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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Winston McAnuff & Fixi – Festival MIMO – Praça Tiradentes – Ouro Preto/MG (30/08/2014)




Os três mandando ver
na histórica Praça Tiradentes
Sabe aquelas lances da vida que te surpreendem porque tu não tinhas prestado atenção na mensagem que o destino já tinha te dado? Pois a cenográfica Ouro Preto foi-me cenário para uma ocasião dessas. Afinal, só o destino explica porque Leocádia e eu cruzamos com aquela figura horas antes de iniciar o show que nos inebriaria e não o tenhamos reconhecido. Sim: topamos a centímetros com Winston McAnuff na histórica Praça Tiradentes durante uma de nossas caminhadas vespertinas pelas ruas da cidade. E mais: ele ficou nos mirando debruçado sobre uma mureta, com seus óculos escuros azuis e cabelos dread, como se nos convidasse para uma conversa, e... não o identificamos. Nem sequer puxamos a máquina fotográfica, que estava conosco!

Pois a nossa falta de oportunidade – e de informação –, talvez, não tenha sido à toa. Não sabíamos que aquela entidade negra que nos olhara tão de perto no local onde a plateia fica – e que, horas depois, seria por nós olhado daquele mesmo ângulo sobre o palco –, tratava-se de uma das lendas do reggae jamaicano, com passagem pela banda Inner Circle e de carreira solo consistente desde o final dos anos 70. Soma-se a isso o fato de que o jazzista Chick Corea, principal atração do Festival MIMO e motivo maior de termos ido até lá naqueles dias, cancelara seu show por não ter conseguido sair da Argentina em virtude da greve geral naquele país. Ou seja: não havíamos nos preparado para nenhuma outra programação. Mas, em contrapartida, se já soubéssemos o que presenciaríamos naquela noite não seria uma gratíssima surpresa assistir ao “Electric Dread”, como é apelidado, juntamente com outros dois (apenas dois!) músicos: o multi-instrumentista francês Fixi e o percussionista Marc Ruchmann. Somando, apenas três no palco. Mas tinham muitos ali, com certeza. Apoiado pelo espírito de Jah, a quem McAnuff invocou no começo da apresentação, eles deram um show memorável.
Fixi comandando a banda 
com seu acordeom

O show é baseado no álbum “A New Day”, projeto de McAnuff em colaboração com Fixi, de 2013. Aí começa a operar a benfeitoria do destino, pois tivemos a chance de ouvir as músicas do repertório primeiramente ao vivo, visto que, no estúdio, se não chegam a ser decepcionante, é bem menos impactante. Isso porque, ao vivo, o que se viu foi um trio totalmente tomado pelos sons, cada um a seu estilo, cada um com suas preciosidades.

Começando por Ruchmann, que mais parecia um monge tocador. Sentado ao fundo do palco de pernas cruzadas, ele combinava beat-box vocal com dois aparatos de bateria eletrônica e um prato em sua volta. Apenas. O suficiente para dar a impressão de que tinha todo o Olodum ali. Sua precisão e capacidade rítmica conseguiam imprimir com desenvoltura os mais variados climas e ritmos, indo do reggae ao dub, do punk rock ao trance. Já Fixi, arranjador e centro harmônico da banda, alternava piano, teclado e acordeom. Mas que acordeom! Parecia sair dali uns 20 instrumentos diferentes, de tão bem explorados o fole, o teclado e o diapasão. Além disso, o cara vibrava, dançava, girava alucinadamente a cabeça. Era contagiante sua entrega. E melhor: mantinha a base e não saía do tom jamais.

E o que falar de Winston McAnuff, então? Nossa: que cantor. Daqueles que cantam com a alma negra, como um Ray Charles ou Ibrahim Ferrer, mas que, acima de tudo, conhece a projeção da voz no ambiente ao vivo, sabendo usar as reverberações e extensões da própria emissão como poucos. Performático, lembrava, inevitavelmente, Bob Marley, haja vista a força espiritual e a influência que o “pai do reggae” tem na Jamaica. Mas não fica só nisso. Múltiplo e aberto a todos os ritmos do mundo, fez, com Fixi, o skank de Mandeville e o folk francês de Paris se aproximarem da tecno de Londres, do blues de St. Louis, do jazz de Chicago, do soul de Detroit, da polca Tcheca e até do baião nordestino!

McAnuff no palco do MIMO
sob a luz de Jah
A cada execução, íamos nos surpreendendo cada vez mais. Era uma melhor atrás da outra! Em “Garden of Love”, música de trabalho do disco, McAnuff remete ao fraseado de Bob e Tosh enquanto Fixi imprime-lhe um ar de folclore escandinavo, o mesmo com “1, 2, 3”, cujo riff de gaita é tão perfeitamente mantido que parece eletrônico, tal como a batida da percussão. “You and I”, funk com seu riff curto e repetitivo, é um James Brown afrobeat com ares de Jamiroquai e PIL. “Wha Dem Say”, outra espetacular, cadenciada e lírica, permitiu a McAnuff soltar o gogó sobre uma performance quase jazzística da dupla de instrumentistas. Já “Johnny” (personagem recorrente nas canções regueiras) é um misto de reggae e blues que, mais uma vez, deu a McAnuff a oportunidade de pôr o groove pelos pulmões, o que conquistou de vez a parcela do público que ainda se intimidara com o frio da noite de Ouro Preto.

A partir dali, com o público definitivamente cativado, foi só manter a mesma qualidade e alma. Exatamente o que aconteceu com “Heart of Gold”, de construção esquisita mas altamente pop; “A New Day”, linda, sustentada só no piano; e “Let Him Go”, com a qual o vocalista chamou a plateia para acompanhar no canto e nas palmas. Ainda “Things Happen”, drum’n’bass bem jazzy e minimalista e, para cair ainda mais nosso queixo, “Don’t Give Up” na qual Fixi simplesmente mandou no piano, na abertura, os acordes de “O Guarani”, do compositor brasileiro erudito Carlos Gomes!

No bis, mais surpresas. Depois de uma balada emocionante, tocaram, com ciência do que estavam fazendo, “If You Look”, um lindo baião-Gonzaga, que cresce no seu decorrer para se transformar em um trance atmosférico e sideral. Que musicalidade, que energia, que multiplicidade de ritmos. Se existe a world music, é aquilo que vimos. Momento realmente especial ter vivido aquilo sob a neblina cinematográfica da noite de Ouro Preto, atmosfera que nos impele, inevitavelmente, a certa sensação de ilusão. Chegamos a nos perguntar: “foi verdade?”. “O que o destino, Deus, Jah, quis nos dizer com o cancelamento do show de Corea, com aquela identificação de olhares que tivemos com McAnuff à tarde, e para coroar, com o maravilhoso show que assistimos?” Talvez as respostas nos faltem. Mas que foi verdade, foi. E foi demais.



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