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domingo, 4 de novembro de 2012

John Cale – “Sabotage/Live” (1979)




“You better be ready for war.” (“É melhor você estar pronto para a guerra”)
da letra de “Mercenaries”


Eu teria tranquilamente pelo menos outros três ou quatro discos de John Cale para incluir numa lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS  o que talvez ainda seja reparado por mim, pelo Clayton ou outro colaborador do blog. Mas faço questão de começar justamente por um disco ao vivo que, via de regra, não tem a mesma “fundamentabilidade” dos de estúdio. Mas esse é um “live” diferente, como, aliás, é a marca deste genial e camaleônico cantor, compositor, arranjador e produtor galês. O referido disco é “Sabotage”, registro avassalador gravado por Cale em 1979 no lendário CBGB, boteco que, no início dos anos 70, foi palco do surgimento do punk, cena da qual o próprio foi um dos principais artífices.
Cale é um verdadeiro esteta. Já apareceu na cena artística de Nova York nos anos 60 como uma lenda. Ex-aluno do vanguardista La Monte Young, levou sua pegada erudita moderna para a não menos lendária banda Velvet Underground e, sob a batuta de Andy Warhol e ao lado de Lou Reed  formou uma das parcerias musicais mais inventivas da história da música contemporânea. Não bastasse, o cara largou o Velvet após apenas dois discos (mas suficiente para deixar sua marca) e entrou numa carreira solo regida pelo mais absoluto ecletismo, indo do mais tosco punk-rock até a mais refinada suíte romântica a la Brahms. Coisa que apenas um maestro genial como ele teria condições e conhecimento para tanto. De 1969 para cá, produziu, lançou bandas e artistas, compôs inúmeros discos próprios e/ou em parceria, fez trilhas sonoras, enfim: soltou a criatividade.
“Sabotage”, o disco em questão, faz parte de sua trilogia proto-punk iniciada no magnífico “Fear” (1974) e no não menos brilhante “Guts” (1977). Porém, é no terceiro da série que Cale detona tudo, num dos mais pungentes e, ao mesmo tempo, bem elaborados discos de rock já ouvidos. A banda é afiadíssima: Mark Aaron, esmerilhando na guitarra solo; Joe Bidewell, competente nos teclados; Doug Bowne, mantendo super bem o ritmo na bateria, às vezes dando espetáculo; George Scott, com seu baixo grave e fundamental para o arranjo e textura; Deerfrance, a musa da cena punk nova-iorquina nos backings e colaborando também na percussão; e o próprio Cale, que manda ver no piano, guitarra-base, segundo baixo, viola (originalmente seu instrumento-base) e, claro, vocal.
"Mercenaries (Ready for War)", com sua base de baixo constante, grave e pesada, começa pondo a galera pra poguear. Cale solta o verbo numa letra que critica a sociedade e o militarismo, como um bom punk, desfechando ao som da explosão da bomba que ilustra a capa. Aaron é outro que destrói nesta, dando uma noção do que viria em seguida. Mantendo a pegada e o sarcasmo, "Baby You Know" vem na sequência com um ritmo marcial e um motivo constante de teclados super legal, lembrando Joy Division. Ótima.
“Evidence” traz um riff matador de guitarra, mas não menos legal na linha de baixo. Punk até dentro dos olhos, mas com aquele toque de Cale: um inconfundível refinamento até na escolha das poucas notas de um rock básico. “Dr. Mudd”, mais melodiosa mas não menos guitarrada, antecede a excelente “Walking the Dog”,  clássico do Rhythm and Blues numa versão quase irreconhecível de tão reelaborada. O baixo sustenta a melodia numa combinação de notas dissonantes, dando até a (falsa e proposital) impressão de estar desafinado. Mas as guitarras também não deixam por menos, mandando super bem.
Aí vem um dos pontos altos do show: “Captain Hook”. Com mais de 11 minutos, que passam sem se perceber tamanha sua densidade musical, começa com um motivo minimalista de teclado constante, enquanto os outros instrumentistas deitam e rolam solando. Todos. Porém, o que parecia ser uma peça instrumental toma outro rumo, e somente ali pelos 4 min vira um rock magistral, arrastado e carregado, com a bela voz de Deerfrance fazendo coro e a de Cale – já bem rouca a esta altura do show – proferindo uma letra longa e melancólica. A canção vai num crescendo até estourar em energia e agressividade. De tirar o fôlego.
A linda “Only Time Will Tell” quebra o ritmo numa melodia suave feita por Cale especialmente para a afinada e doce voz de Deerfrance, tal como ele e Lou Reed faziam nos tempos de Velvet, como em “Femme Fatale”, para Nico, e “After Hours”, para Moe Tucker. Uma surpresa e uma graça especial ao show. Mas a delicadeza não dura muito tempo, pois a pancadaria volta novamente na faixa-título. Aliás, pancadaria “desordenada”. A destreza erudita de Cale o fez criar uma melodia sem um centro tonal claro, somente duas notas de guitarra que se repetem de quando em quando, transmitindo uma verdadeira sensação de sabotagem. Assim, as guitarras, o baixo, a bateria e as vozes se estabefeiam no espaço sonoro, cada uma tentando se encaixar dentro de uma harmonia vaga e dissonante. E a galera delira. Genial.
Para terminar, não podia ser diferente: uma marcha militar, “Chorale”, lenta e quase fúnebre. Fim da guerra e mensagem dada: todos perderam naqueles tempos de pós-Vietnã e Guerra Fria.
Um dos principais diferenciais de “Sabotage” para a grande maioria dos discos ao vivo é que todo o repertório é feito de canções inéditas compostas especialmente para esta performance. Ou seja, Cale pensou em um disco não com versões ao vivo de músicas já gravados em estúdio como geralmente se faz, mas, sim, num set list inédito que soasse como uma apresentação mesmo, tendo em vista que essas peças funcionariam melhor com a reverberação acústica ampla, ruídos, interferências e imprevisibilidades de um show. Um exemplo disso é a rouquidão de Cale naquele dia. O tom geralmente elegante e grave de sua voz dá lugar a uma interpretação rasgada e agressiva, o que intensifica a força das execuções, coisa que seria evitada em um estúdio.
Toda a trilogia, mas principalmente “Sabotage”, faz jus ao movimento punk, naqueles idos já reconhecido internacionalmente pelo sucesso de Sex Pistols,  The Clash,  Ramones e cia. mas de muito conhecida por Cale. É como se ele, artista essencial e influente para este movimento tão importante à história do rock e da cultura pop em geral, o avalizasse e dissesse aos punks: “É isso aí, gurizada”.

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A edição em CD, lançada em 1999, traz ótimos extras. Primeiro, as três faixas do EP “Animal Justice”, de 1977, uma espécie de “quarto da trilogia”. Por último, a excelente obra gothic-punk "Rosegarden Funeral of Sores", posteriormente gravada super bem pelos darks do Bauhaus  em que Cale, apenas com um sintetizador marcando a percussão, uma linha de baixo e uma guitarra urrando faz arrepiar a espinha de medo de qualquer vivente.

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FAIXAS:
1. "Mercenaries (Ready for War)"
2. "Baby You Know"
3. "Evidence"
4. "Dr. Mudd"
5. "Walkin' the Dog" (Rufus Thomas, Jr.)
6. "Captain Hook"
7. "Only Time Will Tell"
8. "Sabotage"
9. "Chorale"

 
Bônus tracks (CD 1999)

10. "Chickenshit"
11. "Memphis" (Chuck Berry)
12. "Hedda Gabler"
13. Rosegarden Funeral of Sores"

todas de autoria de John Cale, exceto indicadas

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