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quarta-feira, 20 de março de 2013

cotidianas #211 - Fora do Alcance


- Quem diria que um cara desse ia acabar assim, hein.
- Quem - respondeu o outro saindo de um breve momento de destenção.
- Ali atrás. Não reconheceu aquele mendigo? - e notando ainda a ignorância do amigo quanto ao que falava, explicou - É o Restilo, aquele que jogava no Rayst. Porra, muito esse desgraçado acabou com o meu time.
Então finalmente dando-se por desperto, certificou-se:
- O Restilo? Aquele do gol do título em 72?
- Ele mesmo. Tá aí hoje na merda. Esses jogadores de futebol torram tudo em bobagem, em mulher, em festa, depois acabam assim. Que destino...
O amigo, torcedor do Rayst, outrora fã daquele homem agora reduzido a pedaços fedorentos de trapo sujo sentado na calçada ali atrás, ainda teve tempo de mais uma olhada para trás e confirmar aquela situação deprimente. O atacante de classe, do toque fino, da bola colocada indefensável na saída do goleiro estava ali do mesmo jeito que costumava deixar os zagueiros adversários antes do último toque para o gol: no chão.
O horário de almoço já estava quase acabando e tinha que voltar para o escritório, teria uma reunião em seguida e não poderia fazer o que lhe dava vontade que era ir lá e falar com o Restilo. O faria no dia seguinte se o pedinte ainda estivesse lá. Como que adivinhando o pensamento do colega de trabalho, o torcedor adversário completou.
- Tá todo dia aí. Mora aí o 'teu craque' - sentenciou desdenhando.
No dia seguinte foi almoçar no mesmo restaurante, desta vez sozinho, e logo na ida notou que o mendigo ilustre estava lá. Não costumava comer ali mas queria passar na volta e falar com o ídolo caído. Foi o que fez. Comeu, pediu para o garçom que fizesse uma quentinha, pagou, saiu e caminhou pela calçada até chegar ao local onde sabia que encontraria o Restilo.
Chegou, abaixou-se de cócoras, e dirigiu-se àquele homem sujo, de barba grossa e grudenta, bêbado e maltrapilho à sua frente, sentado meio que deitado, recostado à parede:
- Oi, tu é o Restilo, não é? O Restilo do Rayst? Do gol de 72?
- Eu mesmo, meu filho - respondeu com a voz trêmula por causa da bebida, deixando escapar um leve sorriso - Tu me reconheceu, é?
- É, eu sou, ... quero dizer, eu era,... não, não: Eu sou seu fã. Torço pro Rayst.
- Hehe! Bons tempo, bons tempo - riu com gostosa nostalgia o craque.
- Olha só,... tu não tá com fome? Eu trouxe um pouco de comida caso tu queira.
- Não, obrigado, meu filho. Eu já comi. Já comi hoje. Tu não tem uma cachaça aí?
- Não, cachaça eu não tenho.
- Não faz mal, depois eu arranjo uma. Eu já te contei de quando eu dei uma janelinha no Pelé? - aprumou-se de repente, mudando subitamente de assunto - Já contei? Já? Já joguei muito, meu guri. Já tive na Ásia, nas Europa, nas Arábia, em tudo quanto é lugar.
- Pois é, cara, tu um baita jogador como foi acabou assim, jogado na rua - aproveitou o mote da trajetória para satisfazer a curiosidade - Como é que isso foi acontecer?
- Ah, meu filho, tu não sabe das coisa que acontece no futebol. Ih! - fez uma pausa desviando o olhar - Muita sujeira, muita sujeira. Empresário, sabe? Promete mundos e fundo pra gente e depois, neca. Tu não tem uma cachaça aí? - voltando a mudar de assunto repentinamente- Me dá dinheiro pruma cachaça?
O fã, vendo-se sem muita alternativa uma vez que o mendigo rescusara até mesmo a comida que lhe dera, sacou alguns trocados do bolso e entregou para o ex-craque.
- Ah, tá bom... Tá bom - exclamou satisfeito.
- Olha, tu não quer vir comigo? Tem um abrigo logo ali. Eu te levo.
- Não, não - disse, já levantando afoito - vou tomar um trago. Vou tomar meu trago.
E viu aquele homem que outrora desfilava impávido por entre os marcadores atravessar a rua agora trôpego por entre os carros, abusando da sorte que Deus dedica aos bêbados e crianças, até chegar finalmente a um botequim não menos podre que o cliente, no outro lado da rua.
Não havia mais nada a fazer por hora. Voltou ao trabalho e durante a tarde inteira ficou a relembrar os gols e jogadas do mortífero camisa 9 do Rayst.
Retornou à 'morada' do indigente nos dias seguintes, sempre na volta do almoço. Queria de alguma forma ajudar aquele homem. Seria um ato humano, um ato de amor ao próximo. Não. No fundo mesmo, seria uma forma de retribuir por tantas alegrias que aquele homem lhe dera nos campos de futebol. Por aqueles dias conversou, propôs que procurasse familiares, que fossem ao Clube, que tentassem uma partida beneficente, que procurassem os Alcoólicos  Anônimos, chegou a pensar em levá-lo para a própria casa mas imaginou que o mais provável não era que desse abrigo ao pobre homem em sua residência, e sim que se juntasse a ele na rua, despejado que seria por sua mulher. Desistiu.
No fim só ia lá mesmo ouvir as histórias: Num dia o drible que dera no Pelé havia sido um chapéu, no outro era uma meia-lua, no outro uma lambreta. Num dia o motivo de estar ali naquela situação eram as mulheres, no outro eram os cassinos, no outro falsos-amigos, no um trabalho de macumba, outro dia por que quis mesmo... Não havia nada que pudesse fazer. Por mais que quisesse ajudar, aquilo estava tão fora de seu alcance quanto a bola que o Restilo, invariavelmente, implacavelmente, tranquilamente, colocava na saída do goleiro e que, antes de percorrer todo seu caminho, todo mundo sabia qual seria o destino.


Cly Reis

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