ter-me percebido na cena.
Entramos. Lá dentro, uma equipe de fotógrafos e cinegrafistas que iriam cobrir a tal formatura. Não fosse a presença deles, naquelas vestimentas negras tão profissionais quanto simbolicamente fantasmagóricas, não teríamos nenhuma condição de estar ali àquela hora. Desnecessário relatar o deslumbre que se tem ao adentrar qualquer dessas igrejas de Ouro Preto, quanto mais, assim, à noite. Por ora, seguimos com o relato, pois o que vem a seguir tem mais a ver com o referido “prodígio”.
Admiramos os ornamentos elegantes; os desenhos arredondados do rococó; a leveza das formas; as linhas da arquitetura; a cintilação do ouro (menos exuberante que noutras igrejas, como a Nossa Senhora do Pilar ou da Nossa Senhora da Conceição, mas presente). Satisfeitos com a rara oportunidade, fomos em busca do nosso permissor para agradecer e podermos sair. Percorremos, então, o corredor lateral que dava acesso à sacristia. Outra maravilha ali se descobria. Na porta ainda, enxergamos o tal negro, vestido de calça social preta e camisa branca de mangas curtas, a qual contrastava com a calça e com sua tez. Ajeitava, com zelo e destreza, a alva do padre. Diante daquela cena angelical, ouvimos ele nos dizer:
- Podem entrar. Aqui é a sacristia. Aquela obra ali, disse, apontando o dado para um lavabo em pedra-sabão com a imagem de anjos em relevo, é do Aleijadinho. Podem entrar, repetiu.
Surpresos não só com a reação dele quanto de, principalmente, estarmos vivendo aquele momento atípico, concordamos e entramos. Continuando sua lida, ele nos disse com naturalidade:
- Eu sou o sacristão daqui. Podem ver. Esta outra [obra] aqui também é do Aleijadinho, agora direcionando o dedo para a parede exatamente oposta à do lavabo, onde se via um altar em madeira de aproximadamente 50 centímetros sobre a mesa. Formoso.
É comum em Ouro Preto a presença de guias, autônomos que conhecem a seu jeito a história da cidade e que ficam às portas das igrejas esperando serem contratados pelos turistas para uma visita guiada paga. Mas não estávamos com um guia, e sim com o próprio ajudante oficial da Igreja Nossa Senhora do Carmo! O lavabo era lindo e impressionante, principalmente pela dificuldade que se sabe de se esculpir naquele tipo de pedra e por conhecermos mais as obras em madeira de Aleijadinho. Nela, saíam duas torneiras, que servem para os padres purificarem as mãos antes das cerimônias religiosas. O altar trazia um Cristo nas características puras do mestre: rosto expressivo e sofrido, olhos amendoados, feições corporais perfeitas, coloração da pele bronzeada e uma de suas assinaturas: a barba fina saindo da parte debaixo das orelhas e das narinas.
O sacristão, com sua cabeça raspada e lustrosa, percebendo nossa admiração, parecia se satisfazer com isso. Tanto que, ao observar nosso olhar voltado apenas às duas obras que nos mostrou, chamou-nos atenção para o teto da sacristia:
. E este teto é do Mestre Athaíde. Podem ver, podem ver, falou naquela pronúncia acelerada e miudinha do mineiro.
A essas alturas, já nos beliscávamos. Mas como o surrealismo tomava conta do episódio, porque não colaborar com seu desdobramento? Com todo o respeito que me foi possível, indaguei:
- O sr. pode nos dizer um “não”, mas não custa lhe perguntar: nós podemos fotografar?
Leocádia sobressaltou-se com minha ousada investida. Não que também não quisesse tirar fotos, mas é que, visitando a cidade pela segunda vez, sabia muito melhor que eu da proibição expressa para tanto. Quiçá fosse atrevido o pedido; contudo, havia, mesmo que para um evento pago, vários fotógrafos dentro da igreja e que, muito mais do que nós, disparariam flashes contra as valiosas obras do interno e registrariam tudo aquilo que é proibido a turistas como nós. Com a máquina ainda guardada na mochila, nem deu tempo de eu receber uma negativa de Leocádia, pois o sacristão, dono de si, respondeu:
- Pode tirar foto, sim. Eu sou o sacristão, afirmou com convicção e batendo no peito.
Com os olhos arregalados, de tão surpresa que ficou Leocádia negou o pedido mesmo este já tendo sido autorizado. Titubeei também. Notando a insegurança, imediatamente ele interveio:
- Fotografa sim!, retrucou com autoridade e veemência, fazendo um gesto para que se tirasse a câmera para fora. Sou eu que mando aqui! Pode fotografar.
Fosse por gênio, birra com o padre ou por pura bondade, o fato é que a maior autoridade daquela igreja depois do sacerdote era quem nos concedia a honra. Incrédulos, então, só obedecemos. O resultado são essas lindas e improváveis fotos que podem ver a seguir.
Conta a história que, os carmelitas, eremitas devotos da Bem Aventurada Virgem do Carmo que se formaram no século XII nos arredores do monte Carmelo, na Palestina, foram obrigados a migrar para a Europa quando da perseguição a eles por parte dos muçulmanos. São Simão, um dos mais piedosos carmelitas da Inglaterra, vendo-os minguar e sofrer em decorrência da intolerância religiosa pediu socorro a Nossa Senhora do Carmo. Então, Maria Santíssima, rodeada de anjos, apareceu a ele e lhe entregou um escapulário, o qual virou símbolo da Ordem e que nunca mais lhe saiu do pescoço.
(Tínhamos no pescoço não um escapulário, mas a alça da câmera fotográfica.)
Quando se mostrou em milagre a São Simão, Nossa Senhora do Carmo ditou-lhe a seguinte oração, usada pelos seguidores até hoje: “Flor do Carmelo, vide florida. Esplendor do Céu. Virgem Mãe incomparável. Doce Mãe, mas sempre virgem. Sede propícia aos carmelitas. Ó Estrela das águas”.

A água, símbolo da vida em todas as civilizações, esteve-nos presente todo o tempo, fosse na névoa baixa que chegava a nos molhar à noite, fosse na chuva que se avizinhava a todo instante naqueles dias que paramos em Ouro Preto. Na sacristia da Igreja do Carmo, portávamos apenas a nós mesmos e a câmera de fotografia, a mesma técnica que, quando de sua descoberta, no século XIX, julgavam ser fruto de magia alguns ignorantes das possibilidades físicas. Quase saindo, o sacristão, de repente e sem explicação lógica nenhuma, abriu a torneira da fonte do lavabo, deixando a água correr numa simplicidade tamanha que chegamos a duvidar ser verdade. Perspicazes o suficiente para compreender que aquilo se tratava de uma bênção indireta, Leocádia e eu apenas nos entreolhamos com cumplicidade e, regozijados, não dissemos nada. Como aparições, as fotos talvez saibam traduzir melhor.
Altar com o Cristo em madeira do Aleijadinho

A beleza da parte interna da portada,
também creditada a Aleijadinho



A nave da igreja iluminada à noite

As curvas elegantes do mezanino

Detalhe do teto de puro rococó

O ouro da Vila Rica ornando a Igreja do Carmo

O teto da sacristia com a comovente pintura de Mestre Athaíde

Vista da janela da sacristia por onde,
de fora, falamos com o sacristão

Anda boquiabertos, nós na Igreja do Carmo, à noite   *

Eu e o lavabo em pedra-sabão de Aleijadinho,
enaquantoa fonte corre




por 
fotos:
* exceto a indicada

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