Curta no Facebook

domingo, 14 de outubro de 2012

cotidianas #184 - Esteira


Todos chegaram cansados da viagem. Horas dentro do avião, atraso no embarque, até turbulência pegaram. André era um dos que queria mais recolher a bagagem e ir para casa depois de dias trabalhando fora. Postou-se impaciente igual aos companheiros de voo em frente à esteira de bagagens, última etapa antes cruzar a porta de saída e rumar definitivamente para casa e cuidar, enfim, da sua vida.


"Veia" - Rodrigues, Daniel
Os pertences ainda não circulavam na esteira ainda desligada, imobilidade esta que gerava aqueles minutos de inquietação e desconforto. Mas não só por causa do cansaço e da pressa; também porque este é sempre um momento delicado, tendo em vista que, forçadamente, fica-se lado a lado com estranhos sem poder sair, presos ali exclusivamente por causa daquilo que lhes pertence. É uma situação em que é possível enxergar na posição vertical aquelas mesmas pessoas que, se foram vistas dentro do avião, foi ou sentadas ou meio desconjuntadas acomodando as malas. Naquele ínterim, André pôde ver de pé, por exemplo, um homem careca troncudo e muito vermelho, cara de poucos amigos; uma loira carnuda de batom avermelhado e fresco que André não entendera em que momento entre o desembarque e a esteira ela conseguiu retocar; e um jovem bastante alto com cara de atleta, o qual desconfiava já ter visto na tevê jogando vôlei.

Seus olhos percorriam curiosos e silenciosos os outros, vendo se achava algo interessante a se fixar já que não tinha outra opção do que fazer. Tinha crianças, velhas, jovens, tudo gente muito normal. Até que, enfim, a esteira começou a se mover. Alegria geral. Fez-se aquele leve, porém irracional alvoroço que as pessoas não conseguem conter. Neste instante, veio à cabeça de André o recorrente pensamento de que sempre sua bagagem é das últimas a aparecer, não sabia o porquê. Mas tentava agora contrariar o próprio pessimismo, e torcia para que, dessa vez, fosse diferente, pois aguardava ansiosamente pelo que vinha.

Começaram a rodar as bagagens. A primeira apontou lá longe. Depois vieram outras, entre maletas, pacotes, bolsas, mochilas, caixas, até prancha de surf. Giravam em carrossel diante dos olhos atentos de todos, como que desfilando em uma vitrine de compras. A porta expulsava cada volume como um orifício escuro que se abria e eliminava o que já não lhe cabia mais; aquilo que, pressionando a saída, ansiava por ser expelido e ver a luz. Tal um organismo.

As pessoas iam pegando as suas malas. Colocavam-nas nos carrinhos e saíam; alguns felizes, outros aliviados, outros ainda mais estressados. André via tudo esperando sua vez com os olhos fixos na saída. Expectativa. Depois de várias passarem por ele, aumentando ainda mais a ansiedade, enfim, a sua chegou. As abas de borracha, feito um hímen, resistiram um pouco, mas logo foram vencidas pela força de expulsão daquele lindo bebê, todo lambuzado de sangue e líquido amniótico, com o cordão umbilical ainda grudado a si. Saiu do buraco movimentando os pés, as mãos e a cabeça, saudável a olhos vistos, e seu choro estridente ecoava no salão amplo do aeroporto, vencendo a atmosfera. André emocionou-se e encheu os olhos d’água. Ouviram-se aplausos empolgados. Comoção de todos: passageiros, funcionários, quem passava. O senhor vermelho, antes sisudo, surpreendeu-lhe, cumprimentou-o efusivamente. Outra senhora a quem André nem tinha visto antes também veio lhe dar os parabéns, contando que já tinha dois meninos e dizendo-lhe que filho é uma bênção de Deus. A loira de bastante carne, até então desdenhosa, olhava-o agora com um sorriso tímido, mas insinuante.

Até que os rolamentos contínuos da esteira fizeram com que a criança chegasse à altura de onde André estava. Ele abaixou-se, agarrou cuidadosamente o bebê e beijou-lhe a testa melada. Cessou o choro; só se ouviam agora os grunhidinhos de conforto pelo calor do colo. André deu meia-volta e rumou vitorioso a passos cuidadosos para o portão de desembarque dizendo baixinho ao ouvido do filho suas primeiras palavras de pai. Saiu ovacionado, sob mais aplausos, sumindo na distância depois de atravessar a porta da rua, que se abriu elegantemente dando-lhes passagem, como que dizendo: ”Tenha a bondade”.  Já com a bagagem na mão, uma senhora, enxugando as lágrimas, falou muito comovida ao senhor a seu lado:

- Ai, que coisa mais linda esse momento! Estou emocionada. Que feliz que deve ser esse homem. Como eu queria ter o que ele tem...

Nenhum comentário:

Postar um comentário